sexta-feira, 22 de outubro de 2021

A viagem do elefante, de José Saramago

Editora: Companhia das Letras

ISBN: 978-85-359-1341-5

Opinião: ★★★☆☆

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Páginas: 264

Sinopse: Não é todo dia que aparece um elefante em nossa vida, muito menos chamado Salomão. Pois é este formoso e meigo paquiderme, nascido em Goa, transportado pelos mares a Portugal no século XVI, o herói da viagem que aqui se conta.

“Por muito incongruente que possa parecer...”, assim começa o novo romance – ou conto, como ele prefere chamá-lo – de José Saramago, sobre a insólita viagem de um elefante chamado Salomão, que no século XVI cruzou metade da Europa, de Lisboa a Viena, por extravagâncias de um rei e um arquiduque. O episódio é verdadeiro. Dom João III, rei de Portugal e Algarves, casado com dona Catarina d'Áustria, resolveu numa bela noite de 1551 oferecer ao arquiduque austríaco Maximiliano II, genro do imperador Carlos Quinto, nada menos que um elefante. O animal viera de Goa junto com seu tratador, algum tempo antes. De início, o exotismo de um paquiderme de três metros de altura e pesando quatro toneladas, bebendo diariamente duzentos litros de água e outros tantos quilos de forragem, deslumbrara os portugueses, mas agora Salomão não passava de um elefante fedorento e sujo, mantido num cercado nos arredores de Lisboa. Até que surge a ideia mirabolante de presenteá-lo ao arquiduque, então regente da Espanha e morando no palácio do sogro em Valladolid.

Esse fato histórico é o ponto de partida para José Saramago criar, com sua prodigiosa imaginação, uma ficção em que se encontram pelos caminhos da Europa personagens reais de sangue azul, chefes de exército que quase chegam às vias de fato, padres que querem exorcizar Salomão ou lhe pedir um milagre. Depois de percorrer Portugal, Espanha e Itália, a caravana chega aos estreitos desfiladeiros dos Alpes, que Salomão enfrenta impávido.

A viagem do elefante, primeiro livro de José Saramago depois do relato autobiográfico Pequenas memórias (2006), é uma ideia que ele elaborava há mais de dez anos, desde que, numa viagem a Salzburgo, na Áustria, entrou por acaso num restaurante chamado O Elefante. Com sua finíssima ironia e muito humor, sua prosa que destila poesia, Saramago reconstrói essa epopeia de fundo histórico e dela se vale para fazer considerações sobre a natureza humana e, também, elefantina. Impelido a cruzar meia Europa por conta dos caprichos de um rei e de um arquiduque, Salomão não decepcionou as cabeças coroadas. Prova de que, remata o autor, sempre se chega aonde se tem de chegar.


 

“Sempre chegamos ao sítio aonde nos esperam.”

 

 

É o melhor dos estribeiros-mores, disse o rei. O secretário resolveu calar a adulação que consistiria em dizer que o estribeiro-mor não poderia ser e portar-se doutra maneira, uma vez que havia sido escolhido pessoalmente por sua alteza. Tinha a impressão de ter dito algo semelhante não há muitos dias. Já nessa altura lhe viera à lembrança um conselho do pai, Cuidado, meu filho, uma adulação repetida acabará inevitavelmente por tornar-se insatisfatória, e portanto ferirá como uma ofensa. Posto o que, o secretário, embora por razões diferentes das do estribeiro-mor, preferiu também calar-se. Foi neste breve silêncio que o rei deu voz, finalmente, a um cuidado que lhe havia ocorrido ao despertar, Estive a pensar, acho que deveria ir ver o salomão, Quer vossa alteza que mande chamar a guarda real, perguntou o secretário, Não, dois pajens são mais do que suficientes, um para os recados e o outro para ir saber por que é que o primeiro ainda não voltou, ah, e também o senhor secretário, se me quiser acompanhar, Vossa alteza honra-me muito, por cima dos meus merecimentos, Talvez para que venha a merecer mais e mais, como seu pai, que deus tenha em glória, Beijo as mãos de vossa alteza, com o amor e o respeito com que beijava as dele, Tenho a impressão de que isso é que está muito por cima dos meus merecimentos, disse o rei, sorrindo, Em dialética e em resposta pronta ninguém ganha a vossa alteza, Pois olhe que não falta por aí quem diga que as fadas que presidiram ao meu nascimento não me fadaram para o exercício das letras, Nem tudo são letras no mundo, meu senhor, ir visitar o elefante salomão neste dia é, como talvez se venha a dizer no futuro, um ato poético, Que é um ato poético, perguntou o rei, Não se sabe, meu senhor, só damos por ele quando aconteceu, Mas eu, por enquanto, só tinha anunciado a intenção de visitar o salomão, Sendo palavra de rei, suponho que terá sido o bastante, Creio ter ouvido dizer que, em retórica, chamam a isso ironia, Peço perdão a vossa alteza, Está perdoado, senhor secretário, se todos os seus pecados forem dessa gravidade, tem o céu garantido, Não sei, meu senhor, se este será o melhor tempo de ir para o céu, Que quer isso dizer, Vem aí a inquisição, meu senhor, acabaram-se os salvo-condutos de confissão e absolvição, A inquisição manterá a unidade entre os cristãos, esse é o seu objetivo, Santo objetivo, sem dúvida, meu senhor, resta saber por que meios o alcançará, Se o objetivo é santo, santos serão também os meios de que se servir, respondeu o rei com certa aspereza, Peço perdão a vossa alteza, além disso, Além disso, quê, Rogo-vos que me dispenseis da visita ao salomão, sinto que hoje não seria uma companhia agradável para vossa alteza, Não dispenso, preciso absolutamente da sua presença no cercado, Para quê, meu senhor, se não estou a ser demasiado confiado em perguntar, Não tenho luzes para perceber se vai acontecer o que chamou ato poético, respondeu o rei com um meio sorriso em que a barba e o bigode desenhavam uma expressão maliciosa, quase mefistofélica, Espero as suas ordens, meu senhor, Sendo cinco horas, quero quatro cavalos à porta do palácio, recomende que aquele que montarei seja grande, gordo e manso, nunca fui de cavalgadas, e agora ainda menos, com esta idade e os achaques que ela trouxe, Sim, meu senhor, E escolha-me bem os pajens, que não sejam daqueles que se riem por tudo e por nada, dá-me vontade de lhes torcer o pescoço, Sim, meu senhor.”

 

 

“Dando tempo ao tempo, todas as coisas do universo acabarão por se encaixar umas nas outras.”

 

 

Antes que te vás quero fazer-te uma pergunta, Sou todo ouvidos, Lembras-te de teres invocado há bocado todos os santos da corte do céu, Sim, meu comandante, Quer isso dizer que és cristão, pensa bem antes de responderes, Mais ou menos, meu comandante, mais ou menos.”

 

 

“Como o boieiro não sabia cavalgar, um caso flagrante, como se vê, das consequências negativas de uma excessiva especialização profissional, içou-se com dificuldade para a garupa do cavalo do sargento e lá foi, rezando, numa voz que ele próprio mal conseguia ouvir, um interminável padre-nosso, oração da sua especial estima por aquilo que nela se diz de perdoar as nossas dívidas. O mal, que em tudo está, e às vezes até deixa o rabo de fora para que não tenhamos ilusões sobre a natureza do bicho, vem logo na frase seguinte, quando se diz que é obrigação nossa de cristãos perdoar aos nossos devedores. O pé não joga com a chinela, ou uma coisa ou outra, resmungava o boieiro, se uns perdoam e outros não pagam o que devem onde está o benefício do negócio, perguntava-se.”

 

 

“Não é verdade que o céu seja indiferente às nossas preocupações e anseios. O céu está constantemente a enviar-nos sinais, avisos, e se não dizemos bons conselhos é porque a experiência de um lado e do outro, isto é, a dele e a nossa, já demonstrou que não vale a pena esforçar a memória, que todos a temos mais ou menos fraca. Sinais e avisos são fáceis de interpretar se estivermos de olho atento, como foi o caso do comandante quando sobre a caravana, em certa altura do caminho, caiu um rápido mas abundante aguaceiro. Para os homens da força, empenhados no penoso trabalho de empurrar o carro de bois, aquela chuva foi uma bênção, um ato de caridade pelo sofrimento em que têm vivido sujeitas as classes baixas. O elefante salomão e o seu cornaca subhro desfrutaram do súbito refresco, o que não impediu o guia de pensar no arranjo que lhe faria futuramente um guarda-chuva em situações como estas, principalmente no caminho para viena, de poleiro e protegido da água que caísse das nuvens. Quem não apreciou nada o líquido meteoro foram os soldados da cavalaria, habitualmente presumidos nas suas fardas coloridas, agora manchadas e pingonas, como se estivessem a regressar vencidos de uma batalha. Quanto ao comandante, esse, com a sua já provada agilidade de espírito, havia compreendido imediatamente que tinha ali um problema muito sério. Uma vez mais se demonstrava que a estratégia para esta missão fora desenhada por pessoal incompetente, incapaz de prever os acontecimentos mais correntios, como este de chover em agosto, quando a sabedoria popular já vinha avisando desde a noite dos tempos que o inverno, precisamente, é em agosto que começa. A não ser que o aguaceiro tivesse sido uma coisa de ocasião e que o bom tempo voltasse para ficar, tinham-se acabado as noites dormidas ao ar livre sob a lua ou o arco estrelado do caminho de santiago. E não só isso. Tendo de pernoitar em lugares habitados, era preciso que neles houvesse um espaço coberto para abrigar os cavalos e o elefante, os quatro bois, e umas boas dezenas de homens, e isso, como se pode calcular, era algo custoso de encontrar no portugal do século dezasseis, onde ainda não se tinha aprendido a construir naves industriais nem estalagens de turismo. E se a chuva nos apanha na estrada, não um aguaceiro como este, mas uma chuva contínua, daquelas que não param durante horas e horas, perguntou-se o comandante, e concluiu, Não teremos outro remédio que apará-la toda nas costas. Levantou a cabeça, perscrutou o espaço e disse, Por agora parece ter escampado, oxalá tenha sido só um ameaço. Infelizmente não tinha sido só um ameaço. Por duas vezes, antes de chegarem a porto salvo, se tal se podia chamar a duas dezenas de casebres afastados uns dos outros, com uma igreja descabeçada, isto é, só com meia torre, sem nave industrial à vista, ainda lhes caíram em cima duas bátegas, que o comandante, já perito neste sistema de comunicações, interpretou logo como dois novos avisos do céu, decerto impaciente por não ver que estivessem a ser tomadas as medidas preventivas necessárias, as que poupariam à ensopada caravana resfriamentos, constipações, defluxos e mais do que prováveis pneumonias. Esse é o grande equívoco do céu, como a ele nada é impossível, imagina que os homens, feitos, segundo se diz, à imagem e semelhança do seu poderoso inquilino, gozam do mesmo privilégio. Queríamos ver o que sucederia ao céu na situação do comandante, indo de casa em casa com a mesma cantilena, Sou oficial de cavalaria em missão de serviço ordenada por sua alteza o rei de portugal, a de acompanhar um elefante à cidade espanhola de valladolid, e não ver senão caras desconfiadas, aliás mais do que justificadamente, dado que jamais se tinha ouvido falar da espécie elefantina por aquelas paragens nem havia a menor ideia do que fosse um elefante. Queríamos ver o céu a perguntar se tinham por ali um celeiro grande ou, na sua falta, uma nave industrial, onde se pudessem recolher por uma noite os animais e as pessoas, o que de todo não seria impossível, basta que recordemos a peremptória afirmação daquele famoso jesus de galileia que, nos seus melhores tempos, se gabou de ser capaz de destruir e reconstruir o templo entre a manhã e a noite de um único dia. Ignora-se se foi por falta de mão de obra ou de cimento que não o fez, ou se foi por ter chegado à sensata conclusão de que o trabalho não merecia a pena, considerando que se algo se vai destruir para construí-lo outra vez, melhor será deixar tudo como estava antes. Proeza, essa sim, foi o episódio da multiplicação dos pães e dos peixes, que se aqui chamamos à colação é tão somente porque, por ordem do comandante e esforço da intendência da cavalaria, vai ser servida hoje comida quente para quantos humanos vão na caravana, o que não é pequeno milagre se considerarmos a falta de comodidades e a instabilidade do tempo. Felizmente não choverá. Os homens despiram as roupas mais pesadas e puseram-nas a secar em varas a jeito de que lhes aproveitasse o calor das fogueiras entretanto acendidas. Depois foi só esperar que o caldeirão da comida chegasse, sentir a consoladora contração do estômago ao cheirar-lhe que a sua fome vai ser finalmente satisfeita, sentir-se um homem como aqueles outros a quem, a horas certas, como se de benéfica fatalidade do destino se tratasse, alguém vem servir um prato de comida e uma fatia de pão. Este comandante não é como outros, pensa nos seus homens, incluindo os colaterais, como se fossem seus filhos. Além disso, preocupa-se pouco com hierarquias, pelo menos em circunstâncias como as presentes, tanto assim que não foi comer à parte, está aqui, ocupa um lugar ao redor do lume, e, se até agora tem participado pouco nas conversas, foi só para deixar os homens à vontade. Aqui mesmo um da cavalaria acaba de perguntar o que tem andado na cabeça de todos, E tu, ó cornaca, que raios vais tu fazer com o elefante a viena, Provavelmente o mesmo que em lisboa, nada de importante, respondeu subhro, irão dar-lhe muitas palmas, irá sair muita gente à rua, e depois esquecem-se dele, assim é a lei da vida, triunfo e olvido, Nem sempre, Aos elefantes e aos homens, sempre, embora dos homens eu não deva falar, não passo de um indiano em terra que não é sua, mas, que eu conheça, só um elefante escapou a esta lei, Que elefante foi esse, perguntou um dos homens das forças, Um elefante que estava moribundo e a quem cortaram a cabeça depois de morto, Então acabou-se tudo aí, Não, a cabeça foi posta no pescoço de um deus que se chama ganeixa e que estava morto, Fala-nos desse tal ganeixa, disse o comandante, Comandante, a religião hinduísta é muito complicada, só um indiano está capacitado para compreendê-la, e nem todos o conseguem, Creio recordar que me disseste que és cristão, E eu recordo-me de ter respondido, mais ou menos, meu comandante, mais ou menos, Que quer isso dizer na realidade, és ou não és cristão, Batizaram-me na índia quando eu era pequeno, E depois, Depois, nada, respondeu o cornaca com um encolher de ombros, Nunca praticaste, Não fui chamado, senhor, devem ter-se esquecido de mim, Não perdeste nada com isso, disse a voz desconhecida que não foi possível localizar, mas que, embora isto não seja crível, pareceu ter brotado das brasas da fogueira. Fez-se um grande silêncio só interrompido pelos estalidos da lenha a arder. Segundo a tua religião, quem foi que criou o universo, perguntou o comandante, Brama, meu senhor, Então, esse é deus, Sim, mas não o único, Explica-te, É que não basta ter criado o universo, é preciso também quem o conserve, e essa é a tarefa de outro deus, um que se chama vixnu, Há mais deuses além desses, cornaca, Temos milhares, mas o terceiro em importância é siva, o destruidor, Queres dizer que aquilo que vixnu conserva, siva o destrói, Não, meu comandante, com siva, a morte é entendida como princípio gerador da vida, Se bem percebo, os três fazem parte de uma trindade, são uma trindade, como no cristianismo, No cristianismo são quatro, meu comandante, com perdão do atrevimento, Quatro, exclamou o comandante, estupefacto, quem é esse quarto, A virgem, meu senhor, A virgem está fora disto, o que temos é o pai, o filho e o espírito santo, E a virgem, Se não te explicas, corto-te a cabeça, como fizeram ao elefante, Nunca ouvi pedir nada a deus, nem a jesus, nem ao espírito santo, mas a virgem não tem mãos a medir com tantos rogos, preces e solicitações que lhe chegam a casa a todas as horas do dia e da noite, Cuidado, que está aí a inquisição, para teu bem não te metas em terrenos pantanosos, Se chego a viena, não volto mais, Não regressas à índia, perguntou o comandante, Já não sou indiano, Em todo o caso vejo que do teu hinduísmo pareces saber muito, Mais ou menos, meu comandante, mais ou menos, Porquê, Porque tudo isto são palavras, e só palavras, fora das palavras não há nada, Ganeixa é uma palavra, perguntou o comandante, Sim, uma palavra que, como todas as mais, só por outras palavras poderá ser explicada, mas, como as palavras que tentaram explicar, quer tenham conseguido fazê-lo ou não, terão, por sua vez, de ser explicadas, o nosso discurso avançará sem rumo, alternará, como por maldição, o errado com o certo, sem se dar conta do que está bem e do que está mal, Conta-me quem foi ganeixa, Ganeixa é filho de siva e de parvati, também chamada durga ou kali, a deusa dos cem braços, Se em vez de braços tivessem sido pernas, podíamos chamar-lhe centopeia, disse um dos homens rindo-se contrafeito, como arrependido do comentário mal ele lhe saíra da boca. O cornaca não lhe prestou atenção e prosseguiu, Há que dizer, como aconteceu com a vossa virgem, que ganeixa foi gerado por sua mãe, parvati, sem intervenção do marido, siva, o que se explica pelo facto de que este, sendo eterno, não sentia nenhuma necessidade de ter filhos. Um dia, tendo parvati decidido tomar banho, sucedeu que não havia guardas por ali a fim de a protegerem de alguém que quisesse entrar na sala. Então ela criou um ídolo com a forma de um rapazinho, feito com a pasta que havia preparado para lavar-se, e que não devia ser outra coisa que sabão. A deusa infundiu vida no boneco, e este foi o primeiro nascimento de ganeixa. Parvati ordenou a ganeixa que não permitisse a entrada de ninguém e ele seguiu à risca as ordens da mãe. Passado pouco tempo, siva regressou da floresta e quis entrar em casa, mas ganeixa não permitiu, o que, como é natural, enfureceu siva. Então deu-se o seguinte diálogo, Sou o esposo de parvati, portanto a casa dela é a minha casa, Aqui só entra quem minha mãe quiser, e ela não me disse que tu podias entrar. Siva perdeu a paciência e lançou-se numa feroz batalha com ganeixa, que terminou com o deus cortando com o seu tridente a cabeça ao adversário. Quando parvati saiu e viu o corpo sem vida do filho, os seus gritos de dor depressa se transformaram em uivos de fúria. Ordenou a siva que devolvesse imediatamente a vida a ganeixa, mas, por desgraça, o golpe que o tinha degolado havia sido tão poderoso que a cabeça foi atirada para muito longe e nunca mais a viram. Então, como último recurso, siva foi pedir auxílio a brama, que lhe sugeriu que substituísse a cabeça de ganeixa pela do primeiro ser vivo que encontrasse no caminho, desde que estivesse na direção norte. Siva mandou então o seu exército celestial para que tomasse a cabeça de qualquer criatura que encontrassem dormindo com a cabeça na direção norte. Encontraram um elefante moribundo que dormia desta maneira e, após a sua morte, cortaram-lhe a cabeça. Regressaram aonde estavam siva e parvati e entregaram-lhes a cabeça do elefante, a qual foi colocada no corpo de ganeixa, trazendo-o de novo à vida. E foi assim que nasceu ganeixa depois de ter vivido e morrido. Histórias da carochinha, resmungou um soldado, Como a daquele que, tendo morrido, ressuscitou ao terceiro dia, respondeu subhro, Cuidado, cornaca, estás a ir longe de mais, repreendeu o comandante, Eu também não acredito no conto do menino de sabão que veio a tornar-se deus com um corpo de homem barrigudo e cabeça de elefante, mas foi-me pedido que explicasse quem era ganeixa, e eu não fiz mais que obedecer, Sim, mas fizeste considerações pouco amáveis sobre jesus cristo e a virgem que não caíram nada bem no espírito das pessoas aqui presentes, Peço desculpa a quem se sentiu ofendido, foi sem intenção, respondeu o cornaca. Ouviu-se um murmúrio de apaziguamento, a verdade é que àqueles homens, tanto soldados como paisanos, pouco lhes importavam as disputas religiosas, o que os inquietava era que se tocasse em assuntos tão retorcidos debaixo da própria cúpula celeste. Costuma-se dizer que as paredes têm ouvidos, imagine-se o tamanho que terão as orelhas das estrelas.”

 

 

“Senhor padre, disse, esse caso sempre me fez confusão na cabeça, Porquê, Não percebo por que tinham esses porcos que morrer, está bem que jesus tenha feito o milagre de expulsar os espíritos imundos do corpo do geraseno, mas consentir que eles entrassem nuns pobres porcos que nada tinham que ver com o caso, nunca me pareceu uma boa maneira de acabar o trabalho, tanto mais que, sendo os demónios imortais, porque se não o fossem deus ter-lhes-ia acabado com a raça logo à nascença, o que eu quero dizer é que antes que os porcos tivessem caído à água já os demónios se haviam escapado, em minha opinião jesus não pensou bem, E tu quem és para dizeres que jesus não pensou bem, Está escrito, padre, Mas tu não sabes ler, Não sei ler, mas sei ouvir, Há alguma bíblia em tua casa, Não, padre, só os evangelhos, faziam parte de uma bíblia, mas alguém os arrancou de lá, E quem os lê, A minha filha mais velha, é verdade que ainda não consegue ler de corrido, mas, graças às vezes que já leu o mesmo, vamos percebendo-a cada vez melhor, Em compensação, o pior é que, com tais pensamentos e opiniões, se a inquisição aqui chega serás o primeiro a ir para a fogueira, A gente de alguma coisa terá de morrer, padre, Não me venhas com estupidezes, deixa-te de evangelhos e dá mais atenção ao que eu digo na igreja, apontar o caminho reto é missão minha e de mais ninguém, lembra-te de que quem se mete por atalhos, nunca sai de sobressaltos, Sim, padre.”

 

 

“Os lobos apareceram no dia seguinte. Tanto deles temos falado aqui que, por fim, decidiram mostrar-se. Não parecem vir com ânimo de guerra, talvez porque o resultado da caçada, durante as últimas horas da noite, tenha bastado para confortar-lhes o estômago, além disso, uma coluna destas, de mais de cinquenta homens, com uma boa parte deles armados, impõe respeito e prudência, os lobos podem ser maus, mas estúpidos não são. Peritos na avaliação relativa das forças em presença, as próprias e as alheias, não vão atrás de entusiasmos, não perdem a cabeça, talvez porque não tenham bandeira nem charanga para levá-los à glória, quando se lançam ao ataque é para ganhar, regra que, em todo o caso, como se verá um pouco mais adiante, admite alguma exceção.”

 

 

“Somos, cada vez mais, os defeitos que temos, não as qualidades.”

 

 

“Partimos amanhã, disse, Já sabia, respondeu subhro, virei aqui para me despedir, Voltaremos a ver-nos, perguntou o comandante, O mais certo é que não, viena está longe de lisboa, Tenho pena, agora que já éramos amigos, Amigo é uma palavra grande, senhor, eu não sou mais que um cornaca a quem acabaram de mudar o nome, E eu um capitão de cavalaria dentro de quem algo também mudou durante esta viagem, Suponho que por ter visto lobos pela primeira vez, Vi um há muitos anos, quando era pequeno, já mal me lembro, A experiência dos lobos deve mudar muito as pessoas, Não creio que a causa tenham sido eles, Então o elefante, É mais provável, se bem que, podendo compreender mais ou menos um cão ou um gato, não consigo entender um elefante, Os cães e os gatos vivem ao nosso lado, isso facilita muito a relação, mesmo que nos equivoquemos, a contínua convivência resolverá a questão, já eles, não sabemos se se equivocam e disso têm consciência, E o elefante, O elefante, já lho disse no outro dia, é outra coisa, em um elefante há dois elefantes, um que aprende o que se lhe ensina e outro que persistirá em ignorar tudo, Como sabes tu isso, Descobri que sou tal qual o elefante, uma parte de mim aprende, a outra ignora o que a outra parte aprendeu, e tanto mais vai ignorando quanto mais tempo vai vivendo, Não sou capaz de te seguir nesses jogos de palavras, Não sou eu quem joga com as palavras, são elas que jogam comigo.”

 

 

“É possível que o nosso elefante pense, se aquela enorme cabeça é capaz de semelhante proeza, pelo menos espaço não lhe falta, ter razões para suspirar pelo antigo far niente, mas isso só poderia suceder graças à sua ignorância natural de que a indolência é o mais prejudicial que há para a saúde. Pior que ela só o tabaco, como lá mais para diante se há-de ver. Agora, porém, depois de trezentas léguas a andar, grande parte delas por caminhos que o diabo, apesar dos seus pés de bode, se negaria a pisar, solimão já não merece que lhe chamem indolente. Tê-lo-ia sido durante a permanência em portugal, mas isso são águas passadas, bastou-lhe ter posto o pé nas estradas da europa para logo ver acordarem em si energias de cuja existência nem ele próprio havia suspeitado. Tem-se observado com muita frequência este fenómeno nas pessoas que, pelas circunstâncias da vida, pobreza, desemprego, foram forçadas a emigrar. Frequentemente apáticas e indiferentes na terra onde nasceram, tornam-se, quase de uma hora para a outra, ativas e diligentes como se lhes tivesse entrado no corpo o tão falado mas nunca estudado bicho-carpinteiro, desse falamos, e não daqueles, comuns, que se alimentam da madeira que roem e são também conhecidos pelos nomes de caruncho ou carcoma.”

 

 

Abusando da credulidade da gente, o cornaca tem estado a vender pelos do elefante para mezinhas curativas que não vão curar ninguém, Diz-lhe da minha parte que se não acaba já com o negócio terá razões para lamentá-lo durante o tempo de vida que lhe restar, que certamente não será muito.”

 

 

“Que bonita é a neve vista por trás da vidraça, disse ingenuamente a arquiduquesa maria ao arquiduque maximiliano, seu marido, mas lá fora, com os olhos cegados pela ventania e as botas feitas numa sopa, com as frieiras dos pés e das mãos a arderem como um fogo do inferno, é caso para perguntar aos céus que foi que fizemos nós para merecermos tal castigo. Como escreveu o poeta, os pinheiros bem acenam, mas o céu não lhes responde. Também não responde aos homens, apesar de estes, em sua maioria, saberem desde pequenos as orações precisas, o problema está em acertar com uma língua que deus seja capaz de entender. Também o frio, quando nasce, é para todos, diz-se, mas nem todos apanham nos lombos com a mesma porção dele. A diferença está entre viajar num coche forrado de peliças e mantas com termostato e ter de caminhar sob o açoite da neve por seu pé ou com ele enfiado num estribo gelado que oprime como um torniquete.”

 

 

Sempre terei Saramago como quem sai de um livro seu, Levantado do chão, que acabara de ler quando o conheci, num já distante dia de 1983 ou 1984. “Dói-me o mundo.” Isso me disse com estas e outras palavras, numa das numerosas conversas que tivemos desde então, sobretudo em Lisboa, onde, por cinco anos, nos encontrávamos com frequência. E acrescentava: “Não me conformo com o que os homens fazem aos homens”.

José Saramago é um grande escritor, destes que se atrevem a tentar recriar a humanidade e de cujos livros saímos diferentes. Um grande escritor que não esquece e não quer que esqueçamos que saramago é uma erva rústica, confundida por alguns com o armolão, e que era de coisas assim que os pobres, dos quais jamais se apartou, tiravam os sobrenomes.” (Alberto da Costa e Silva)

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