Editora: Companhia das Letras
ISBN: 978-85-359-1378-1
Tradução: Maria Lúcia Machado
Organização: Georges
Duby
Opinião: ★★★★☆
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Páginas: 680
Sinopse: Ver Parte
I
A
emergência do indivíduo: Abordagens da intimidade nos séculos XIV-XV – Philippe
Braunstein
“Proteção ou adorno, o
traje é o último invólucro da vida social antes dos mistérios macios do corpo. Voltemos
por um instante ao mestre peleteiro de Luca posto em cena por Sercambi e que teme
perder no banho sua identidade, ao mesmo tempo que se despoja de suas roupas: séculos
de vigilância cristã e de proibições moralizadas impedem-no de se reconhecer em
seu corpo opaco.
A nudez é o sinal de uma
regressão em relação à ordem coletiva, de uma ruptura com os círculos da sociabilidade
medieval; mesmo nos tímpanos das catedrais, eleitos e condenados estão ainda vestidos.
A nudez feminina é a luxúria, malsã e ruiva, tal como a vê Pisanello; é também a
exibição forçada das prisioneiras cativas entre as quais um imperador de romance
escolhe uma mulher ou das cenas de violência ao clarão das tochas. Quanto à nudez
masculina, está associada, nas representações literárias, aos fantasmas da loucura
ou da vida selvagem: o menino-lobo, o cavaleiro privado de senso não têm memória
nem gestos controlados, e uma nova pele os recobre; na catástrofe do baile dos Ardentes,
que recuava os limites do conveniente introduzindo na corte de Carlos VI o homem
selvagem, a opinião vive a sanção da proibição. Enfim, no cerimonial das execuções
públicas, os condenados apresentados à multidão são privados de suas roupas: os
enforcados de Pisanello, os de Villon, os esboços de Andréa del Sarto para as pinturas
de infâmia dos capitães florentinos de 1530, uns tantos pavorosos e grotescos fantoches
de camisa.”
“Evacuar. O cirurgião
Mondeville, autor da primeira obra consagrada em francês ao corpo entreaberto e
exposto, embalsamou Filipe, o Belo, e Luís X, o Teimoso, e lançou olhares sobre
as partes menos nobres do corpo, situadas sob o diafragma, ali onde, tendo sido
elaborados os humores nutritivos, os restos se acumulam e se purgam.
Sabe-se dos problemas
de edilidade com os quais se viram confrontados, no fim da Idade Média, organismos
urbanos de todos os portes, quando se tratou de dominar a evacuação dos restos.
Comissões de notáveis, arquitetos-chefes das municipalidades deliberaram sobre problemas
cotidianos, que não são mais que a multiplicação de problemas familiares e individuais.
Um olhar sobre a vida privada, desse ponto de vista, é um olhar sobre os banheiros.
Escapar à promiscuidade é ter retraits et aisements [reservados e banheiros]
onde é possível isolar-se por um instante. Os castelos, as cidades cercadas por
muralhas têm suas latrinas públicas, dando para os fossos: vemo-las ainda dispostas
na sala dos guardas do castelo dos condes de Gand. A cidade de Nuremberg tinha,
no século XV, sentinas abertas, paralelas ao fundo das casas e perpendiculares ao
rio; os restos que se acumulavam, na falta de corrente, deviam ser periodicamente
carreados e espalhados fora dos muros. As contas de reparos nos castelos dos duques
da Borgonha, os processos de vizinhança estudados por S. Roux sobre a montanha Sainte-Geneviève
mostram os cacifes do conforto privado; quando Dürer se aloja em um palácio de Veneza,
em 1506, não deixa de indicar esses banheiros na planta, andar por andar, que desenha
da casa.
Há uma ocasião em que
a promiscuidade necessária viola o pudor, é a longa viagem de galera, que impõe
aos peregrinos de Jerusalém, confundidas todas as ordens, o olhar mútuo e involuntário
sobre suas posturas íntimas. O frade dominicano Félix Faber, de Ulm, que foi duas
vezes à Terra Santa, em 1480 e 1483, redigiu um texto de realismo cru para o uso
de seus sucessores: o aventureiro, voltando à cela íntima de seu convento suábio,
narra suas aventuras e dá publicamente alguns conselhos de comportamento privado:
Como disse o poeta: merda
madura é carga insuportável (ut dicttur metrice: maturum stercus est importabile
pondus). Algumas palavras sobre a maneira de urinar e de fazer suas necessidades
em um navio.
Cada peregrino tem perto
dele em sua pequena cama um urinol — recipiente de terracota, frasco — no qual urina
e vomita. Mas como o local é estreito para a multidão que contém, e além disso escuro,
e como há muitas idas e vindas, é raro que esses recipientes não estejam
virados antes do amanhecer. Regularmente, com efeito, levado por uma necessidade
urgente que o obriga a levantar-se, um desajeitado derruba à sua passagem cinco
ou seis urinóis, espalhando um odor intolerável.
De manhã, quando os peregrinos
se levantam é que seu ventre pede piedade, eles sobem à ponte e se dirigem para
a proa, onde de um lado ao outro do contraforte estão dispostas latrinas. Forma-se
por vezes diante desses locais uma fila de treze pessoas ou mais que esperam tomar
lugar por sua vez no assento, e não é constrangimento, mas irritação que sê exprime
(nec est ibi verecundia sed potius iracundid) quando alguém se demora demais. Eu
comparava de bom grado essa espera à das pessoas que se confessam em tempo de Quaresma,
quando, em pé, irritam-se com confissões intermináveis e esperam sua vez com mau
humor.
A noite, é uma rude empresa
aproximar-se das latrinas em razão da multidão deitada e adormecida de um extremo
ao outro da galera. Aquele que para lá quer dirigir-se precisa passar por cima de
mais de quarenta pessoas, e a cada passo deve transpor alguém; de um degrau ao outro,
arrisca-se a dar pontapés em um passageiro, ou escorregando entre dois degraus,
a cair mais abaixo sobre um adormecido. Se, na passagem, esbarra em alguém, não
tardam as injúrias. Aqueles que não têm medo nem vertigem podem subir à proa escalando
as bordas do navio e impelir-se para a frente de corda em corda, o que fiz muitas
vezes apesar do risco e do perigo. Pode-se também, saindo pelas escotilhas dos remos,
passar sentado de um remo ao outro; isso não é para os temerosos, pois sentar-se
a cavalo sobre os remos é perigoso, e os próprios marítimos não se seguram ali.
Mas é com tempo ruim que
as dificuldades se tornam consideráveis, quando as latrinas são continuamente inundadas
por vagalhões e os remos dispostos sobre os bancos. Ir à latrina em plena tempestade
é expor-se a ficar completamente encharcado; assim, muitos passageiros tiram suas
roupas e se dirigem aos locais inteiramente nus. Nessa diligência, o pudor (verecundia)
tem muito a sofrer e não imprime senão mais comoção às partes vergonhosas (verecunda).
Aqueles que não querem fazer-se notar dessa maneira vão acocorar-se em outros locais,
que sujam, o que acarreta rumores, tumultos, e desconsidera pessoas honoráveis.
Enfim há aqueles que enchem seus recipientes perto de sua cama, o que é infecto,
envenena os vizinhos e só pode ser tolerado dos doentes, aos quais não se poderia
querer mal: algumas palavras não bastariam para contar o que tive de padecer de
um vizinho de leito doente.
O peregrino deve zelar
com cuidado para não se conter, levado por um falso pudor, e também para não afrouxar
o ventre: as duas atitudes são nocivas ao viajante embarcado. No mar, fica-se facilmente
constipado. Darei ao peregrino um bom conselho de higiene, é de se dirigir todos
os dias três ou quatro vezes as latrinas, mesmo que uma necessidade natural não
o exija, a fim de contribuir por meio de esforços discretos para fazer funcionar
a evacuação; e que não se desespere se ela não se produzir à terceira ou quarta
vez. Se ele ali for bem frequentemente, se soltar seu cinto, se desatar todos os nós
de suas roupas sobre o peito e o ventre, obterá a evacuação ainda que seus intestinos
contivessem pedras. Esse conselho me foi dado por um velho marinheiro, uma vez quando
estivera terrivelmente constipado durante vários dias; e no mar não é um meio seguro
tomar pílulas ou supositórios (pílulas aut suppositoria accipere), porque ao se
purgar demais corre-se o risco de inconvenientes mais graves que a constipação.
O vivo interesse desse
texto, baseado em uma experiência pessoal, é em primeiro lugar de inscrever-se como
um marco precursor na descrição da intimidade corporal. Com mais humor que Samuel
Pepys, menos narcisismo perverso que James Joyce, o dominicano de Ulm faz entrar
no domínio público as funções naturais menos brilhantes. O embarque obriga: conveniências,
pudor ficam prejudicados, mas cada um passa por isso por sua vez sob o olhar dos
outros. Por jogos de palavras, uma comparação irreverente e a análise ponderada
de casos de figuras digna de um Kriegsspiel, a boa saúde do frade Félix oferece,
sobre um capítulo delicado, variações de moralista que se vangloria de escrita.
A informação que dá sobre a existência de supositórios também merece ser sublinhada,
assim como a transmissão oral de práticas de saúde — aqui de homem a homem
— que constituem a economia de prescrições medicinais. A verve do autor desculpa
mesmo os movimentos incontrolados suscitados pelo olhar sobre o sexo dos outros.
Contrariamente ao que escreveu três séculos antes Guibert de Nogent em sua autobiografia,
esses movimentos não revelam maus pensamentos, mas a existência de mecanismos complexos
impulsionados pelo olhar: todos os movimentos do corpo estão no espírito.”
“Sabe-se como a pedagogia
ilustrada do cristianismo difundiu amplamente, desde a origem, signos cuja riqueza
de sentido era acessível a todos sem supor a organização lógica de um espaço: a
imaginação e a memória permitiam à maior parte dos fiéis decompor, isolar e reunir
os elementos de uma cena pintada ou esculpida. A partir do século XIV, estabelece-se
um outro tipo de representação figurada, fundada na sugestão de uma liberdade de
movimento das figuras no espaço: os gestos, as paredes fictícias, a profundidade
dos planos supostos, em uma palavra, o trompe-l’oeil, faziam da perspectiva
uma categoria nova das formas simbólicas. O que somos tentados a avaliar como uma
evolução para o realismo da representação, no final da Idade Média, é uma elegante
simulação do real, que satisfaz uma clientela para quem a riqueza repousa nos objetos,
e o pensamento, no espaço que os une. Os verdadeiros devotos, ainda que fossem os
pobres e os ignorantes com quem se preocupa um Gerson, permanecem apegados a imagens
sensíveis, cuja contemplação — voltaremos a isso — renova incessantemente o poder
pelo símbolo. Essa é a verdadeira aposta do debate que se instaurou pela imagem
da Renascença entre o profano e o sagrado, e que repousa sobre os caracteres físicos
e culturais da percepção.
A notação das cores não
depende menos de uma abordagem do íntimo que a percepção do espaço. Desse ponto
de vista, a heráldica, a moda do vestuário, a pintura de interior nos persuadiriam
à primeira vista de que os homens do século XV tinham o mesmo gosto pelos contrastes
e o mesmo senso das nuanças que nós. Esquecemos muitas vezes o que o valor simbólico
das cores acrescentava ao encanto de uma obra enquanto intenções então percebidas
e hoje ocultas. Mais estranho ainda é o contraste entre o aparente realismo da pintura
e da escultura dos séculos XIV e XV e a pobreza do vocabulário descritivo nos textos
contemporâneos.”
“Aguçada pela memória
imediata, a expressão dos sentimentos íntimos era, por outro lado, estimulada pelo
tom monótono e inebriante da leitura em voz baixa, esse murmúrio da oração ou da
confissão, a “voz da alma”, recomendada pelo Concilio de Latrão de 1214. Era-o também
pela técnica da repetição contável, que pertence às formas mais antigas da prática
religiosa — já que o cordão de contas, ancestral do terço, é atestado no século
IV. A inserção de um Pater depois de dez Ave, invenção de um cartuxo
de Colônia no começo do século XV, é uma etapa no processo complexo que liga estreitamente
a Ave Maria aos quinze mistérios da salvação: as fórmulas condensadas, clausulae,
visando encerrar a meditação no círculo das contas em que ela se expande, de preferência
a deixá-la vagabundear, e talvez se perder, desenvolvem no final da Idade Média
uma piedosa contabilidade, da qual por vezes se ridicularizou o automatismo sem
reter sua intenção ascética. Viu-se aí uma exacerbação ritualista, por aproximação
com as cifras elevadas, chegando ao milhar, de missas encomendadas por disposições
testamentárias. Na realidade, por seu formalismo repetitivo, a contagem dos 5500
ferimentos de Cristo ou dos mil passos ensanguentados da via dolorosa permitem desfiar
o tempo incomensurável do sofrimento e multiplicar até a vertigem os olhares instantâneos
do devoto sobre o mistério da Paixão.
Do mesmo modo que os sentimentos
pessoais expressos por cronistas do fim da Idade Média estão frequentemente ligados
a lugares e às lembranças agradáveis ou trágicas que evocam, assim também a pedagogia
das ordens mendicantes, preocupada com a salvação da maioria, pôs o acento nesses
objetos mediadores que são o rosário, popularizado pelo sucesso europeu da confraternidade
criada em Colônia em 1474, as relíquias, cujas coleções privadas se desenvolvem
por vezes até a mania, as imagens piedosas, que são contempladas na intimidade,
e as preces manuscritas, que se carregam consigo. A esse respeito, as descobertas
arqueológicas feitas sob os revestimentos de madeira do coro de Wienhausen, igreja
cisterciense da charneca de Luneburgo, esclarecem da maneira mais comovente os hábitos
da devoção privada desde o fim do século XIII. Ao lado dos alfinetes, das facas,
dos óculos com armações de madeira ou de couro encontrados sob as estalas dos cônegos,
descobriam-se as imagens caídas dos missais ou das roupas, gravuras sobre madeira
coloridas, relevos de papel prensado em moldes de chumbo, pequenos pacotes de ossadas
e de restos de seda, atestando o uso de relíquias ocultas. É a esse registro que
pertence a crucificação esquemática, esboçada a tinta, que Dürer carregava junto
ao corpo, e que não apresenta nenhuma pretensão à obra de arte.
Quais são os signos, as
imagens mais frequentemente reproduzidos? Não há nenhuma dúvida de que no final
da Idade Média as formas da piedade privilegiam representações ou alusões à humanidade
de Cristo e aos seus sofrimentos, mais que à sua realeza divina. Dado o caráter
muito elíptico do signo, a contemplação dos sofrimentos de Jesus e a compaixão do
fiel são despertadas por alusão a instrumentos (o chicote) ou a objetos (as tochas
do monte das Oliveiras) depositados pela narrativa bíblica no percurso que conduz
à “loucura” da cruz.
A esse domínio instrumental
pertence a representação das cinco chagas de Cristo que, em uma sociedade sensível
às armas e às divisas, constituem o brasão místico do Filho do Homem; ou, no centro
de uma estampa de objetos triviais e sagrados ao mesmo tempo, varetas, pregos, esponja,
escala..., o ferimento aberto do flanco de Nosso Senhor — em tamanho natural, esclarece
o comentário — que se destaca como uma auréola.
O “imenso apetite do divino”
de que falava Lucien Febvre e que Emmanuel Le Roy Ladurie resume em uma fórmula
brutal: “O Cristo, eles o amam sangrando”, nos remete ao realismo corporal da imitação
de Jesus Cristo: imitar não é adotar uma linha geral de conduta que reproduz imperfeitamente
o comportamento de um modelo perfeito; é, para os mais fervorosos dos cristãos,
quer estejam reunidos em piedosas confrarias ou isolados em seus exercícios espirituais,
reviver da maneira mais penosa para o corpo e para o espírito cada episódio
da Paixão. “Ter incessantemente no espírito” (frequenter in mente..., diz
G. Groote), preparar-se “por meio de piedosas efusões” (per pios affectiones...,
diz o capítulo sobre a missa da constituição dos Frades da Vida Cristã), considerar
“lentamente e com lágrimas” (são Boaventura em seu tratado de ensinamento aos noviços);
aí estão as disposições a que se deve submeter o devoto.
“Contempla”, escreve Boaventura,
“o suor de sangue, os golpes em pleno rosto, a sanha do chicote, a coroa feita de
espinhos, a derrisão e os escarros, a penetração dos pregos nas palmas das mãos
e dos pés, o erguimento da cruz, o rosto alterado, a boca descolorida, o amargor
da esponja, a cabeça que pende com todo o seu peso, a morte atroz [...].” O devoto
é chamado a detalhar todas as etapas de um suplício, a escrutar em câmara lenta
os signos e os efeitos da condenação à morte, a imitar pelo pensamento e em sua
carne a abjeta agonia infligida ao Salvador do mundo.”
“A oração. Tudo
é oração, segundo a teologia mística do chanceler Gerson, quando o fiei mais humilde,
o espírito mais simples (etiamsi sit muliercula vel ydiota) pratica sem deliberar
a elevação espiritual. O cristão pode fazer matéria de sua oração a todo espetáculo
que se apresente a ele. A devoção pessoal, enraizada a uma atitude de humildade
permanente, é disponibilidade para a vinda do Espírito Santo. A prece, escreve Gerson,
é “a cadeia que permite ao navio aproximar-se da margem, sem dele aproximar a margem”.
A meditação, fundada em um aprendizado da memória e em um treinamento da sensibilidade
mais amplamente difundidos no final da Idade Média do que o suporiam nossas categorias
intelectuais, conduz à contemplação. Se julgarmos pelos milhares de orações manuscritas
de toda natureza e de todo nível conservadas nos arquivos europeus, e que, às centenas,
apresentam as marcas de uma comovente espontaneidade, pode-se estimar que o hábito
da oração, isto é, de uma conversação íntima do ser com um poder superior, marcou
profundamente os aspectos mais secretos da vida privada nos séculos XIV e XV.
Como no caso das imagens,
não se trata de opor radicalmente uma oração oficial, litúrgica, e uma oração pessoal,
íntima: ao lado dos grandes textos do saltério, das célebres preces atribuídas aos
pais da Igreja e a místicos, difundidas por inumeráveis cópias e pela impressão,
deve-se entretanto constatar a extrema diversidade das orações redigidas, recolhidas,
proferidas em todas as ocasiões da vida cotidiana. Nota-se evidentemente a inflação
das preces marianas, os fenômenos de moda, que substituem, de uma geração a outra
ou de uma região a outra, invocações e intercessores, sem modificar o texto. Mas,
escritas para festas, para os dias da semana, para acompanhar as decisões, para
ações de graças após a provação, as preces conservadas muitas vezes deram livre
curso à expressão de uma efusão pessoal. Ao lado dos livros de horas cotidianamente
folheados, das coletâneas de cópias manuscritas em que as orações são vizinhas das
receitas e das fórmulas, conservaram-se preces escritas em pergaminhos enrolados,
costurados em roupas, encerrados em pequenas caixas, e que dão testemunho do papel
profilático que podiam desempenhar essas testemunhas materiais de um elo entre o
homem e o invisível.
O êxtase. Da meditação à oração,
as distâncias não são claramente marcadas; uma e outra são meios de acesso a uma
realidade mais vasta, mais alta, mais esclarecedora: o mundo do espírito se entreabre
sobre o mundo dos espíritos pela visão. Ainda que não se trate senão de uma manifestação
extrema da vida espiritual, o misticismo do final da Idade Média teve, através de
toda a Europa, uma repercussão que ultrapassa os limites da marginalidade. Se se
define o misticismo como a aniquilação de si mesmo deixando o lugar a Deus (o céu
sobre a terra), relatos autobiográficos ou “revelações” dão testemunho, através
das experiências assumidas e descritas até o indizível, dos encontros íntimos vividos
por homens, e sobretudo por mulheres, com o além. Desses diálogos com Cristo, a
freira Margaretha Ebner declara ter recebido muitas respostas, “impossíveis de transcrever
segundo a verdade deste mundo: pois quanto mais a graça abunda, menos é possível
exprimi-la por meio de pensamentos”.
Essas manifestações extáticas,
designadas desde o século XIII no mundo germânico pelo termo kunst, isto
é, por uma habilidade — técnica e disponibilidade — mais que por um estado, foram
objeto de análises psicológicas, psicanalíticas e clínicas que insistem com justa
razão nos aspectos corporais das experiências vividas; mas nenhuma interpretação
redutora das perturbações íntimas descritas pelos místicos pode diminuir a pura
e dolorosa verdade do amor descrito como um amor divino.
As visões de Margaretha
Ebner, freira em Medingen, morta depois de longos anos de sofrimentos, em 1351,
eram acompanhadas de uma excitação ou de uma paralisia sensível e motriz. A excitação
se traduzia por um transporte musical e luminoso e por uma espécie de júbilo do
corpo que se manifestava por um balbucio automático e uma língua de parte alguma:
Quando eu começava meu
Pater, meu coração era arrebatado pela graça e eu não sabia para onde ela me arrastava;
por vezes, incapaz de rezar, eu permanecia em uma alegria divina das matinas à prima;
por vezes me era aberto o caminho por onde chegava a palavra (Rede); por vezes eu
era erguida a ponto de não mais tocar a terra [...].
A paralisia provocada
pela evocação das dores da Paixão, depois apenas pelo enunciado do nome de Jesus,
traduzia-se, a intervalos cada vez mais próximos, por uma perda do uso dos membros
e da palavra: catalepsia, que Margaretha Ebner chama de swige, isto é, o
silêncio. Aí, estamos nos confins extremos da vida devota, com a admirável constância
do sujeito em anotar as etapas de um fogo devorador. A obstinação em dar testemunho
de uma aventura que abrasa sua vida nos vale as páginas mais livres e mais surpreendentes
da literatura afetiva ou amorosa escrita por mulheres na Idade Média.
Cristo é essa divina criança
que passeia no final do século XIV nos claustros dos mosteiros femininos. “Quem
é teu pai? — Pater Noster!”, responde a criança, que desaparece. Uma freira
de Adelshausen não deixou de gemer durante anos, noite e dia, inconsolável de não
mais ver o menino que encontrara uma vez. Mais feliz, Umiliana dei Cerchi guarda
longamente a lembrança maravilhada da visita do bambino. Violenta, Agnès
de Montepulciano recusa devolver à Virgem o bebê que lhe fora confiado por uma hora;
conserva da aventura uma pequena cruz, que a criança usava no pescoço. A identificação
com a Virgem, pelos cuidados atentos dirigidos a simulacros reais, bonecas de madeira
ou de estuque, ou a crianças de sonho, encontra sua fonte em um ensinamento de devoção
baseado na participação na história bíblica. O contato visual com as imagens sagradas
transmuda, por uma manipulação imaginária, as frustrações de jovens freiras. Margaretha
Ebner tinha em seu quarto um berço, suscitando um Menino Jesus que se recusava a
dormir para que ela o tomasse em seus braços.
Cristo é também, e mais
frequentemente, o noivo divino. Adèle de Brisach fala de uma “união com Deus que
chega ao beijo”; Christina Ebner estreita-se contra Cristo “como a cera onde o selo
se imprime”; Adèle Langmann vê Cristo entrar em sua cela e lhe dar um pedaço de
carne para comer (“Este é o meu corpo...”); Margaretha Ebner vê o Crucificado inclinar-se
para ela, os braços prestes a estreitá-la; ela repousa contra seu seio como o apóstolo
João e se alimenta dele. Essas cenas ardentes estão bem distantes das elegantes
e castas pinturas do casamento místico de santa Catarina executadas por Rafael ou
Perugino para um público que não teria admitido tão perturbadoras representações.
Os ímpetos, as visões
dos místicos não deixavam de levantar a questão de sua origem. Margaretha Ebner
sabe perfeitamente que o diabo tem o costume de aparecer como anjo de luz: “De súbito”,
escreve ela, “tudo se torna escuro em mim, a ponto de que chego a duvidar, e contra
minha vontade de crer”. Só o redobramento de suas dores físicas lhe devolvia a certeza
da salvação. Para Robert d’Uzès, a dúvida não é possível; ele realmente sofreu,
ao cair do dia, ao assalto da melancolia: “Satã quis enganar-me”, escreve ele, “aparecendo-me
sob a forma de Nosso Senhor Jesus Cristo”.
O ar rarefeito em que
se movem os místicos dá forma à presença real do divino e lhes permite descobrir
por sinais íntimos a veracidade de suas visões.
VER O INVISÍVEL
Grandes ou anônimos, outros
indivíduos transmitiram por meio de impressões ou de narrativas sua aptidão para
ver por momentos o invisível, sob todas as suas formas: sombrias ou luminosas visões
do sonho, pesadelos, encontros enigmáticos, breves relações com fantasmas ou com
mortos, que prolongam a realidade ou a desdobram.
Visão e angústia. Algumas dessas visões
se inscrevem na tradição antiga dos sonhos proféticos, e seu caráter literário e
político retira-lhes o valor de um testemunho sobre o íntimo; entretanto, sua forma
é rica em informações sobre as imagens mentais e as representações que se tinha
comumente dos espíritos. Para o futuro imperador Carlos IV, despertado em plena
noite em sua tenda, perto de Parma, por um anjo de Deus, a identidade do enviado,
que ele chama de “senhor” (Herr), não provoca nenhuma dúvida, assim como
o sobrevoo de vastas paisagens, suspenso pelos cabelos, ou o esgotamento físico
ao despertar, depois de ter percorrido nos ares tão grandes distâncias.
O conde de Zimmern é,
segundo a crônica familiar, a testemunha e o protagonista de uma cena fantástica
que é do domínio do legendário piedoso. Perdido em plena floresta, vê erguer-se
diante dele uma figura humana silenciosa, encarregada de lhe fazer uma revelação.
“Como ele falava de Deus, o conde aceitou cavalgar atrás dele.” A visão de um castelo
encantado, cujos habitantes imitam em silêncio um interminável festim, é uma peça
de resistência da literatura de encantamento, até o desaparecimento da paisagem
e da figura iniciática, em um odor de enxofre e gritos, que faz de súbito surgir
o inferno. O conde de Zimmern, horrorizado de ter assistido ao castigo eterno infligido
a seu falecido tio, decide imediatamente fundar uma capela expiatória, mas seus
amigos mal o reconhecem, “de tanto que seus cabelos e sua barba embranqueceram”.
Literatura? Pode ser. O pavor do conde é talvez, com as construções subsistentes,
o ponto de partida da narrativa.
Um outro relato, extraído
da autobiografia de Burkard Zink, burguês de Augsburg, registra uma angústia comparável,
porém ainda mais insólita, pois sem função moral e sem objetivo literário. Tendo
seguido, através de uma floresta da Hungria que ele não conhecia, dois cavaleiros
que o precediam no caminho, o autor vê estes últimos desaparecerem e se encontra
de súbito, ao cair do dia, detido por javalis ameaçadores diante de um castelo lúgubre.
Mal apelou para a ajuda de Deus, o castelo se esvaeceu e um caminho se desenhou,
permitindo-lhe sair da passagem perigosa: “Então vi que tinha sido enganado e que
seguira fantasmas ao cavalgar atrás dos dois personagens na floresta [...]. Quando
implorei a Deus e fiz o sinal da cruz, tudo o que era simulacro desapareceu diante
de meus olhos”.
A presença do Inimigo
se manifesta mesmo em um lugar fechado e guardado. Disso dá testemunho a insólita
anedota que Carlos IV fez questão de inserir no relato político e militar de seus
anos de juventude, em que o espírito maligno se faz conhecer pelo lançamento de
um copo de vinho ao chão e por um rumor de passos. Com o elemento de convicção encontrado
no piso ao amanhecer, o relato entra na categoria dos terrores inexplicados. O diabo,
jamais nomeado, é esse sopro de sangue no rosto, esse batimento de coração do pânico
que, na solidão e nos lugares hostis, ou nos locais fechados bruscamente invadidos,
faz surgir a ilusão e o incompreensível.
Essa inquietude difusa,
que por vezes se transforma em pavor, ajuda a compreender a dupla figura do diabo
medieval: a precisão irrealista de sua aparência para aqueles que não o encontraram,
e a opressora imprecisão de sua presença real para aqueles que ele persegue. Ao
cercar de perto os textos que descrevem sua intervenção na vida cotidiana dos homens
e das mulheres no final da Idade Média, constata-se que o demônio toma, a cada vez
que é reconhecido — isto é, quando desapareceu —, a aparência mais comum; e que
as alterações físicas (envelhecimento prematuro, letargia, manifestações histéricas)
provocadas por sua presença são reais. Existe, sem dúvida, uma experiência subjetiva
da presença do mal, mas, como já se disse, os demônios mais aterrorizantes são os
demônios interiores.
O real e o verdadeiro. Cercados pelos poderes
do alto e pelas potências inferiores, que, com a permissão divina, por vezes lhes
aparecem e os enganam, solicitados até o seu último suspiro a tomar partido entre
o bem e o mal cujas cortes cerradas ocupam o quarto dos agonizantes, os homens e
as mulheres, no final da Idade Média, têm os olhos abertos para o invisível.
Clérigos e ignorantes,
separados por tudo, salvo pela angústia, nobres e campônios, que a morte zombadora
estreita com o mesmo vigor, atravessam juntos um mundo ainda pleno e sussurrante,
em que para os melhores olhos são indecisas as fronteiras entre o que é real e o
que é verdadeiro.
Armande Rives, de Montaillou,
estava convencido, por tê-las encontrado frequentemente, de que as “almas têm uma
carne, ossos e todos os membros”. Algumas gerações mais tarde, o cavaleiro Jorge,
o Húngaro, pergunta ao anjo que o faz visitar o purgatório se os santos, que ele
vê, têm corpos. O próprio invisível está enraizado no corporal, prolongando a comunidade
dos mortos e dos espíritos sua vida terrena ao roçar por vezes os vivos. Todos os
eleitos serão um dia reunidos na imobilidade gloriosa da casa do Pai: domus
espiritual do paraíso, onde se projetam as estruturas de uma sociedade hierarquizada.
Mas tempos novos se preparam,
desde o século XIV, com a afirmação de si de indivíduos preocupados em perpetuar
sua imagem e sua memória neste mundo. Um grande movimento oriundo das sociedades
urbanas do Ocidente fez recuar sem trégua os limites do mundo conhecido e
os pilares do Céu, criando em torno da figura humana um espaço geométrico e insensível,
abandonando aos humildes o valor das lágrimas, da credulidade e do assombro.
Lancemos um último olhar
a esses objetos bem materiais, documentos e representações, cartas e crônicas, imagens
humildes ou sublimes, livros de horas folheados, registros em tabelião interrompidos
pela morte, restos de vestuário, pegadas frágeis e incertas deixadas sem comentários.
Nenhuma leitura, nenhuma conclusão daí sai irrefutável e definitiva, porque a busca
dos vestígios do íntimo está longe de ter terminado.”
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