Editora: Jorge Zahar
ISBN: 978-85-3780-143-7
Tradução: Marco Antonio Casanova
Opinião: ★★☆☆☆
Páginas: 351
“A tendência nominalista induz equivocadamente o pensamento, que não pode
abdicar da proteção da moral em face da violência imediata que irrompe por toda
parte, a fixar a moral na pessoa como em um bem indestrutível. A liberdade que
não surgiria senão na instituição de uma sociedade livre é buscada lá onde a
instituição da sociedade existente o recusa, nos respectivos indivíduos singulares
que necessitariam dela, mas que não a garantem a partir de sua própria
constituição. A reflexão sobre a sociedade tanto quanto a reflexão sobre a
própria pessoa estão ausentes no personalismo ético. No momento em que é
completamente arrancada ao universal, a pessoa também não consegue mais
constituir nenhum universal; esse provém então sub-repticiamente das formas
estabelecidas de dominação. No período pré-fascista, o personalismo e o
falatório relativo à noção de interdependência não conviviam mal um com o
outro. A pessoa enquanto algo absoluto nega a universalidade que deve ser
recolhida a partir dela e alcança para o arbítrio o seu precário título de
direito. Seu carisma é tomado de empréstimo à irresistibilidade do universal,
por mais que, desorientada em relação à sua legitimidade, a pessoa se volte
sobre si mesma em detrimento do pensamento. Seu princípio, o princípio da
unidade inabalável tal como esse é constituído pela sua ipseidade, repete
obstinadamente a dominação. A pessoa é o nó atado historicamente que deveria
ser desatado pela liberdade, ao invés de ser eternizado; ela é o antigo encanto
do universal, entrincheirado agora no particular. A moral que podemos retirar
da pessoa permanece contingente como a existência imediata. De uma maneira
diversa do discurso kantiano que concerne à personalidade, a pessoa se tornou
uma tautologia para aqueles que já não possuem mais absolutamente nada além do
“isso aqui” aconceitual de seu ser-aí. A transcendência que algumas
neo-ontologias esperam da pessoa não faz outra coisa senão superestimar sua
consciência. Essa consciência, contudo, não existiria sem esse universal que o
recurso à pessoa como fundamento ético gostaria de excluir. É por isso que o
conceito de pessoa, assim como as suas variantes, por exemplo, a relação eu-tu,
assumiram o tom oleoso de uma teologia na qual não se acredita. Do mesmo modo
que o conceito de um homem justo não pode ser antecipado, ele também não pode
ser igualado à pessoa, essa duplicata santificada de sua própria
autoconservação. Segundo o ponto de vista da história da filosofia, esse
conceito implica por um lado o sujeito que se objetiva no caráter, e, por outro
lado, a decadência desse sujeito. A perfeita fraqueza do eu, a passagem dos
sujeitos para um comportamento passivo e atomista, similar aos reflexos, é ao
mesmo tempo a condenação merecida pela pessoa na qual o princípio econômico da
apropriação tornou-se antropológico. Aquilo que precisaria ser pensado nos
homens como o seu caráter inteligível não é o elemento pessoal neles, mas
aquilo por meio do que eles se distinguem de seu ser-aí. Na pessoa, esse
caráter distintivo aparece necessariamente como não-idêntico. Todo estímulo
humano contradiz a unidade daquele que ele mobiliza; cada impulso para o melhor
não se mostra apenas como, dito em termos kantianos, razão, mas antes também
como estupidez. Os homens só são humanos quando não agem como pessoas, nem, com
maior razão, se posicionam como tais; o elemento difuso da natureza, o elemento
no qual os homens não são pessoas, é similar aos traços de um ser inteligível,
desse si próprio que estaria redimido do eu; a arte contemporânea incorpora
radicalmente algo disso. O sujeito é mentira porque, em virtude da
incondicionalidade da própria dominação, ele nega as determinações objetivas de
si mesmo; só seria sujeito aquilo que se desprendesse dessa mentira e que, por sua
própria força, estabelecida graças à identidade, se desembaraçasse do
revestimento dessa identidade. A inessência ideológica da pessoa é criticável
em termos imanentes. O elemento substancial que, segundo essa ideologia,
emprestaria à pessoa a sua dignidade, não existe. Os homens, sem nenhuma
exceção, ainda não são de maneira alguma eles mesmos. Com toda a razão,
poder-se-ia pensar com o conceito de si próprio a sua possibilidade, e essa
possibilidade se opõe de modo polêmico à realidade do si próprio. É exatamente
por isso que o discurso sobre a alienação do eu é insustentável. Apesar de seus
melhores dias hegelianos e marxistas,ab ou mesmo
por causa deles, esse discurso se tornou apologético porque dá a entender, com
facetas paternais, que o homem seria separado de um ser-em-si que ele sempre
foi, por mais que ele nunca tenha sido, e que, por consequência, recorrendo às suas
ἀρχαί (princípios), ele não pode
esperar nada que se submeta a uma autoridade, àquilo que justamente lhe é
estranho. O fato de esse conceito não figurar mais em O Capital de Marx
não é apenas condicionado pela temática econômica da obra, mas possui um
sentido filosófico. — A Dialética negativa não se detém nem diante do
fechamento da existência, da mesmidade sólida do eu, nem tampouco diante de sua
antítese não menos cristalizada: o papel que é utilizado pela sociologia
subjetiva contemporânea como uma panaceia universal, como a derradeira
determinação da sociabilização, de maneira análoga à existência da ipseidade em
alguns ontólogos. O conceito de papel sanciona hoje a despersonalização falsa e
perversa: a não-liberdade, que não toma o lugar da autonomia penosa e conquistada
como que por tempo determinado senão em virtude da adaptação plena, está abaixo
e não acima da liberdade. A miséria da divisão do trabalho é hipostasiada no
conceito de papel como se se tratasse de uma virtude. Com esse papel, o eu
prescreve uma vez mais a si mesmo aquilo a que a sociedade o condena. O eu
liberto, não mais aprisionado em sua identidade, também não estaria mais
condenado a se submeter a papéis. Se o tempo de trabalho fosse radicalmente
encurtado, o que restaria socialmente da divisão do trabalho perderia o poder
apavorante de formar inteiramente os seres individuais. A rigidez coisal do si
próprio, a sua prontidão para entrar em ação e a sua disponibilidade para o
desempenho dos papéis sociais desejados são cúmplices. Mesmo no âmbito moral, a
identidade não pode ser negada abstratamente, mas precisa ser conservada na
resistência, se é que ela deve se transformar um dia em seu outro. O Estado
atual é destrutivo: perda da identidade por causa da identidade abstrata, da
autoconservação nua e crua.”
ab “Essa ‘alienação’,
para permanecer compreensível aos filósofos, só pode ser naturalmente suspendida
sob dois pressupostos práticos.” (Karl Marx e Friedrich Engels, Die deutsche
Ideologie [A ideologia alemã], Berlim, 1960, p.31.)
“Se o conceito de universalidade fosse extraído da pluralidade dos
sujeitos e, em seguida, autonomizado na objetividade lógica da razão na qual
todos os sujeitos individuais, e, ao que parece, a subjetividade enquanto tal,
desapareceriam, Kant poderia, sobre a aresta estreita entre o absolutismo
lógico e a validade universal empírica, retornar àquele ente que, no sistema,
tinha sido anteriormente banido pela lógica consecutiva. Nesse ponto, a
filosofia moral antipsicológica converge com as descobertas psicológicas
posteriores. No que a psicologia desvela o supereu como norma social
interiorizada, ela quebra suas barreiras monadológicas. Essas barreiras, por
sua vez, são socialmente produzidas. A consciência moral retira sua
objetividade em relação aos homens da objetividade da sociedade na qual e por
meio da qual eles vivem, e que alcança até o cerne de sua individuação. Os
momentos antagônicos encontram-se em uma tal objetividade inseparavelmente
entrelaçados: a coerção heterônoma e a ideia de uma solidariedade que
ultrapassa os interesses particulares divergentes. Aquilo que reproduz na
consciência moral a monstruosidade obstinadamente insistente e repressiva da
sociedade é o contrário da liberdade e deve ser desmistificado pela
apresentação de sua própria determinação. Em contrapartida, a norma universal
que é apropriada de maneira inconsciente pela consciência moral presta testemunho
sobre aquilo que, na sociedade, enquanto o princípio de sua totalidade,
ultrapassa a particularidade. Esse é o seu momento veritativo. Recusa-se uma
resposta conclusiva à pergunta sobre o justo e o injusto da consciência moral
porque o justo e o injusto são absolutamente inerentes à consciência moral e
porque nenhum juízo abstrato poderia isolá-los: é só em sua figura repressiva
que se forma a figura solidária da consciência que suspende essa figura
repressiva. É essencial à filosofia moral que haja tanto menos diferença entre
o indivíduo e a sociedade quanto mais eles estejam reconciliados. Na exigência
estabelecida pelo indivíduo que não é satisfeita socialmente, o caráter ruim da
universalidade se declarou. Esse é o conteúdo veritativo supraindividual da
crítica à moral. Todavia, o indivíduo que, culpado por necessidade,
transforma-se em algo derradeiro e absoluto, decai por sua vez nesse caso na
ilusão da sociedade individualista, desconhecendo-se a si mesmo; Hegel compreendeu
muito bem isso uma vez mais, e, em verdade, o mais acuradamente lá onde
favorece o abuso reacionário. A sociedade que, em sua exigência universal, age
injustamente em relação ao indivíduo, também tem razão contra ele, na medida em
que, no indivíduo, o princípio social da autoafirmação irrefletida, ele mesmo o
mal universal, é hipostasiado. A sociedade o mensura gota a gota. A sentença
kantiana tardia de que a liberdade de cada homem só deveria ser restrita na
medida em que trouxesse um dano para a liberdade de um outroad
codifica um Estado reconciliado que não se elevaria apenas acima do mal
universal, do mecanismo de coerção da sociedade, mas também acima do indivíduo
calcificado no qual esse mecanismo de coerção se repete microcosmicamente. A
questão acerca da liberdade não exige um sim ou não, mas uma teoria que se alce
tanto acima da sociedade estabelecida quanto da individualidade estabelecida.
Ao invés de sancionar a instância interiorizada e cristalizada do supereu, essa
teoria leva a termo a dialética entre o ser individual e o gênero. O rigorismo
do supereu é simplesmente um reflexo em face daquilo que é impedido pelo Estado
antagonista. O sujeito só seria liberto se fosse reconciliado com o não-eu, e,
com isso, ele também se encontraria acima da liberdade, porquanto a liberdade
está entretecida com a sua contraparte, a repressão. O quanto de agressão
reside até aqui na liberdade é algo que fica visível sempre que os homens agem
como homens livres no interior da não-liberdade universal. Não obstante, em um
Estado de liberdade, nem o indivíduo poderia proteger convulsivamente a antiga
particularidade — a individualidade é o produto tanto da pressão quanto do
centro de força que resiste a essa pressão —, nem esse Estado se
compatibilizaria com o conceito atual de coletividade. O fato de o coletivismo,
enquanto subordinação do singular à sociedade, ser imediatamente recomendado
nos países que hoje monopolizam o nome “socialismo” condena esse seu socialismo
a mentiras e consolida o antagonismo. O enfraquecimento do eu por meio de uma
sociedade socializada que incansavelmente impele os homens a se reunir e que,
em sentido próprio tanto quanto em sentido figurado, torna-os incapazes de
existir sozinhos, não se manifesta menos nas queixas contra o isolamento do que
na frieza verdadeiramente insuportável difundida sobre tudo, paralelamente à
expansão da relação de troca que é prolongada no regime autoritário das
pretensas democracias populares que não levam em conta as necessidades dos
sujeitos. Acreditar que, em uma associação de homens livres, esses homens
precisam constantemente se amotinar é constitutivo da esfera de representações
dos desfiles, das marchas militares e dos discursos oficiais de líderes
políticos. Tudo isso não floresce senão enquanto a sociedade procura como que
cimentar juntos de maneira irracional aqueles que são obrigados a ser seus
membros; objetivamente, isso é inútil. O coletivismo e o individualismo
completam-se mutuamente na falsidade. Contra os dois, vem protestando a filosofia
especulativa da história desde Fichte na doutrina do Estado de pecado absoluto,
e, mais tarde, na doutrina da perda de sentido. A modernidade é equiparada a um
mundo desprovido de forma, enquanto Rousseau, o precursor da animosidade
retrospectiva contra seu próprio tempo, a inflamava no último grande estilo:
sua aversão voltava-se contra um excesso de forma, contra a desnaturação da
sociedade. Seria o momento de denunciar a imagem do mundo vazio de sentido que,
de um emblema da nostalgia, degenerou-se na palavra de ordem dos enfurecidos da
ordem. Em lugar algum na Terra a sociedade atual é aberta como o certificam
seus apologetas científicos; em lugar algum, tampouco, ela é desprovida de
forma. A crença em uma tal deformação emergiu das desertificações das cidades e
dos campos por meio da indústria que se expandiu sem qualquer planejamento, de
uma falta de racionalidade, não de seu excesso desmedido. Quem reporta a
deformação a processos metafísicos, em vez de a relações da produção material,
produz virtualmente ideologias. Com a transformação dessas relações,
poder-se-ia atenuar a imagem da violência pela qual o mundo — violentado pelos
homens — se apresenta aos homens. O mal em si não seria absolutamente o fato de
as vinculações supraindividuais desaparecerem — elas não desapareceram de
maneira alguma; as obras de arte verdadeiramente emancipadas do século XX
também não são afinal piores do que todas aquelas que tiveram sucesso nos
estilos dos quais a modernidade se desvinculou com razão. Como no espelho,
inverte-se a experiência de que se espera dos homens, dado o estado da
consciência e das forças materiais produtivas, que eles sejam livres, que eles
também esperem isso de si mesmos; e, contudo, eles não são livres, apesar de,
no estado de sua não-liberdade radical, não restar nenhum padrão de pensamento,
de comportamento, e, para empregar o termo mais vergonhoso, de “valor”, que,
enquanto seres não-livres, eles gostariam de possuir. O lamento sobre a falta
de vinculação tem por substância a constituição de uma sociedade que dá a
ilusão de liberdade, sem a realizar. A liberdade só existe, de maneira
suficientemente esvaecida, na superestrutura; seu fracasso perenizante incita a
nostalgia a se desviar para a não-liberdade. É provável que a pergunta sobre o sentido
da existência como um todo seja expressão desse fracasso.”
ad “É justa toda ação cujas máximas
podem servir de base para a conciliação da liberdade do arbítrio de cada um com
a liberdade de todos segundo uma lei universal.” (Kant, Metaphysik der
Sitten: Einleitung in die Rechtslehre [Metafísica dos costumes: Introdução
à doutrina do direito], §C, Werke VI, Akademie-Ausgabe, p.230.)
“O conceito da história universal — cuja validade inspira a filosofia
hegeliana de maneira similar à inspiração da filosofia kantiana pelas ciências
matemáticas da natureza — tornou-se tanto mais problemático quanto mais o mundo
uniformizado se aproximou de um processo conjunto. De um lado, a ciência
histórica, progredindo de modo positivista, desintegrou a concepção da
totalidade e de uma continuidade sem interrupções. Em relação à ciência
histórica, a construção filosófica tinha a vantagem duvidosa de um menor
conhecimento dos detalhes, algo que ela se dispunha facilmente a imaginar como
uma distância soberana; com certeza, ela também tinha menos medo de dizer algo
essencial que só ganha contornos à distância. De outro lado, a filosofia
avançada precisava preservar o acordo entre a história universal e a ideologia5 e manter a vida deslocada como descontínua. O
próprio Hegel tinha concebido a história universal uniforme meramente por força
de suas contradições. Com a reformulação materialista da dialética, o acento mais
forte caiu sobre a intelecção da descontinuidade daquilo que não era mantido
coeso por nenhuma unidade consoladora do espírito e do conceito. Todavia, a
descontinuidade e a história universal precisam ser pensadas juntas. Riscar
essa história universal como resíduo de uma crença metafísica confirmaria
intelectualmente a mera facticidade enquanto a única coisa a ser conhecida e
por isso aceita, do mesmo modo que a soberania, que subordinava os fatos à
marcha triunfal do espírito uno, a ratificara antes como expressão dessa história.
A história universal precisa ser construída e negada. Depois das catástrofes
passadas e em face das catástrofes futuras, a afirmação de um plano do mundo
dirigido para o melhor, um plano que se manifesta na história e que a sintetiza,
seria cínica. No entanto, não se precisa negar com isso a unidade que solda as
fases e os momentos descontínuos, caoticamente estilhaçados, da história, uma
unidade que, a partir da dominação da natureza, se transforma em domínio sobre
os homens e, por fim, em domínio sobre a natureza interior. Não há nenhuma
história universal que conduza do selvagem à humanidade, mas há certamente uma
que conduz da atiradeira até a bomba atômica. Essa história termina com a
ameaça total da humanidade organizada contra os homens organizados, na suma
conceitual da descontinuidade. Por meio daí, Hegel é verificado até o horror e
colocado de cabeça para baixo. Se ele transfigurava a totalidade do sofrimento
histórico na positividade do absoluto se autorrealizando, o uno e o todo que
até hoje, com pausas para a respiração, não pararam de avançar seriam,
teleologicamente, o sofrimento absoluto. A história é a unidade de continuidade
e descontinuidade. A sociedade não se mantém viva apesar de seu antagonismo,
mas graças a ele; os interesses ligados ao lucro, e, com isso, a relação de
classes, são objetivamente o motor do processo de produção do qual depende a
vida de todos, e seu primado tem o seu ponto de fuga na morte de todos. Isso
também implica o elemento reconciliador no irreconciliável; na medida em que só
é permitido ao homem viver, sem ele não haveria nem mesmo a possibilidade de
uma vida transformada. O que criou historicamente essa possibilidade pode
igualmente destruí-la. Seria preciso definir o espírito do mundo, objeto digno
de definição, como catástrofe permanente. Sob o jugo universal do princípio de
identidade, aquilo que não imerge na identidade e que se subtrai à
racionalidade planificante no reino dos meios torna-se algo angustiante,
revanche pela desgraça que aconteceu com o não-idêntico por meio da identidade.
Quase não haveria outra forma de interpretar a história sem a transformar, como
que por encanto, em ideia.”
5 Cf. Walter Benjamin, Schriften
I [Escritos I], Frankfurt am Main, 1955, p.494s.
“A teoria só consegue movimentar o enorme
peso da necessidade histórica se esta é reconhecida como aparência que se
tornou realidade e a determinação histórica, como metafisicamente contingente.
Um tal reconhecimento é impelido pela metafísica da história. À catástrofe que
se prepara corresponde antes a suposição de uma catástrofe irracional nos
começos. Hoje, a possibilidade malograda do diverso concentrou-se na
possibilidade de, apesar de tudo, a catástrofe.”
“Aquilo que Hegel denomina como síntese não é
apenas a qualidade emergente da negação determinada e simplesmente nova, mas o
retorno do negado; a progressão dialética é sempre também um recurso àquilo que
se tornou vítima do conceito progressivo: o progresso na concreção do conceito
é a sua autocorreção.”
“O fato de a metafísica da reconciliação entre o universal e o particular
ter fracassado na construção da realidade efetiva, enquanto filosofia do
direito e enquanto filosofia da história, não podia permanecer velado para a
necessidade sistemática de Hegel. Ele empenhou-se por mediação. A sua categoria
da mediação, o espírito do povo, estende-se até o interior da história
empírica. Para os sujeitos individuais, ele seria a figura concreta do
universal. Por sua parte, porém, “o espírito do mundo determinado” não seria
“senão um indivíduo no curso da história universal”,31
uma individuação de um grau mais elevado e, enquanto tal, autônomo.
Precisamente a tese dessa autonomia dos espíritos dos povos legitima em Hegel o
domínio violento sobre os homens particulares; e isso de maneira similar à que aconteceu
mais tarde com Durkheim por meio das normas coletivas e com Spengler por meio das
almas de uma cultura. Quanto mais ricamente um universal recebe as insígnias do
sujeito coletivo, tanto mais os sujeitos desaparecem aí sem deixar vestígios.
Não obstante, essa categoria da mediação que não é aliás expressamente
mediação, mas só desempenha a função de mediação, fica aquém do próprio
conceito hegeliano de mediação. Ela não reina na coisa mesma, nem determina de
maneira imanente o seu outro, mas funciona como um conceito-ponte, como um meio
hipostasiado entre o espírito do mundo e os indivíduos. Hegel interpreta a
perecibilidade dos espíritos dos povos, de maneira análoga à perecibilidade dos
indivíduos, enquanto a verdadeira vida do universal. Em verdade, porém,
perecível é a categoria do povo e do espírito do povo, de maneira alguma apenas
as suas manifestações específicas. Também na medida em que os espíritos dos
povos que recentemente vieram à tona deveriam continuar a levar adiante a tocha
do espírito do mundo hegeliano, eles ameaçam reproduzir a vida do gênero humano
ao nível mais baixo. Já em face do universal kantiano de sua época, da
humanidade apreensível, a doutrina hegeliana do espírito do povo era
reacionária: ela cultivava um elemento que já tinha sido percebido como
particular. Sem hesitação, com a categoria enfática dos espíritos dos povos,
ele tomou parte no mesmo nacionalismo cujo caráter funesto ele tinha
diagnosticado junto aos agitadores das corporações estudantis. Seu conceito de
nação, portadora do espírito do mundo em meio à mudança constante, revela-se
como um dos invariantes a partir dos quais a obra dialética, paradoxal e,
contudo, coerente com o seu aspecto uno, flui. Em Hegel, as constantes
não-dialéticas que impõem um desmentido à dialética e sem as quais, porém, não
haveria dialética alguma possuem tanta verdade quanto a história como igualdade
eterna, como a má infinitude da culpa e da expiação que transcorreu exatamente
como Heráclito, testemunha principal de Hegel, já tinha reconhecido em tempos
arcaicos e elevado ontologicamente. Mas a nação — como termo e como coisa — é
de uma data recente. Depois do ocaso do feudalismo e para a proteção dos
interesses burgueses, uma forma de organização centralista precária deveria
controlar as associações naturais difusas. Ela acabou por se tornar fetiche
porque não poderia integrar de outro modo os homens que necessitam
economicamente dessa forma de organização assim como ela não cessa de exercer
um poder violento contra eles. Lá onde a unificação da nação, condição prévia
de uma sociedade burguesa autoemancipatória, fracassa completamente, na
Alemanha, o seu conceito é superestimado e torna-se destrutivo. Para tocar as gentes,
Hegel mobiliza de maneira adicional lembranças regressivas da raiz étnica
arcaica. Como fermentos malévolos, essas lembranças são apropriadas para manter
o indivíduo, resultado igualmente frágil e tardio de uma evolução, no estágio
inferior onde seu conflito com a universalidade está a ponto de se transformar
em crítica racional dessa universalidade: a irracionalidade dos fins da
sociedade burguesa quase não teria podido ser estabelecida sem os meios
irracionais eficazes. A situação especificamente alemã no começo da era
pós-napoleônica pôde dissimular para Hegel o quanto sua doutrina do espírito do
povo era anacrônica em comparação com o seu próprio conceito de espírito, de
cujo progresso não pode ser separada uma sublimação progressiva, a libertação
de uma naturalidade rudimentar. Nele, a doutrina do espírito do povo já era uma
consciência falsa, ainda que provocada pela necessidade de unidade administrativa,
já era ideologia. Mascarados, acoplados enquanto particularização ao ente dado,
os espíritos dos povos são imunes a essa razão cuja memória também é conservada
na universalidade do espírito. Segundo o tratado da Paz perpétua, os
elogios hegelianos à guerra não podem mais se proteger por detrás da
ingenuidade relativa a uma falta de experiência histórica. Aquilo que ele
elogia como o elemento substancial dos espíritos dos povos, as mores, já
tinha sido outrora irremediavelmente depravado e transformado naquele conjunto
de usos que foram desencavados então na era das ditaduras para multiplicar em
nome do Estado a despotencialização dos indivíduos por meio da tendência
histórica. Por si só, já o fato de Hegel precisar falar dos espíritos dos povos
no plural revela o caráter ultrapassado da pretensa substancialidade desses
espíritos. Ela é negada logo que se fala de uma pluralidade de espíritos dos
povos, logo que se tem em vista uma internacional das nações. Depois do
fascismo, ela reapareceu.”
“Aquilo que se prefere chamar de angústia e
que é dignificado como um existencial não passa de uma claustrofobia no mundo:
no sistema fechado. Ela perpetua o encanto sob a forma da frieza que reina
entre os homens, uma frieza sem a qual a desgraça não poderia se repetir. Quem
não é frio torna-se frio (como o assassino torna fria a sua vítima, segundo a
figura de linguagem vulgar) e deve se sentir condenado. Com a angústia e o seu
fundamento, talvez desaparecesse também a frieza. Na frieza universal, a
angústia é a figura necessária da maldição que pesa sobre aqueles que padecem
dela.”
“O ponto comum fatal entre a necessidade e o acaso, porém, um ponto que
já Aristóteles atribuía também ao meramente ente, é o destino. Este possui o
seu lugar tanto no círculo que o pensamento dominante coloca à sua volta,
quanto naquilo que permanece de fora e, abandonado pela razão, adquire uma
irracionalidade que converge com a necessidade estabelecida pelo sujeito. O
processo de dominação cospe pedaços da natureza subjugada sem os digerir. O
fato de o particular não se dissolver filosoficamente na universalidade exige
que ele também não se feche na obstinação do acaso. O que ajuda na
reconciliação entre o universal e o particular é a reflexão da diferença, não a
sua extirpação. O pathos hegeliano que atribui ao espírito do mundo a
única realidade efetiva, eco celeste de uma gargalhada infernal, prescreve a si
mesmo uma tal extirpação. O encanto mítico secularizou-se e se transformou em
interpenetração real e adaptada, sem solução de continuidade. O princípio de
realidade ao qual os homens espertos obedecem para sobreviver cativa-os como
magia negra; eles são tanto menos capazes e estão tanto menos dispostos a se
livrar do fardo porque o mágico dissimula esse peso para eles: eles tomam esse
fardo pela vida. Em termos metapsicológicos, o discurso sobre regressão é
pertinente. Tudo aquilo que se denomina hoje em dia comunicação, sem qualquer
exceção, não é senão o barulho que não nos deixa escutar a mudez dos que estão
encantados. As espontaneidades humanas individuais, e em uma larga medida
também as supostamente oposicionais, são condenadas à pseudocriatividade; e,
potencialmente, à debilidade. Os técnicos da lavagem cerebral e similares
praticam de fora a tendência antropológico-imanente que, por sua parte, é com
certeza extrinsecamente motivada. A norma histórico-natural da adaptação, uma
norma com a qual mesmo Hegel concorda a partir da sabedoria de botequim segundo
a qual é preciso quebrar a cara, é, exatamente como em seu caso, o esquema do
espírito do mundo concebido como encanto. Talvez a biologia mais recente
projete a experiência desse encanto, tabu entre os homens, sobre os animais, a
fim de desonerar os homens que os maltratam; a ontologia dos animais imita a
animalidade arcaica dos homens, constantemente reconquistada uma vez mais como
posse. Também nessa medida, mas de um modo diverso do que Hegel queria, o
espírito do mundo é sua própria contradição. O que há de animalizado na razão
autoconservadora expulsa o espírito da espécie que o venera. Por isso, em todos
os seus níveis, a metafísica do espírito hegeliana já está próxima da hostilidade
ao espírito.”
“Se a dialética negativa reclama a
autorreflexão do pensamento, então isso implica manifestamente que o pensamento
também precisa, para ser verdadeiro, hoje em todo caso, pensar contra si mesmo.
Se ele não se mede pelo que há de mais exterior e que escapa ao conceito, então
ele é de antemão marcado pela música de acompanhamento com a qual os SS
adoravam encobrir os gritos de suas vítimas.”
“O fato de as metafísicas da morte degenerarem ou bem na propaganda da
morte heroica, ou bem na trivialidade de uma pura repetição do inegável de que
se precisa mesmo morrer, a sua monstruosidade ideológica comum, funda-se
certamente na fraqueza até hoje persistente da consciência humana quando se
trata de se manter firme diante da experiência da morte e talvez mesmo de
acolhê-la efetivamente em si. Nenhuma vida humana que se comporte de maneira
aberta e livre em relação aos objetos é suficiente para consumar o que está
potencialmente presente no espírito de cada homem; isso e a morte divergem. As
reflexões que dão sentido à morte são tão inúteis quanto as reflexões
tautológicas. Quanto mais a consciência se arranca à animalidade e se
transforma em algo firme e duradouro em suas formas, tanto mais tenazmente ela
se estabelece contra tudo o que torna suspeita para ela a sua própria eternidade.
Com a entronização histórica do sujeito enquanto espírito, associa-se a ilusão
de que ele não teria como perder a si mesmo. Se as formas primitivas da
propriedade caminhavam lado a lado com as práticas mágicas que buscavam
conjurar a morte, o que afugenta a morte, quanto mais plenamente todas as relações
humanas são determinadas pela propriedade, é a ratio, e ela o faz com
tanta obstinação quanto outrora os ritos. Em um estágio derradeiro, a própria
morte se transforma, por desespero de causa, em propriedade. Sua elevação
metafísica a desvincula de sua experiência. A metafísica corrente da morte não
é nada além da consolação impotente da sociedade quanto ao fato de os homens
poderem perder, por meio das transformações sociais, aquilo que outrora podia
tornar a morte suportável: o sentimento de sua unidade épica com a vida que se
mostra como preenchida. Mesmo esse sentimento não poderia transfigurar o
domínio da morte em algo como o cansaço do homem velho e enfadado com a vida
que imagina morrer bem porque sua vida penosa não foi vida alguma e porque ela
lhe roubou a força para resistir à morte. Na sociedade socializada, contudo, no
tecido inextricavelmente denso da imanência, os homens só continuam sentindo a
morte como algo que lhes é extrínseco e alheio, sem ilusão quanto à sua
comensurabilidade com as suas vidas. Eles não conseguem metabolizar o fato de
precisarem morrer. A isso se junta uma parcela de esperança incongruente e
errática: justamente porque a morte não constitui, como em Heidegger, a totalidade
do ser-aí, experimentamos, na medida em que não somos débeis, a morte e seus
mensageiros, as doenças, como heterogêneos, como alheios ao eu. De maneira
ágil, isso pode ser fundamentado por meio da afirmação de que o eu não é outra
coisa senão o princípio da autoconservação oposto à morte e de que ele é
incapaz de absorvê-la com a consciência que é ela mesma um eu. Mas a
experiência da consciência dá pouca consistência a uma tal afirmação; em face
da morte, ela não possui necessariamente a forma que seria de se esperar, a
forma da resistência. A doutrina hegeliana segundo a qual o que é perece em si
mesmo não é de maneira alguma confirmada pelo sujeito. O fato de se precisar
morrer também se mostra para o homem que envelhece e percebe os sinais da
decrepitude antes como um incidente provocado por sua própria physis (natureza),
com traços da mesma contingência que caracteriza os incidentes exteriores hoje
típicos. Isso reforça a especulação que estabelece um contraponto em relação à
concepção do primado do objeto: saber se o espírito possui um momento de
autonomia, de ausência de mistura, que se torna livre justamente quando ele por
sua parte não devora tudo, nem reproduz a partir de si a decomposição da morte.
Apesar do interesse enganador da autoconservação, a força de resistência da
ideia de imortalidade, tal como ela ainda era cultivada por Kant, só muito
dificilmente seria explicada sem esse momento. Com certeza, essa força de
resistência, tal como nos indivíduos decadentes, também parece imergir na
história da espécie. Depois do declínio há muito secretamente ratificado das
religiões objetivas que tinham prometido retirar o ferrão da morte, esta se
transformou hoje completamente naquela coisa de todo estranha, e isso por meio
do declínio socialmente determinado da experiência contínua em geral.
Quanto
menos intensamente os sujeitos vivem, tanto mais repentina e apavorante é a
morte. Pelo fato de ela os transformar literalmente em coisas, eles se
apercebem de sua morte permanente, da reificação, da forma de suas relações
pelas quais eles têm uma parcela de responsabilidade. A integração
civilizatória da morte, sem poder sobre ela e risível em face dela, por mais
que ela a tente maquiar, é a formação da reação a esse elemento social, a essa
tentativa desengonçada da sociedade de troca de tapar os últimos buracos que o
mundo da mercadoria ainda tinha deixado abertos. Morte e história, sobretudo a
história coletiva da categoria do indivíduo, formam uma constelação. Se o
indivíduo Hamlet deduzisse algum dia a sua essencialidade absoluta da
consciência emergente da irrevogabilidade da morte, então a queda do indivíduo
traria consigo toda a construção da existência burguesa. O que é aniquilado é
algo em si e talvez mesmo já por si nulo. Por isso, o pânico persistente em
face da morte. Esse pânico não pode mais ser aplacado senão por meio de sua
repressão. A morte enquanto tal ou enquanto fenômeno biológico originário não
pode ser destacada de suas imbricações históricas;1 nesse sentido, o indivíduo que porta a experiência da
morte é uma categoria por demais histórica. A afirmação de que a morte é sempre
a mesma é tão abstrata quanto não-verdadeira; a forma com a qual a consciência
se acomoda à morte varia juntamente com as condições concretas em que alguém
morre, e isso até o interior da physis. A morte nos campos de
concentração tem um novo horror: desde Auschwitz, temer a morte significa temer
algo pior do que a morte. O que a morte faz com aqueles que são socialmente
condenados pode ser biologicamente antecipado junto aos entes queridos de uma
idade avançada; não apenas seu corpo, mas também seu eu, tudo aquilo por meio
do que eles se determinam como humanos, esboroa-se sem doença e sem uma
intervenção violenta. O resto de confiança em sua duração transcendente desaparece
por assim dizer no curso da vida terrena: o que poderia ainda existir nele que
não tivesse morrido? A crédula consolação segundo a qual o cerne dos homens
continuaria existindo mesmo em uma tal desintegração ou na demência possui,
indiferente em relação a essa experiência, algo de tolo e cínico. Ela prolonga
essa impertinente sabedoria de botequim: não permanecemos sempre senão o que
somos, ao infinito. Quem volta as costas para o que nega a sua realização possível
zomba da necessidade metafísica.”
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