quinta-feira, 12 de março de 2020

Dialética Negativa (Parte III) — Theodor W. Adorno

Editora: Jorge Zahar
ISBN: 978-85-3780-143-7
Tradução: Marco Antonio Casanova
Opinião: ★★☆☆☆
Páginas: 351
Sinopse: Ver Parte I


“A força da consciência vai até a sua própria ilusão. Onde a racionalidade desencadeada que se evade de si mesma se torna falsa, aquilo que é racionalmente cognoscível se transforma verdadeiramente em mitologia. A ratio converte-se em irracionalidade no momento em que desconhece em seu progresso necessário o fato de o desaparecimento de seu substrato ainda mais diminuto ser seu próprio produto, a obra de sua abstração. Quando o pensamento segue inconscientemente a lei de seu movimento, ele se volta contra o seu sentido, contra aquilo que é pensado pelo pensamento e que põe um termo na fuga ante as intenções subjetivas. Aquilo que é ditado por sua autarquia condena o pensamento ao vazio; esse vazio torna-se por fim, subjetivamente, estupidez e primitividade. A regressão da consciência é o produto dessa falta de autorreflexão. A consciência ainda consegue visualizar o princípio de identidade, mas não pode ser pensada sem identificação: toda determinação é identificação. Mas justamente ela se aproxima também daquilo que o próprio objeto é enquanto algo não-idêntico: dando a ele a sua marca, ela quer receber dele a sua. Secretamente, a não-identidade é o telos* da identificação, aquilo que precisa ser salvo nela; o erro do pensamento tradicional é tomar a identidade por sua finalidade. A força que lança pelos ares a aparência de identidade é a força do próprio pensamento: a aplicação de seu “isso é” abala sua forma, contudo, incondicional. Em termos dialéticos, o conhecimento do não-idêntico também está presente no fato de que justamente ele identifica, mais e de maneira diversa da maneira do pensamento da identidade. Ele quer dizer o que algo é, enquanto o pensamento da identidade diz sob o que algo cai, do que ele é um exemplar ou representante, ou seja, aquilo que ele mesmo não é. O pensamento da identidade afasta-se tanto mais amplamente da identidade de seu objeto, quanto mais inescrupulosamente se abate sobre ele. A identidade não desaparece por meio de sua crítica; ela se transforma qualitativamente. Vivem nela elementos da afinidade do objeto com o seu pensamento. A hybris** consiste em querer que a identidade seja, que a coisa corresponda em si a seu conceito. Mas seu ideal não poderia ser simplesmente alijado: na repreensão pelo fato de a coisa não ser idêntica ao conceito também vive a nostalgia própria a este último de que ela poderia se tornar idêntica. Dessa forma, a consciência da não-identidade contém a identidade. Certamente, até o interior da lógica formal, o momento ideológico do pensamento puro é a suposição da identidade. Nesse pensamento, contudo, também se esconde o momento de verdade da ideologia, a indicação de que não deve haver nenhuma contradição, nenhum antagonismo. Já no simples juízo identificador, um elemento utópico se associa ao elemento pragmático, dominador da natureza. “A” deve ser aquilo que ele ainda não é. Uma tal esperança articula-se de maneira contraditória com aquilo em que a forma da identidade predicativa é rompida. Para isso, a tradição filosófica possuía a palavra “ideias”. Elas não são nem χωρίς (separadas), nem casca vazia, mas signo negativo. A não-verdade de toda identidade obtida é a figura invertida da verdade. As ideias vivem nas cavernas existentes entre aquilo que as coisas pretendem ser e aquilo que elas são. A utopia estaria acima da identidade e acima da contradição, uma conjunção do diverso. Em virtude dela, a identificação se reflete segundo o modo como a língua usa a palavra fora da lógica, língua que não fala da identificação de um objeto, mas da identificação com homens e coisas. A contenda grega sobre se é o semelhante ou o dessemelhante que conhece o semelhante só poderia ser resolvida dialeticamente. Se, na tese de que só o semelhante é capaz disso, o momento ineliminável da mimesis que é intrínseco a todo conhecimento e a toda prática humana ganha a consciência, uma tal consciência torna-se não-verdade quando a afinidade que, em seu caráter ineliminável, está ao mesmo tempo infinitamente distante, posiciona a si mesma positivamente. Na teoria do conhecimento, resulta daí incontornavelmente a consequência falsa de que o objeto é o sujeito. A filosofia tradicional arroga-se como conhecedora do dessemelhante, na medida em que o torna semelhante a si mesma, apesar de com isso só conhecer propriamente a si mesma. A ideia de uma filosofia transformada seria a ideia de se aperceber daquilo que lhe é dessemelhante, determinando-o como aquilo que lhe é dessemelhante. — O momento da não-identidade no juízo identificador é facilmente discernível, na medida em que todo objeto singular subsumido a uma classe possui determinações que não estão contidas na definição de sua classe. Junto ao conceito mais enfático que não é somente uma unidade distintiva dos objetos singulares dos quais ele é derivado também vale, porém, ao mesmo tempo, o contrário. O juízo de que alguém é um homem livre refere-se, pensado de maneira enfática, ao conceito de liberdade. Esse conceito, contudo, é por sua vez mais do que aquilo que é predicado desse homem, tanto quanto todo homem, por meio de outras determinações, é mais do que o conceito de sua liberdade. Seu conceito não diz apenas que podemos aplicá-lo a todos os homens singulares definidos como livres. Aquilo que nutre esse conceito é a ideia de um estado no qual os singulares teriam qualidades que não poderiam ser atribuídas aqui e hoje a ninguém. Celebrar alguém como livre tem sua especificidade no sous-entendu de que lhe é atribuído algo impossível porque esse algo se manifesta nele; esse elemento que ao mesmo tempo salta aos olhos e é secreto anima todo juízo identificador que de alguma maneira é válido. O conceito de liberdade fica aquém de si mesmo no momento em que é aplicado empiricamente. Ele mesmo deixa de ser então o que ele diz. No entanto, como precisa ser sempre também conceito daquilo que é concebido com ele, precisa ser confrontado com isso. Uma tal confrontação o conduz a uma contradição consigo mesmo. Toda tentativa de excluir do conceito de liberdade, por meio de uma definição meramente instaurada, “operacional”, aquilo que a terminologia filosófica outrora denominou a sua ideia minimizaria arbitrariamente o conceito em favor de sua aplicabilidade em relação àquilo que ele designa em si. O singular é mais e menos do que a sua determinação universal. Todavia, como é somente por meio da suspensão dessa contradição, ou seja, por meio da identidade obtida entre o particular e seu conceito, que o particular, determinado, poderia chegar a si mesmo, o interesse do singular não é apenas conservar para si aquilo que o conceito de universal rouba dele, mas do mesmo modo conservar esse “mais” do conceito ante a sua indigência. Ele o experimenta até hoje como a sua própria negatividade. A contradição entre o universal e o particular tem por conteúdo o fato de que a individualidade ainda não é e por isso é ruim onde ela se estabelece. Ao mesmo tempo, essa contradição entre o conceito de liberdade e a sua realização também permanece a insuficiência do conceito; o potencial de liberdade exige uma crítica àquilo que sua formalização obrigatória fez dele.”
*: Objetivo, finalidade
**: A daemon que na antiga Grécia personificava a insolência, violência, orgulho imprudente, arrogância e qualquer comportamento ultrajante no geral.


“O pudor ordena à filosofia não reprimir a intelecção de Georg Simmel segundo a qual é espantoso o quão pouco os sofrimentos da humanidade são observados na história da filosofia.”


“Literalmente, seria preciso seguir o primado do objeto até o ponto em que o pensamento imagina ter conquistado sua própria objetividade absoluta, separando-se de toda objetividade que não é ela mesma pensamento: até o cerne da lógica formal. O “algo” ao qual todas as proposições lógicas se referem ainda é, lá onde elas têm o direito de ignorar isso completamente, reprodução daquilo que o pensamento visa e sem o que ele mesmo não poderia ser; aquilo que não é pensamento é condição lógico-imanente do pensamento. A cópula, o “é”, sempre contém já propriamente, segundo o modelo do juízo existencial, objetividade. Com isso, caem por terra também todas as esperanças inerentes à necessidade de segurança de possuir na lógica formal algo pura e simplesmente incondicionado, o fundamento seguro da filosofia.”


“Cabe à filosofia pensar aquilo que é diverso do pensamento e que o transforma pela primeira vez em pensamento, apesar de o seu demônio persuadi-lo de que isso não deve ser.”


Entrementes, o materialismo promoveu a satisfação de seu próprio aviltamento para aqueles que queriam a sua não-realização. A minoridade que se mostrou como causa disso não é, tal como pensava Kant, culpa da própria humanidade. Nesse ínterim, ao menos, ela passou a ser reproduzida de maneira totalmente planejada pelos detentores do poder. O espírito objetivo que eles governam, porque necessitam de sua sujeição, adapta-se sob medida à consciência aprisionada há milênios. O materialismo que alcançou o poder político não prescreveu menos uma tal prática para si do que o mundo que ele quis um dia transformar; ele continua a subjugar a consciência, ao invés de concebê-la e, por sua vez, transformá-la. Sob o pretexto gasto de uma ditadura do proletariado há muito administrado que dura há quase cinquenta anos, o funcionamento maquinal terrorista do Estado se entrincheira em instituições estáveis, insulto à teoria que essas instituições têm na boca. Elas acorrentam seus súditos a seus interesses mais imediatos e os obrigam a se manterem limitados. A depravação da teoria, contudo, não teria sido possível sem uma base apócrifa nela. Na medida em que os funcionários maltratam de maneira sumária e exterior a cultura que monopolizam, eles gostariam de grosseiramente dar a impressão de serem superiores à cultura, apesar de não fazerem outra coisa senão auxiliar a regressão universal. Aquilo que, na expectativa de uma revolução imediatamente iminente, gostaria de liquidar a filosofia também já ficara, outrora, impaciente por realizar a exigência da filosofia, aquém dela. No elemento apócrifo do materialismo revela-se o apócrifo da grande filosofia, o não-verdadeiro junto à soberania do espírito que despreza o materialismo dominante de maneira tão cínica quanto antes a sociedade burguesa o fazia, sub-repticiamente. O idealisticamente sublime é a marca do apócrifo; os textos de Kafka e de Brecht iluminam de modo nu e cru essa relação. Aquilo que há de inferior no materialismo é o que há de inferior e irrefletido na situação dominante. Aquilo que ficou para trás por culpa da espiritualização como princípio do fracasso também é o pior ante o mais elevado que é humilhado pela presença persistente do inferior. Aquilo que o materialismo possui de estreiteza e de barbárie eterniza essa extraterritorialidade do quarto Estado em relação à cultura, uma extraterritorialidade que não se restringe mais entrementes a esse Estado, mas se estendeu sobre a própria cultura. O materialismo transforma-se em recaída na barbárie que ele deveria evitar; trabalhar contra isso não é uma das tarefas mais indiferentes de uma teoria crítica. Senão, o antigo não-verdadeiro se perpetuaria de modo tanto mais grave quanto mais os coeficientes de atrito fossem reduzidos. Depois de as coisas terem se passado com a revolução como outrora com o retorno do messias, o que cresce é o subalterno. A teoria materialista não se tornou apenas esteticamente defeituosa em face ao sublime minado da consciência burguesa, mas ela se torna também não-verdadeira. Isso é teoricamente determinável. A dialética está nas coisas, mas ela não existiria sem a consciência que as reflete; tão pouco quanto ela se deixa dissolver na consciência. Em uma matéria total, indiferenciada, pura e simplesmente una, não haveria nenhuma dialética. A dialética materialista oficial saltou por decreto por sobre a teoria do conhecimento. A vingança a mantém no nível da teoria do conhecimento: na doutrina do reflexo. O pensamento não é um reflexo da coisa — somente uma mitologia materialista ao estilo de Epicuro o transforma em algo assim, uma mitologia que imagina que a matéria emite pequenas imagens —, mas ele vai à coisa mesma. A intenção iluminista do pensamento, a desmitologização, elimina o caráter imagético da consciência. Aquilo que se vincula à imagem permanece miticamente cativo, culto aos ídolos. A quintessência das imagens chega a se constituir em trincheira ante a realidade. A teoria do reflexo nega a espontaneidade do sujeito, um mobilizador da dialética objetiva das forças produtivas e das relações de produção. Se o sujeito é reduzido a um espelhamento obtuso do objeto que sempre perde necessariamente o objeto que só se abre ao excedente subjetivo no pensamento, então resulta daí a calma intelectual inquieta de uma administração integral. Somente uma consciência infatigavelmente reificada pretende ou faz com que os outros creiam que ela possui fotografias da objetividade. Sua ilusão transforma-se em imediatidade dogmática. Quando Lênin, ao invés de entrar na teoria do conhecimento, afirma contra ela, em uma reiteração compulsiva, o ser-em-si dos objetos do conhecimento, ele quer colocar em evidência a conspiração do positivismo com os powers that be. Fazendo isso, sua necessidade política volta-se contra a meta teórica do conhecimento. A argumentação transcendente liquida o problema a partir de uma pretensão de poder, e isso para o pior: aquilo que é criticado e no que não penetramos permanece ileso tal como é, e, enquanto algo que não foi absolutamente tocado, pode mesmo ressurgir à vontade uma vez mais em constelações alteradas de poder. A declaração verbal de Brecht de que não se precisaria mais de uma crítica à filosofia da imanência depois do livro sobre o empiriocriticismo era uma declaração de vista curta. A teoria materialista deve satisfazer desejos filosóficos, se é que ela não deve sucumbir ao mesmo provincianismo que deforma a arte dos Estados do Leste. O objeto da teoria não é nada imediato cujo dejeto ela pudesse arrastar consigo para casa, o conhecimento não possui, tal como a polícia de Estado, um álbum de seus objetos. A teoria pensa muito mais esses objetos em sua mediação: de outro modo, ela se contentaria com a descrição de fachada. O critério estendido e já problemático em sua posição original, o critério da intuição sensível, não pode ser, como Brecht afinal reconheceu, aplicado àquilo que é radicalmente mediado, à sociedade; escapa a esse critério aquilo que se introduziu no objeto como a lei de seu movimento e que é necessariamente encoberto pela forma ideológica do fenômeno. Marx, que, por repugnância ante as disputas acadêmicas, extravasou sua raiva nas categorias epistemológicas como na loja de porcelanas do ditado popular, sobrecarregou de maneira demasiada certas expressões, como reflexo. A sua suposta supremacia é paga ao preço do momento crítico subjetivo. Na ênfase colocada sobre esse momento vive ao lado da ideologia uma parte da hostilidade à ideologia; aquilo que é impedido é a inserção sub-reptícia da afirmação de que o produzido e as relações de produção sejam imediatas. Nenhuma teoria tem o direito de, em nome de uma modéstia agitadora, se colocar de modo estúpido contra o estado de conhecimento objetivamente alcançado. Ela precisa refleti-lo e levá-lo adiante. A unidade entre teoria e prática não foi pensada como concessão à fraqueza do pensamento que é um produto disforme da sociedade repressiva. Na figura da máquina registradora à qual esse pensamento gostaria de se igualar e em honra da qual ele gostaria ao máximo de se eliminar, a consciência declara a sua falência ante uma realidade que não está dada intuitivamente no estágio atual, mas sim de maneira funcional e em si abstrata. O pensamento especular seria desprovido de reflexão, uma contradição não-dialética; sem reflexão não há teoria. Uma consciência que inserisse entre ela e aquilo que ela pensa um terceiro elemento, as imagens, reproduziria sem perceber o idealismo; um corpo de representações substituiria o objeto do conhecimento, e o arbítrio de tais representações é o arbítrio daqueles que decretam. A nostalgia materialista de conceber o objeto quer o contrário: só sem imagens seria possível pensar o objeto plenamente. Uma tal ausência de imagens converge com a interdição teológica às imagens. O materialismo a seculariza na medida em que não permite que se pinte a utopia positivamente; esse é o teor de sua negatividade. Ele está de acordo com a teologia lá onde é maximamente materialista. Sua nostalgia seria a ressurreição da carne; para o idealismo, para o reino do espírito absoluto, essa nostalgia é totalmente estranha. O ponto de fuga do materialismo histórico seria a sua própria suspensão, a liberação do espírito do primado das necessidades materiais no estado de sua realização. É somente com o ímpeto corporal apaziguado que o espírito se reconciliaria e se tornaria aquilo que há muito ele não faz senão prometer, uma vez que sob o encanto das condições materiais ele recusa a satisfação das necessidades materiais.”


Ao lado disso, a ética kantiana, frágil em si, guarda seu aspecto repressivo. Esse aspecto triunfa de maneira não-atenuada na necessidade de punição.x Não é da obra tardia, mas da Crítica da razão prática que provêm as frases seguintes: “Assim, se apresentarmos àquele que, de resto, é um homem honesto (ou mesmo que se coloca apenas dessa vez em pensamento na posição de um homem honesto) a lei moral pela qual ele reconhece a indignidade de um mentiroso, sua razão prática abandona imediatamente (no juízo sobre aquilo que deveria ser feito com ele) a utilidade e unifica-se com aquilo que conserva o respeito por sua própria pessoa (a veracidade). A utilidade, então, depois de ser separada e purificada de toda ligação com a razão (que está totalmente do lado do dever), é pesada por todos os homens a fim de continuar se ligando à razão em outros casos, porém não naqueles em que ela poderia ser oposta à lei moral, que não é nunca abandonada pela razão, mas com a qual ela se unifica da maneira mais íntima possível.”45 Em seu desprezo pela compaixão, a Crítica da razão pura concorda com o “endurece-te a ti mesmo” do antípoda Nietzsche: “Mesmo esse sentimento de compaixão e de meiga simpatia, se ele precede a reflexão sobre o que é o dever e se transforma em fundamento de determinação, torna-se importuno para as pessoas bem-intencionadas, confundindo suas máximas refletidas e produzindo o desejo de se verem livres delas e de serem submetidas à razão legisladora.”46 Por vezes, a heteronomia imputada à constituição interna da autonomia se enfurece contra essa mesma razão que deveria ser a origem da liberdade. Nesse caso, Kant coloca-se do lado da antítese da terceira antinomia: “No entanto, lá onde cessa uma determinação segundo as leis da natureza, também cessa toda explicação e não resta mais nada senão ficar na defensiva, i.e., rejeitar as objeções daqueles que pretendem ter inserido mais profundamente o olhar na essência das coisas, e, por isso, declaram acidamente a liberdade como impossível.”47 O obscurantismo entrecruza-se com o culto à razão enquanto aquilo que domina absolutamente. A coerção que, de acordo com Kant, parte do imperativo categórico contradiz a liberdade que deveria ser sintetizada nele como a sua determinação suprema. Exatamente por isso, o imperativo desprovido de todo elemento empírico é apresentado como um “factum”48 que não carece de nenhuma prova por meio da razão, apesar do chorismos entre facticidade e ideia. O caráter antinômico da doutrina kantiana da liberdade acirra-se aí pelo fato de a lei moral ser considerada por ela como imediatamente racional e não-racional; racional porque ela se reduz à razão pura lógica; não-racional porque ela precisa ser aceita em seu modo de ser dado e não pode ser analisada mais amplamente; toda tentativa de empreender uma tal análise é um anátema. Esse caráter antinômico não precisa pesar sobre o filósofo: a pura lógica consecutiva, complacente em vista da autoconservação sem autorreflexão, é em si obnubilada, é irracional. Em Kant, o modo execrável de falar do arrazoamento inflado, um modo de falar que repercute no “raciocinar” hegeliano e que difama a razão sem um fundamento diferenciador pertinente, e a sua hipóstase para além de toda finalidade racional são compatíveis, apesar de sua gritante contradição. A ratio transforma-se em autoridade irracional.
Essa contradição remonta à contradição objetiva entre a experiência da consciência de si e a relação dessa consciência com a totalidade. O indivíduo sente-se livre, na medida em que se contrapôs à sociedade, e pode, ainda que, em termos não-relacionais, de modo muito menor do que ele acredita, intervir contra ela ou contra os outros indivíduos. Sua liberdade é primariamente a liberdade de alguém que persegue seus próprios fins, que não são absorvidos sem mediação pelos fins sociais; nessa medida, eles coincidem com o princípio de individuação. Uma liberdade desse tipo destacou-se da sociedade primitiva; no interior de uma sociedade cada vez mais racional, ela conquistou realidade própria. Ao mesmo tempo, contudo, não menos do que a individualidade em geral, ela permaneceu uma ilusão em meio à sociedade burguesa. A crítica à liberdade da vontade como a que é feita no determinismo é designada como crítica a essa ilusão. Para além das cabeças dos indivíduos formalmente livres, a lei valorativa se impõe. Eles são desprovidos de liberdade, de acordo com a intelecção de Marx, enquanto os seus executores involuntários, e, em verdade, de modo tanto mais fundamental, quanto mais crescem os antagonismos sociais junto aos quais se formou pela primeira vez a representação da liberdade. O processo de autonomização do indivíduo, função da sociedade de troca, culmina com a sua supressão por meio da integração. Aquilo que é produzido pela liberdade converte-se em não-liberdade. Enquanto o sujeito burguês que persegue uma atividade econômica, o indivíduo era livre, uma vez que a autonomia era fomentada pelo sistema econômico para que ele funcionasse. Com isso, sua autonomia já é negada em termos potenciais na origem. A liberdade na qual insistia era, como Hegel percebeu pela primeira vez, também algo negativo, escárnio quanto à liberdade verdadeira; expressão da contingência do destino social de cada indivíduo singular. A necessidade real na liberdade que tinha de se afirmar e, como queria a ideologia ultraliberal, impõe-se à força, era a máscara da necessidade social total que obriga o indivíduo à ruggedness (robustez) com a qual ele sobrevive. Mesmo conceitos que são tão abstratos que parecem se aproximar da invariância testemunham com isso o seu caráter histórico. Assim dá-se também com o conceito de vida. Por mais que a vida continue se reproduzindo sob as condições da não-liberdade, seu conceito pressupõe, segundo o seu próprio sentido, a possibilidade daquilo que ainda não está fechado, a possibilidade da experiência aberta, que se reduziu a tal ponto que a palavra “vida” já soa como um consolo vazio. Não menos do que a liberdade do indivíduo burguês, porém, a necessidade de sua ação também é uma caricatura. Ela não é, como o conceito de lei o promete, transparente, mas toca cada indivíduo como acaso, prosseguimento do destino mítico. A vida guarda esse caráter negativo, um aspecto que serviu de título para uma peça para piano a quatro mãos de Schubert: Lebenssturme (Tempestades da vida). Na anarquia da produção de mercadorias manifesta-se a natureza indômita da sociedade, tal como ressoa concomitantemente na palavra “vida”, categoria biológica para um ser essencialmente social. Se o processo de produção e de reprodução da sociedade fosse transparente para os sujeitos e determinado por eles, então esses sujeitos também não seriam mais jogados de um lado para o outro passivamente pelas tempestades sombrias da vida. Com isso, desapareceria aquilo que, assim entendido, significa a vida, juntamente com toda a aura fatal com a qual o Jugendstil (Art Nouveau) tinha envolvido essa palavra na era industrial, para a justificação da má irracionalidade. Por vezes, a perecibilidade desse consolo pressupõe sua sombra amistosa: hoje, a literatura do adultério característica do século XIX é já maculatura, exceção feita às suas maiores produções que trazem à tona os arquétipos históricos dessa época. Assim como nenhum diretor de teatro ousou encenar o Gyges de Hebbel para um público cujas senhoras não podiam abdicar de seus biquínis — o medo daquilo que é anacrônico em termos materiais, a falta de distância estética, possui ao mesmo tempo algo de bárbaro —, quando a humanidade se desenvolver, isso se produzirá para quase tudo aquilo que ainda é tomado hoje pela vida e que não faz outra coisa senão nos iludir quanto ao pouco de vida que de fato possui. Até esse momento, a normatividade vigente é contrária ao singular e aos seus interesses. Sob as condições de uma economia burguesa, não há como alterar nada aí; nessa economia, a pergunta sobre a liberdade ou não-liberdade da vontade não pode ser respondida. Essa questão é por seu lado moldada para a sociedade burguesa: a categoria em verdade histórica do indivíduo exime de maneira falsa essa questão da dinâmica social e trata todos os indivíduos a cada vez como um fenômeno originário. Obedecendo à ideologia da sociedade individualista, a liberdade interiorizou-se de maneira pérfida; é isso que impede toda resposta concludente à ideologia. Se a tese da liberdade da vontade sobrecarrega os indivíduos dependentes com uma injustiça social e os humilha incessantemente com exigências diante das quais eles precisam fracassar, a tese da não-liberdade em contrapartida prolonga metafisicamente a predominância do dado, declara-se como imutável e anima o singular, se é que ele já não se acha preparado sem mais para tanto, a adaptar-se, uma vez que não lhe resta outra coisa a fazer. O determinismo age como se a desumanização, o caráter de mercadoria da força de trabalho que é desenvolvido até a totalidade, fosse a essência humana pura e simplesmente, sem levar em consideração o fato de o caráter de mercadoria encontrar seus limites na força de trabalho que não possui apenas valor de troca, mas também um valor de uso. Se a liberdade da vontade é pura e simplesmente negada, então os homens são reduzidos sem restrição à forma padronizada do caráter de mercadoria de seu trabalho no interior do capitalismo avançado. O determinismo apriorista não é menos falso do que a doutrina da liberdade da vontade que abstrai, em meio à sociedade pautada pela mercadoria, dessa sociedade. O próprio indivíduo constitui um momento dessa sociedade; e é a ele que se atribui a pura espontaneidade que é desapropriada pela sociedade. O sujeito só precisa formular a alternativa que lhe é incontornável entre a liberdade e a não-liberdade da vontade para que esteja perdido. Toda tese drástica é falsa. No ponto mais íntimo, a tese do determinismo e a tese da liberdade da vontade coincidem. As duas proclamam a identidade. Por meio da redução à espontaneidade pura, os sujeitos empíricos são submetidos à mesma lei que, enquanto categoria da causalidade, se expande até o determinismo. Talvez os homens também fossem liberados da vontade; com certeza, é somente em uma sociedade livre que os indivíduos seriam livres. Com a repressão exterior, provavelmente depois de longos períodos e sob a ameaça permanente do retrocesso, desapareceria a repressão interior. Se a tradição filosófica, no espírito da opressão, confunde liberdade e responsabilidade, a liberdade se transforma na participação destemida e ativa de cada indivíduo em um todo que não cristalizaria mais institucionalmente a participação, mas no qual essa participação teria consequências reais. A antinomia entre a determinação do indivíduo e a responsabilidade social que lhe é contraditória não é nenhuma utilização falsa dos conceitos, mas é real: a figura moral da irreconciliação entre o universal e o particular. Mesmo Hitler e seus monstros são, de acordo com todas as intelecções psicológicas, escravos de sua primeira infância, produtos de uma mutilação, e, não obstante, não é possível absolver os poucos que foram pegos, se é que o crime hediondo não deve se repetir ao infinito, um crime que se justifica no inconsciente das massas pelo fato de que nenhum raio caiu do céu — essa é uma contradição que não se conseguiria aplainar por meio de construções auxiliares como a necessidade utilitária que se opõe à necessidade racional. O indivíduo só encontra a humanidade no momento em que toda a esfera da individuação, incluindo aí o seu aspecto moral, é percebido como epifenômeno. Por vezes, a sociedade como um todo, sobressaindo ao desespero de seu estado, defende, contra os indivíduos, aquela liberdade que protesta em nome da não-liberdade daqueles. Por outro lado, na era da opressão social universal, é somente nos traços do indivíduo massacrado e violado que sobrevive a imagem da liberdade contra a sociedade. Onde essa liberdade se refugia em cada época histórica, ela não pode ser decretada de uma vez por todas. A liberdade torna-se concreta nas figuras alternantes da repressão: na resistência a ela. Há tanta liberdade da vontade quanto há a vontade de os homens se libertarem. A própria liberdade, contudo, está tão enredada com a não-liberdade que ela não é meramente inibida por esta, mas a contém como condição de seu próprio conceito. Não mais do que qualquer outro conceito individual, esse conceito da liberdade não pode ser isolado como algo absoluto. Sem a unidade e a coerção da razão, algo similar à liberdade jamais poderia ter sido nem mesmo pensado, para não falar de ele poder ter existido; isso é documentado pela filosofia. Não se dispõe de nenhum modelo de liberdade para além do fato de a consciência interferir tanto na constituição conjunta da sociedade, quanto, por meio disso, na compleição do indivíduo. Desse modo, isso não é inteiramente quimérico porque a consciência, energia pulsional derivada, também é ela mesma impulso, mesmo um momento daquilo em que ela interfere. Se não houvesse essa afinidade que Kant nega convulsivamente, também não haveria a ideia de liberdade em virtude da qual ele se recusa a aceitar a afinidade.”
x De acordo com o teor da Crítica da razão pura, ainda é possível encontrar aí a intenção contrária: “Quanto mais a legislação e o governo fossem erigidos de maneira consonante com essa ideia, tanto mais raras se tornariam com certeza as punições e, nesse caso, é então totalmente racional afirmar (como Platão o fez) que, se a legislação estivesse plenamente de acordo com essas ideias, não seria mais necessário nenhuma punição.” (Kant, Kritik der reinen Vernunft [Crítica da razão pura], op. cit., p.248.)
45 Kant, Kritik der praktischen Vernunft, op.cit., p.92s.
46 Ibid., p.118; cf. Adorno e Horkheimer, Dialektik der Aufklärung, op.cit., p.114.
47 Kant, Grundlegung zur Metaphysik der Sitten, op.cit., p.459.
48 Kant, Kritik der praktischen Vernunft, op.cit., p.31; além disso, Adorno e Horkheimer Dialektik der Aufklärung, op.cit., p.114.

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