Editora: Companhia das Letras
ISBN: 978-85-359-1378-1
Tradução: Maria Lúcia Machado
Organização: Georges
Duby
Opinião: ★★★★☆
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Páginas: 680
Sinopse: Tratando do período que se estende do ano mil até a Renascença, a obra
traça em linguagem acessível um vívido painel de instituições e costumes de fundamental
importância para a compreensão do surgimento do homem moderno. Recorrendo a documentos
diversos, como cartas, memórias, obras literárias, contratos e à cultura material,
os autores realizam um verdadeiro trabalho arqueológico em torno do ainda obscuro
domínio da vida privada ao longo destes cinco séculos na Europa.
1.
Abertura: Poder privado, poder público
– Georges Duby
2. Quadros:
- A vida privada nas casas
aristocráticas da França feudal – Georges
Duby
-
Parentesco: Dominique Barthélemy
- A vida privada dos notáveis
toscanos no limiar da Renascença – Charles de La Roncière
3.
Ficções:
Exploração
de uma literatura – Danielle Régnier-Bohler
4.
Problemas:
-
Os arranjos do espaço privado nos séculos XI-XIII – Dominique Barthélemy
-
Os arranjos do espaço privado nos séculos XIV-XV – Philippe Contamine
A
emergência do indivíduo
A
solidão nos séculos XI-XIII – Georges Duby
Abordagens
da intimidade nos séculos XIV-XV – Philippe Braunstein
1.
Abertura: Poder privado, poder público
– Georges Duby
“Paradoxalmente, quando
a sociedade se feudalizou, houve cada vez menos vida privada porque todo poder se
tornara cada vez mais privado.”
“Separada da igreja pela
morada dos monges, a dos noviços é um lugar transitório e como de gestação: opera-se
aqui, lentamente, a reprodução espiritual da comunidade; crianças oferecidas
muito jovens por sua linhagem aí são alimentadas, educadas sob a direção de um mestre;
quando sua aprendizagem está terminada, quando estão formados nas maneiras complexas
de se conduzir, quando sabem cantar, fazer o que é preciso, exprimir-se por sinais
nos tempos de silêncio, são transferidos para o meio dos adultos, solenemente. O
rito é de adoção, de integração. Em primeiro lugar, um ato pessoal de compromisso,
a profissão: é uma fórmula escrita, assinada, lida, depois depositada no altar,
diante da comunidade reunida; em seguida, gestos simbolizando, como os da sagração
de cavaleiro, a admissão em um grupo funcional: o ex-noviço termina de equipar-se,
revestindo a peça do vestuário monástico que ainda lhe falta, a cogula; uma mímica
de acolhida: o beijo de paz que o recém-chegado recebe em primeiro lugar do abade,
depois de cada um de seus irmãos; enfim, três dias de retiro, de recolhimento em
si mesmo, no íntimo, no secreto, no mais privado. Todos esses sinais, Como os ritos
prévios de vigília e de banho impostos ao cavaleiro novo, são os de uma morte seguida
de uma ressurreição; no entanto, notável é sobretudo o retorno, durante três dias,
à solidão. Uma prova. Para tornar-se monge, é preciso fortalecer-se no silêncio
total, a cabeça recoberta pelo capuz, o corpo pela cogula, noite e dia: é como um
invólucro, uma pequena casa no interior da grande, um casulo onde se opera a metamorfose,
um claustro interior, para um recolhimento, um retiro semelhante ao de Cristo na
sepultura, e para um renascimento, sob uma outra forma.”
“ORDEM E DESORDEM
Quanto à disposição dos
poderes que regiam essa sociedade complexa e em grande parte móvel, a identidade
com as estruturas monásticas é, de início, uma vez mais, notável: um pai, um só,
como no céu, que no entanto jamais devia agir sem conselho; um conselho masculino,
hierarquizado, os jovens sob o jugo dos mais velhos; um pai cujo poder se devia
a que, ocupando o próprio lugar de Deus, toda a vida na morada parecia emanar de
sua pessoa. A diferença, considerável na verdade, era que, nessa casa, não se vivia
em tão estreita proximidade dos anjos, em tão larga distância do carnal, a ponto
de a sociedade doméstica ser assexuada, devendo seu chefe, responsável por uma linhagem,
prolongar por uma nova geração sua existência e disseminar mulheres entre as casas
vizinhas a fim de com elas congraçar-se, portanto procriar. Sua função genital,
primordial, obrigava-o a possuir uma mulher em seu leito. Um casal estava estabelecido
no centro da rede dos poderes. O feminino encontrava-se posicionado, por certo,
sob o inteiro domínio do masculino; contudo, porque essa mulher era a esposa, porque
devia ser a mãe dos herdeiros — e, quando não conseguia, não se hesitava muito,
no século XI, em recusá-la —, uma parcela do poder de seu “senhor”, como ela dizia,
projetava-se sobre ela: “dama” (domina), ela também se mostrava dominante,
e na medida mesma em que, em posição de parceira sexual legítima e por suas capacidades
genéticas, contribuía de maneira decisiva para a extensão da casa.
Pois se tratava disso:
o privado que se viu sobretudo até o presente na defensiva, encolhido atrás dos
muros, em sua casca, a clausura, tendia, na realidade, como todo organismo vivo,
a abrir-se, a expandir-se, e tudo se ordenava na casa, especialmente a autoridade
atribuída a seu chefe, para que sua vitalidade estivesse em seu auge: sempre mais
parentes, sempre mais amigos, sempre mais servidores. Eis por que se descobre, no
mais profundo do castelo de Ardres, uma cela de fecundação e, conjunta, a incubadeira
onde amas-de-leite estavam estabelecidas para dispensar a esposa dos cuidados com
sua progenitura a fim de que, sem tardar, fosse novamente engravidada. Eis por que
as crianças, desde que atingiam a idade da razão, eram divididas em dois compartimentos
distintos: um cuidadosamente fechado, para ali conservar meninas, futuras mães,
até que fossem transportadas, uma após outra, em cortejo, para uma outra morada
da qual se tornariam damas; o outro aberto, onde os meninos não viriam alojar-se
senão de passagem, como hóspedes, pois eram soltos, lançados ao exterior para ali
apossar-se de tudo o que pudessem, especialmente esposas.
No entanto, o que saía
da fecundidade do pater famílias não bastava, e o primeiro dever do senhor,
após o de engendrar e de casar, sua preocupação maior, era a de levar a família
a crescer mais, atraindo, “conservando” comensais. Esse projeto governava a economia
doméstica: nenhuma intenção de investir, e se se tinha o cuidado de acumular reservas
no quarto, no celeiro, na adega, não era senão na previsão das festas em
que as riquezas da casa seriam alegremente esbanjadas. Constitutio expansae,
“organização da despesa”, tal é o título de um plano de reforma dos recursos que
foi transcrito em meados do século XII em um dos cartulários da abadia de Cluny.
Ele visava, com efeito, ajustar o rendimento do patrimônio às necessidades imperiosas
de uma indispensável largueza. Nos tempos feudais, a vida privada não estava de
modo algum friorentamente curvada sobre a poupança; ela se derramava em generosidades
expansivas a fim de multiplicar os amigos — a verdadeira riqueza, como repetiam
à saciedade as obras da literatura profana.
O patrono era obrigado,
consequentemente, a oferecer em sua casa satisfação plena das necessidades do espírito
e do corpo. As primeiras, na época, tinham precedência, em princípio, sobre as outras,
e, entre os serviços domésticos, os espirituais passavam por ocupar o nível superior.
Eles não eram prestados apenas na capela, mas também na sala, e mesmo no quarto,
pois o pai de família era o primeiro encarregado deles. Como no mosteiro, a função
paterna era pedagógica. O elogio do conde Baudouin II de Guines mostra esse “letrado”,
ele próprio incapaz de ler, colecionando livros, mandando traduzir os textos latinos
na língua que ele podia compreender, comentando as leituras que acabava de ouvir,
fazendo perguntas, discutindo, instruindo-se para melhor instruir. Mantinha junto
dele um pessoal auxiliar, em parte temporário — “mestres”, graduados da escola albergados
por algum tempo para trabalhar nas traduções, enriquecer a biblioteca, ou então
desses parentes integrados a uma comunidade eclesiástica, cônegos ou monges, que,
de passagem, beneficiavam seus irmãos, seus primos com seu saber especializado —,
em parte permanente — os clérigos domésticos, os capelães. Estes pregavam. No entanto,
seu senhor os empregava de bom grado também em Compor divertimentos, textos falados,
cantados, em língua vulgar, encenações, que sabia lhe valeriam, mais que os sermões
edificantes, o reconhecimento dos “amigos”.
Para agradar, com efeito,
ele se esforçava em vencer o tédio que espreitava esses guerreiros, esses caçadores,
durante as inevitáveis interrupções de sua atividade esportiva. Mas bem sabia que
os agradaria mais, que seria tanto mais obedecido, servido e amado se satisfizesse
os desejos de seus corpos. Aplicava-se então em conduzir os seus, tão frequentemente
quanto possível, à perseguição da caça, ao encontro de protagonistas, na batalha
ou no torneio. Zelava para que sua morada estivesse bem provida de mulheres para
todos os serviços, seu guarda-roupa fornido de “vestes”, como se dizia, suficientes
para as distribuições rituais, nas grandes festas. Sem esses presentes, esse “benefícios”
periódicos, como governar a família, como, sobretudo, cumprir honrosamente o ofício
patronal? Em 1219, Guilherme, marechal da Inglaterra, em seu leito de morte, está
distribuindo seus bens pessoais; legou todo o dinheiro aos homens de Igreja a fim
de que rezem por sua alma; lembram-lhe que ainda restam no quarto muitas togas de
escarlate, forradas de veiros, oitenta peles ao menos, todas novas e das quais se
poderia tirar bom preço para comprar muito mais orações; Guilherme se irrita: o
Pentecostes se aproxima, seus cavaleiros têm direito, nesse dia, a ornamentos novos,
e os terão; o senhor não pode falhar, e sua moral lhe ordena, no próprio limiar
do trespasse, dar precedência ao dever de munificência doméstica sobre a preocupação
de sua salvação. Vestir, mas em primeiro lugar saciar, proporcionar o mais abundante,
o mais saboroso, o que agrada à boca e se distingue do comer vulgar, esse companagium
que, para os senhores e seus hóspedes, não constitui, como para o comum dos servidores,
simples e discreto acompanhamento do pão, mas o principal do alimento. E, para isso,
jamais olhar a despesa. Pois, no quarto onde procriava, na sala onde alimentava,
o senhor não detinha poder em seu privado senão na proporção de sua aptidão para
dar, e sempre mais.
Como o abade do mosteiro,
ele era ajudado em sua gestão por oficiais domésticos cujas tarefas se dividiam,
na era feudal, mais ou menos como, ainda há pouco, no palácio carolíngio. Seu primeiro
auxiliar era sua esposa, detentora de um poder análogo àquele de que dispunha a
rainha no século IX: ela dirigia tudo o que na casa era feminino — e assimilado
ao feminino, como as crianças de pouca idade —, reinava sobre as reservas e controlava
o que entrava na morada. Vê-se, por exemplo, a mulher do senhor Ardres vigiando
o recebimento das taxas arrecadadas sobre as famílias camponesas, e porque uma dessas
dependentes, muito pobre, não pudera entregar o carneiro prescrito, a dama, em compensação,
fez com que lhe fosse dada uma menina; criou-a e, quando estava suficientemente
crescida, casou-a, acasalou-a, explorando suas capacidades de procriação, zelando
como um bom pastor para que o rebanho aumente, cooperando com seu marido na extensão
da “família”; vemo-la, da mesma maneira, governando a proliferação doméstica, tomar
sob sua proteção tal criada grávida e, restabelecendo a boa ordem, obrigar o pretenso
sedutor a desposá-la, imperiosa, corrigindo, aterrorizando todas as mulheres na
morada, curvando-as à sua vontade — como também acabara por dobrar-se, segundo Jean
de Marmoutier, sob a pressão da rainha da França, a órfã de um grande vassalo que
o soberano pretendia casar contra a sua vontade, que ele próprio não podia forçar
e que encarregara sua esposa de quebrar-lhe a resistência.
Outros adjuntos assistiam
o senhor e a senhora, encarregados cada um de um “ofício” (ministerium),
da direção de um lerviço especializado. O regulamento interno de uma enorme casa,
a corte de Hainaut, proporciona uma das visões mais claras desses serviços e de
seu funcionamento. Em 1210, dois velhos, escolhidos entre os mais “privados” do
penúltimo conde, seu irmão bastardo e seu capelão, tinham vindo recitar publicamente
o costume mais antigo, que se queria restabelecer e fixar. Tudo tendia então a institucionalizar-se,
a enrijecer-se, e os ofícios, lucrativos, estavam já inteiramente apropriados, vendáveis
com o acordo do patrono, hereditários, alguns possuídos por mulheres, ou por maridos
autorizados por suas esposas, ainda que, normalmente, o filho mais velho sucedesse
a seu pai morto ou muito idoso após ter aprendido, herdeiro presuntivo, o “ofício”
na curia. A despeito de tal esclerose, os “ministeriais” continuavam a ser
considerados como membros plenos da família, comendo com o senhor, por certo dormindo
na casa, providos de um cavalo, o que os situava acima do comum, até mesmo de dois
se eram cavaleiros; todos os anos, recebiam as “vestes”, um manto e uma túnica;
além disso, a “livrée”, isto é, pagamentos para completar a seu modo seu equipamento;
enfim, para aqueles encarregados do serviço de armas, um soldo — como os commilitones
do conde, seus companheiros de guerra que cavalgavam mais proximamente a seu lado,
em seu conroi [tropa a cavalo], a equipe de combate muito estreitamente unida;
não se trata deles nesse documento, mas sabe-se que eram da mesma idade (coetani)
que o chefe, na maioria seus parentes, seus camaradas desde a infância, sagrados
cavaleiros no mesmo dia que ele, formando na casa um corpo mais unido, mais privado,
semelhante ao colégio dos cônegos, e situados, parece, como os cônegos, acima dos
simples ministeriais. Estes, no entanto, viviam igualmente na estreita intimidade
do senhor, obrigados a acompanhá-lo em todas as suas expedições militares “para
defender seu corpo”.”
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2. Quadros: a vida privada
nas casas aristocráticas da França feudal – Dominique Barthélemy
“A sociedade dita feudal
reconhece a virtualidade de tais relações entre amigos carnais, em todas as linhas,
e frequentemente as atualiza. O belo casamento de Guillaume de Grandmesnil resulta
“em grande honra para sua parentela” (in magno honore consanguinitatis sue).
O enforcamento, em terra de Nesle, de um cavaleiro-salteador envergonha seus primos:
embora estranhos a esses delitos e pouco sensíveis a seu suplício, deles se queixam,
mas em vão, a são Luís (Guillaume de Saint-Pathus). Essas solidariedades amplas,
contrariamente ao que imagina, com muitos outros, Marc Bloch, não entravam
de maneira nenhuma o indivíduo. Dão-lhe, ao contrário, a ocasião de safar-se de
embaraços: de extorquir contradoações aos estabelecimentos religiosos, de se convidar
como parasita na casa dos primos afastados e de ir-se “para a guerra” com as alegrias
do esporte e a esperança do saque. Elas são a garantia da liberdade do nobre, o
critério de sua classificação, o trampolim de sua carreira: constituem o sucesso
de sua vida pública.”
“Carlos Magno também queria
suprimir a “faida”, pela ação conjunta deles em apoio à dos condes. Essa “faida”
(o feud em inglês) era o direito de vingança, a guerra privada da altíssima
Idade Média, tanto mais vigorosa quanto mais livres os beligerantes, mais suscetíveis
quanto à sua honra — numa palavra, mais nobres. Ora, Carlos Magno mal a limitou.
E ela recupera todos os seus direitos depois de 880, na época dos castelos e dos
principados regionais ou microrregionais. No século XI, a vingança é legítima, quase
obrigatória, formalmente. Como que acidentalmente, um primo do conde de Anjou é
morto lá pelo ano de 1030 por um vassalo deste, Hamelin de Langeais. O conde Geoffroi
Martel se erige então em vingador do seu parente. Ameaça confiscar todo o feudo
do seu vassalo. Mas, dissuadido por mediadores, ele se contenta em tomar um moinho,
e se apressa a dá-lo de esmola à abadia de Vendôme, com medo de parecer, logo ele,
um homem tão elevado, estar vendendo a honra do seu parente. De fato, mais vale
perdoar, de maneira cristã e à moda real... Esse exemplo mostra quanto a ação vingadora
é inicialmente necessária; sugere também que nem sempre chega a seu termo mortal.
A “cultura da faide” (feuding culture) é muito mais e antes de tudo
uma cultura da negociação e do compromisso do que da violência. Stephen White mostra
isso na Touraine e até nas canções de gesta. (...)
Cuidado, em todo caso,
para não considerar a faida, por excesso de prejulgamento modernista, uma violência
fatal para todo o equilíbrio social: examinada com atenção, ela se impõe sem no
entanto se abater verdadeiramente com furor; sobretudo, ela não põe em xeque a estrutura
social. Ela coexiste inclusive com uma forma mínima de justiça pública, que nenhum
surto de construções “militares”, nenhuma erupção de fortalezas jamais destruíram
duradouramente.”
XXXXXXXXXXXXXXXXXX
3. A vida privada dos
notáveis toscanos no limiar da Renascença – Charles de La Roncière
“AS RELAÇÕES PRIVADAS
DAS FAMÍLIAS
Para as famílias, a abertura
ampliada de sua intimidade se faz de maneira mais simples e muito cotidiana. Essa
sociabilidade tem por quadro esses espaços próximos da morada conjugal que foram
definidos mais acima, e é vivida mais estreitamente no meio das linhagens aliadas,
dos vizinhos, dos amigos já apresentados. É vivida também de forma mais simples.
Os espaços externos previstos
para esse fim — loggie de consorterie, bancos construídos nas praças
etc. — são frequentemente para os homens um lugar tácito de encontro vesperal ou
matinal, para onde cada um se dirige quando faz bom tempo. Aos mais famosos (Mercato
Nuovo, Santo Apolinário, em Florença) as pessoas se dirigem de toda parte, e a companhia
numerosa aí forma um círculo. Mas as pessoas preferem muitas vezes a intimidade
muito simples das banquetas que flanqueiam sua casa, e é geralmente ali que se reúnem
à noite entre vizinhos, come è d’usanza. Os velhos evocam seu passado, suas
viagens, o estrangeiro etc. (Boccaccio). As pessoas riem ruidosamente dicendosi
novelle (Sacchetti). Mas adora-se sobretudo falar das mulheres; uma noite, cada
um escarnece a esposa do vizinho, uma outra noite, uma conversação mais picante
se organiza em torno do tema: como, em suas relações íntimas com a esposa, o homem
sempre acaba por ceder (Sacchetti). As conversas vão no mesmo andamento nas loggie
aristocráticas, e isso desde a manhã, entre os homens que ali se encontram a
cerchio. Mas os negócios da comuna aí estão frequentemente em jogo, e o privado
de linhagem aqui nos conduz ao domínio público.
Também se recebe muito
em casa e as pessoas se deslocam de bom grado de uma casa a outra. As crianças vão
cumprimentar seus avós, as mães, “como é seu hábito, dirigem-se à casa de suas filhas
casadas para se informar se tudo vai bem” (Siena, 1360). Os primos se visitam, “Constância
[uma prima] vem frequentemente conversar comigo em casa” (Alessandra Strozzi, 1459).
Os consortes se encontram necessariamente a todo momento nesses blocos que
os albergam, e um incidente, mesmo menor, tem logo a capacidade de cristalizar sua
solidariedade. Basta que uma jovem mulher Acciaiuoli grite por brincadeira “Socorro”
em plena noite para que seu quarto se encha, num piscar de olhos, de parentes inquietos,
homens ou mulheres (Florença, século XIV). As pessoas se vêem entre amigos também,
prática calorosamente recomendada por L. B. Alberti, e os contatos são incessantes
entre vizinhos. Durante o dia, falam-se de uma porta a outra, de uma janela a outra
(instantâneos por vezes esboçados pelos pintores) e, entre vizinhos, as visitas
fazem parte da rotina. E depois, com a chegada da noite, quando o tempo não se presta
às conversações ao ar livre, acontece de serões sem cerimônia reunirem na casa de
uma família alguns casais ou mulheres, costume atestado em Florença no século XIV,
em Gênova também, cidade onde, no século XV, as matronas parecem conduzir o jogo,
“visitando-se reciprocamente e reunindo em suas casas companhias para os serões”.
A solicitude se torna
geral em torno dos doentes. Alberti, sempre ele, faz um dever imperioso de cada
um “não abandonar um doente de sua parentela [...] mas visitá-lo e ajudá-lo”. E
é bem esse o costume. Monna Alessandra Strozzi se mostra à cabeceira de primas convalescentes.
Camaradas cercam afetuosamente o jovem humanista Alichele Verini antes e depois
de sua operação (1485), e vemo-los conversar, brincar com ele e alegrá-lo com um
pouco de música. Uma solidariedade idêntica se revela cotidianamente em torno dos
doentes de todos os meios: estalajadeiro moribundo, velho percluso de gota, dona
de casa tomada de cólicas (foi envenenada). Grupos de velhos companheiros vêm comer,
brincando com o gotoso; uma comadre reconforta o moribundo “como fazem todas elas”
(Sacchetti); vizinhas devotadas arrumam o leito da vítima. Essa solidariedade é
tão bem-aceita e tão esperada que muitas vezes se instala o doente no quarto do
andar térreo, nível por excelência do privado ampliado, para aproximá-lo da porta
e dos visitantes (às vezes também para afastar o contágio, mas isso jamais é atestado).
Apenas o terror, acarretado pelas pestes, estanca (salvo exceção) essa assistência,
prática tão fundamental do privado.
Para chegar talvez ao
essencial, beber, comer junto, umas tantas ocasiões de manifestar e de manter mais
estreitamente as solidariedades do privado ampliado. Um simples copo, oferecido
no andar térreo, não compromete muito, e tem-se frequentemente a oportunidade de
beber perto de casa para festejar, por exemplo, a chegada do vinho novo à casa de
um vizinho (Sacchetti), e nada impede de trazer desconhecidos. Subir ao primeiro
andar para uma verdadeira refeição é um sinal maior de familiaridade, e essa hospitalidade,
muitas vezes oferecida aos parentes, amigos, vizinhos do privado ampliado — mas
não a todos, dada a intimidade que comporta —, lhes é mais estreitamente reservada
(salvo a ostentação dos banquetes). Os padres gostam de receber seus paroquianos
e de tratá-los bem, como alegres bebedores que são (segundo os narradores). Reciprocamente,
convida-se também de bom grado um padre amigo, ou seu cura, e é ele quem preside,
tendo à sua direita o dono da casa, ele próprio flanqueado por sua mulher, depois
por suas filhas. Pode-se também receber os pintores a quem se encomendam trabalhos,
e a intimidade leva por vezes até a receber os amigos à mesa de manhã e à noite.
Mas a acolhida às refeições está antes de tudo reservada à parentela, e é praticada
habitualmente entre primos no círculo dos Strozzi, tanto de manhã como à noite (Florença,
c. 1450).
Nos meios aristocráticos,
a mobilidade inerente ao gênero de vida (viagens, veraneio) e à época (deslocamentos
à frente das grandes companhias, a peste) acarreta o desenvolvimento de uma hospitalidade
mais completa. As pessoas se recebem para dormir e veem-se hóspedes instalar-se
por semanas. O quarto de amigos está lá, e é posto de bom grado à disposição dos
que chegam. Alessandra Strozzi se aproveita disso frequentemente para si mesma (em
1449, por exemplo), ora na casa de sua filha Mugello, ora na casa de um irmão, ora
na de um primo nos arrabaldes próximos. Ela também sabe acolher outrem. Vemo-la,
por exemplo, receber com solicitude um primo-irmão de seu marido, com quem trabalham
seus dois filhos em Nápoles e que está de passagem por Florença. Hospeda-o durante
oito dias, abre sua sala e sua mesa a toda a multidão de parentes, aliados, amigos,
vindos para cumprimentá-lo, alimenta-o com fausto em todas as refeições (Florença,
1449). A prática da hospitalidade não está reservada aos burgueses. As pessoas modestas
também sabem, segundo seus meios, abrir sua casa a seus próximos ou amigos. Na falta
de um quarto, oferecem um leito em um quarto já ocupado, um lugar em uma cama já
ocupada ou um simples monte de palha na estrebaria.”
“Mas o poderoso, o implacável
foco no qual se purificam e se afinam as sensibilidades é certamente o sofrimento
físico, ele próprio precursor da morte. Nesse mundo em que o hospital é antes de
tudo destinado aos pobres, os doentes abastados permanecem em casa. Ali eles ficam
acamados, sofrem, agonizam, morrem. Sofrer e ver sofrer, morrer e ver morrer permanecem
experiências privadas, experiências multiplicadas pela amplidão das famílias, pela
precariedade da saúde, pela brutalidade frequente dos cuidados.
Correspondências, diários
privados, contabilidades, narrativas e novelas, tudo ilustra em primeiro lugar a
presença obstinada da doença nos lares. Um tio hidrópico de 35 anos, o ventre inchado
como um odre, está de cama há seis meses na família de Michele Verini (1480). Um
golpe recebido no baixo ventre obriga o próprio Michele a permanecer muito tempo
deitado em casa (1485-1487), e é aí que nele se pratica a ablação de um testículo.
Seu contemporâneo, Orsino Lanfredini, vê aos treze anos duas de suas irmãs caírem
gravemente doentes de sarampo (maio de 1485), e naturalmente cuida-se delas no domicílio
de seus pais. Ter em casa um familiar de cama por várias semanas é coisa corrente
em um lar. Os doentes de malária abundam por toda parte. Experiência bem mais grave,
os pestíferos ficam de cama em casa, e a maior parte dos testamentos é ditada por
um entrevado in domo sua, em sua casa. Até mesmo os domésticos os moralistas
desejariam ver cuidados na casa de seu patrão e por este, conselho certamente seguido.
Mas se a doença se agrava, hesita-se menos em enviá-los ao hospital, certificando-se,
como o faz Alessandra Strozzi, da qualidade dos cuidados que ali receberão.
Todos esses males, incluídos
os mal-estares, que têm todos eles o domicílio por cenário, reúnem as indisposições
hoje tratadas em casa e os estados gravíssimos reservados em nossos dias aos
hospitais. Aproximar-se da doença doméstica é então muito frequentemente aproximar-se
do sofrimento, um sofrimento muitas vezes fugidio, mas também longo, duro, e mesmo
insuportável, de cuja presença obsedante ninguém na casa escapa. O tio de Michele
Verini, o hidrópico, perpetuamente sedento, alerta toda a casa com seus clamores:
quer vinho. O próprio Michele, cinco anos mais tarde, sofre muito com seu ferimento,
e a intervenção cirúrgica é um calvário. Desde então, o sofrimento não o abandona
mais. Ele o mantém desperto durante toda a noite. A solicitude de seus amigos pode
enganar sua dor; jamais a expulsa. Quanto mais o tempo passa, mais ele sofre “de
um mal atroz”. Monna Ginevra, mulher do memorialista Gregorio Dati, que acaba de
dar à luz, permanece acamada em casa. Ela não se recupera e sofre o martírio (Florença,
1404). As grandes crises intoleráveis são particularmente perturbadoras. Giovanni
Morelli jamais pôde afastar de seus olhos, de seu coração, de sua imaginação, os
momentos atrozes da última doença de seu filho Alberto. Uma segunda-feira de manhã,
o pobre menino (ele tinha dez anos) foi acometido na escola de sangramentos de nariz,
de náuseas, de cólicas. Depois a febre não o deixou mais. Ao fim de dois dias, em
meio a vômitos, uma viva dor tomou-o na virilha. Seu estado piorou dia a dia. O
sofrimento era tão forte, tão torturante, sem uma única hora de descanso em dezesseis
dias, que ele não parava de gemer, de gritar. Cada um em torno dele, por mais endurecido
que fosse, estava transtornado.
Acamados em casa, ali
esses entrevados morrem também. Morte de crianças (Alberto, dez anos), morte de
adolescentes (Matteo Strozzi aos dezoito anos, Orsino Lanfredini aos dezessete anos,
Michele Verini aos dezenove, Lucrezia, irmã de Orsino, aos doze anos), morte de
jovens mulheres (a bela Mea de mãos de marfim morre aos 23 anos, oito dias após
o nascimento de seu quarto filho, que não sobreviveu mais que seus irmãos mais velhos,
todos mortos antes dos dois anos), morte de adultos, morte de velhos: cada um no
lar é a testemunha repetida da perspectiva, do temor, da preparação (confissão,
viático, extrema-unção, testamento, orações), da encenação fúnebre (gritos das mulheres,
aparato, reunião) e do último cortejo da morte. Quando Valorino di Barna Ciuriani
termina, em 1430, aos 77 anos, o livro de ricordanze começado em 1324 por
seu avô, pode lançar um olhar melancólico sobre o estado civil registrado por ele
em suas últimas páginas e consagrado a seus próximos. Sem contar os recém-nascidos,
ele viu desaparecer, entre 25 e trinta anos, uma filhinha de um mês e seu pai de
58 anos; aos 37 anos, uma filha de catorze e um bebê de onze meses; aos 47
anos, duas filhas respectivamente de treze e quinze anos; e, desde que é sexagenário,
três filhos de cerca de 35 anos, sua esposa, um filho de 54 anos, uma neta de dezessete
anos. E ele só começa o seu diário aos 25 anos. A experiência da morte é muito mais
precoce. Seu filho Luigi, morto aos 36 anos, vivera esses mesmos lutos (irmãs de
catorze, quinze e treze anos; jovem irmão de onze meses, irmão de 31 anos) respectivamente
aos nove, dez, dezenove, vinte e 31 anos.
Morrer jovem e no sofrimento
é comum em todos os tempos, mas as epidemias que assolam a Europa depois de 1348-1350
multiplicam as mortes precoces e as mortes penosas, mortes tanto mais perturbadoras
e suscetíveis de exacerbar as sensibilidades quanto atingem redobradamente os mais
jovens, os mais inocentes, que são atingidos em casa, nesse mundo
que se pretenderia precisamente sempre mais retirado, sempre mais protegido, sempre
mais consagrado à intimidade, ao isolamento, à paz, que é o mundo privado.”
“O casamento, eis o que
conta, e, qualquer que seja a idade da moça, os pais não se comprometem levianamente
nessa aventura tão importante para seu mundo privado. A escolha deve amadurecer
por muito tempo, por vezes anos. Entram simultaneamente em jogo as diligências encetadas
pelos pais ou por terceiros — existem intermediários profissionais — e, tratando-se
aqui das filhas, a sedução da donzela. Nada chegará a bom termo se os rapazes não
forem atraídos. Não se trata de comprometer a donzela, mas, da casa onde é mantida
escondida, será exibida no enquadramento de uma janela, ou à entrada, no meio das
damas, com o aparato e a encenação de um quadro vivo. Com o rosto bem lavado — Monna
Pica repreende a esse respeito sua filha Caterina (de Siena): “Lava o rosto!” —,
bem penteada, bem graciosa, esse pequeno ícone hierático, que evitará sorrir demais,
atrairá, todos o esperam, a devoção dos rapazes. Se tudo corre bem, os pretendentes
não faltarão. Então se colocará o problema da seleção. Toda espécie de considerações
será levada em conta: o dote que a isso se destinará, o meio social do pretendente,
sua profissão (permite ela uma associação?, acarreta uma promoção para a moça?,
um genro artesão é um bom negócio para um camponês [Fiesole, 1338]), a habilidade
política dos seus, seu domicílio (próximo é melhor), o acordo ao menos tácito
da linhagem... e da moça, apesar de tudo. Ainda aí, os moralistas não são avaros
de conselhos. Dominici: “Casa tua filha em teu meio, com o dote desejado”. Alberti:
“Tomar mulher é procurar beleza, parentela, riqueza. Cercai-vos da opinião de todos
os vossos antepassados. Eles conhecem em detalhe as famílias, inclusive as avós,
de todas as candidatas”. Nenhum casamento é bem-sucedido sem conhecimento mútuo
dos privados.”
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