Editora: Abril cultural
Introdução,
tradução e notas: José Arthur Giannotti
Opinião: ★★☆☆☆
Páginas: 116
Sinopse: 1. Curso
de filosofia positivista [1830/42]: Exposição sistemática das principais ideias
que fundamentam o positivismo de Comte: a lei dos três estados; a caracterização
do espírito positivo; a necessidade da fundação de uma “física social”; a
crítica do método subjetivo em psicologia; a classificação das ciências.
2. Discurso sobre o espírito positivo [1844]: Inicialmente
esse Discurso servia de introdução ao Tratado Filosófico de
Astronomia Popular. Além de analisar o estado teológico, o metafísico e o
positivo, estuda as relações entre ciência e arte, entre ciência e teologia.
3. Discurso preliminar sobre o conjunto do positivismo
[1848]: Comte apresenta uma síntese clara de suas principais ideias.
Curso de filosofia positiva
“A inteligência humana, reduzida a ocupar-se
apenas de investigações suscetíveis duma utilidade prática imediata,
encontrar-se-ia por isso, como justamente observou Condorcet, inteiramente
impedida em seu progresso, mesmo a propósito dessas aplicações a que teria
imprudentemente sacrificado os trabalhos puramente especulativos. Pois as
aplicações mais importantes derivam constantemente de teorias formadas com
simples intenção científica, e que muitas vezes foram cultivadas durante vários
séculos sem produzir resultado prático algum. Pode-se disso citar um exemplo
bem notável, tomando as belas especulações dos geômetras gregos sobre as seções
cônicas que, depois duma longa série de gerações, serviram, determinando a renovação
da astronomia, para conduzir finalmente a arte da navegação ao grau de
aperfeiçoamento que atingiu nos últimos tempos, ao qual nunca teria chegado sem
os trabalhos tão puramente teóricos de Arquimedes e de Apolonius. Por isso
Condorcet pode dizer com razão: “O marinheiro, o qual uma exata observação da
longitude preserva do naufrágio, deve a vida a uma teoria conhecida dois mil
anos antes, por homens de gênio que tinham em vista simples especulações
geométricas”.”
Discurso sobre o espírito positivo
“Tal é a participação especial do estado
metafísico propriamente dito na evolução fundamental de nossa inteligência.
Esta, antipática a toda mudança brusca, pode assim elevar-se, quase de maneira
insensível, do estado puramente teológico ao estado francamente positivo,
embora essa situação equívoca se aproxime, no fundo, muito mais do primeiro do
que do último. As especulações dominantes nele conservaram o mesmo caráter
essencial de tendência habitual aos conhecimentos absolutos. Só a solução
sofreu uma transformação notável, capaz de melhor facilitar o crescimento das
concepções positivas. Como a teologia, a metafísica tenta, antes de tudo,
explicar a natureza íntima dos seres, a origem e o destino de todas as coisas,
o modo essencial de produção de todos os fenômenos. Mas, em vez de empregar
para isso agentes sobrenaturais propriamente ditos, ela os substitui
progressivamente por essas entidades ou abstrações
personificadas, cujo uso, verdadeiramente característico, permitiu muitas vezes
designá-las sob o nome de ontologia. É muito fácil observar hoje
tal maneira de filosofar que, embora preponderando sobre os fenômenos mais
complicados, apresenta cotidianamente, até mesmo nas teorias mais simples e
menos atrasadas, tantos traços apreciáveis de sua longa dominação. A eficácia
histórica dessas entidades resulta diretamente de seu caráter equívoco, pois,
em cada um desses seres metafísicos, inerente ao corpo correspondente, sem
confundir-se com ele, o espírito pode à vontade, conforme esteja mais perto do estado
teológico ou do estado positivo, ver ou uma verdadeira emanação da potência
sobrenatural, ou uma simples denominação abstrata do fenômeno considerado. Não
é mais a pura imaginação que domina, embora não seja ainda a verdadeira
observação. Mas o raciocínio adquire muita extensão e se prepara confusamente
para o exercício verdadeiramente científico. Deve-se, de resto, notar que sua
parte especulativa se encontra primeiramente muito exagerada, em virtude dessa
tendência obsessiva de argumentar em lugar de observar, que, em todos os
gêneros, caracteriza habitualmente o espírito metafísico, mesmo entre os seus
mais eminentes órgãos. Uma ordem de concepções tão flexível, que de modo algum
comporta a consistência própria durante tanto tempo ao sistema teológico, deve
chegar, aliás muito mais rapidamente, à unidade correspondente, graças à
subordinação gradual das diversas entidades particulares a uma única entidade
geral, a natureza, destinada a determinar o fraco equivalente
metafísico da vaga ligação universal resultante do monoteísmo.
Para melhor compreender, sobretudo em nossos
dias, a eficácia histórica de tal aparelho filosófico, importa reconhecer que,
por sua natureza, só é espontaneamente suscetível duma simples atividade crítica ou
dissolvente, até mesmo mental e com maior razão social, sem nunca poder
organizar algo que lhe seja próprio. Radicalmente inconsequente, esse espírito
equívoco conserva todos os princípios fundamentais do sistema teológico,
retirando-lhe entretanto cada vez mais o vigor e a fixidez indispensáveis à sua
autoridade efetiva. É numa alteração semelhante que consiste, com efeito, sob
todos os aspectos, sua principal utilidade passageira, quando o regime antigo,
por muito tempo progressivo para o conjunto da evolução humana, encontra-se
inevitavelmente neste grau de prolongamento abusivo, em que tende a perpetuar
indefinidamente o estado de infância que, no início, tinha dirigido de modo tão
feliz. A metafísica não é, no fundo, mais do que uma espécie de teologia
gradualmente inervada por simplificações dissolventes, que lhe tiram
espontaneamente o poder direto de impedir o crescimento especial das concepções
positivas, conservando-lhe, entretanto, a aptidão provisória de manter certo
exercício indispensável para o espírito de generalização, até que ele possa
enfim receber melhor alimento. Conforme seu caráter contraditório, o regime
metafísico ou ontológico se encontra sempre nesta inevitável alternativa de
tender a uma restauração vã do estado teológico, para satisfazer às condições da
ordem, ou de conduzir a uma situação puramente negativa, a fim de escapar ao
império opressivo da teologia. Essa oscilação necessária, que agora só é
observada em relação às mais difíceis teorias, do mesmo modo existiu outrora a
respeito das mais simples, enquanto durou a idade metafísica, em virtude da
impotência orgânica sempre própria a uma tal maneira de filosofar. Se a razão
pública não a tivesse desde há muito afastado no que respeita a certas noções
fundamentais, não deveríamos temer assegurar que as dúvidas insensatas que
suscitou, há vinte séculos, sobre a existência dos corpos exteriores,
subsistiriam ainda essencialmente, porquanto nunca as dissipou por meio de
qualquer argumentação decisiva. Podemos, pois, finalmente considerar o estado
metafísico como uma espécie de doença crônica, naturalmente inerente à nossa
evolução mental, individual ou coletiva, entre a infância e a virilidade.”
“Reconhece de agora em diante, como regra
fundamental, que toda proposição que não seja estritamente redutível ao
simples enunciado de um fato, particular ou geral, não pode oferecer nenhum
sentido real e inteligível. Os princípios que emprega são apenas fatos
verdadeiros, somente mais gerais e mais abstratos do que aqueles dos quais deve
formar o elo. Seja qual for, porém, o modo, racional ou experimental, de
proceder à sua descoberta, é sempre de sua conformidade, direta ou indireta,
com os fenômenos observados que resulta exclusivamente sua eficácia científica.
A pura imaginação perde assim irrevogavelmente sua antiga supremacia mental, e
se subordina necessariamente à observação, de maneira a constituir um estado
lógico plenamente normal, sem cessar, entretanto, de exercer, nas especulações
positivas, ofício capital e inesgotável, para criar ou aperfeiçoar os meios de
ligação definitiva ou provisória. Numa palavra, a revolução fundamental, que
caracteriza a virilidade de nossa inteligência, consiste essencialmente em
substituir em toda parte a inacessível determinação das causas propriamente
ditas pela simples pesquisa das leis, isto é, relações constantes
que existem entre os fenômenos observados. Quer se trate dos menores quer dos
mais sublimes efeitos, do choque ou da gravidade, do pensamento ou da
moralidade, deles só podemos conhecer as diversas ligações mútuas próprias à
sua realização, sem nunca penetrar no mistério de sua produção. Nossas
pesquisas positivas devem essencialmente reduzir-se, em todos os gêneros, à
apreciação sistemática daquilo que é, renunciando a descobrir sua primeira
origem e seu destino final; importa, ademais, sentir que esse estudo dos
fenômenos, ao invés de poder de algum modo tornar-se absoluto, deve sempre
permanecer relativo à nossa organização e à nossa situação.”
“Importa, pois, bem sentir que o verdadeiro
espírito positivo não está menos afastado, no fundo, do empirismo do que do
misticismo. É entre essas duas aberrações, igualmente funestas, que se deve
sempre caminhar. A necessidade de tal atitude de reserva contínua, tão difícil
como importante, bastaria aliás para verificar, conformemente a nossas
explicações iniciais, quanto a verdadeira positividade deve ser maduramente
preparada, de maneira a não poder de modo algum convir ao estado nascente da
Humanidade. Nas leis dos fenômenos consiste realmente a ciência, à qual os
fatos propriamente ditos, em que pese a sua exatidão e a seu número, não
fornecem mais do que os materiais indispensáveis. Ora, considerando a
destinação constante dessas leis, pode-se dizer, sem exagero algum, que a
verdadeira ciência, longe de ser formada por simples observações, tende sempre
a dispensar, quanto possível, a exploração direta, substituindo-a por essa
previsão racional que constitui, sob todos os aspectos, o principal caráter do
espírito positivo, como o conjunto dos estudos astronômicos nos fará sentir
claramente. Tal previsão, consequência necessária das relações constantes
descobertas entre os fenômenos, não permitirá nunca confundir a ciência real
com essa vã erudição, que acumula maquinalmente fatos sem aspirar a
deduzi-los uns dos outros. Esse grande atributo de todas as nossas especulações
sadias não interessa menos à sua utilidade efetiva do que à sua própria
dignidade; pois a exploração direta dos fenômenos acontecidos não bastará para
nos permitir modificar-lhes o acontecimento, se não nos conduzisse a prevê-los
convenientemente. Assim, o verdadeiro espírito positivo consiste sobretudo
em ver para prever, em estudar o que é, a fim de concluir disso o
que será, segundo o dogma geral da invariabilidade das leis naturais.”
“Apesar de as necessidades mentais serem sem
dúvida as menos enérgicas de todas aquelas inerentes à nossa natureza, é
incontestável sua existência direta e permanente em todas as inteligências.
Constituem elas o primeiro estímulo indispensável a nossos diversos esforços
filosóficos, atribuídos demasiadamente sobretudo aos impulsos práticos que, se
na verdade os desenvolvem muito, não seriam capazes de fazê-los nascer. Essas
exigências intelectuais, relativas, como todas as outras, ao exercício regular
das funções correspondentes, reclamam sempre uma feliz combinação de
estabilidade e de atividade, donde resultam as necessidades simultâneas
de ordem e progresso, ou de ligação e extensão. Durante a longa
infância da Humanidade somente as concepções teológico-metafísicas poderiam,
segundo nossas explicações anteriores, satisfazer provisoriamente a essa dupla
condição fundamental, embora duma maneira extremamente imperfeita. Mas quando a
razão humana por fim amadureceu, renunciando francamente às pesquisas
inacessíveis e circunscrevendo sabiamente sua atividade ao domínio
verdadeiramente apreciável por nossas faculdades, a filosofia positiva lhe traz
certamente uma satisfação muito mais completa, sob todos os aspectos, ao mesmo
tempo que mais real, desses dois carecimentos elementares. Tal é evidentemente,
com efeito, sob esse novo aspecto, a destinação direta das leis que descobre
sobre os diversos fenômenos e da previsão racional, que lhe é inseparável. No
que respeita a cada ordem de acontecimentos, essas leis devem ser distinguidas
em duas espécies, conforme ligam por similitude aqueles que
coexistem ou — por filiação — os que se sucedem. Essa
indispensável distinção corresponde essencialmente, para o mundo exterior,
àquela que este nos oferece espontaneamente entre os dois estados correlatos de
existência e de movimento. Daí resulta, em toda ciência real, uma diferença
fundamental entre apreciação estática e apreciação dinâmica de
um assunto qualquer. Os dois gêneros de relações contribuem igualmente para
explicar os fenômenos e, paralelamente, conduzem à sua previsão, apesar de as
leis da harmonia parecerem sobretudo destinar-se à explicação, e as leis de
sucessão à previsão. Quer se trate de explicar, quer de prever, tudo sempre se
reduz a ligar. Toda ligação real, estática ou dinâmica, descoberta entre dois
fenômenos quaisquer, permite ao mesmo tempo explicar e prevê-los um depois do
outro, pois a previsão científica convém evidentemente ao presente, assim como
ao passado e ao futuro. Esta consiste, sem cessar, em conhecer um fato
independentemente de sua exploração direta, em virtude de suas relações com
outros já dados. Assim, por exemplo, a assimilação demonstrada entre a
gravitação celeste e a gravidade terrestre levou, a partir das variações
acentuadas da primeira, a prever as fracas variações da segunda, que a
observação imediata não podia desvendar suficientemente, embora as tenha logo
em seguida confirmado. Do mesmo modo, em sentido inverso, a correspondência
antigamente observada entre o período elementar das marés e o dia lunar foi
explicada logo que se reconheceu a elevação das águas em cada ponto resultando
da passagem da lua pelo meridiano local. Todas as nossas verdadeiras
necessidades lógicas convergem, pois, essencialmente para essa destinação
comum: consolidar, quanto possível, graças a nossas especulações sistemáticas,
a unidade espontânea de nosso entendimento, constituindo a continuidade e a
homogeneidade de nossas diversas concepções, de maneira a satisfazer igualmente
às exigências simultâneas da ordem e do progresso, fazendo com que
reencontremos a constância no meio da variedade.”
“Com efeito, a concepção racional da ação do
homem sobre a natureza ficou essencialmente limitada ao mundo inorgânico, donde
resultou uma excitação científica demasiadamente imperfeita. Quando essa imensa
lacuna for suficientemente preenchida, como hoje começa a ser feito, poder-se-á
perceber a importância fundamental dessa grande destinação prática para
estimular habitualmente, e até mesmo muitas vezes para melhor dirigir, as mais
eminentes especulações, sob a única condição normal duma constante
positividade. Pois a arte não será mais então unicamente geométrica, mecânica
ou química, etc., mas também e sobretudo política e moral. A principal ação
exercida pela Humanidade deve, sob todos os aspectos, consistir no
aprimoramento contínuo de sua própria natureza, individual ou coletiva, dentre
os limites que indicam, do mesmo modo que em todos os outros casos, o conjunto
das leis reais. Quando essa solidariedade espontânea da ciência com a arte
puder ser convenientemente organizada, não podemos então duvidar de que, ao
invés de tender a restringir as sadias especulações filosóficas, ela lhes
designaria, ao contrário, um oficio muito superior a seu alcance efetivo. Isto
se de antemão não tivermos reconhecido, como princípio geral, a impossibilidade
de jamais tornar a arte puramente racional, a saber, de elevar nossas previsões
teóricas ao verdadeiro nível de nossas necessidades práticas. Nas próprias
artes mais simples e perfeitas, um desenvolvimento direto e espontâneo
permanece constantemente indispensável, sem que as indicações científicas
possam, em algum caso, suplementá-las completamente. Seja qual for o grau de
satisfação, por exemplo, que tenham obtido nossas previsões astronômicas, sua
precisão é ainda, e provavelmente sempre o será, inferior às nossas justas
exigências práticas, como terei ocasião muitas vezes de indicar.
Essa tendência espontânea a constituir
diretamente uma inteira harmonia entre a vida especulativa e a vida ativa deve
ser finalmente olhada como o privilégio mais feliz do espírito positivo.
Nenhuma outra sua propriedade pode tão bem manifestar o verdadeiro caráter e
facilitar a ascendência real. Nosso ardor especulativo se encontra assim
mantido, e mesmo dirigido, por uma potente estimulação contínua, sem a qual a
inércia natural de nossa inteligência o predisporia a satisfazer muitas vezes a
nossas necessidades teóricas com explicações fáceis, mas insuficientes, enquanto
o pensamento da ação final lembra sempre a condição duma precisão conveniente.”
“Considerada de início em sua acepção mais
antiga e comum, a palavra positivo designa real, em
oposição a quimérico. Desta ótica, convém plenamente ao novo espírito filosófico,
caracterizado segundo sua constante dedicação a pesquisas verdadeiramente
acessíveis à nossa inteligência, com exclusão permanente dos impenetráveis
mistérios de que se ocupava, sobretudo em sua infância. Num segundo sentido,
muito vizinho do precedente, embora distinto, esse termo fundamental indica o
contraste entre útil e ocioso. Lembra então, em filosofia, o
destino necessário de todas as nossas especulações sadias para aperfeiçoamento
contínuo de nossa verdadeira condição individual ou coletiva, em lugar da vã
satisfação duma curiosidade estéril. Segundo uma terceira significação usual,
essa feliz expressão é frequentemente empregada para qualificar a oposição
entre a certeza e a indecisão. Indica assim a aptidão
característica de tal filosofia para constituir espontaneamente a harmonia
lógica no indivíduo, e a comunhão espiritual na espécie inteira, em lugar
dessas dúvidas indefinidas e desses debates intermináveis que devia suscitar o
antigo regime mental. Uma quarta acepção ordinária, muitas vezes confundida com
a precedente, consiste em opor o preciso ao vago. Este sentido lembra a
tendência constante do verdadeiro espírito filosófico a obter em toda parte o
grau de precisão compatível com a natureza dos fenômenos e conforme às
exigências de nossas verdadeiras necessidades; enquanto a antiga maneira de
filosofar conduzia necessariamente a opiniões vagas, comportando apenas uma
indispensável disciplina, baseada numa repressão permanente e apoiada numa
autoridade sobrenatural.
É preciso, enfim, observar especialmente uma
quinta aplicação, menos usada que as outras, embora igualmente universal,
quando se emprega a palavra positivo como contrária a negativo. Sob
esse aspecto, indica uma das mais eminentes propriedades da verdadeira
filosofia moderna, mostrando-a destinada sobretudo, por sua própria natureza,
não a destruir, mas a organizar. Os quatro caracteres gerais que
acabamos de lembrar distinguem-na ao mesmo tempo de todos os modos possíveis,
quer teológicos, quer metafísicos, próprios à filosofia inicial. (...)
O único caráter essencial do novo espírito
filosófico, não ainda indicado diretamente pela palavra positivo, consiste em
sua tendência necessária a substituir, em todos os lugares, absoluto por relativo.
Mas esse grande atributo, ao mesmo tempo científico e lógico, é de tal modo
inerente à natureza fundamental dos conhecimentos reais que sua consideração
geral não tardará a ligar-se intimamente aos diversos aspectos já combinados
por essa fórmula, quando o moderno regime intelectual, até aqui parcial e
empírico, passar comumente ao estado sistemático. (...) Concebe-se, de fato,
que a natureza absoluta das antigas doutrinas, teológicas ou metafísicas,
determinasse necessariamente cada uma delas a tornar-se negativa em relação a
todas as outras, sob pena de ela própria degenerar num absurdo ecletismo. É, ao
contrário, em virtude de seu gênio relativo que a nova filosofia pode sempre
apreciar o valor próprio das teorias que lhe são mais opostas, sem contudo
chegar a uma vã concessão, suscetível de alterar a nitidez de suas vistas ou a
firmeza de suas decisões. Cabe, portanto, presumir, conforme o conjunto de tal
apreciação especial, que a fórmula empregada aqui para qualificar habitualmente
essa filosofia definitiva lembrará, de agora em diante, a todos os bons
espíritos a total combinação efetiva de suas diversas propriedades
características.”
“Na verdade, os preconceitos inerentes ao
estado transitório ou revolucionário tiveram que encontrar também algum acesso
em nossos proletários alimentando, com efeito, inoportunas ilusões sobre o
alcance indefinido das medidas políticas propriamente ditas. Impedem de
apreciar quanto a justa satisfação dos grandes interesses populares depende
hoje muito mais das opiniões e dos costumes do que das próprias instituições,
cuja verdadeira regeneração, atualmente impossível, exige, antes de tudo, uma
reorganização espiritual. No entanto, podemos assegurar que a escola positiva
terá muito maior facilidade em fazer penetrar este salutar ensino nos espíritos
populares que em qualquer outra parte, seja porque a metafísica negativa aí não
pode enraizar-se tanto, seja, sobretudo, por causa do impulso constante das
necessidades sociais inerentes à sua situação necessária. Essas necessidades se
reportam essencialmente a duas condições fundamentais, uma espiritual, outra
temporal de natureza profundamente conexa. Trata-se, com efeito, de assegurar
convenientemente a todos, primeiro, uma educação normal, depois o trabalho
regular. Tal é, no fundo, o verdadeiro programa social dos proletários.
Não pode mais existir verdadeira popularidade a não ser para uma política que
tenda necessariamente para esse duplo destino.”
Discurso preliminar sobre o conjunto do
positivismo
“Enfastia-se de pensar e até de agir, mas
nunca de amar.”
“A verdadeira filosofia se propõe a
sistematizar, tanto quanto possível, toda a existência humana, individual e
sobretudo coletiva, contemplada ao mesmo tempo nas três ordens de fenômenos que
a caracterizam, pensamentos, sentimentos e atos. Sob todos esses aspectos, a
evolução fundamental da humanidade é necessariamente espontânea, e a exata
apreciação de sua marcha natural é a única a nos fornecer a base geral duma
sábia intervenção. Mas as modificações sistemáticas, que aí podemos introduzir,
possuem, entretanto, extrema importância para muito diminuir os desvios
parciais, os atrasos funestos e as graves incoerências, próprias a um voo tão
complexo, se permanecesse inteiramente abandonado a si próprio. A realização
contínua dessa indispensável intervenção constitui o domínio essencial da
política. No entanto, sua verdadeira concepção só pode provir da filosofia, que
aperfeiçoa sem cessar sua determinação geral. Para essa comum destinação
fundamental, o ofício próprio da filosofia consiste em coordenar entre elas
todas as partes da existência humana, a fim de conduzir a noção teórica a uma
completa unidade.
Tal síntese não poderia ser real a não ser
que representasse exatamente o conjunto das relações naturais, cujo estudo
judicioso vem a ser a condição prévia dessa construção. Se a filosofia tentasse
influenciar diretamente a vida ativa, a não ser mediante essa sistematização,
usurparia viciosamente a missão necessária da política, o único arbítrio
legítimo de toda evolução prática. Entre essas duas funções principais do
grande organismo, o elo contínuo e a separação normal residem, ao mesmo tempo,
na moral sistemática, que constitui naturalmente a aplicação característica da
filosofia e o guia geral da política.
Essa grande coordenação, que caracteriza o
ofício social da filosofia, só poderia ser real e durável abarcando o conjunto
de seu triplo domínio, especulativo, afetivo e ativo. Conforme as reações
naturais que unem intimamente essas três ordens de fenômenos, toda
sistematização parcial seria necessariamente quimérica e insuficiente.”
“Em virtude de sua própria realidade
característica, a nova filosofia se encontra conduzida a vir a ser mais moral
do que intelectual, colocando na vida afetiva o centro de sua própria
sistematização, para representar exatamente os direitos respectivos do espírito
e do coração na verdadeira economia da natureza humana, individual ou coletiva.
A elaboração de questões sociais a leva hoje a dissipar radicalmente as
orgulhosas ilusões inerentes à sua preparação científica, quanto à pretensa
supremacia da inteligência. Sancionando a experiência universal, melhor do que
o pôde fazer o catolicismo, o positivismo explica por que a felicidade privada
e o bem público dependem mais do coração do que do espírito. Mas, além disso, o
exame direto da questão de sistematização o conduz a proclamar que a unidade
humana só pode resultar duma justa preponderância do sentimento sobre a razão e
até mesmo sobre a atividade.
Caracterizando-se nossa natureza ao mesmo
tempo pela inteligência e pela sociabilidade, sua unidade parece primeiramente
poder estabelecer-se segundo dois modos diferentes, conforme a supremacia
pertença a um ou a outro desses atributos. No entanto, existe apenas um só modo
de sistematização, já que os dois atributos não possuem, sob quase todos os
aspectos, a mesma capacidade de prevalecer. Que se considere a natureza própria
de cada um deles ou que se compare suas energias respectivas, pode-se
claramente reconhecer que a inteligência somente comporta de fato o destino
durável de servir à sociabilidade. Quando, em vez de se constituir dignamente
como seu principal ministro, aspira à dominação, nunca chega a realizar essas
orgulhosas pretensões, o que só pode desembocar numa anarquia desastrosa.
Mesmo na vida privada, é possível reinar
entre nossas diversas tendências uma harmonia contínua somente por causa da
preponderância universal do sentimento, que nos inspira a vontade sincera e
habitual de fazer o bem. Essa tendência, como todas as outras, é sem dúvida essencialmente
cega, precisa do socorro da razão para conhecer os verdadeiros meios de
satisfazer-se, do mesmo modo que a atividade se lhe torna indispensável para
aplicá-los. Mas a experiência cotidiana prova, entretanto, que tal impulso
constitui a principal condição do bem, posto que, conforme o grau ordinário de
inteligência e de energia que nossa natureza apresenta, esta estimulação
continuada basta para dirigir, com frutos, as investigações de uma e as
empresas da outra. Privadas de tal móvel habitual, ambas se esgotam
necessariamente em tentativas estéreis ou incoerentes, recaindo logo em seu
torpor inicial. Nossa existência moral só comporta, pois, verdadeira unidade
enquanto a afeição dominar concomitantemente a especulação e a ação.
A despeito desse princípio fundamental convir
de muito à vida individual, é na vida pública que melhor manifesta sua
irrecusável necessidade. Isto não é porque nela a dificuldade muda realmente de
natureza, nem que exija novas soluções, mas atinge grau muito mais apreciável,
que não permite qualquer incerteza sobre os meios. A independência mútua dos
diversos seres que é preciso então ligar mostra claramente que a primeira
condição de seu concurso habitual consiste em sua própria disposição ao amor
universal. Não há cálculos pessoais que possam de ordinário substituir esse
instinto social, nem em virtude da instantaneidade e extensão das aspirações,
nem pela ousadia e persistência das resoluções. Na verdade, essas afeições
benevolentes devem ser muitas vezes menos enérgicas nelas próprias do que as
afeições egoístas. Mas possuem necessariamente essa admirável propriedade que a
existência social permite e provoca seu florescimento quase ilimitado, enquanto
comprime incessantemente seus adversários. É assim que, antes de tudo, conforme
a tendência crescente das primeiras em prevalecer sobre as segundas, se deve
medir o principal progresso da humanidade. Sua ascendência espontânea pode
muito ser secundada pela inteligência, quando se aplica a consolidar a
sociabilidade, apreciando melhor as verdadeiras relações naturais, e a
desenvolvê-la, esclarecendo seu exercício, com o auxílio das indicações do
passado sobre o futuro. Neste nobre serviço, a nova filosofia concentra o
principal destino do espírito, a que fornece, assim, ao mesmo tempo,
incomparável consagração e campo inesgotável, muito mais adequado a
satisfazê-lo profundamente do que os vãos triunfos acadêmicos e suas pueris
investigações atuais.
No fundo, as soberbas aspirações de
inteligência em vista do domínio universal, desde que a grande unidade
teológica se rompeu irrevogavelmente, nunca puderam comportar qualquer
realização, sendo somente susceptíveis de uma eficácia insurrecional contra um
regime que se tornara retrógrado. O espírito não se destina a reinar, mas a servir;
quando crê dominar, entra a serviço da personalidade, em lugar de secundar a
sociabilidade, sem que possa de modo algum dispensar-se de assistir a uma
paixão qualquer. O comando real exige, com efeito, a força antes de tudo; a
razão, não possuindo mais do que a luz, precisa de um impulso de fora. As
utopias metafísicas, muito bem acolhidas pelos cientistas modernos, a respeito
duma pretensa perfeição duma vida puramente contemplativa, não são mais do que
ilusões orgulhosas, quando não cobrem artifícios culpáveis. A despeito de ser,
sem dúvida, real a satisfação ligada somente à descoberta da verdade, nunca
possuiu bastante intensidade para dirigir a conduta habitual. O impulso duma
paixão qualquer é indispensável à nossa raquítica inteligência, para determinar
e sustentar quase todos os seus esforços. Se essa inspiração emana duma afeição
benévola, nós a tomamos como sendo ao mesmo tempo mais rara e mais estimável;
sua vulgaridade impede, ao contrário, de distingui-la quando nasce de motivos
pessoais de glória, ambição ou cupidez; tal é, no fundo, a única diferença
ordinária. Ainda que o impulso mental resultasse duma espécie de paixão
excepcional pela verdade pura, sem qualquer mistura de orgulho e de vaidade,
esse exercício ideal, desprendido de todo destino social, não deixaria de ser
profundamente egoísta. Terei logo ocasião de indicar como o positivismo, ainda
mais severo do que o catolicismo, imprime necessariamente uma marca de
ignomínia sobre tal tipo metafísico ou científico, no qual o verdadeiro ponto
de vista filosófico leva a reconhecer um abuso culpável das facilidades que
traz a civilização, com fito totalmente diferente, para a existência
contemplativa.
É assim que o princípio positivo,
espontaneamente provindo da vida ativa, e sucessivamente estendido a todas as
partes essenciais do domínio especulativo, encontra-se, em sua plena
maturidade, inevitavelmente conduzido, em consequência natural de sua realidade
característica, a abraçar também o conjunto da vida afetiva, onde logo coloca o
único centro de sua sistematização final. De agora em diante, o positivismo
erige, pois, em dogma fundamental, ao mesmo tempo filosófico e político, a
preponderância contínua do coração sobre o espírito.”
“Se o coração deve sempre colocar questões,
cabe sempre ao espírito resolvê-las. (...)
Conforme a interpretação positiva do grande
princípio orgânico, o espírito só deve essencialmente tratar as questões
propostas pelo coração para a justa satisfação final de nossas diversas
necessidades. A experiência já mostrou demasiadamente que, sem esta regra
indispensável, o espírito seguiria quase sempre sua inclinação involuntária
para especulações ociosas ou quiméricas, que são ao mesmo tempo as mais
numerosas e as mais fáceis. Mas em qualquer elaboração do assunto assim
proposto, o espírito deve permanecer o único juiz, seja da conveniência dos
meios, seja da realidade dos resultados. Cabe unicamente a ele apreciar o que
há de ser previsto como acontecendo no futuro, e descobrir os processos de
melhoramento. Numa palavra, o espírito deve sempre ser o ministro do coração,
nunca seu escravo. Tais são as condições correlativas da harmonia final
instituída pelo princípio positivo. Pouco se deve temer que sejam gravemente
perturbadas, porque os dois elementos desse grande equilíbrio logo se
encontrarão dispostos naturalmente a mantê-lo, como igualmente favoráveis a
cada um deles.
Pois o verdadeiro amor demanda sempre ser
esclarecido sobre os meios reais de atingir o fim que persegue. O reino do
verdadeiro sentimento deve ser habitualmente favorável tanto à sã razão quanto
à sábia atividade.”
“Tal é, pois, o fundamento exterior da grande
síntese, tanto afetiva e ativa como puramente especulativa, constantemente
relativa a essa ordem imutável. Sua apreciação real constitui o principal
objeto de nossas contemplações; sua preponderância necessária regula o
florescimento geral de nossos sentimentos; seu aperfeiçoamento gradual
determina a finalidade contínua de nossas ações. Para melhor apreender sua
influência, bastaria supor, por um momento, sua inexistência afetiva: então
nossa inteligência se consumiria em divagações desenfreadas, logo seguidas dum
torpor incurável; nossas melhores inclinações não mais conteriam a ascendência
espontânea sobre os instintos menos nobres; e nossa atividade só chegaria a uma
agitação incoerente. Embora essa ordem tenha sido ignorada por muito tempo, seu
império inevitável nem por isso deixou de tender a regular, sem que
quiséssemos, toda nossa existência, primeiro, ativa, e, em seguida, contemplativa
ou mesmo afetiva. Na medida em que a conhecemos, nossas concepções se tornaram
menos vagas, nossas inclinações menos caprichosas, nossa conduta menos
arbitrária. Desde que apreendemos seu conjunto, tende a regularizar, em todos
os gêneros, a sabedoria humana, apresentando sempre nossa economia artificial
como um judicioso prolongamento dessa irresistível economia natural. Esta é
preciso estudar e respeitar, para chegar a aperfeiçoá-la. Mesmo naquilo que nos
oferece de verdadeiramente fatal, isto é, de não modificável, essa ordem
exterior é indispensável para a direção de nossa existência, a despeito das
recriminações artificiais de tantas inteligências orgulhosas.
A irresolução e a inconsequência, inerentes à
multiplicidade e à mediocridade de nossas inclinações, não nos permitem uma
conduta contínua e unânime, a não ser por causa dessas exigências insuperáveis,
sem as quais nossa razão raquítica, a despeito de seus vãos murmúrios, nunca
chegaria a terminar suas confusas deliberações. Incapazes de criar, só sabemos
modificar, em nosso proveito, uma ordem essencialmente superior à nossa
influência. Supondo possível a independência absoluta, sonhada pelo orgulho
metafísico, percebemos logo que, longe de melhorar nosso destino, ela impediria
todo florescimento real de nossa existência, até mesmo privada. O principal
artifício do aperfeiçoamento humano consiste, ao contrário, em diminuir a
indecisão, a inconsequência e a divergência de quaisquer de nossos desígnios,
vinculando-os a motivos exteriores, àqueles hábitos intelectuais, morais e
práticos que emanam no início de fontes puramente interiores. Pois todos os
vínculos mútuos de nossas diversas tendências são incapazes de assegurar sua
fixidez, até que encontrem fora um ponto de apoio inacessível a nossas
variações espontâneas.”
“O serviço geral da inteligência em relação à
sociabilidade não se limita, pois, a fazer com que esta conheça a economia
natural, de que deve aceitar o império inevitável. Para que essa determinação
teórica possa guiar nossa atividade, é preciso a ela acrescentar a exata
apreciação dos diversos limites de variação peculiares a essa ordem exterior e
também os limites de suas principais imperfeições. Esses dois dados gerais são
os únicos a permitir caracterizar e circunscrever nossa sábia intervenção. A
crítica positiva da natureza sempre constituirá pois importante atributo da sã
filosofia, embora a intenção antiteológica, que a inspirou no início, tenha
deixado de oferecer um interesse maior, em consequência de sua irrevogável
eficácia. Sem se ocupar de qualquer luta, conceber-se-á de agora em diante tal
exame como destinado a melhor colocar o conjunto da questão humana. Liga-se
diretamente à finalidade contínua de toda nossa existência no regime positivo,
porquanto o aperfeiçoamento supõe primeiramente a imperfeição. Essa conexidade
geral torna-se antes de tudo necessária em relação à nossa própria natureza,
pois a verdadeira moralidade exige profundo sentimento habitual de nossos
vícios espontâneos. Todas essas indicações bastam para caracterizar a condição
fundamental, segundo a qual a grande sistematização humana, sem deixar de ser
essencialmente afetiva por seu princípio subjetivo, deve finalmente depender
duma operação especulativa, a única capaz de fornecer-lhe uma base objetiva,
ligando-a ao conjunto da economia exterior, de que a humanidade sofre e
modifica o império.”
“Essa grande lei, proclama, como se sabe, a
passagem necessária de todas as nossas especulações por três estados
sucessivos; primeiro, o teológico, em que dominam francamente as ficções
espontâneas, desprovidas de qualquer prova; depois, o estado metafísico,
caracterizado sobretudo pela preponderância habitual das abstrações
personificadas ou entidades; por fim, o estado positivo, sempre fundado numa exata
apreciação da realidade exterior. O primeiro regime, embora puramente
provisório, constitui em toda parte nosso único ponto de partida; o terceiro, o
único definitivo, representa nossa existência normal; quanto ao segundo,
comporta apenas influência modificadora, ou melhor, dissolvente, que o destina
somente a dirigir a transição duma a outra constituição. Tudo começa, com
efeito, sob inspiração teológica, para desembocar na demonstração positiva,
passando pela argumentação metafísica. Desse modo, uma mesma lei geral nos
permite de agora em diante abarcar ao mesmo tempo o passado, o presente e o
futuro da humanidade.
A esta lei de filiação meu Sistema de
filosofia positiva sempre associou a lei de classificação, cuja
aplicação dinâmica fornece o segundo elemento indispensável à minha teoria da
evolução, determinando a ordem necessária, segundo a qual nossas diversas
concepções participam de cada fase sucessiva. Sabe-se que essa ordem está
regulada pela generalidade decrescente dos fenômenos correspondentes, ou, o que
implica o mesmo, por sua complicação crescente. Daí resulta sua dependência
espontânea em relação a todos aqueles que são mais simples e menos especiais. A
hierarquia fundamental de nossas especulações reais consiste assim em sua
classificação natural em seis categorias elementares: matemática, astronômica,
física, química, biológica e, enfim, sociológica; cada uma sofrendo antes da
seguinte os diferentes graus essenciais da evolução total, que só poderia
oferecer um caráter vago e confuso, sem o uso contínuo de tal classificação.
Uma teoria formada pela íntima combinação
dessa lei estática com a lei dinâmica parece primeiramente concernir apenas ao
movimento intelectual da humanidade. Mas as explicações indicadas acima nos
garantem previamente sua aptidão necessária a também abarcar o desenvolvimento
social, cuja marcha geral necessitou sempre depender da marcha de nossas
concepções elementares sobre o conjunto da economia natural. A parte histórica
de minha grande obra demonstra a correspondência contínua entre a evolução
ativa e a evolução especulativa, cujo concurso natural deveria regular a
evolução afetiva. Essa extensão decisiva da teoria fundamental exige unicamente
que se lhe acrescente um último complemento essencial, diretamente relativo ao
crescimento temporal da humanidade. Consiste, como se sabe, na sucessão
necessária dos diversos caracteres principais da atividade humana, primeiro,
conquistadora, depois defensiva e, finalmente, industrial. Sua solidariedade
natural com a preponderância respectiva do espírito teológico, do espírito
metafísico e do espírito positivo, logo explica o conjunto do passado,
sistematizando sem esforço a única concepção histórica que seja espontaneamente
sancionada pela razão pública, isto é, a distinção geral entre a Antiguidade, a
Idade Média e o Estado moderno.
Para fundar enfim a verdadeira ciência social
bastava pois estabelecer irrevogavelmente essa teoria da evolução, combinando,
com a lei dinâmica que a caracteriza, primeiro, o princípio estático que a consolida,
depois, a extensão temporal que a completa. Essa fundação decisiva termina por
constituir o conjunto da filosofia natural, afastando para sempre a distinção
provisória que, desde Aristóteles e Platão, a separava profundamente da
filosofia moral. O espírito positivo, por tanto tempo limitado aos mais simples
fenômenos inorgânicos, finaliza então sua difícil iniciação, estendendo-se até
as especulações mais complicadas e importantes, de agora em diante liberadas de
todo regime teológico ou metafísico. Tornando-se assim homogêneas todas as
nossas concepções reais, a unidade especulativa tende logo a estabelecer-se
espontaneamente, de maneira a fornecer uma sólida base objetiva para a
sistematização total, que constitui a finalidade característica da verdadeira
filosofia, que permaneceu até agora impossível, por falta de elementos
suficientes.
Perceber-se-á como a principal dificuldade
desta síntese definitiva consistia, ouso dizer, na descoberta de minha teoria
fundamental da evolução humana, se considerarmos que tal teoria, ao mesmo tempo
que completa e coordena essa base objetiva, subordina-a espontaneamente ao
princípio subjetivo, que sempre deve dirigir o conjunto da construção
filosófica. Apreciando assim a ordem universal, a inteligência, orgulhosa dum
ofício indispensável que somente ela pode cumprir, está muitas vezes disposta a
desconhecer sua destinação necessária ao serviço contínuo da sociabilidade.
Tende a seguir livremente sua inclinação natural para divulgações
especulativas, de tal modo fortalecidas hoje por hábitos empíricos peculiares
ao florescimento preliminar das especialidades positivas. É preciso pois que a
inspiração subjetiva a reconduza incessantemente à sua verdadeira vocação,
impedindo suas contemplações de tomar um caráter absoluto e uma expansão
ilimitada, que reproduzissem, sob a forma científica, os principais
inconvenientes do regime teológico-metafísico. O universo deve ser estudado não
por si mesmo, mas para o homem, ou melhor, para a humanidade. Qualquer outro
desígnio seria no fundo tão pouco racional quanto moral. Pois é somente como
subjetivas, nunca como puramente objetivas, que nossas especulações reais podem
ser verdadeiramente satisfatórias, quando se limitam a descobrir na economia
natural as leis que, duma maneira mais ou menos direta, influenciam com efeito
nossos destinos. Fora desse domínio, determinado pela sociabilidade, nossos
conhecimentos sempre permanecerão imperfeitos e ociosos, mesmo em relação aos
mais simples fenômenos, como testemunha a astronomia. Sem essa constante
preponderância do sentimento, o espírito positivo logo retornaria às
predileções, espontâneas de sua longa infância, para as contemplações mais
afastadas do homem, que também são as mais fáceis. Enquanto sua iniciação
permaneceu incompleta, essa tendência natural de dar prosseguimento
indistintamente a todas as investigações verdadeiramente acessíveis só se pôde
justificar pela eficácia lógica que a maior parte daquelas desprovidas de toda
utilidade científica comportava. Mas desde que o método positivo se desenvolveu
suficientemente para, diretamente, dirigir-se à sua verdadeira destinação,
esses exercícios ociosos prolongaram viciosamente o regime preliminar. Essa
vaga anarquia especulativa toma ainda um caráter cada vez mais retrógrado, tendendo
a destruir os principais resultados obtidos pelo espírito de pormenor, enquanto
permaneceu verdadeiramente positivo. A construção de base objetiva
indispensável à grande síntese humana suscita, pois, uma dificuldade muito
grave em conciliar a liberdade habitual, sem o qual a inteligência não poderia
proceder convenientemente, com a disciplina contínua que exige sua tendência
espontânea às divulgações indefinidas. Essa conciliação seria essencialmente
impossível, enquanto o estudo da ordem natural não se estender até as leis
sociológicas. Mas logo que o espírito positivo abrace realmente esta atribuição
final, a supremacia necessária de tais especulações o submete, sem esforço, ao
jugo legítimo do sentimento. Em sua marcha geral do exterior para o interior, a
apreciação objetiva vem então vincular-se espontaneamente ao impulso subjetivo,
de que havia por muito tempo entravado o império fundamental. Nenhum verdadeiro
pensador pode mais recusar admitir as demonstrações decisivas que, ainda sob o
simples aspecto especulativo, estabelecem, de agora em diante, a preponderância
lógica e científica do ponto de vista social, como único elo possível de todas
nossas contemplações reais. Sua ascendência necessária nunca poderia tornar-se
opressiva em relação aos diversos estudos positivos que constituirão sempre,
quer para o método, quer para a doutrina, o preâmbulo indispensável dessa
ciência final. Este regime definitivo imprime, ao contrário, a cada ciência
preparatória, ao mesmo tempo uma consagração preciosa e uma fecunda
estimulação, ligando-a diretamente ao conjunto da humanidade.
Tal é o modo natural por meio de que, como
anunciava no início deste curso, o espírito positivo, graças à fundação da
sociologia, vem se colocar para sempre sob a justa dominação do coração, de
maneira a permitir, enfim, a total sistematização, conforme à subordinação
contínua da base objetiva em relação ao princípio subjetivo. Dissipando
definitivamente o antagonismo excepcional que, desde o fim da Idade Média,
necessitou desenvolver-se entre a razão e o sentimento, essa operação
filosófica chama de imediato a humanidade para penetrar no regime, individual
ou coletivo, que convém plenamente à sua natureza. Enquanto permaneceram
contrárias entre si essas duas nobres influências, a sociabilidade não podia
chegar a modificar profundamente o império prático da personalidade. No
entanto, a despeito de sua fraca energia espontânea em nossa imperfeita
organização, seu concurso íntimo e contínuo, susceptível de imensa expansão,
poderá, de agora em diante, sem alterar o caráter essencialmente egoísta da
vida ativa, imprimir-lhe um grau habitual de moralidade, de cujo passado não
poderia formar ideia alguma, tendo em vista a harmonia insuficiente que estes
dois moderadores necessários de todos os nossos instintos preponderantes
comportavam até agora.”
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