Editora: Boitempo
Tradução, introdução, organização, notas e índice
onomástico: Yuri Martins Fontes
ISBN:
978-85-7559-181-9
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 232
Sinopse: A obra
do jornalista, teórico e dirigente revolucionário peruano José Carlos
Mariátegui vem ganhando destaque nos meios editorial e acadêmico, quase um
século depois de ter sido escrita. Marxista da práxis, para quem a vida teórica
e a prática militante eram inseparáveis, Mariátegui é um dos principais
expoentes da filosofia contemporânea. Discutiu temas históricos, políticos e
culturais, desvendando a memória de seu país, o contexto latino-americano e até
aspectos da geopolítica mundial em ensaios originais que priorizavam a
comunicação com as massas, acima de tudo. Seus escritos, elaborados
principalmente na década de 1920 e apoiados nos alicerces do
materialismo-histórico, foram acusados de irracionalistas na época por
absorverem as essências conceituais libertárias de Georges Sorel, Sigmund Freud
e Friedrich Nietzsche.
Em Defesa do marxismo: polêmica revolucionária e
outros escritos, agora publicado em português pela Boitempo Editorial, o
leitor encontra esse ensaio, composto de dezesseis artigos, e outros seis escritos
inéditos em que Mariátegui se atém a algumas das mais importantes questões
filosóficas e políticas do conturbado período que colidiu com os horrores da
Primeira Guerra Mundial e, por outro, com a Revolução de Outubro. “Sua técnica de
dissecar experiências da discussão socialista e equívocos dos revisionistas ou,
ainda, iluminar personagens importantes no jogo dos poderes e ideias não se
limita a um abstracionismo esquerdista ou a uma emotiva história política – é
antes uma plataforma tática de onde se ergue para enxergar o porvir humano no
instável pós‑Guerra”, afirma o jornalista, estudioso e tradutor do livro, Yuri
Martins Fontes, na introdução.
Com uma tradução cuidadosa e texto de orelha do filósofo
Carlos Nelson Coutinho, a edição preserva o estilo eloquente e cativante do
autor, mantendo a contundência das repetições, seu ritmo de pontuação e sua
escolha de termos que exigem conceituação precisa.
“Segundo Mariátegui,
cuja teoria foi intrinsecamente voltada à prática, a “faculdade de pensar a
história” se identifica com a “faculdade de fazê-la e criá-la”. Em uma de suas
principais obras historiográficas, Sete ensaios de interpretação da
realidade peruana3, traduzida em mais de setenta idiomas e cuja
leitura é obrigatória em seu país, afirma: “Meu pensamento e minha vida
constituem uma única coisa, um único processo” ao que acrescenta que deve ser
valorizado aquele “capaz de traduzir em atos o que até então “não pôde ser
senão ideia”.” (Yuri Martins Fontes)
3 São Paulo, Expressão Popular, 2008.
“Preludiando as críticas dos frankfurtianos,
a análise mariateguiana vai mais além de negar o positivismo ingênuo,
contrapondo-se também ao neorracionalismo cético – inserindo-se na tradição não
ortodoxa marxista que desde cedo recusa o economicismo, entendendo de modo
amplo o desenvolvimento humano, cuja essência é a possibilidade de realização
plena do homem enquanto ser teórico e prático, racional e instintivo ; um
conceito distinto do mero progresso tecnológico desgovernado a que hoje se tenta
reduzir tal noção. As ciências humanas têm complexidade incomparavelmente maior
do que as naturais; não é possível reduzir seu objeto de análise à camada tênue
superficial a que chamamos consciência, bem como não se pode querer
compartimentar artificialmente a já frágil razão. Daí que seja preciso haver
pontos de vista teóricos ampliados, que abarquem desde a história, a economia,
a psicologia – o inconsciente – e as demais ciências sociais até as disciplinas
filosóficas e a literatura, em oposição à fragmentação das faculdades
supostamente autônomas, alijadas umas das outras conforme a tendência atual da
especialização que domina uma ciência técnico-mercadológica9.” (Yuri Martins Fontes)
8 Quanto ao desenvolvimento totalizante das
potências humanas, vale remeter à obra Tipos psicológicos, de C. G. Jung
(4. ed., Petrópolis, Vozes, 2011), em que autor sistematiza orientações
características humanas a partir das concepções autóctones de diversas culturas
antigas (gregos, chineses, brâmanes, indo-americanos e africanos), bem como de
tendências expressas na literatura (Platão, Goethe, Nietzsche etc.). Sua
investigação antropológica, entretanto, e limitada por certa rigidez
determinista, segundo a qual o ser humano só conseguiria desenvolver uma dessas
potências recalcando as demais. O que o neofreudiano não percebe, do para mar
nublado de seu academicismo estruturalmente burguês, é que a conformação social
põe sérias restrições à plenitude humana, à dialética das tendências psíquicas
opostas – tema que Marx já havia levantado no século XIX. Assim, num eixo
racional, não apenas estão, mas movem-se, num processo de individuação, as
potências intelectual e sentimental; enquanto em outro eixo, o irracional (ou
instintivo), contrapõem-se e complementam-se a sensualidade (conjunto de
percepções presentes) e a intuição (faculdade criadora perceptiva do devir).
9 A esse respeito, Caio Prado Jr., em suas Notas
introdutórias à lógica dialética (3. ed., São Paulo, Brasiliense, 1968),
afirma que a ciência é vista de forma “deformada”; que o método usado pelos
cientistas, cada vez mais especializados e fechados nos limites de suas
próprias disciplinas, “se inspira numa concepção atomística da conceituação, e
nada têm a ver com a verdadeira natureza do conhecimento”. Nota-se aqui
influência da psicologia da forma (ou Gestalt) na concepção do autor.
“Marx concebe a exigência de abandonar ilusões
sobre sua condição é a exigência de abandonar uma condição que necessita de
ilusões”22 –, frase que, segundo nota Fromm, também caberia a Freud.
“Enquanto para Marx a verdade era uma arma para as modificações sociais, para
Freud ela servia às modificações individuais.”23 O conhecimento que
liberta deve atentar ao exterior e ao interior – às possibilidades sociais e as
individuais. A psicanálise busca fazer com que o paciente perceba o caráter
fictício de suas ideias conscientes24, tornando consciente o que era
inconsciente e assim alcançando o poder para transformar-se. Já para Marx, o
conhecimento é o meio essencial para transformar tanto a sociedade como o
indivíduo.” (Yuri Martins Fontes)
22 Erich Fromm, Meu encontro com Marx e
Freud (7. ed. São Paulo, Brasiliense, 1979), p. 21.
23 Citado em ibidem, p. 20. Grifos meus.
24 Ibidem, p. 21.
“Intelecto e sensibilidade: uma síntese
dialética
Com sua abordagem abrangente, os conceitos
mariateguianos abalaram o conservador marxismo mecanicista – motivo pelo qual
sua obra foi taxada de “ensaística” e “romântica” pela crítica socialista da
época. A primeira dessas críticas ele responderia ressaltando o valor da
escrita apaixonada, revolucionária, empenhada com sangue – e foi desse modo,
paralelo à sua vida prática, que se concretizou sua ação teórica. Há em sua
obra filosófica ensaística, um sentido didático e ativo – um pensamento
inquieto que não se basta na abstração. Como ele mesmo analisaria, suas várias
viagens – com os obstáculos diários que naturalmente o novo sempre acarreta – contribuíram
para essa formação não apenas ampla, mas prática.
Diante da segunda crítica, a racionalista,
Mariátegui defenderia a importância da utopia para uma existência mais plena,
postando-se contra o niilismo cansado do burguês cético, pusilânime e
desprovido de sonhos, que só valoriza o que pode possuir, sugar de imediato e
controlar, acovardar-se diante de quaisquer enfrentamentos com o desconhecido –
o que Nietzsche vê como a prática daquele que apenas percebe a necessidade de
superar o que é obsoleto, sem colocar a mão na massa e “destruí-lo”. Nessa
questão, percebe-se, além de Nietzsche, clara influência do sindicalista
Georges Sorel – tido por Mariátegui como um dos mais vigorosos continuadores de
Marx. Em Defesa do marxismo, ideias de Sorel são convocadas em diversos
momentos. Distinguindo o que é essencial à teoria marxista daquilo que lhe é
apenas contingente, o revolucionário francês esclarece, em Reflexões sobre a
violência33, em meio a um pálido período de parlamentarismo
social-democrata que teve lugar após a Primeira Guerra Mundial, a função
histórica da violência – incorporando o irracionalismo filosófico ao
materialismo histórico. Mariátegui, em consonância com Sorel, defende que a
revolução “desgraçadamente” não pode ser feita com “jejuns”: “Os
revolucionários de todas as latitudes têm de escolher entre sofrer a violência
ou utilizá-la. Se não se deseja que o espírito e a inteligência estejam sob as
ordens da força” – afirma –, “há que se decidir colocar a força sob as ordens da
inteligência e do espírito”34.
Outro aspecto da teoria soreliana caro a
Mariátegui é a questão da citada fé indígena discutida pelo francês:
O que mais pura e claramente diferencia nesta época a burguesia do
proletariado é o mito. A burguesia já não tem nenhum mito. Tornou-se incrédula,
cética, niilista. O mito liberal renascentista envelheceu muito. O proletariado
tem um mito: a revolução social [...]. A força dos revolucionários não está em
sua ciência; está em sua fé em sua paixão, em sua vontade.35
Para Mariátegui, a fé indígena foi
anteriormente fundada no misticismo mas deve agora se tornar ideológica, em
contraste com a desesperança do homem ocidental. A fé – paixão por um ideal – é
característica intrinsecamente revolucionária e não pode ser confundida com o
velho romantismo. Em Sete ensaios de interpretação da realidade peruana,
ele afirma que o romantismo do século XIX foi essencialmente individualista,
cheio de “queixa egolátrica e narcisista”, mas no século XX “é, ao contrário,
espontânea e logicamente socialista” – pois que o novo romancista “sente e ama
universalmente”. Assim, ele se soma à crítica de José Ingenieros – em O
homem medíocre36 – contra a limitação racionalista: “O maiores
espíritos são os que associam as luzes do intelecto às magnificências do
coração”. Mariátegui dedicaria a esse filósofo argentino – que também via no
entusiasmo e na fé valores cruciais à revolução – um de seus perfis
político-literários. Em Do sonho as coisas: retratos subversivos, cita
Ingenieros:
Sem entusiasmo de nada servem ideais bonitos, sem ousadia não se
realizam atos honrosos [...]. A juventude termina quando se apaga o
entusiasmo... A inércia perante a vida é covardia. Não basta na vida pensar num
ideal; é necessário aplicar todo esforço em sua realização.37
Ainda em contraposição a esse
intelectualismo, razão sábia é o termo com que Sérgio Rouanet denomina a
razão dialética, que contempla tanto o intelecto quanto o sentimento – equilibrando-se
em meio à oposição extremista entre positivismo e irracionalismo. “A razão sábia
tem consciência de que o homem é uma personalidade complexa, sensível e racional
ao mesmo tempo.” Por conseguinte, é distinta da “arrogância positivista”, que “revoga
o inconsciente e rejeita a influência da afetividade sobre o conhecimento”; e
dista também do irracionalismo, porque sabe que não há outro caminho para o
conhecimento senão a razão – nosso deus Logos, disse Freud, é pouco poderoso,
mas é o único que temos. E, acerca do valor dos sentimentos, cita o Elogio
da loucura
de Erasmo de Rotterdam:
As paixões não são apenas pilotos que conduzem ao porto da sabedoria os
que a ele se dirigem, no caminho da virtude, são aguilhões e esporas que
excitam a fazer o bem [...]. Quem não fugiria com horror de um homem sem
nenhuma paixão, inacessível ao amor e à piedade [...] que não perdoa nada, que
não se engana nunca, que mede tudo com o esquadro, que não ama ninguém, que
ousa zombar dos próprios deuses e de tudo escarnece? Tal é o retrato do animal
que passa por sábio perfeito.39
O marxismo mariateguiano, como exposto, mais
além de teoria, é sentimento – é “fé na causa revolucionária”. Defende uma
visão ampliada de revolução, que una a solidariedade camponesa à ciência
europeia. A solução latino-americana está para ele na síntese Oriente-Ocidente,
e a comunidade indígena poderá se converter na “célula do Estado socialista
moderno” – sociedade evoluída que operaria segundo uma nova conformação
econômica e cultural distinta tanto da ocidental como da oriental precedentes.
Para tanto é preciso dar à luta indígena um caráter de luta de classes. Avalia
que a cultura latino-americana se situa em um ponto relativamente privilegiado,
entre o racionalismo ocidental – cuja ciência subjugou a natureza, mas também a
degenerou – e o conhecimento instintivo dos povos indígenas, mais bem adaptados
ao ambiente, cultura na qual a práxis é um gesto mais presente no cotidiano40.
Esse equilíbrio entre as idiossincrasias ocidental (europeia) e oriental (nesse
caso, a indígena e a africana) se deu a partir da miscigenação étnica que
acabou por brindar nossa cultura com elementos de mestiçagem. De modo
generalista, seria possível analisar a dialética ocidentalismo-orientalismo
como a contraposição de certas tendências. De um lado, temos o gesto
intelectual, cético, dado à abstração, marcado pelo individualismo, ávido pela
engenhosidade técnica e ansioso pelo porvir; de outro, o sentimental,
esperançoso, sensualista, coletivista, adaptado à natureza que o rodeia e
atento ao presente.
A admiração de Mariátegui pela cultura indígena,
porém, não o impede de ter consciência de que o restauracionismo é impossível.
Reconhece que certas conquistas ocidentais são irreversíveis, e sua crítica
logicamente não se posta contra o progresso tecnológico, mas contra o progresso
que está contra o homem41.” (Yuri Martins Fontes)
33 São Paulo, Martins Fontes. 1992.
34 José Carlos Mariátegui, “A mensagem do
oriente”, ver p. 191-2 deste volume.
35 José
Carlos Mariátegui. “El hombre y el mito em Obras (Havana, Casa de las Américas 1988,
v. 1). p. 22.
36 4. ed., Curitiba, Juruá, 2006.
37 José Ingenieros citado em José Carlos
Mariátegui, Do sonho as coisas: retratos subversivos, São Paulo,
Boitempo, 2005), p. 129.
38 “Razão e paixão” em Adauto Novaes (org.). Os
sentidos da paixão (São Paulo, Companhia das Letras, 2009). p. 461.
39 Ibidem, p. 464.
40 “Nessa mesma direção, Caio Prado Jr. nota
de maneira positiva que contrariamente a suposição de que os índios são um povo
indolente no extremo Norte do Brasil”, onde os povos nativos ainda predomina, “o
indígena mais adaptado ao meio é bastante eficiente [em suas atividades]” (em Formação
do Brasil contemporâneo, 23. ed., São Paulo,
Brasiliense, 1996).
41 Note-se aqui a semelhança com Rousseau, que há mais de dois séculos percebeu
a necessidade de superar o cientificismo da cultura industrial e urbana que “degrada
e avilta o homem”, mas sem pretender com isso um regresso à ingenuidade
primitiva do estado natural – o que seria até uma impossibilidade lógica, pois
a história não comporta caminho de volta. Rousseau, ao criticar os bens
culturais da civilização, mostra que a cultura não é um fim em si mesma, mas
deve estar dirigida a satisfazer o homem – sem o que lhe é prejudicial.
“O empenho daqueles que, como Henri de Man,
condenam sumariamente o marxismo como um simples produto do racionalismo do
século XIX não pode, pois, ser mais precipitado e caprichoso. O materialismo
histórico não é precisamente o metafísico ou filosófico, nem é uma filosofia da
história deixada para trás pelo progresso científico. Marx não tinha porque
criar mais do que um método de interpretação histórica da sociedade atual.
Refutando o professor Stammler, Croce afirma que “o pressuposto do socialismo
não é uma filosofia da história, mas uma concepção histórica determinada pelas
condições presentes da sociedade e do modo como esta chegou a elas”. A crítica
marxista estuda concretamente a sociedade capitalista. Enquanto esta não
estiver definitivamente suplantada, o cânone de Marx permanecerá válido. O
socialismo, ou seja, a luta por transformar a ordem social de capitalista em
coletivista, mantém viva essa crítica, a continua, a confirma e a corrige. Vã é
toda tentativa de catalogá-la como uma simples teoria científica enquanto trabalhe
na história como evangelho e método de um movimento de massas.”
“A Revolução Russa – e Lenin, Trotski e
outros – produziu um tipo de homem pensante e operante que deveria dar o que
pensar a certos filósofos baratos carregados de todos os preconceitos e
superstições racionalistas, das quais se imaginam purgados e imunes.”
“A tática
socialista, para obter bom êxito, deve levar em conta a situação histórica
sobre a qual tem de operar e, sendo esta ainda imatura para a instauração do
socialismo, tem de cuidar-se bem para não forçar a mão; contudo, por outro
lado, não deve remeter-se passivamente a ação dos acontecimentos, mas,
inserindo-se em seu curso, deve tender cada vez mais a orientá-los no sentido
socialista, de modo a torná-los maduros para a transformação final. A tática
marxista é, assim, dinâmica e dialética, bem como a doutrina de Marx: a vontade
socialista não se agita no vazio, não prescinde da situação preexistente, não
se ilude em mudá-la com apelos ao bom coração dos homens, e sim adere
solidamente a realidade histórica, sem se resignar a ela de modo passivo: ou,
antes, reage contra ela cada vez mais energicamente, no sentido de reforçar o
proletariado econômica e espiritualmente, de acentuar nele a consciência de seu
conflito com a burguesia até que, tendo chegado ao máximo da exasperação, e a
burguesia ao extremo das forças do regime capitalista convertido em obstáculo
as forças produtivas, possa então esse regime ser derrubado e substituído, com
vantagens a todos, pelo regime socialista. (Adriano Tilgher – La crisi mondiale e saggi critice di
marxismo e socialismo [A crise mundial e ensaios críticos sobre o marxismo
e o socialismo]”
“Todos aqueles que, como Henri de Man,
predicam e anunciam um socialismo ético baseado em princípios humanitários, em
vez de contribuírem de algum modo para a elevação moral do proletariado,
trabalham inconsciente e paradoxalmente contra sua afirmação enquanto força criadora
e heroica, ou seja, contra seu rol civilizador. Pela via do socialismo “moral”
e de seus sermões antimaterialistas, não se consegue senão recair no mais
estéril lacrimoso romantismo humanitário, na mais decadente apologia do “pária”,
no mais sentimental e inepto plágio da frase evangélica dos “pobres de espírito”.
E isso equivale a retroceder o socialismo à sua estação romântica e utópica, na
qual suas reivindicações se alimentam em grande parte do sentimento e da
divagação dessa aristocracia que, depois de haver se entretido idílica e
dezoitescamente em disfarces de pastores e camponesas e ter se convertido à Enciclopédia e ao liberalismo sonhava em
capitanear bizarra e cavalheirescamente uma revolução de descamisados e
escravos. Obedecendo a uma tendência de sublimação de seu sentimento, esse
gênero de socialistas – ao qual ninguém pensa em negar o valor e no qual sobressaíram
a grandes alturas espíritos extraordinários e admiráveis – recolhia da
correnteza os seus clichês sentimentais e as imagens demagógicas de uma epopeia
de sans-culottes destinada a
instaurar no mundo uma idade paradisiacamente rousseauniana. Contudo, como
sabemos há muito tempo, esse não era absolutamente o caminho da revolução
socialista. Marx descobriu e ensinou que era preciso começar por compreender a
fatalidade da etapa capitalista e sobretudo o seu valor. O socialismo, a partir
de Marx, aparecia como a concepção de uma nova classe, como uma doutrina e um
movimento que nada tinham em comum com o romantismo daqueles que repudiavam a
obra capitalista tal qual uma abominação. O proletariado sucedia a burguesia na
empresa civilizadora. E assumir essa missão consciente de sua responsabilidade
e capacidade – adquiridas na ação revolucionária e na fábrica capitalista –, enquanto
a burguesia, tendo cumprido seu destino, cessava de ser uma força de progresso
e cultura.
Por isso a obra de Marx tem certo tom de admiração
pela obra capitalista e O capital, ao
mesmo tempo que fornece as bases de uma ciência socialista, é a melhor versão
da epopeia do capitalismo (algo que não escapa à observação Henri de Man
exteriormente, mas sim em seu sentido mais profundo).
O socialismo ético, pseudocristão e
humanitário, que se tenta opor anacronicamente ao socialismo marxista, pode ser
o exercício mais ou menos lírico e inócuo de uma burguesia fatigada e
decadente, mas não a teoria de uma classe que alcançou sua maioridade, superando
os mais altos objetivos da classe capitalista. O marxismo é totalmente estranho
e contrário a essas medíocres especulações altruístas e filantrópicas. Nós
marxistas não acreditamos que o empreendimento de criar uma nova ordem social
superior à ordem capitalista seja tarefa de uma amorfa massa de párias e
oprimidos, guiada por evangélicos predicadores do bem. A energia revolucionária
do socialismo não se alimenta de compaixão nem de inveja. Na luta de classes,
onde residem todos os elementos do sublime e heroico que há em sua ascensão, o
proletariado deve se elevar a uma “moral de produtores”, muito distante e
distinta da “moral de escravos” que oficiosamente se empenham em lhe prover os
seus gratuitos professores de moral horrorizados com seu materialismo. Uma nova
civilização não pode surgir de um triste e humilhado mundo de escravos e
miseráveis, sem mais qualificações e aptidões do que sua escravidão e miséria.
Somente como classe social o proletariado ingressa politicamente na história;
isso ocorre no instante em que descobre sua missão de edificar uma ordem social
superior com os elementos reunidos pelo esforço humano moral ou amoral, justo
ou injusto. E ele não alcançou essa capacidade por milagre. Adquiriu-a
situando-se somente no terreno da economia e da produção. Sua moral de classe
depende da energia e do heroísmo com que opera nesse terreno, e da amplitude
com que conhece e domina a economia burguesa.
Henri de Man por vezes resvala nessa verdade;
mas em geral se resguarda de adotá-la. Assim, por exemplo, escreve: “O
essencial no socialismo é a luta por ele. Segundo a fórmula de um representante
da Juventude Socialista Alemã, o objeto de nossa existência não é paradisíaco,
mas heroico”. Porém, não é essa precisamente a concepção na qual se inspira o
pensamento do revisionista belga, que algumas páginas antes confessa: “Sinto-me
mais próximo do reformista prático do que do extremista, e estimo mais uma nova
rede de esgotos em um bairro ou um jardim florido diante casa trabalhadores, do
que uma nova teoria de luta classes”. Man critica, na primeira parte de sua obra,
a tendência a idealizar o proletário como se idealizava o camponês, o homem
primitivo e simples, na época de Rousseau. E isso indica que sua especulação e
sua prática se baseiam quase que unicamente no socialismo humanitário dos
intelectuais.
Não há dúvidas de que até hoje esse
socialismo humanitário não é pouco difundido por entre as massas operárias. A Internacional, o hino da Revolução,
dirige-se em seu primeiro verso aos “pobres do mundo”, uma frase de clara reminiscência
evangélica. Ao se recordar de que o autor desses versos é um poeta popular
francês de pura estirpe boêmia e romântica, a veia de sua inspiração aparece
nítida. A obra de outro francês, o grande Henri Babusse**, apresenta-se
impregnada pelo mesmo sentimento de idealização das massas – massas atemporais,
eternas, sobre quais pesa opressora a glória dos heróis e o fardo das culturas.
Massa-cariátide***. Porém, as massas não são o proletariado moderno; e sua
reivindicação genérica não é a reivindicação revolucionária e socialista.
O mérito excepcional de Marx nesse sentido
consiste em ter descoberto o proletariado. Conforme escreve Adriano Tilgher,
Marx aparece ante a história como descobridor, e eu diria quase o inventor, do proletariado; ele de fato
não apenas deu ao movimento proletário consciência de sua natureza, de sua legitimidade
e necessidade histórica, de sua lei interna e do último estágio em direção ao qual
se encaminha – infundindo assim nos proletários aquela consciência que antes
lhes faltava –, como também se pode dizer que criou a própria noção, e por trás
da noção a realidade, do proletariado como classe essencialmente antitética da burguesia,
verdadeira e única portadora do espírito revolucionário na sociedade industrial
moderna.”
* Trata-se dos revolucionários franceses,
assim chamados por deixarem de usar culotes (calções típicos da nobreza). (N.
E. P)
** Sobre H. Barbusse, ver o ensaio de
Mariátegui El artista y la época. (N.
E. P.)
*** Cariátide: estátua em forma de mulher, usada como
coluna na arquitetura antiga. (N.T.)
“Max Eastman está longe de achar que a psicologia
contemporânea em geral e a psicologia freudiana em particular, diminua a
validez do marxismo como ciência prática da revolução. Pelo contrário: assinala
interessantes afinidades entre o caráter das descobertas essenciais de Marx e o
das descobertas de Freud, assim como das reações provocadas na ciência oficial
por um e outro. Marx demonstrou que as classes idealizavam ou mascaravam suas
motivações e que, por trás de suas ideologias, isto é, de seus princípios
políticos, filosóficos ou religiosos, atuavam seus interesses e necessidades
econômicas. Essa afirmação, formulada com o rigor e absolutismo que toda teoria
revolucionária sempre tem em sua origem, e que se acentua por razões polêmicas
no debate com seus contestadores, feria profundamente o idealismo dos intelectuais,
resistentes até hoje a admitir qualquer noção científica que implique uma
negação ou redução da autonomia e majestade do pensamento ou, mais
precisamente, dos profissionais ou funcionários do pensamento.
Freudismo e marxismo – apesar de os discípulos
de Freud e Marx não serem ainda os mais propensos a entendê-lo e notá-lo – são
parentes em seus diferentes domínios, não só pelo que em suas teorias há de “humilhação”,
como diz Freud, para as concepções idealistas da humanidade, mas pelo seu
método diante dos problemas que abordam. Como observa Max Eastman:
Para curar os transtornos individuais, o psicanalista presta uma atenção
particular às deformações da consciência produzidas pelos impulsos sexuais
reprimidos. O marxista, que busca curar os transtornos da sociedade, presta uma
atenção particular às deformações engendradas pela fome e pelo egoísmo. (...)
A acusação de pansexualismo que atinge a
teoria de Freud tem um equivalente exato na acusação de paneconomicismo sofrida
pela teoria de Marx. Além do fato de que o conceito de economia em Marx é tão
amplo e profundo como o de libido em Freud, o princípio dialético em que se
baseia toda a concepção marxista excluía a redução do processo histórico a uma
pura mecânica econômica. E os marxistas podem refutar e destruir a acusação de
paneconomicismo com a mesma lógica de Freud, que ao defender a psicanálise diz:
Foi censurada como pansexualista, embora o estudo psicanalítico dos
instintos houvesse sido sempre rigorosamente dualista e não houvesse jamais
deixado de reconhecer, ao lado dos apetites sexuais, outras motivações bastante
potentes para produzir o rechaço do instinto sexual.”
Nenhum comentário:
Postar um comentário