Editora: Companhia das Letras
ISBN: 978-85-359-1341-5
Opinião: ★★★☆☆
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Páginas: 264
Sinopse: Não é todo dia que aparece um elefante em nossa vida, muito menos
chamado Salomão. Pois é este formoso e meigo paquiderme, nascido em Goa,
transportado pelos mares a Portugal no século XVI, o herói da viagem que aqui
se conta.
“Por muito incongruente que possa parecer...”, assim
começa o novo romance – ou conto, como ele prefere chamá-lo – de José Saramago,
sobre a insólita viagem de um elefante chamado Salomão, que no século XVI
cruzou metade da Europa, de Lisboa a Viena, por extravagâncias de um rei e um
arquiduque. O episódio é verdadeiro. Dom João III, rei de Portugal e Algarves,
casado com dona Catarina d'Áustria, resolveu numa bela noite de 1551 oferecer
ao arquiduque austríaco Maximiliano II, genro do imperador Carlos Quinto, nada
menos que um elefante. O animal viera de Goa junto com seu tratador, algum
tempo antes. De início, o exotismo de um paquiderme de três metros de altura e
pesando quatro toneladas, bebendo diariamente duzentos litros de água e outros
tantos quilos de forragem, deslumbrara os portugueses, mas agora Salomão não
passava de um elefante fedorento e sujo, mantido num cercado nos arredores de
Lisboa. Até que surge a ideia mirabolante de presenteá-lo ao arquiduque, então
regente da Espanha e morando no palácio do sogro em Valladolid.
Esse fato histórico é o ponto de partida para José Saramago
criar, com sua prodigiosa imaginação, uma ficção em que se encontram pelos
caminhos da Europa personagens reais de sangue azul, chefes de exército que
quase chegam às vias de fato, padres que querem exorcizar Salomão ou lhe pedir
um milagre. Depois de percorrer Portugal, Espanha e Itália, a caravana chega
aos estreitos desfiladeiros dos Alpes, que Salomão enfrenta impávido.
A viagem do elefante, primeiro livro de José Saramago depois do relato autobiográfico Pequenas
memórias (2006), é uma ideia que ele elaborava há
mais de dez anos, desde que, numa viagem a Salzburgo, na Áustria, entrou por
acaso num restaurante chamado O Elefante. Com sua finíssima ironia e
muito humor, sua prosa que destila poesia, Saramago reconstrói essa epopeia de
fundo histórico e dela se vale para fazer considerações sobre a natureza humana
e, também, elefantina. Impelido a cruzar meia Europa por conta dos caprichos de
um rei e de um arquiduque, Salomão não decepcionou as cabeças coroadas. Prova
de que, remata o autor, sempre se chega aonde se tem de chegar.
“Sempre chegamos ao sítio aonde nos esperam.”
“É o melhor dos estribeiros-mores, disse o rei. O secretário resolveu
calar a adulação que consistiria em dizer que o estribeiro-mor não poderia ser
e portar-se doutra maneira, uma vez que havia sido escolhido pessoalmente por
sua alteza. Tinha a impressão de ter dito algo semelhante não há muitos dias.
Já nessa altura lhe viera à lembrança um conselho do pai, Cuidado, meu filho,
uma adulação repetida acabará inevitavelmente por tornar-se insatisfatória, e
portanto ferirá como uma ofensa. Posto o que, o secretário, embora por razões
diferentes das do estribeiro-mor, preferiu também calar-se. Foi neste breve
silêncio que o rei deu voz, finalmente, a um cuidado que lhe havia ocorrido ao
despertar, Estive a pensar, acho que deveria ir ver o salomão, Quer vossa alteza
que mande chamar a guarda real, perguntou o secretário, Não, dois pajens são
mais do que suficientes, um para os recados e o outro para ir saber por que é
que o primeiro ainda não voltou, ah, e também o senhor secretário, se me quiser
acompanhar, Vossa alteza honra-me muito, por cima dos meus merecimentos, Talvez
para que venha a merecer mais e mais, como seu pai, que deus tenha em glória,
Beijo as mãos de vossa alteza, com o amor e o respeito com que beijava as dele,
Tenho a impressão de que isso é que está muito por cima dos meus merecimentos,
disse o rei, sorrindo, Em dialética e em resposta pronta ninguém ganha a vossa
alteza, Pois olhe que não falta por aí quem diga que as fadas que presidiram ao
meu nascimento não me fadaram para o exercício das letras, Nem tudo são letras
no mundo, meu senhor, ir visitar o elefante salomão neste dia é, como talvez se
venha a dizer no futuro, um ato poético, Que é um ato poético, perguntou o rei,
Não se sabe, meu senhor, só damos por ele quando aconteceu, Mas eu, por
enquanto, só tinha anunciado a intenção de visitar o salomão, Sendo palavra de
rei, suponho que terá sido o bastante, Creio ter ouvido dizer que, em retórica,
chamam a isso ironia, Peço perdão a vossa alteza, Está perdoado, senhor
secretário, se todos os seus pecados forem dessa gravidade, tem o céu
garantido, Não sei, meu senhor, se este será o melhor tempo de ir para o céu,
Que quer isso dizer, Vem aí a inquisição, meu senhor, acabaram-se os
salvo-condutos de confissão e absolvição, A inquisição manterá a unidade entre
os cristãos, esse é o seu objetivo, Santo objetivo, sem dúvida, meu senhor,
resta saber por que meios o alcançará, Se o objetivo é santo, santos serão
também os meios de que se servir, respondeu o rei com certa aspereza, Peço
perdão a vossa alteza, além disso, Além disso, quê, Rogo-vos que me dispenseis
da visita ao salomão, sinto que hoje não seria uma companhia agradável para
vossa alteza, Não dispenso, preciso absolutamente da sua presença no cercado,
Para quê, meu senhor, se não estou a ser demasiado confiado em perguntar, Não
tenho luzes para perceber se vai acontecer o que chamou ato poético, respondeu
o rei com um meio sorriso em que a barba e o bigode desenhavam uma expressão
maliciosa, quase mefistofélica, Espero as suas ordens, meu senhor, Sendo cinco
horas, quero quatro cavalos à porta do palácio, recomende que aquele que
montarei seja grande, gordo e manso, nunca fui de cavalgadas, e agora ainda
menos, com esta idade e os achaques que ela trouxe, Sim, meu senhor, E
escolha-me bem os pajens, que não sejam daqueles que se riem por tudo e por
nada, dá-me vontade de lhes torcer o pescoço, Sim, meu senhor.”
“Dando
tempo ao tempo, todas as coisas do universo acabarão por se encaixar umas nas
outras.”
“Antes que te vás quero fazer-te uma pergunta, Sou todo ouvidos,
Lembras-te de teres invocado há bocado todos os santos da corte do céu, Sim,
meu comandante, Quer isso dizer que és cristão, pensa bem antes de responderes,
Mais ou menos, meu comandante, mais ou menos.”
“Como
o boieiro não sabia cavalgar, um caso flagrante, como se vê, das consequências
negativas de uma excessiva especialização profissional, içou-se com dificuldade
para a garupa do cavalo do sargento e lá foi, rezando, numa voz que ele próprio
mal conseguia ouvir, um interminável padre-nosso, oração da sua especial estima
por aquilo que nela se diz de perdoar as nossas dívidas. O mal, que em tudo
está, e às vezes até deixa o rabo de fora para que não tenhamos ilusões sobre a
natureza do bicho, vem logo na frase seguinte, quando se diz que é obrigação
nossa de cristãos perdoar aos nossos devedores. O pé não joga com a chinela, ou
uma coisa ou outra, resmungava o boieiro, se uns perdoam e outros não pagam o
que devem onde está o benefício do negócio, perguntava-se.”
“Não
é verdade que o céu seja indiferente às nossas preocupações e anseios. O céu
está constantemente a enviar-nos sinais, avisos, e se não dizemos bons
conselhos é porque a experiência de um lado e do outro, isto é, a dele e a nossa,
já demonstrou que não vale a pena esforçar a memória, que todos a temos mais ou
menos fraca. Sinais e avisos são fáceis de interpretar se estivermos de olho
atento, como foi o caso do comandante quando sobre a caravana, em certa altura
do caminho, caiu um rápido mas abundante aguaceiro. Para os homens da força,
empenhados no penoso trabalho de empurrar o carro de bois, aquela chuva foi uma
bênção, um ato de caridade pelo sofrimento em que têm vivido sujeitas as
classes baixas. O elefante salomão e o seu cornaca subhro desfrutaram do súbito
refresco, o que não impediu o guia de pensar no arranjo que lhe faria
futuramente um guarda-chuva em situações como estas, principalmente no caminho
para viena, de poleiro e protegido da água que caísse das nuvens. Quem não
apreciou nada o líquido meteoro foram os soldados da cavalaria, habitualmente
presumidos nas suas fardas coloridas, agora manchadas e pingonas, como se
estivessem a regressar vencidos de uma batalha. Quanto ao comandante, esse, com
a sua já provada agilidade de espírito, havia compreendido imediatamente que
tinha ali um problema muito sério. Uma vez mais se demonstrava que a estratégia
para esta missão fora desenhada por pessoal incompetente, incapaz de prever os
acontecimentos mais correntios, como este de chover em agosto, quando a
sabedoria popular já vinha avisando desde a noite dos tempos que o inverno,
precisamente, é em agosto que começa. A não ser que o aguaceiro tivesse sido
uma coisa de ocasião e que o bom tempo voltasse para ficar, tinham-se acabado
as noites dormidas ao ar livre sob a lua ou o arco estrelado do caminho de
santiago. E não só isso. Tendo de pernoitar em lugares habitados, era preciso
que neles houvesse um espaço coberto para abrigar os cavalos e o elefante, os
quatro bois, e umas boas dezenas de homens, e isso, como se pode calcular, era
algo custoso de encontrar no portugal do século dezasseis, onde ainda não se
tinha aprendido a construir naves industriais nem estalagens de turismo. E se a
chuva nos apanha na estrada, não um aguaceiro como este, mas uma chuva
contínua, daquelas que não param durante horas e horas, perguntou-se o
comandante, e concluiu, Não teremos outro remédio que apará-la toda nas costas.
Levantou a cabeça, perscrutou o espaço e disse, Por agora parece ter escampado,
oxalá tenha sido só um ameaço. Infelizmente não tinha sido só um ameaço. Por
duas vezes, antes de chegarem a porto salvo, se tal se podia chamar a duas
dezenas de casebres afastados uns dos outros, com uma igreja descabeçada, isto
é, só com meia torre, sem nave industrial à vista, ainda lhes caíram em cima
duas bátegas, que o comandante, já perito neste sistema de comunicações,
interpretou logo como dois novos avisos do céu, decerto impaciente por não ver
que estivessem a ser tomadas as medidas preventivas necessárias, as que
poupariam à ensopada caravana resfriamentos, constipações, defluxos e mais do
que prováveis pneumonias. Esse é o grande equívoco do céu, como a ele nada é
impossível, imagina que os homens, feitos, segundo se diz, à imagem e semelhança
do seu poderoso inquilino, gozam do mesmo privilégio. Queríamos ver o que
sucederia ao céu na situação do comandante, indo de casa em casa com a mesma
cantilena, Sou oficial de cavalaria em missão de serviço ordenada por sua
alteza o rei de portugal, a de acompanhar um elefante à cidade espanhola de
valladolid, e não ver senão caras desconfiadas, aliás mais do que
justificadamente, dado que jamais se tinha ouvido falar da espécie elefantina
por aquelas paragens nem havia a menor ideia do que fosse um elefante.
Queríamos ver o céu a perguntar se tinham por ali um celeiro grande ou, na sua
falta, uma nave industrial, onde se pudessem recolher por uma noite os animais
e as pessoas, o que de todo não seria impossível, basta que recordemos a
peremptória afirmação daquele famoso jesus de galileia que, nos seus melhores
tempos, se gabou de ser capaz de destruir e reconstruir o templo entre a manhã
e a noite de um único dia. Ignora-se se foi por falta de mão de obra ou de
cimento que não o fez, ou se foi por ter chegado à sensata conclusão de que o
trabalho não merecia a pena, considerando que se algo se vai destruir para
construí-lo outra vez, melhor será deixar tudo como estava antes. Proeza, essa
sim, foi o episódio da multiplicação dos pães e dos peixes, que se aqui
chamamos à colação é tão somente porque, por ordem do comandante e esforço da
intendência da cavalaria, vai ser servida hoje comida quente para quantos
humanos vão na caravana, o que não é pequeno milagre se considerarmos a falta
de comodidades e a instabilidade do tempo. Felizmente não choverá. Os homens
despiram as roupas mais pesadas e puseram-nas a secar em varas a jeito de que
lhes aproveitasse o calor das fogueiras entretanto acendidas. Depois foi só
esperar que o caldeirão da comida chegasse, sentir a consoladora contração do
estômago ao cheirar-lhe que a sua fome vai ser finalmente satisfeita, sentir-se
um homem como aqueles outros a quem, a horas certas, como se de benéfica
fatalidade do destino se tratasse, alguém vem servir um prato de comida e uma
fatia de pão. Este comandante não é como outros, pensa nos seus homens,
incluindo os colaterais, como se fossem seus filhos. Além disso, preocupa-se
pouco com hierarquias, pelo menos em circunstâncias como as presentes, tanto
assim que não foi comer à parte, está aqui, ocupa um lugar ao redor do lume, e,
se até agora tem participado pouco nas conversas, foi só para deixar os homens
à vontade. Aqui mesmo um da cavalaria acaba de perguntar o que tem andado na
cabeça de todos, E tu, ó cornaca, que raios vais tu fazer com o elefante a
viena, Provavelmente o mesmo que em lisboa, nada de importante, respondeu
subhro, irão dar-lhe muitas palmas, irá sair muita gente à rua, e depois
esquecem-se dele, assim é a lei da vida, triunfo e olvido, Nem sempre, Aos
elefantes e aos homens, sempre, embora dos homens eu não deva falar, não passo
de um indiano em terra que não é sua, mas, que eu conheça, só um elefante
escapou a esta lei, Que elefante foi esse, perguntou um dos homens das forças,
Um elefante que estava moribundo e a quem cortaram a cabeça depois de morto,
Então acabou-se tudo aí, Não, a cabeça foi posta no pescoço de um deus que se
chama ganeixa e que estava morto, Fala-nos desse tal ganeixa, disse o
comandante, Comandante, a religião hinduísta é muito complicada, só um indiano
está capacitado para compreendê-la, e nem todos o conseguem, Creio recordar que
me disseste que és cristão, E eu recordo-me de ter respondido, mais ou menos,
meu comandante, mais ou menos, Que quer isso dizer na realidade, és ou não és
cristão, Batizaram-me na índia quando eu era pequeno, E depois, Depois, nada,
respondeu o cornaca com um encolher de ombros, Nunca praticaste, Não fui
chamado, senhor, devem ter-se esquecido de mim, Não perdeste nada com isso,
disse a voz desconhecida que não foi possível localizar, mas que, embora isto
não seja crível, pareceu ter brotado das brasas da fogueira. Fez-se um grande
silêncio só interrompido pelos estalidos da lenha a arder. Segundo a tua
religião, quem foi que criou o universo, perguntou o comandante, Brama, meu
senhor, Então, esse é deus, Sim, mas não o único, Explica-te, É que não basta
ter criado o universo, é preciso também quem o conserve, e essa é a tarefa de
outro deus, um que se chama vixnu, Há mais deuses além desses, cornaca, Temos
milhares, mas o terceiro em importância é siva, o destruidor, Queres dizer que
aquilo que vixnu conserva, siva o destrói, Não, meu comandante, com siva, a
morte é entendida como princípio gerador da vida, Se bem percebo, os três fazem
parte de uma trindade, são uma trindade, como no cristianismo, No cristianismo
são quatro, meu comandante, com perdão do atrevimento, Quatro, exclamou o
comandante, estupefacto, quem é esse quarto, A virgem, meu senhor, A virgem
está fora disto, o que temos é o pai, o filho e o espírito santo, E a virgem,
Se não te explicas, corto-te a cabeça, como fizeram ao elefante, Nunca ouvi
pedir nada a deus, nem a jesus, nem ao espírito santo, mas a virgem não tem
mãos a medir com tantos rogos, preces e solicitações que lhe chegam a casa a
todas as horas do dia e da noite, Cuidado, que está aí a inquisição, para teu
bem não te metas em terrenos pantanosos, Se chego a viena, não volto mais, Não
regressas à índia, perguntou o comandante, Já não sou indiano, Em todo o caso
vejo que do teu hinduísmo pareces saber muito, Mais ou menos, meu comandante,
mais ou menos, Porquê, Porque tudo isto são palavras, e só palavras, fora das
palavras não há nada, Ganeixa é uma palavra, perguntou o comandante, Sim, uma
palavra que, como todas as mais, só por outras palavras poderá ser explicada,
mas, como as palavras que tentaram explicar, quer tenham conseguido fazê-lo ou
não, terão, por sua vez, de ser explicadas, o nosso discurso avançará sem rumo,
alternará, como por maldição, o errado com o certo, sem se dar conta do que
está bem e do que está mal, Conta-me quem foi ganeixa, Ganeixa é filho de siva
e de parvati, também chamada durga ou kali, a deusa dos cem braços, Se em vez
de braços tivessem sido pernas, podíamos chamar-lhe centopeia, disse um dos
homens rindo-se contrafeito, como arrependido do comentário mal ele lhe saíra
da boca. O cornaca não lhe prestou atenção e prosseguiu, Há que dizer, como
aconteceu com a vossa virgem, que ganeixa foi gerado por sua mãe, parvati, sem
intervenção do marido, siva, o que se explica pelo facto de que este, sendo
eterno, não sentia nenhuma necessidade de ter filhos. Um dia, tendo parvati
decidido tomar banho, sucedeu que não havia guardas por ali a fim de a
protegerem de alguém que quisesse entrar na sala. Então ela criou um ídolo com
a forma de um rapazinho, feito com a pasta que havia preparado para lavar-se, e
que não devia ser outra coisa que sabão. A deusa infundiu vida no boneco, e
este foi o primeiro nascimento de ganeixa. Parvati ordenou a ganeixa que não
permitisse a entrada de ninguém e ele seguiu à risca as ordens da mãe. Passado
pouco tempo, siva regressou da floresta e quis entrar em casa, mas ganeixa não
permitiu, o que, como é natural, enfureceu siva. Então deu-se o seguinte
diálogo, Sou o esposo de parvati, portanto a casa dela é a minha casa, Aqui só
entra quem minha mãe quiser, e ela não me disse que tu podias entrar. Siva
perdeu a paciência e lançou-se numa feroz batalha com ganeixa, que terminou com
o deus cortando com o seu tridente a cabeça ao adversário. Quando parvati saiu
e viu o corpo sem vida do filho, os seus gritos de dor depressa se
transformaram em uivos de fúria. Ordenou a siva que devolvesse imediatamente a
vida a ganeixa, mas, por desgraça, o golpe que o tinha degolado havia sido tão
poderoso que a cabeça foi atirada para muito longe e nunca mais a viram. Então,
como último recurso, siva foi pedir auxílio a brama, que lhe sugeriu que
substituísse a cabeça de ganeixa pela do primeiro ser vivo que encontrasse no
caminho, desde que estivesse na direção norte. Siva mandou então o seu exército
celestial para que tomasse a cabeça de qualquer criatura que encontrassem
dormindo com a cabeça na direção norte. Encontraram um elefante moribundo que
dormia desta maneira e, após a sua morte, cortaram-lhe a cabeça. Regressaram
aonde estavam siva e parvati e entregaram-lhes a cabeça do elefante, a qual foi
colocada no corpo de ganeixa, trazendo-o de novo à vida. E foi assim que nasceu
ganeixa depois de ter vivido e morrido. Histórias da carochinha, resmungou um
soldado, Como a daquele que, tendo morrido, ressuscitou ao terceiro dia,
respondeu subhro, Cuidado, cornaca, estás a ir longe de mais, repreendeu o
comandante, Eu também não acredito no conto do menino de sabão que veio a
tornar-se deus com um corpo de homem barrigudo e cabeça de elefante, mas foi-me
pedido que explicasse quem era ganeixa, e eu não fiz mais que obedecer, Sim,
mas fizeste considerações pouco amáveis sobre jesus cristo e a virgem que não
caíram nada bem no espírito das pessoas aqui presentes, Peço desculpa a quem se
sentiu ofendido, foi sem intenção, respondeu o cornaca. Ouviu-se um murmúrio de
apaziguamento, a verdade é que àqueles homens, tanto soldados como paisanos,
pouco lhes importavam as disputas religiosas, o que os inquietava era que se
tocasse em assuntos tão retorcidos debaixo da própria cúpula celeste.
Costuma-se dizer que as paredes têm ouvidos, imagine-se o tamanho que terão as
orelhas das estrelas.”
“Senhor
padre, disse, esse caso sempre me fez confusão na cabeça, Porquê, Não percebo
por que tinham esses porcos que morrer, está bem que jesus tenha feito o
milagre de expulsar os espíritos imundos do corpo do geraseno, mas consentir
que eles entrassem nuns pobres porcos que nada tinham que ver com o caso, nunca
me pareceu uma boa maneira de acabar o trabalho, tanto mais que, sendo os
demónios imortais, porque se não o fossem deus ter-lhes-ia acabado com a raça
logo à nascença, o que eu quero dizer é que antes que os porcos tivessem caído
à água já os demónios se haviam escapado, em minha opinião jesus não pensou
bem, E tu quem és para dizeres que jesus não pensou bem, Está escrito, padre,
Mas tu não sabes ler, Não sei ler, mas sei ouvir, Há alguma bíblia em tua casa,
Não, padre, só os evangelhos, faziam parte de uma bíblia, mas alguém os
arrancou de lá, E quem os lê, A minha filha mais velha, é verdade que ainda não
consegue ler de corrido, mas, graças às vezes que já leu o mesmo, vamos
percebendo-a cada vez melhor, Em compensação, o pior é que, com tais
pensamentos e opiniões, se a inquisição aqui chega serás o primeiro a ir para a
fogueira, A gente de alguma coisa terá de morrer, padre, Não me venhas com
estupidezes, deixa-te de evangelhos e dá mais atenção ao que eu digo na igreja,
apontar o caminho reto é missão minha e de mais ninguém, lembra-te de que quem
se mete por atalhos, nunca sai de sobressaltos, Sim, padre.”
“Os
lobos apareceram no dia seguinte. Tanto deles temos falado aqui que, por fim,
decidiram mostrar-se. Não parecem vir com ânimo de guerra, talvez porque o
resultado da caçada, durante as últimas horas da noite, tenha bastado para
confortar-lhes o estômago, além disso, uma coluna destas, de mais de cinquenta
homens, com uma boa parte deles armados, impõe respeito e prudência, os lobos
podem ser maus, mas estúpidos não são. Peritos na avaliação relativa das forças
em presença, as próprias e as alheias, não vão atrás de entusiasmos, não perdem
a cabeça, talvez porque não tenham bandeira nem charanga para levá-los à
glória, quando se lançam ao ataque é para ganhar, regra que, em todo o caso,
como se verá um pouco mais adiante, admite alguma exceção.”
“Somos,
cada vez mais, os defeitos que temos, não as qualidades.”
“Partimos
amanhã, disse, Já sabia, respondeu subhro, virei aqui para me despedir,
Voltaremos a ver-nos, perguntou o comandante, O mais certo é que não, viena
está longe de lisboa, Tenho pena, agora que já éramos amigos, Amigo é uma
palavra grande, senhor, eu não sou mais que um cornaca a quem acabaram de mudar
o nome, E eu um capitão de cavalaria dentro de quem algo também mudou durante
esta viagem, Suponho que por ter visto lobos pela primeira vez, Vi um há muitos
anos, quando era pequeno, já mal me lembro, A experiência dos lobos deve mudar
muito as pessoas, Não creio que a causa tenham sido eles, Então o elefante, É
mais provável, se bem que, podendo compreender mais ou menos um cão ou um gato,
não consigo entender um elefante, Os cães e os gatos vivem ao nosso lado, isso
facilita muito a relação, mesmo que nos equivoquemos, a contínua convivência
resolverá a questão, já eles, não sabemos se se equivocam e disso têm
consciência, E o elefante, O elefante, já lho disse no outro dia, é outra
coisa, em um elefante há dois elefantes, um que aprende o que se lhe ensina e
outro que persistirá em ignorar tudo, Como sabes tu isso, Descobri que sou tal
qual o elefante, uma parte de mim aprende, a outra ignora o que a outra parte
aprendeu, e tanto mais vai ignorando quanto mais tempo vai vivendo, Não sou
capaz de te seguir nesses jogos de palavras, Não sou eu quem joga com as
palavras, são elas que jogam comigo.”
“É
possível que o nosso elefante pense, se aquela enorme cabeça é capaz de
semelhante proeza, pelo menos espaço não lhe falta, ter razões para suspirar
pelo antigo far niente, mas isso só poderia suceder graças à sua ignorância
natural de que a indolência é o mais prejudicial que há para a saúde. Pior que
ela só o tabaco, como lá mais para diante se há-de ver. Agora, porém, depois de
trezentas léguas a andar, grande parte delas por caminhos que o diabo, apesar
dos seus pés de bode, se negaria a pisar, solimão já não merece que lhe chamem
indolente. Tê-lo-ia sido durante a permanência em portugal, mas isso são águas
passadas, bastou-lhe ter posto o pé nas estradas da europa para logo ver
acordarem em si energias de cuja existência nem ele próprio havia suspeitado.
Tem-se observado com muita frequência este fenómeno nas pessoas que, pelas
circunstâncias da vida, pobreza, desemprego, foram forçadas a emigrar.
Frequentemente apáticas e indiferentes na terra onde nasceram, tornam-se, quase
de uma hora para a outra, ativas e diligentes como se lhes tivesse entrado no
corpo o tão falado mas nunca estudado bicho-carpinteiro, desse falamos, e não
daqueles, comuns, que se alimentam da madeira que roem e são também conhecidos
pelos nomes de caruncho ou carcoma.”
“Abusando da credulidade da gente, o cornaca tem estado a vender pelos do
elefante para mezinhas curativas que não vão curar ninguém, Diz-lhe da minha
parte que se não acaba já com o negócio terá razões para lamentá-lo durante o
tempo de vida que lhe restar, que certamente não será muito.”
“Que
bonita é a neve vista por trás da vidraça, disse ingenuamente a arquiduquesa
maria ao arquiduque maximiliano, seu marido, mas lá fora, com os olhos cegados
pela ventania e as botas feitas numa sopa, com as frieiras dos pés e das mãos a
arderem como um fogo do inferno, é caso para perguntar aos céus que foi que
fizemos nós para merecermos tal castigo. Como escreveu o poeta, os pinheiros
bem acenam, mas o céu não lhes responde. Também não responde aos homens, apesar
de estes, em sua maioria, saberem desde pequenos as orações precisas, o
problema está em acertar com uma língua que deus seja capaz de entender. Também
o frio, quando nasce, é para todos, diz-se, mas nem todos apanham nos lombos
com a mesma porção dele. A diferença está entre viajar num coche forrado de
peliças e mantas com termostato e ter de caminhar sob o açoite da neve por seu
pé ou com ele enfiado num estribo gelado que oprime como um torniquete.”
“Sempre terei Saramago como quem sai de um livro seu, Levantado do
chão, que acabara de ler quando o conheci, num já distante dia de 1983 ou
1984. “Dói-me o mundo.” Isso me disse com estas e outras palavras, numa das
numerosas conversas que tivemos desde então, sobretudo em Lisboa, onde, por
cinco anos, nos encontrávamos com frequência. E acrescentava: “Não me conformo
com o que os homens fazem aos homens”.
José
Saramago é um grande escritor, destes que se atrevem a tentar recriar a
humanidade e de cujos livros saímos diferentes. Um grande escritor que não
esquece e não quer que esqueçamos que saramago é uma erva rústica, confundida
por alguns com o armolão, e que era de coisas assim que os pobres, dos quais
jamais se apartou, tiravam os sobrenomes.” (Alberto da Costa e Silva)
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