Editora: Jorge Zahar
ISBN: 978-85-7110-414-3
Tradução: Guido Antonio de Almeida
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 224
“O mundo inteiro é forçado a passar pelo
filtro da indústria cultural. A velha experiência do espectador de cinema, que
percebe a rua como um prolongamento do filme que acabou de ver, porque este
pretende ele próprio reproduzir rigorosamente o mundo da percepção quotidiana,
tornou-se a norma da produção. Quanto maior a perfeição com que suas técnicas
duplicam os objetos empíricos, mais fácil se torna hoje obter a ilusão de que o
mundo exterior é o prolongamento sem ruptura do mundo que se descobre no filme.
Desde a súbita introdução do filme sonoro, a reprodução mecânica pôs-se ao
inteiro serviço desse projeto. A vida não deve mais, tendencialmente, deixar-se
distinguir do filme sonoro. Ultrapassando de longe o teatro de ilusões, o filme
não deixa mais à fantasia e ao pensamento dos espectadores nenhuma dimensão na
qual estes possam, sem perder o fio, passear e divagar no quadro da obra fílmica
permanecendo, no entanto, livres do controle de seus dados exatos, e é assim
precisamente que o filme adestra o espectador entregue a ele para se
identificar imediatamente com a realidade. Atualmente, a atrofia da imaginação
e da espontaneidade do consumidor cultural não precisa ser reduzida a
mecanismos psicológicos. Os próprios produtos – e entre eles em primeiro lugar
o mais característico, o filme sonoro – paralisam essas capacidades em virtude
de sua própria constituição objetiva. São feitos de tal forma que sua apreensão
adequada exige, é verdade, presteza, dom de observação, conhecimentos
específicos, mas também de tal sorte que proíbem a atividade intelectual do
espectador, se ele não quiser perder os fatos que desfilam velozmente diante de
seus olhos. O esforço, contudo, está tão profundamente inculcado que não
precisa ser atualizado em cada caso para recalcar a imaginação. Quem está tão
absorvido pelo universo do filme – pelos gestos, imagens e palavras –, que não
precisa lhe acrescentar aquilo que fez dele um universo, não precisa
necessariamente estar inteiramente dominado no momento da exibição pelos
efeitos particulares dessa maquinaria. Os outros filmes e produtos culturais
que deve obrigatoriamente conhecer tornaram-no tão familiarizado com os
desempenhos exigidos da atenção, que estes têm lugar automaticamente. A
violência da sociedade industrial instalou-se nos homens de uma vez por todas.
Os produtos da indústria cultural podem ter a certeza de que até mesmo os
distraídos vão consumi-los alertamente. Cada qual é um modelo da gigantesca
maquinaria econômica que, desde o início, não dá folga a ninguém, tanto no
trabalho quanto no descanso, que tanto se assemelha ao trabalho. É possível
depreender de qualquer filme sonoro, de qualquer emissão de rádio, o impacto
que não se poderia atribuir a nenhum deles isoladamente, mas só a todos em
conjunto na sociedade. Inevitavelmente, cada manifestação da indústria cultural
reproduz as pessoas tais como as modelou a indústria em seu todo.”
“O catálogo explícito e implícito, esotérico
e exotérico, do proibido e do tolerado estende-se a tal ponto que ele não
apenas circunscreve a margem de liberdade, mas também domina-a completamente.
Os menores detalhes são modelados de acordo com ele. Exatamente como seu adversário,
a arte de vanguarda, é com as proibições que a indústria cultural fixa
positivamente sua própria linguagem com sua sintaxe e seu vocabulário. A
compulsão permanente a produzir novos efeitos (que, no entanto, permanecem
ligados ao velho esquema) serve apenas para aumentar, como uma regra
suplementar, o poder da tradição ao qual pretende escapar cada efeito
particular. Tudo o que vem a público está tão profundamente marcado que nada
pode surgir sem exibir de antemão os traços do jargão e sem se credenciar à
aprovação ao primeiro olhar. Os grandes astros, porém, os que produzem e
reproduzem, são aqueles que falam o jargão com tanta facilidade, espontaneidade
e alegria como se ele fosse a linguagem que ele, no entanto, há muito reduziu
ao silêncio. Eis aí o ideal do natural neste ramo. Ele se impõe tanto mais
imperiosamente quanto mais a técnica aperfeiçoada reduz a tensão entre a obra
produzida e a vida quotidiana. O paradoxo da rotina travestida de natureza pode
ser notado em todas as manifestações da indústria cultural, e em muitas ele é
tangível. Um músico de jazz que tenha de tocar uma peça de música séria, por
exemplo o mais simples minueto de Beethoven, é levado involuntariamente a
sincopá-lo, e é com um sorriso soberano que ele, por fim, aceita seguir o
compasso. É essa natureza, complicada pelas exigências sempre presentes e
sempre exageradas do medium específico, que constitui o novo estilo, a saber,
“um sistema da não cultura, à qual se pode conceder até mesmo uma certa
‘unidade de estilo’, se é que ainda tem sentido falar em uma barbárie
estilizada”1.”
1. Nietzsche. Unzeilgemässe
Betrachtungen, in Werke
(Grossoktavausgabe), vol. I, Leip-zig, 1917, p.187.
“Em toda obra de arte, o estilo é uma
promessa. Ao ser acolhido nas formas dominantes da universalidade: a linguagem
musical, pictórica, verbal, aquilo que é expresso pelo estilo deve se
reconciliar com a Ideia da verdadeira universalidade. Essa promessa da obra de
arte de instituir a verdade imprimindo a figura nas formas transmitidas pela sociedade
é tão necessária quanto hipócrita. Ela coloca as formas reais do existente como
algo de absoluto, pretextando antecipar a satisfação nos derivados estéticos
delas. Nessa medida, a pretensão da arte é sempre ao mesmo tempo ideologia. No
entanto, é tão somente neste confronto com a tradição, que se sedimenta no
estilo, que a arte encontra expressão para o sofrimento. O elemento graças ao
qual a obra de arte transcende a realidade, de fato, é inseparável do estilo.
Contudo, ele não consiste na realização da harmonia – a unidade problemática da
forma e do conteúdo, do interior e do exterior, do indivíduo e da sociedade –,
mas nos traços em que aparece a discrepância, no necessário fracasso do esforço
apaixonado em busca da identidade. Ao invés de se expor a esse fracasso, no
qual o estilo da grande obra de arte sempre se negou, a obra medíocre sempre se
ateve à semelhança com outras, isto é, ao sucedâneo da identidade. A indústria
cultural acaba por colocar a imitação como algo de absoluto. Reduzida ao estilo,
ela trai seu segredo, a obediência à hierarquia social. A barbárie estética
consuma hoje a ameaça que sempre pairou sobre as criações do espírito desde que
foram reunidas e neutralizadas a título de cultura. Falar em cultura foi sempre
contrário à cultura. O denominador comum “cultura” já contém virtualmente o
levantamento estatístico, a catalogação, a classificação que introduz a cultura
no domínio da administração. Só a subsunção industrializada e consequente é
inteiramente adequada a esse conceito de cultura. Ao subordinar da mesma
maneira todos os setores da produção espiritual a este fim único – ocupar os
sentidos dos homens da saída da fábrica, à noitinha, até a chegada ao relógio
do ponto, na manhã seguinte, com o selo da tarefa de que devem se ocupar
durante o dia – essa subsunção realiza ironicamente o conceito da cultura
unitária que os filósofos da personalidade opunham à massificação.
Assim a indústria cultural, o mais inflexível
de todos os estilos, revela-se justamente como a meta do liberalismo, ao qual
se censura a falta de estilo. Não somente suas categorias e conteúdos são
provenientes da esfera liberal, tanto do naturalismo domesticado quanto da
opereta e da revista: as modernas companhias culturais são o lugar econômico
onde ainda sobrevive, juntamente com os correspondentes tipos de empresários,
uma parte da esfera de circulação já em processo de desagregação. Aí ainda é
possível fazer fortuna, desde que não se seja demasiado inflexível e se mostre
que é uma pessoa com quem se pode conversar. Quem resiste só pode sobreviver
integrando-se. Uma vez registrado em sua diferença pela indústria cultural, ele
passa a pertencer a ela assim como o participante da reforma agrária ao
capitalismo. A rebeldia realista torna-se a marca registrada de quem tem uma
nova ideia a trazer à atividade industrial. A esfera pública da sociedade atual
não admite qualquer acusação perceptível em cujo tom os bons entendedores não
vislumbrem a proeminência sob cujo signo o revoltado com eles se reconcilia.
Quanto mais incomensurável é o abismo entre o coro e os protagonistas, mais
certamente haverá lugar entre estes para todo aquele que mostrar sua
superioridade por uma notoriedade bem planejada. Assim, também sobrevive na
indústria cultural a tendência do liberalismo a deixar caminho livre a seus
homens capazes. Abrir caminho para esses competentes ainda é a função do
mercado, que sob outros aspectos já é extensamente regulado e cuja liberdade
consistia mesmo na época de seu maior brilho – para os artistas bem como para
outros idiotas – em morrer de fome. Não é à toa que o sistema da indústria
cultural provém dos países industriais liberais, e é neles que triunfam todos
os seus meios característicos, sobretudo o cinema, o rádio, o jazz e as
revistas. (...) A dependência econômica em face dos Estados Unidos, em que se
encontrou o continente europeu depois da guerra e da inflação, teve uma parte
nesse processo. A crença de que a barbárie da indústria cultural é uma
consequência do cultural lagi, do atraso da consciência
norte-americana relativamente ao desenvolvimento da técnica, é profundamente
ilusória. Atrasada relativamente à tendência ao monopólio cultural estava a
Europa pré-fascista. Mas era exatamente esse atraso que deixava ao espírito um
resto de autonomia e assegurava a seus últimos representantes a possibilidade
de existir ainda que oprimidos. Na Alemanha, a incapacidade de submeter a vida
a um controle democrático teve um efeito paradoxal. Muita coisa escapou ao
mecanismo de mercado que se desencadeou nos países ocidentais. O sistema
educativo alemão juntamente com as universidades, os teatros mais importantes
na vida artística, as grandes orquestras, os museus estavam sob proteção. Os
poderes políticos, o Estado e as municipalidades, aos quais essas instituições
foram legadas como herança do absolutismo, haviam preservado para elas uma
parte daquela independência das relações de dominação vigentes no mercado, que
os príncipes e senhores feudais haviam assegurado até o século dezenove. Isso
resguardou a arte em sua fase tardia contra o veredicto da oferta e da procura
e aumentou sua resistência muito acima da proteção de que desfrutava de fato.
No próprio mercado, o tributo a uma qualidade sem utilidade e ainda sem curso
converteu-se em poder de compra: é por essa razão que editores literários e
musicais decentes puderam cultivar por exemplo autores que rendiam pouco mais
do que o respeito do conhecedor. Só a obrigação de se inserir incessantemente,
sob a mais drástica das ameaças, na vida dos negócios como um especialista
estético impôs um freio definitivo ao artista. (...) Atualmente em fase de
desagregação na esfera da produção material, o mecanismo da oferta e da procura
continua atuante na superestrutura como mecanismo de controle em favor dos
dominantes. Os consumidores são os trabalhadores e os empregados, os lavradores
e os pequenos burgueses. A produção capitalista os mantém tão bem presos em
corpo e alma que eles sucumbem sem resistência ao que lhes é oferecido. Assim
como os dominados sempre levaram mais a sério que os dominadores a moral que
deles recebiam, hoje as massas logradas sucumbem mais facilmente ao mito do
sucesso do que os bem-sucedidos. Elas têm os desejos deles. Obstinadamente,
insistem na ideologia que as escraviza. O amor funesto do povo pelo mal que a
ele se faz chega a se antecipar à astúcia das instâncias de controle.”
i Atraso cultural. (N.T.)
“Ao ratificar com refinada astúcia a demanda
de porcarias, ele inaugura a harmonia total. A competência e a perícia são
proscritas como arrogância de quem se acha melhor que os outros, quando a
cultura distribui tão democraticamente seu privilégio a todos. Em face da
trégua ideológica, o conformismo dos compradores, assim como o descaramento da
produção que eles mantêm em marcha, adquire boa consciência. Ele se contenta
com a reprodução do que é sempre o mesmo.
Essa mesmice regula também as relações com o
que passou. O que é novo na fase da cultura de massas em comparação com a fase
do liberalismo avançado é a exclusão do novo. A máquina gira sem sair do lugar.
Ao mesmo tempo que já determina o consumo, ela descarta o que ainda não foi
experimentado porque é um risco. É com desconfiança que os cineastas consideram
todo manuscrito que não se baseie, para tranquilidade sua, em um best-seller. Por isso é que se fala
continuamente em idea, novelty e surprise (idéia, novidade
e surpresa), em algo que seria ao mesmo tempo familiar a todos sem ter
jamais ocorrido. A seu serviço estão o ritmo e a dinâmica. Nada deve ficar como
era, tudo deve estar em constante movimento. Pois só a vitória universal do
ritmo da produção e reprodução mecânica é a garantia de que nada mudará, de que
nada surgirá que não se adapte. O menor acréscimo ao inventário cultural
comprovado é um risco excessivo. Formas fixas como o sketch, a história curta, o filme de tese, o êxito de bilheteria
são a média, orientada normativamente e imposta ameaçadoramente, do gosto
característico do liberalismo avançado. Os diretores das agências culturais –
que estão numa harmonia como só os managers
(gerentes) sabem criar, não
importa se provêm da indústria de confecções ou de um college (faculdade) – há muito sanaram e racionalizaram o
espírito objetivo. Tudo se passa como se uma instância onipresente houvesse
examinado o material e estabelecido o catálogo oficial dos bens culturais,
registrando de maneira clara e concisa as séries disponíveis. As ideias estão
inscritas no céu cultural, onde já haviam sido enumeradas por Platão e onde,
números elas próprias, estavam encerradas sem possibilidade de aumento ou
transformação.
O entretenimento e os elementos da indústria
cultural já existiam muito tempo antes dela. Agora, são tirados do alto e
nivelados à altura dos tempos atuais. A indústria cultural pode se ufanar de ter
levado a cabo com energia e de ter erigido em princípio a transferência muitas
vezes desajeitada da arte para a esfera do consumo, de ter despido a diversão
de suas ingenuidades inoportunas e de ter aperfeiçoado o feitio das
mercadorias. Quanto mais total ela se tornou, quanto mais impiedosamente forçou
os outsidersl seja a declarar falência seja a entrar para o sindicato, mais fina
e mais elevada ela se tornou, para enfim desembocar na síntese de Beethoven e
do Casino de Paris. Sua vitória é dupla: a verdade, que ela extingue lá fora,
dentro ela pode reproduzir a seu bel-prazer como mentira. A arte “leve” como
tal, a diversão, não é uma forma decadente. Quem a lastima como traição do
ideal da expressão pura está alimentando ilusões sobre a sociedade. A pureza da
arte burguesa, que se hipostasiou como reino da liberdade em oposição à práxis
material, foi obtida desde o início ao preço da exclusão das classes
inferiores, mas é à causa destas classes – a verdadeira universalidade – que a
arte se mantém fiel exatamente pela liberdade dos fins da falsa universalidade.
A arte séria recusou-se àqueles para quem as necessidades e a pressão da vida
fizeram da seriedade um escárnio e que têm todos os motivos para ficarem
contentes quando podem usar como simples passatempo o tempo que não passam
junto às máquinas. A arte leve acompanhou a arte autônoma como uma sombra. Ela
é a má consciência social da arte séria. O que esta – em virtude de seus
pressupostos sociais – perdeu em termos de verdade confere àquela a aparência
de um direito objetivo. Essa divisão é ela própria a verdade: ela exprime pelo
menos a negatividade da cultura formada pela adição das duas esferas. A pior
maneira de reconciliar essa antítese é absorver a arte leve na arte séria ou
vice-versa. Mas é isto que tenta a indústria cultural. A excentricidade do
circo, do museu de cera e do bordel relativamente à sociedade é tão penosa para
ela como a de Schönberg e Karl Kraus. É por isso que o jazzista Benny Goodman
deve se apresentar juntamente com o Quarteto de Budapeste, mais meticuloso
quanto ao ritmo do que qualquer clarinetista filarmônico, enquanto os músicos
de Budapeste tocam, em compensação, de maneira tão uniforme e adocicada como
Guy Lombardo. O que é significativo não é a incultura, a burrice e a impolidez
nua e crua. O refugo de outrora foi eliminado pela indústria cultural graças à
sua própria perfeição, graças à proibição e à domesticação do diletantismo,
muito embora ela não cesse de cometer erros crassos, sem os quais o nível do
estilo elevado seria absolutamente inconcebível. Mas o que é novo é que os
elementos irreconciliáveis da cultura, da arte e da distração se reduzem
mediante sua subordinação ao fim a uma única fórmula falsa: a totalidade da
indústria cultural. Ela consiste na repetição. O fato de que suas inovações
características não passem de aperfeiçoamentos da produção em massa não é
exterior ao sistema. É com razão que o interesse de inúmeros consumidores se
prende à técnica, não aos conteúdos teimosamente repetidos, ocos e já em parte
abandonados. O poderio social que os espectadores adoram é mais eficazmente
afirmado na onipresença do estereótipo imposta pela técnica do que nas
ideologias rançosas pelas quais os conteúdos efêmeros devem responder.
Todavia, a indústria cultural permanece a
indústria da diversão. Seu controle sobre os consumidores é mediado pela
diversão, e não é por um mero decreto que esta acaba por se destruir, mas pela
hostilidade inerente ao princípio da diversão por tudo aquilo que seja mais do
que ela própria. Como a absorção de todas as tendências da indústria cultural
na carne e no sangue do público se realiza através do processo social inteiro,
a sobrevivência do mercado neste ramo atua favoravelmente sobre essas
tendências. A demanda ainda não foi substituída pela simples obediência. Pois a
grande reorganização do cinema pouco antes da Primeira Guerra Mundial –
condição material de sua expansão – consistiu exatamente na adaptação
consciente às necessidades do público registradas com base nas bilheterias, necessidades
essas que as pessoas mal acreditavam ter de levar em conta na época pioneira do
cinema. Ainda hoje pensam assim os capitães da indústria cinematográfica – que
no entanto se baseiam no exemplo dos sucessos mais ou menos fenomenais, e não,
com muita sabedoria, no contraexemplo da verdade. Sua ideologia é o negócio. A
verdade em tudo isso é que o poder da indústria cultural provém de sua
identificação com a necessidade produzida, não da simples oposição a ela, mesmo
que se tratasse de uma oposição entre a onipotência e impotência. A diversão é
o prolongamento do trabalho sob o capitalismo tardio. Ela é procurada por quem
quer escapar ao processo de trabalho mecanizado, para se pôr de novo em
condições de enfrentá-lo. Mas, ao mesmo tempo, a mecanização atingiu um tal
poderio sobre a pessoa em seu lazer e sobre a sua felicidade, ela determina tão
profundamente a fabricação das mercadorias destinadas à diversão, que esta
pessoa não pode mais perceber outra coisa senão as cópias que reproduzem o
próprio processo de trabalho. O pretenso conteúdo não passa de uma fachada
desbotada; o que fica gravado é a sequência automatizada de operações
padronizadas. Ao processo de trabalho na fábrica e no escritório só se pode
escapar adaptando-se a ele durante o ócio. Eis aí a doença incurável de toda
diversão. O prazer acaba por se congelar no aborrecimento, porquanto, para
continuar a ser um prazer, não deve mais exigir esforço e, por isso, tem de se
mover rigorosamente nos trilhos gastos das associações habituais. O espectador
não deve ter necessidade de nenhum pensamento próprio, o produto prescreve toda
reação: não por sua estrutura temática – que desmorona na medida em que exige o
pensamento –, mas através de sinais. Toda ligação lógica que pressuponha um
esforço intelectual é escrupulosamente evitada. Os desenvolvimentos devem
resultar tanto quanto possível da situação imediatamente anterior, e não da
Ideia do todo. Não há enredo que resista ao zelo com que os roteiristas se
empenham em tirar de cada cena tudo o que se pode depreender dela. Por fim, o
próprio esquema parece perigoso na medida em que estabelece uma conexão
inteligível, por mais pobre que seja, onde só é aceitável a falta de sentido.
Muitas vezes se recusa maldosamente à ação o desenvolvimento que os personagens
e o tema exigiam segundo o esquema antigo. Ao invés disso, a nova etapa
escolhida é a ideia aparentemente mais eficaz que ocorre aos roteiristas para a
situação dada. Uma surpresa estupidamente arquitetada irrompe na ação fílmica.
A tendência do produto a recorrer malignamente ao puro absurdo – um ingrediente
legítimo da arte popular, da farsa e da bufonaria desde os seus primórdios até
Chaplin e os irmãos Marx – aparece da maneira mais evidente nos gêneros menos
pretensiosos. Enquanto nos filmes de Greer Garson e Bette Davis a unidade do
caso social-psicológico ainda justifica a pretensão de uma ação coerente, essa
tendência impôs-se totalmente no texto da novelty
song, no filme policial e nos cartoonsm. Exatamente como os objetos dos
filmes cômicos e de terror, o pensamento é ele próprio massacrado e
despedaçado. As novelty songs sempre
viveram do desprezo pelo sentido inteligível, que elas – como predecessoras e
sucessoras da psicanálise – reduzem à monotonia da simbólica sexual. Os filmes
policiais e de aventuras não mais permitem ao espectador de hoje assistir à
marcha do esclarecimento. Mesmo nas produções do gênero destituídas de ironia,
ele tem de se contentar com os sustos proporcionados por situações
precariamente interligadas.
Os filmes de animação eram outrora expoentes
da fantasia contra o racionalismo. Eles faziam justiça aos animais e coisas
eletrizados por sua técnica, dando aos mutilados uma segunda vida. Hoje, apenas
confirmam a vitória da razão tecnológica sobre a verdade. Até poucos anos
atrás, tinham enredos consistentes que só se esfacelavam no torvelinho da
perseguição dos últimos minutos do filme. Seu procedimento assemelhava-se nisso
ao velho costume da slapstick comedyn. Mas agora as relações temporais
deslocaram-se. As primeiras sequências do filme de animação ainda esboçam uma
ação temática, destinada, porém, a ser demolida no curso do filme: sob a
gritaria do público, o protagonista é jogado para cá e para lá como um farrapo.
Assim a quantidade da diversão organizada converte-se na qualidade da crueldade
organizada. Os autodesignados censores da indústria cinematográfica, ligados a
ela por uma afinidade eletiva, vigiam a duração do crime a que se dá a dimensão
de uma caçada. A hilariedade põe fim ao prazer que a cena de um abraço poderia
pretensamente proporcionar e adia a satisfação para o dia do pogrom. Na medida em que os filmes de
animação fazem mais do que habituar os sentidos ao novo ritmo, eles inculcam em
todas as cabeças a antiga verdade de que a condição de vida nesta sociedade é o
desgaste contínuo, o esmagamento de toda resistência individual. Assim como o
Pato Donald nos cartoons, assim
também os desgraçados na vida real recebem a sua sova para que os espectadores
possam se acostumar com a que eles próprios recebem.
O prazer com a violência infligida ao
personagem transforma-se em violência contra o espectador, a diversão em
esforço. Ao olho cansado do espectador nada deve escapar daquilo que os
especialistas excogitaram como estímulo; ninguém tem o direito de se mostrar
estúpido diante da esperteza do espetáculo; é preciso acompanhar tudo e reagir
com aquela presteza que o espetáculo exibe e propaga. Deste modo, pode-se
questionar se a indústria cultural ainda preenche a função de distrair, de que
ela se gaba tão estentoreamente. Se a maior parte das rádios e dos cinemas
fossem fechados, provavelmente os consumidores não sentiriam tanta falta assim.
O passo que leva da rua ao cinema não leva mais, em todo caso, ao sonho, e,
desde que a mera existência das instituições deixou de obrigar à sua
utilização, também deixou de haver uma ânsia tão grande assim de utilizá-las.
Esse fechamento de rádios e cinemas não seria nada comparável a uma destruição
reacionária de máquinas. Os frustrados não seriam tanto os fãs quanto aqueles
que sempre “pagam o pato”, os atrasados. A obscuridade do cinema oferece à dona
de casa, apesar dos filmes destinados a integrá-la, um refúgio onde ela pode
passar algumas horas sem controle, assim como outrora, quando ainda havia lares
e folgas vespertinas, ela podia se pôr à janela para ficar olhando a rua. Os
desocupados dos grandes centros encontram o frio no verão e o calor no inverno
nos locais climatizados. Fora isso, mesmo pelo critério da ordem existente essa
aparelhagem inflada do prazer não torna a vida mais humana para os homens. A
ideia de “esgotar” as possibilidades técnicas dadas, a ideia da plena
utilização de capacidades em vista do consumo estético massificado, é própria
do sistema econômico que recusa a utilização de capacidades quando se trata da
eliminação da fome.”
l Estranhos, forasteiros, marginais. (N.T.)
m Desenhos animados. (N.T.)
n Comédia-pastelão. (N.T.)
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