Editora: Estampa
ISBN: 978-85-7559-548-0
Tradução: José
Saramago
Opinião: ★★★★★
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Páginas: 316
Sinopse: Ver Parte
I
“A submissão dos homens para com o Senhor
Deus inscreve-se no quadro das relações que sobre a terra e na vida quotidiana
submetem ao senhor feudal o conjunto dos seus súbditos. O cristão quer ser o
“fiel” do seu Deus — e é por isso que a postura do vassalo prestando homenagem
de joelhos, com a cabeça descoberta, as mãos juntas, se torna na época a
postura oração. Tal fidelidade obriga à lealdade e ao serviço. Mas como o
contrato vassálico compromete os dois seres que liga a socorrerem-se
mutuamente, como o senhor feudal é obrigado ajudar o seu “homem” quando este
cumpre bem seus deveres, como os senhores dos grandes domínios rurais têm o
dever de distribuir alimentos aos seus rendeiros camponeses, como finalmente a
liberalidade aparece como primeira virtude dos grandes, o cristão, vassalo de
Deus, espera também dele a proteção contra todos os perigos do mundo. Espera
sobretudo o feudo eterno: uma parte no Paraíso.
No entanto, os melhores dons dos senhores da
terra vão para os guerreiros mais valentes. Eis o preço duma proeza. É por meio
de proezas que o homem ganhará os favores divinos. A invasão dos valores
cavaleirescos confere ao cristianismo do século XI um ar heroico. Os seus
maiores santos são combatentes. Tal como Santo Aleixo, de quem um poema em
língua vulgar composto em cerca de 1040 para uma corte principesca da Normandia
celebra as proezas ascéticas, eles aparecem, cavaleiros modelos, sob o aspecto
de rapazes musculosos que dedicam ao seu senhor a sua tenacidade e os seus
sofrimentos físicos. Uma sociedade dominada pela turbulência dos bandos de
cavaleiros tinha evidente dificuldade em perceber a mensagem de mansidão e de
humildade que o Evangelho contém. Para tocar o seu auditório de jovens
guerreiros, para os trazer a Deus, padres que tinham crescido com eles no
cercado do castelo e que como eles serviam casa dum amo, descreviam-lhes a
Igreja sob o aspecto duma milícia que Jesus, seu chefe, leva ao combate,
brandindo a cruz como um estandarte. Contavam-lhes a vida dos santos militares,
S. Maurício ou S. Demétrio, exortavam-nos a mostrar valor igual na luta que
todo o homem deve travar contra inimigo invisível, mas sempre presente e
temível, a corte maligna dos espíritos vassalos do demônio. A empresa da
cavalaria introduz as alternativas da ação militar no centro de todas as
representações mentais. Todo o universo é combate. Os próprios astros se
defrontam. O monge Ademar de Chabannes vê uma noite “duas estrelas no signo do
Leão lutarem entre si; a pequena corria para a grande, ao mesmo tempo furiosa e
amedrontada; a outra repelia-a para ocidente, com a sua crina de raios”. Os
cristãos desse tempo comportam-se perante o mistério como guerra feudal. A
piedade concebe-se como uma sentinela perpétua, uma sequência de assaltos, de
aventuras, de resistência às agressões pérfidas. Todo o homem vê a sua vida
terrestre como uma província invadida que deve defender e que a sua honra lhe
ordena que entregue intacta ao seu Senhor. No Último Dia, a sua coragem e as
suas fraquezas serão pesadas. Alguns afrescos românicos mostram Cristos
ferozes, segurando entre os dentes cerrados o gládio da justiça e da vitória.”
“Guerra e justiça — a espada e o cetro. O
Deus do século XI pouco difere dos chefes de bandos que se embuscam nos
pântanos para surpreender os últimos saqueadores normandos do ano mil. Importa
a todo o homem juntar-se à tropa que ele conduz e assaltar com eles as sombras,
essas forças cuja existência só se apercebe de longe em longe, nas visões premonitórias
da morte, em todos os rumores que enchem então a noite, mas que, todos o sabem,
governam inteiramente um universo misterioso de que os sentidos do homem nunca
descobrem mais do que a casca. Essas forças disfarçadas são aterradoras,
irresistíveis. Se se quer distinguir o culpado de um inocente, aplica-se aos
dois homens um ferro em brasa, espera-se que o estado das feridas aponte aquele
que pecou. Mergulham-nos na água que rejeitará o ser impuro. Fiam-se nos
poderes mágicos dos elementos do mundo. Requerem-lhes por tais provas que
arbitrem entre o bem e o mal, entre Deus e Satanás. Na sua luta contra o
pecado, que os fiéis prosternados não podem impedir-se de julgar incerta, em
todo o caso difícil, o Senhor precisa dos homens.
Contudo, ao cristão do século XI a força do
Evangelho revela-se acima de tudo, como ao camponês a do senhor da sua
tenência, como ao cavaleiro a do senhor do seu feudo, por um ato de justiça.
Deus castiga. A sua figura mais familiar é a que os escultores acabaram, no
final do século XI, por colocar, majestosa, nas portas dos mosteiros: o
Todo-Poderoso sobre o trono do juiz, presidindo rodeado de vassalos. Estes
barões assessores não foram primeiro os Apóstolos, mas os Velhos das visões
apocalípticas e sobretudo os Arcanjos, duques do exército celeste. Um deles, S.
Miguel, está diante do trono como um senescal: ordena o pleito. Porque o
tribunal de Deus dá as suas sentenças como o dos senhores da terra.
Perante as assembleias numerosas que se
encarregam neste mundo de reconciliar os cavaleiros e de apagar as vinganças
dos clãs em discórdia, o acusado nunca comparece sozinho. Assistem-no amigos.
Por juramento, vêm testemunhar a sua inocência. O pleiteador entrevê sempre,
entre os membros da corte, os homens que lhe estão ligados pelo sangue ou por
fidelidades mútuas. Conta com eles. Falarão por ele. Talvez mudem a sentença.
Eis por que os homens desse tempo, no temor do Juízo Final, se mostraram tão
cuidadosos em captar a benevolência dos santos. Estes heróis da fé formam a
corte de Deus que escutará os seus pareceres. Desarmarão a sua ira. Ora
qualquer poderá conquistá-los para a sua causa, assegurar a sua intercessão, e
isto pelos mesmos meios que se usam na terra para adquirir complacências, por
meio de presentes. “Fazei amigos no céu com as riquezas da iniquidade”, a
fórmula aparece constantemente no preâmbulo das cartas que, nos armários dos
mosteiros, guardavam a memória das oferendas dos nobres. Santos, havia-os por
toda a parte. Povoavam os espaços invisíveis, mas também na terra, em certos
lugares, se podia entrar em comunicação com eles: eram-lhes dedicadas igrejas,
algumas conservavam os restos do seu corpo carnal. Pelas mãos dos homens de
oração que serviam todos estes santuários, os santos receberam pois esmolas, os
dons que deviam ligá-los aos doadores e verdadeiramente capturá-los. Foi pela
oferenda, distribuída por inúmeras instituições religiosas, que os cavaleiros
do século XI, incapazes de refrear a sua violência instintiva nem mesmo
distinguir o que o Senhor esperava deles, que se sentiam culpados fizessem o
que fizessem e todos ameaçados de castigo, procuraram colocar-se em melhor
posição perante a corte sobrenatural onde um dia teriam de comparecer.
Nas práticas da justiça terrestre, era por
meio duma doação que conseguia também conciliar o próprio senhor. As cortes de
cavaleiros, com efeito, raramente infligiam penas corporais. No fim do pleito
falava-se sempre de dinheiro. Oferecer algumas moedas era restaurar a concórdia
que a malfeitoria destruíra, apagar o espírito de desforra que toda agressão
suscitava nas suas vítimas, mas também nos seus próximos e no príncipe de quem
dependia a ordem pública. Porque este sentia-se insultado quem tivesse
quebrado, cometendo uma violência, a paz de que ele aparecia como guardião. A
sentença condenava pois o culpado a pagar. Além das compensações monetárias que
a linhagem adversa esperava, pagava uma multa: esta reparava o prejuízo que o
rei, o conde ou o castelão, que todos os responsáveis pela segurança coletiva
tinham sofrido por sua culpa. Da mesma maneira se comprava o perdão de Deus. “A
esmola lava do pecado como a água apaga o fogo”: a doação piedosa foi então o
gesto de piedade fundamental duma cristandade que vivia esmagada pelo
sentimento duma inevitável culpabilidade.
Dar a Deus não era dar aos pobres. Quem,
exceto os senhores, não era miserável nestes campos ingratos? A indigência era
a sorte comum. Ela encontrava os seus remédios no jogo normal das instituições
senhoriais e na liberalidade natural dos grandes. É certo que Roberto, o
Piedoso, vivia rodeado de pobres. Em Quinta-Feira Santa, “de joelho em terra,
entregava com a sua santa mão às mãos de cada um deles legumes, peixe, pão, e
um dinheiro”; doze deles acompanhavam-no por toda a parte e “para substituir os
que morriam, tinha uma reserva considerável, de modo que o seu número nunca
diminuía”. Erraríamos sobre tais gestos de caridade se os separássemos do
símbolo. De fato, o rei-Cristo mimava ritualmente uma cena evangélica:
distribuía o alimento sagrado em comemoração da Ceia e, junto dele, os doze
eram figurantes: faziam o papel dos apóstolos. Todas as oferendas em que a
cólera de Deus achava apaziguamento iam então para as igrejas. A estas, todos
os homens, todas as mulheres que não tinham penetrado na milícia dos servidores
de Deus e viviam sujeitos às forças malignas, davam o que possuíam de mais
precioso. Alguns o seu próprio corpo e a sua descendência: assim aumentava,
sobretudo na terra do Império, a turba dos “dependentes do altar” que, em cada
ano, no dia em que se honrava o santo padroeiro do santuário de que se tinham
tornado servos, vinham em fila indiana depositar sobre a pedra do sacrifício o
cesto de cera e o dinheiro simbólico, sinais da sua servidão consentida. Mas
cada um oferecia do que era seu, as joias do seu tesouro e, muito mais vezes,
terra, a verdadeira, a única riqueza. Dava-se em todas as ocasiões para apagar
uma falta desde que ela era cometida. Todavia, era no limiar da morte que a
esmola ganhava todas as suas virtudes.
As representações do inferno, que o
renascimento da escultura monumental exibiu nos primeiros anos do século XII no
limiar das basílicas, saíram duma propaganda cujos diversos elementos entraram
em jogo em cerca de 1040 e que contribuiu, pelo terror que alimentou no espírito
dos laicos, para multiplicar ainda mais as doações in articulo mortis. Estas, aliás, não aproveitavam somente ao
indivíduo que as ordenava. Ele pensava na sua própria salvação, mas também na
de toda a sua linhagem. Se gastava da riqueza que lhe tinham legado os
antepassados, era igualmente para que disso tirassem vantagem as almas dos seus
parentes defuntos. No meio delas, esperava esconder-se no dia do Juízo, na
unidade reconstituída da pessoa imortal que era a raça e que suportava
coletivamente a responsabilidade de cada um. A onda ininterrupta das doações
piedosas animou o movimento econômico mais vigoroso duma época que mal emergia
duma total atonia. Determinou, com as partilhas sucessoriais, as únicas
transferências importantes de riquezas que essa época conheceu. Estas esmolas
despojavam a aristocracia laica em proveito da aristocracia da Igreja.
Compensavam muito largamente todas as pilhagens dos cavaleiros e reforçavam
lentamente à custa deles as bases do poder eclesiástico. Sem esta imensa contribuição
de novos bens que, sem parar, veio engrossar o patrimônio dos santos e fornecer
aos seus servidores acréscimos crescentes de recursos, não se poderia explicar
a força do impulso que, entre 980 e 1130, faz avançar as conquistas artísticas
na Europa. O crescimento agrícola alimentou a floração românica, mas não teria
podido fazê-la brotar com tanta robustez se a casta dominante, a cavalaria, não
tivesse, com tanto abandono, consagrado à glória de Deus uma tão larga porção
da sua riqueza.”
“Existia um outro meio de adquirir a amizade
de Deus e das potências que assistem na sua corte, uma outra maneira de
despojar-se, mas que exigia mais ao corpo e à alma: a peregrinação. Sair do
grupo familiar, do refúgio que é a casa. Enfrentar a insegurança que começava
mal se saía o limiar. Ausentar-se durante meses; atravessar aldeias hostis,
poder-se-ia conceber mais valorosa oferenda ao Senhor e aos seus santos, cujo
túmulo se ia visitar? A peregrinação foi a mais perfeita e mais bem aceite das
formas de ascese que o cristianismo heroicizado do século XI propunha aos
cavaleiros ansiosos pela salvação. Era penitência: aos que publicamente faziam
confissão de culpas excepcionais, o bispo impunha-a como instrumento de
purificação. Era também símbolo: o peregrino, com a sua marcha, imitava a
procissão do povo de Deus para a Terra Prometida; progredia para o Reino. A
peregrinação, enfim, era prazer. A época não concebia distração mais atraente
do que uma viagem, sobretudo, como era o caso normal dos peregrinos, quando empreendida
com amigos. As turbas piedosas que desciam de barco os rios e caminhavam ao
longo das pistas diferiam com efeito muito pouco dos bandos de jovens que
vagueavam à aventura, e menos ainda das coortes de vassalos que, cumprindo o
seu dever de conselho, acorriam ao apelo do seu senhor para se reunirem por
alguns dias com ele. Os peregrinos também realizavam um serviço de corte. Este
reunia-os no dia prescrito em redor dos cofres recobertos de placas de ouro e
cabuchões que continham as relíquias. Dessas urnas emanavam forças invisíveis,
curadoras de corpos, benéficas para as almas. Ninguém pensava que as
personagens misteriosas, cujas ossadas aqui e além conservavam sensível a
presença neste mundo, regateariam a amizade aos que tanto tinham caminhado para
delas se aproximarem. Milagres de Santa
Fé, Milagres de S Bento — os monges recolhiam em compilações as maravilhas
multiplicadas que provavam a eficácia de tais peregrinações.”
“Os primeiros concílios da paz de Deus nunca
negaram aos homens de guerra o direito de se baterem: Deus colocara-os no ponto
mais alto da hierarquia social para que desempenhassem uma função militar. Ora,
por alturas de 1020, alguns clérigos começaram a professar que as alegrias da
guerra são prazeres culposos e que aquele que decide proibir-se deles agrada ao
Senhor. Às prescrições da paz de Deus juntaram-se as obrigações da trégua.
“Desde a Quaresma até Páscoa, não assaltarei o cavaleiro desprovido de arma
secular”: no tempo da penitência, convinha abster-se da guerra tanto como dos
outros prazeres do corpo. Por meados do século, no momento em que as
peregrinações a Santiago e Jerusalém ganhavam pouco a pouco o ar de agressões
militares em países do Islã, as assembleias a que presidiam os bispos acabaram
por condenar qualquer violência entre cristãos. “Que nenhum cristão mate outro
cristão, porque quem mata um cristão derrama, sem nenhuma dúvida, o sangue de
Cristo.” Assim sendo, aonde iriam levar a força das suas armas os cavaleiros
que as instituições divinas votavam ao combate? Para fora do povo de Deus e
contra os inimigos da fé. Só a guerra santa era lícita. Em 1063, um papa
arregimentava os cavaleiros de Champanha e de Borgonha que se aprestavam para a
peregrinação a Espanha; exortava-os a lançarem-se contra os incréus; se alguns
morressem na luta, o sucessor de Pedro, que detém as chaves do paraíso,
prometia-lhes a indulgência. Em nome de Cristo, esta tropa tomou Barbastro, uma
cidade sarracena cheia de ouro e de mulheres. Trinta e dois anos mais tarde; um
outro papa apontava às violências cavaleirescas um fim mais exaltante: libertar
o túmulo de Jesus. A todos os peregrinos armados que respondessem ao seu apelo,
oferecia um emblema, símbolo de Vitória, a cruz, o estandarte de Cristo. Que é
a cruzada senão o resultado final das longas pressões do espírito feudal sobre
o cristianismo, e que foram os primeiros cruzados senão os vassalos fiéis dum
Deus cioso que leva a guerra ao campo dos seus inimigos e que, pelo ferro e
pelo fogo, os verga sob o seu poder? A escultura sacra acolhe então, entre os
atributos da força divina, as cotas, as lorigas, os elmos, os escudos e todo um
exército de lanças, apontadas contra as forças da noite.”
“É certo que tudo o que permite conhecer o
espírito do século XI vem de textos que foram escritos nos mosteiros. Estes
testemunhos são pois influenciados por uma ética particular: emanam de homens
que a vocação inclinava ao pessimismo e a situar na renúncia todos os modelos
da sua conduta. Os monges exortavam naturalmente a privações que eles próprios
se tinham consentido, e os prodígios que relatavam traziam um reforço aos seus
discursos. Deus manifesta que está irritado. Veem-se multiplicar os prenúncios
dum regresso iminente do Cristo vingador. Para entrar na sala do banquete onde
o seu Rei vai introduzi-la, a humanidade deve vestir à pressa o traje nupcial;
ai de quem não se tiver adornado com ele. Que todos pensem pois em lavar-se das
suas máculas e, pela renúncia voluntária aos prazeres do mundo, desarmar o
braço do Todo-Poderoso. Assim, é evidente que as grandes reuniões de povo, que
na Gália do Sul obraram para estabelecer a paz de Deus, foram assembleias de
penitência coletiva. Na Aquitânia, o mal dos ardentes grassava; ele manifestava
a impaciência divina; trouxeram-se, para Limoges, “solenemente de todas as
partes, os corpos e as relíquias dos santos; tirou-se do seu sepulcro o corpo
de S. Marcial, patrono da Gália; o mundo foi então penetrado por uma grande
alegria, e o mal, por toda a parte, cessou as suas devastações, enquanto o
duque e os grandes concluíam juntos um pacto de paz e de justiça”. O
restabelecimento da concórdia desempenhava o seu papel no movimento de ascese
que os sinais precursores do Último Dia estimulavam. Não ordenavam os
juramentos pela paz de Deus que se renunciasse às alegrias do combate? No mesmo
momento em que propunha aos cavaleiros, como penitência mais apropriada ao seu
estado, a abstinência periódica que é a trégua, a Igreja reforçava as
instruções do jejum. Começava a considerar que os seus padres, modelos de vida
cristã, tinham de dar o exemplo da pobreza, da castidade, renunciar ao luxo
cavaleiresco e despedir as suas concubinas, isto é, viver como monges. Para
acalmar a cólera de Deus, para se prepararem para a Parusia que se sentia
próxima, era preciso extirpar os fermentos de pecado e, por consequência,
respeitar melhor as proibições fundamentais. Satanás mantém os seus escravos
prisioneiros por meio de quatro cobiças. Sedu-los pela carne, pela guerra, pelo
ouro e pela mulher. Que os homens, cujo julgamento se prepara, saibam repelir
estas tentações. Ora, renunciar às riquezas, depor as armas, viver na
continência, jejuar, faziam-no os monges desde há séculos. O que a Igreja
passou a recomendar desde então a todo o povo cristão, foi que os imitasse, que
se impusesse as mesmas regras de pobreza, de castidade, de paz e de
abstinência, e que voltasse as costas como eles a tudo o que no mundo é carnal.
Para a Jerusalém nova, o gênero humano, enfim todo ele convertido, poderia
caminhar então com segurança.
Persuadido pelo seu clero da iminência do fim
dos tempos, o século XI colocou o seu ideal — aquele que as obras de arte
tiveram por missão representar — nos próprios princípios do monaquismo. No seio
dos grandes espaços mal desbravados, entre populações curvadas ao peso da sua
miséria e que os espasmos duma ansiedade latente agitavam, erguiam-se ao lado
dos castelos, onde velavam os soldados do século, outras fortalezas, lugares de
asilo e de esperança, e o assalto dos exércitos demoníacos quebrava-se contra
as suas defesas. Eram os mosteiros. A cidade terrestre, pensava-se, assenta
sobre duas colunas. É defendida por duas milícias associadas: a ordem dos que
usam as armas e a ordem dos que oram ao Eterno. Mas onde se poderá orar melhor
do que nos refúgios de pureza que as muralhas do claustro protegem? Em todas as
abadias do Ocidente, multidões de Abel ofereciam ao Senhor os únicos
sacrifícios que lhe eram verdadeiramente agradáveis. Mais do que os reis
decaídos da Europa, mais do que os bispos e os padres, tinham o poder de
desarmar a ira do Senhor. Eram os mestres do sagrado. A cavalaria acampava no
meio da cristandade latina e mantinha-a firmemente sob a sua força. Todavia, no
domínio do espírito, no imenso domínio da angústia e dos terrores religiosos —
no domínio, portanto, da criação artística — era aos monges que pertencia então
o pleno império.”
““Deus não pode ser visto diretamente. A vida
contemplativa que começa na terra só será perfeita quando Deus for visto frente
a frente. A alma mansa e simples, após ter-se erguido na especulação e quando,
quebrando os laços carnais, contempla as coisas celestes, não pode ficar por
muito tempo acima de si mesma, porque o peso da carne a puxa para baixo. É
tocada pela imensidade da luz do alto, mas depressa é chamada a si mesma;
todavia, do pouco que pôde saborear da doçura divina, recolhe um grande
proveito; não tarda que, inflamada por um grande amor, se apresse a retomar o
voo”. São estas as tensões da espiritualidade monástica. Pela penitência
consentida, pela obediência, pela humildade e pela experiência duma
fraternidade perfeita, pela liturgia, pela música, pela obra de arte enfim,
aspira a transgredir os limites em que os sentidos e os meios miseráveis de que
dispõe retêm o homem do século XI. Um esforço contínuo para ultrapassar as
fronteiras da percepção sensível e do entendimento, para entrever o que se
revelará à humanidade toda ela ressuscitada no último Dia do mundo, para
penetrar já na outra parte do universo, aquela cuja formosura e poderes se
adivinham, mas que não se veem. Apetite de Deus, isto é, do mistério.”
“Nas cidades da Europa meridional, a Igreja,
com efeito, não pensava ainda em basear no raciocínio a sua doutrina. Não
pregava: cantava. O progresso da civilização apurava entretanto a consciência
das elites urbanas. Veio um momento em que o ritual das liturgias deixou de
satisfazer os cavaleiros, os jurisconsultos, os mercadores, que se sabiam mais
ou menos condenados. Queriam salvar a alma, procuravam alimento espiritual. Não
o encontrando na catedral, escutaram nas encruzilhadas pregadores errantes que
se dirigiam a eles, lhes falavam na sua língua. Eram trânsfugas, clérigos
inquietos que não se tinham sentido bem entre os cônegos ou que não tinham
podido introduzir-se nos capítulos catedrais, círculos fechados, povoados de
filhos de famílias ricas. Não os tentavam nem o claustro nem o deserto dos
ermitérios. Traziam a palavra de Deus, mas violenta, porque os bispos os
perseguiam.
A maior parte deles pregava a penitência. A
maioria das correntes heréticas mostra-se como uma aspiração à reforma da
Igreja. Vem de longe e prolonga, de fato, o movimento reformista do século XI.
O clero das catedrais é indigno vive na riqueza, na impureza. Que valor podem
ter os sacramentos que essas mãos maculadas distribuem e os cantos que saem
dessas bocas corruptas? Ora, o povo laico precisa de ritos e de orações
eficazes. Que ele expulse os maus padres, que reconduza a Igreja à sua missão
espiritual. Estas palavras tiveram eco no meio das lutas comunais e vieram
excitá-las. Arrancar ao bispo o seu poder temporal não era libertar ao mesmo
tempo a cidade? A exigência de pobreza apostólica justificava as insurreições
urbanas. O clérigo Arnaldo de Bréscia, aluno dos mestres parisienses, que encabeçava
em Itália o movimento purificador, abriu o caminho ao estabelecimento duma
comuna em Roma, em 1146, em nome da pobreza de Cristo. Queimaram-no nove anos
mais tarde: por ter incitado os prelados a levar a existência de Jesus, foi
denunciado como herético. Ao propagar-se nos meios burgueses, a mística de
despojamento libertava-se, entretanto, pouco a pouco, da intenção política. O
mercador lionês Pedro Valdo não era um cabeça de motim. No Evangelho, que tinha
mandado traduzir, descobrira que a riqueza lhe fechava para sempre a entrada no
reino de Deus. Vendeu todos os bens, distribuiu o valor deles pelos pobres
depois quis ajudar a gente da sua cidade a libertar-se do mal. Pôs-se a pregar.
Mas era laico: o arcebispo não quis que ele falasse de religião. Condenou-o em
1180 e fez confirmar pelo papa a sentença. Os discípulos de Pedro, os Pobres de
Lyon, os Valdenses, passaram a esconder-se, mas a seita clandestina, cortada da
igreja e violentamente oposta a ela, teve um êxito fulminante por toda a parte,
nas cidades, nas vilas e nas aldeias dos Alpes, da Provença e da Itália, entre
os fabricantes de panos, os negociantes de cavalos e os tecelões.
Nesse momento, no condado de Toulouse, as
multidões seguiam outros agitadores e escutavam uma doutrina que, embora
pronunciasse o nome de Jesus, diferia fundamentalmente do cristianismo. Frente
à Igreja construía-se aqui uma igreja diferente, antagônica, a igreja cátara.
No começo do século XII, pregadores heterodoxos, Pedro de Bruys, o monge
Henrique Lausana, tinham preparado o terreno nesta região. À partida,
vituperavam também os clérigos indignos. Os bispos chamavam-lhes maniqueus. Com
efeito, no seu combate pelo espírito de pobreza e de pureza, tendiam a separar
mais rigorosamente o princípio espiritual do princípio carnal e a opô-los um ao
outro, mostrando o mundo dilacerado entre estas duas forças, e as suas palavras
caíam nua sociedade onde mais nitidamente do que noutras os laicos viviam
isolados dos servidores de Deus. Cinquenta anos mais tarde, este dualismo
espontâneo ganhara consistência. Os seus partidários eram já numerosos, mais
numerosos sem dúvida em certos lugares do que os fiéis católicos. A
proliferação fizera acorrer S. Bernardo que contra eles esgotara em vão a sua
eloquência. O vencedor não foi o abade cisterciense, mas os organizadores
pacientes, obstinados, alguns dos quais vinham do Oriente, e que, no Languedoc,
no Norte da Itália, instituíram bispos heréticos, toda uma hierarquia paralela
àquela que presidia nas catedrais vazias. Foi então que o capítulo geral de
Cister recebeu do conde Raimundo de Toulouse um apelo angustiado: toda a
aristocracia dos seus vassalos estava contaminada; na região de Albi, um lanço
inteiro de cristandade desligara-se da Igreja romana para aderir à religião
corrente.
Não se tratava já de desvio, mas dum outro
dogma. Nunca se saberá muito bem o que foi o pensamento cátaro. Os inquisidores
do século seguinte extirparam-no. Perseguiram tudo o que podia exprimi-lo.
Destruíram todos os seus livros. Através dos manuais que guiavam a conduta da
repressão, entrevemos essa doutrina que opunha um deus bom a um deus do mal, um
deus da luz e do espirito a um deus da sombra e da carne, numa luta de armas
iguais em que se jogava a sorte do mundo. O homem está empenhado neste combate,
a parada do jogo é o seu próprio destino. Se quiser depois da morte aceder à
luz, em vez de reencarnar num corpo de carne, deve cooperar na vitória do
princípio luminoso, isto é, fugir de tudo o que participa de Satanás, recusar o
dinheiro, alimentar-se das comidas menos impuras, abster-se de todo o comércio
carnal: procriar é favorecer as resistências da matéria, aumentar os bandos do
mal. De fato, só alguns Perfeitos foram capazes desta total ascese. Pelo menos,
estes homens puros tinham o poder de levar os mais fracos à salvação:
bastava-lhes estender sobre eles as mãos antes que morressem, para os impregnar
do Espírito. Os povos de Aquitânia estavam acostumados a intercessões destas, a
delegar noutros as vocações de pobreza e de castidade, a entregar-se aos
especialistas da salvação, a confiar a alma aos seus gestos rituais, enquanto
eles próprios aproveitavam tranquilamente o mundo. Sobre os monges de Moissac,
de Conques ou de Saint-Gilles, os Perfeitos do catarismo tinham no entanto a
vantagem de mostrar o exemplo dum verdadeiro despojamento, de serem ao mesmo
tempo menos hipócritas e menos exploradores do povo. A sua mediação pareceu
mais eficaz. Os cavaleiros trovadores e todos os mercadores ricos seguiram-nos,
fizeram-se “consotar” por eles in
extremis. Sabe-se que, sob a sua direção, as mulheres dos senhores de
Aquitânia acabavam a Vida reunidas em comunidades de vida perfeita.
Pode-se pensar que todas estas mulheres e
todos estes homens distinguiam mal a antinomia radical entre o ensino dos
Perfeitos e o da Igreja romana. O dualismo cátaro retomara o vocabulário e
alguns símbolos que o clero católico usava, de tal maneira que se passava
transições insensíveis das diatribes antiepiscopais, que os pregadores
lançavam, aos rigores da ordem herética, A doutrina, porém, renegava as ordens
hierarquizadas de Dinis, o Areopagita, as suas vias de procissão e de retorno,
e a própria noção de Criação: a matéria é o mal; não pode emanar do deus bom. O
catarismo rejeitava também o princípio da encarnação, não vendo, segundo
parece, em Jesus mais do que um anjo enviado pelo Deus da luz, e apoiava-se no
começo do Evangelho de João para justificar esta crença. Como imaginar, com
efeito, que a glória divina tivesse podido alguma vez introduzir-se na noite da
carne, tomar corpo no ventre duma mulher, e como venerar Maria? O catarismo
rejeitava ainda a ideia de redenção. Como conceber que o deus da luz tivesse
podido sofrer na sua carne, e que valor atribuir à dor dum corpo mortal? A
cruz, para os Perfeitos, era uma insígnia irrisória, uma mistificação.
Separavam-se radicalmente de Saint-Denis, das especulações teológicas sobre a
Trindade e de toda a iconografia das catedrais.
No fim do século XII, a heresia multiforme,
as multidões cátaras, as assembleias de Valdenses, que celebravam na sombra os
ritos de pureza e que não precisavam de padres, todas as seitas indecisas que
formigavam nos subúrbios das cidades meridionais, toda a floração da cultura
cortês que a elas se ligava, levantavam o mais sólido obstáculo ao que
irradiava das escolas e dos monumentos de Paris. A heresia fazia mais: punha em
causa a própria unidade da cristandade. Era neste momento portadora da angústia
do mundo. Esta era a principal preocupação dos dirigentes da Igreja. Poderiam
eles preocupar-se tanto com Jerusalém, com o túmulo de Cristo? Agora tratava-se
do próprio Ocidente envenenado. Os melhores monges, os Cistercienses, acabavam
de falhar na sua missão. O seu abade regressava perplexo no meio da escolta
demasiado ostensiva dos seus cavaleiros. A Igreja romana tinha de usar
urgentemente de todas as suas armas. As da arte? Na Itália, ela servia já a
propaganda ortodoxa. Em 1138, mestre Guglielmo de Luca erguera a imagem de
Cristo crucificado diante daqueles que duvidavam das virtudes do seu
sacrifício; no coro de Santa Maria Trastevere, os mosaístas colocavam a efígie
triunfal da Mãe de Deus: estas obras proclamavam a verdade da encarnação. Em
Parma, para decorar em 1178 o ambão da catedral e o estrado onde se lia ao povo
o texto do Evangelho, os clérigos tinham convidado Benedetto Antelami a retomar
a imagem bizantina da Deposição da cruz. Perante o Cristo morto no Calvário, no
meio dos soldados, das santas mulheres e de Maria que lhe beija a mão direita,
como não acreditar que Deus não é somente espírito de luz, que se fez carne
para sofrer e para suportar a morte, a fim de levar a humanidade consigo para a
redenção? Alguns anos antes, em 1160-1170, no próprio foco da dissidência, o
portal de Saint-Gilles erguera sobre um vasto teatro a exortação anti-herética.
Entre as colunas dum templo antigo, pisando aos pés as forças do mal e os
fermentos das crenças más, os apóstolos, testemunhas do Verbo encarnado, erguem-se
na força da verdadeira fé; são os seus atletas. O friso que suportam desenrola
a narrativa evangélica. Concentra-a, no mainel da porta principal e sobre a
representação da Ceia. Proclama a verdade da Eucaristia. No final do século
XII, a arte românica do Sul propunha as formas convincentes duma propaganda
visual. Foi no entanto a arte das catedrais góticas que, em toda a cristandade,
se tornou então o instrumento, talvez o mais eficaz, da repressão católica.”
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