Editora: Jorge Zahar
ISBN: 978-85-7110-414-3
Tradução: Guido Antonio de Almeida
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 224
“Hoje a maquinaria mutila os homens mesmo
quando os alimenta.”
“Enquanto nos abstrairmos de quem emprega a
razão, ela terá tanta afinidade com a força quanto com a mediação; conforme a
situação do indivíduo e dos grupos, ela faz com que a paz ou a guerra, a
tolerância ou a repressão, apareçam como o melhor. Como ela desmascara nos
objetivos materialmente determinados o poderio da natureza sobre o espírito,
como ameaça à integridade de sua autolegislação, a razão se encontra, formal
como é, à disposição de todo interesse natural. O pensamento torna-se um puro e
simples órgão e se vê rebaixado à natureza. Para os governantes, porém, os
homens tornam-se uma espécie de material, como o é a natureza inteira para a
sociedade. Após o breve interlúdio do liberalismo, quando os burgueses
mantiveram uns aos outros em xeque, a dominação revela-se como um terror
arcaico sob a forma racionalizada do fascismo. “Então”, diz o príncipe de
Franca-villa durante um sarau na corte do rei Ferdinando de Nápoles, “é pelo
mais extremo terror que é preciso substituir as quimeras religiosas. Liberte-se
o povo do temor a um inferno futuro, e ele se entregará em seguida, destruído o
medo, a tudo. Em vez disso, substitua-se esse pavor quimérico por leis penais
de uma severidade prodigiosa e que atinjam a ele apenas. Pois só ele perturba o
Estado: é em sua classe apenas que nascem os descontentes. Que importa ao rico
a ideia de um freio que não cai jamais sobre sua cabeça, se ele compra com essa
vã aparência o direito de atormentar todos os que vivem sob seu jugo? Não
encontraremos ninguém nessa classe que não permita que se imponha a ele a mais
densa sombra da tirania, desde que sua realidade recaia sobre os outros.”13 A
razão é o órgão do cálculo, do plano, ela é neutra com respeito a objetivos,
seu elemento é a coordenação.”
13. Histoire
de Juliette, vol. V. Holanda, 1797, p.319s.
“Como a razão não estabelece objetivos materiais,
todos os aspectos estão igualmente distantes dela. Eles são puramente naturais.
O princípio segundo o qual a razão está simplesmente oposta a tudo o que é
irracional fundamenta a verdadeira oposição entre a mitologia e o
esclarecimento. A mitologia só conhece o espírito na medida em que este está
imerso na natureza, como potência natural. Assim como as forças exteriores, os
impulsos internos são para ela potências vivas de origem divina ou demoníaca. O
esclarecimento, ao contrário, repõe toda coerência, sentido, vida, dentro da
subjetividade que só vem a se constituir propriamente nesse processo de
reposição. A razão é para ele o agente químico que absorve a própria substância
das coisas e a volatiza na pura autonomia da própria razão. Para escapar ao
medo supersticioso da natureza, ela pôs a nu todas as figuras e entidades
objetivas, sem exceção, como disfarces de um material caótico, amaldiçoando sua
influência sobre a humanidade como escravidão, até que o sujeito se convertesse
– em conformidade com sua Ideia – na única autoridade irrestrita e vazia. Toda
força da natureza reduziu-se a uma simples e indiferenciada resistência ao
poder abstrato do sujeito. A mitologia particular de que o esclarecimento
ocidental (até mesmo sob a forma do calvinismo) teve de se desembaraçar era a
doutrina católica da ordo e a
religião popular pagã que continuava a viajar à sua sombra. Liberar os homens
de sua influência, tal era o objetivo da filosofia burguesa. A liberação,
porém, foi mais longe do que esperavam seus autores humanos. A economia de
mercado que se viu desencadeada era ao mesmo tempo a forma atual da razão e a
potência na qual a razão se destroçou. Os reacionários românticos nada mais
fizeram do que exprimir a experiência dos próprios burgueses, a saber, que em
seu mundo a liberdade tendia à anarquia organizada. A crítica da
contrarrevolução católica provou que tinha razão contra o esclarecimento, assim
como este tinha razão contra o catolicismo. O esclarecimento comprometera-se
com o liberalismo. Se todos os afetos se valem, a autoconservação – que domina
de qualquer modo a figura do sistema – parece constituir a fonte mais provável
das máximas de ação. É ela que viria a ser liberada no mercado livre. Os
escritores sombrios dos primórdios da burguesia, como Maquiavel, Hobbes,
Mandeville, que foram os porta-vozes do egoísmo do eu, reconheceram por isso
mesmo a sociedade como o princípio destruidor e denunciaram a harmonia, antes
que ela fosse erigida em doutrina oficial pelos autores luminosos, os clássicos.
Aqueles louvaram a totalidade da ordem burguesa porque viam nela o horror que,
ao fim e ao cabo, tragava a ambos, o universal e o particular, a sociedade e o
eu. Com o desenvolvimento do sistema econômico, no qual o domínio do aparelho
econômico por grupos privados divide os homens, a autoconservação confirmada
pela razão, que é o instinto objetualizado do indivíduo burguês, revelou-se
como um poder destrutivo da natureza, inseparável da autodestruição. Estes dois
poderes passaram a se confundir turvamente. A razão pura tornou-se irrazão, o
procedimento sem erro e sem conteúdo. Mas a utopia que anunciava a
reconciliação da natureza e do eu surgiu com a vanguarda revolucionária de seu
esconderijo na filosofia alemã, e se apresentou, de um modo ao mesmo tempo
racional e irracional, como a Ideia de uma associação de homens livres,
atraindo para si toda a fúria da ratio (razão).
Na sociedade tal como ela é, a autoconservação permanece livre da utopia
denunciada como mito, apesar das pobres tentativas moralistas de propagar a
humanidade como o mais racional dos meios. Para os dirigentes, a forma
astuciosa da autoconservação é a luta pelo poder fascista e, para os
indivíduos, é a adaptação a qualquer preço à injustiça. A razão esclarecida é
tão incapaz de encontrar uma medida para graduar um instinto em si mesmo e
relativamente aos demais, como para ordenar o universo em esferas. Muito
acertadamente, ela desmascarou a concepção de uma hierarquia na natureza como
um reflexo da sociedade medieval, e as tentativas posteriores de comprovar uma
hierarquia de valores nova e objetiva trazem na testa o estigma da mentira. O
irracionalismo que se denuncia nessas reconstruções vazias está muito longe de
resistir à ratio industrial. Se a
grande filosofia, representada por Leibniz e Hegel, descobrira também uma
pretensão de verdade nas manifestações subjetivas e objetivas que ainda não são
pensamentos (ou seja, em sentimentos, instituições, obras de arte), o
irracionalismo, de seu lado, isola o sentimento, assim como a religião e a
arte, de tudo o que merece o nome de conhecimento, e nisso como em outras
coisas revela seu parentesco com o positivismo moderno, a escória do
esclarecimento. Ele limita, é verdade, a fria razão em proveito da vida
imediata, convertendo, porém, a vida num princípio hostil ao pensamento. Sob a
aparência dessa hostilidade, o sentimento e, no final das contas, toda expressão
humana e, inclusive, a cultura em geral são subtraídos à responsabilidade
perante o pensamento, mas por isso mesmo se transformam no elemento
neutralizado da ratio universal do
sistema econômico que há muito se tornou irracional. Desde o início, ela não
pôde se fiar unicamente em sua força de atração e teve que complementá-la com o
culto dos sentimentos. Mas quando ela conclama aos sentimentos, ela se volta
contra seu próprio meio, o pensamento, que também foi sempre suspeito para ela,
a razão autoalienada. A efusão que os ternos amantes exibem no filme já tem o
efeito de um golpe assestado contra a teoria impassível, mas ela se prolonga na
argumentação sentimental contra o pensamento que ataca a injustiça. Quando os
sentimentos são erigidos assim em ideologia, o desprezo a que estão submetidos
na realidade não fica superado. O fato de que, comparados à altura sideral a
que a ideologia os transporta, apareçam sempre como demasiado vulgares ajuda
também a proscrevê-los. O veredicto sobre os sentimentos já estava implícito na
formalização da razão. A autoconservação continua a ter, enquanto instinto
natural e como os demais impulsos, uma má consciência. Só a atividade
industriosa e as instituições que devem servir a ela – isto é, a mediação que
conquistou autonomia, o aparelho, a organização, o sistemático – gozam, tanto
no conhecimento quanto na prática, da reputação de serem racionais. As emoções
estão inseridas nisso.
O esclarecimento dos tempos modernos esteve
desde o começo sob o signo da radicalidade: é isso que o distingue de toda
etapa anterior da desmitologização. Quando uma nova forma de vida social surgia
na história universal juntamente com uma nova religião e uma nova mentalidade,
derrubavam-se os velhos deuses, juntamente com as velhas classes, tribos e
povos. Mas é sobretudo quando um povo, os judeus por exemplo, era arrastado por
seu próprio destino para uma nova forma de vida social, que os antigos e amados
costumes, as ações sagradas e os objetos de veneração, se viam como que por
encanto transformados em crimes nefandos e espectros medonhos. Os medos e as
idiossincrasias atuais, os traços do caráter escarnecidos e detestados, podem
ser interpretados como marcas de progressos violentos ao longo do
desenvolvimento humano. Do nojo dos excrementos e da carne humana até o
desprezo do fanatismo, da preguiça, da pobreza material e espiritual, vemos
desenrolar-se uma linha de comportamentos que, de adequados e necessários, se
converteram em condutas execráveis. Essa linha é ao mesmo tempo a da destruição
e a da civilização. Cada passo foi um progresso, uma etapa do esclarecimento.
Mas, enquanto todas as mudanças anteriores (do pré-animismo à magia, da cultura
matriarcal à patriarcal, do politeísmo dos escravocratas à hierarquia católica)
colocavam novas mitologias, ainda que esclarecidas, no lugar das antigas (o
deus dos exércitos no lugar da Grande Mãe, a adoração do cordeiro no lugar do
totem), toda forma de devotamento que se considerava objetiva, fundamentada na
coisa, dissipava-se à luz da razão esclarecida. Todos os vínculos dados
previamente sucumbiam assim ao veredicto que impunha o tabu, sem excluir
aqueles que eram necessários para a existência da própria ordem burguesa. O
instrumento com o qual a burguesia chegou ao poder – o desencadeamento das
forças, a liberdade universal, a autodeterminação, em suma, o esclarecimento –
voltava-se contra a burguesia tão logo era forçado, enquanto sistema da
dominação, a recorrer à opressão. Obedecendo a seu próprio princípio, o
esclarecimento não se detém nem mesmo diante do mínimo de fé sem o qual o mundo
burguês não pode subsistir. Ele não presta à dominação os serviços confiáveis
que as antigas ideologias sempre lhe prestaram. Sua tendência antiautoritária –
que apenas subterraneamente, é verdade, se comunica com a utopia implícita no
conceito de razão – acaba por torná-la tão hostil à burguesia estabelecida
quanto à aristocracia, da qual aliás logo se tornou também uma aliada. O
princípio antiautoritário acaba tendo que se converter em seu próprio contrário,
numa instância hostil à própria razão: ele elimina tudo aquilo que é
intrinsecamente obrigatório, e essa eliminação permite à dominação decretar e
manipular soberanamente as obrigações que lhe são adequadas em cada caso.
Depois de proclamar a virtude burguesa e a filantropia, para as quais já não
tinha boas razões, a filosofia também proclamou como virtudes a autoridade e a
hierarquia, quando estas há muito já haviam se convertido em mentiras graças ao
esclarecimento. Mas o esclarecimento não possuía argumentos nem mesmo contra
semelhante perversão de si mesmo, pois a pura verdade não goza de nenhum
privilégio em face da distorção, a racionalização em face da ratio, se não tem nenhum privilégio
prático a exibir em seu favor. Com a formalização da razão, a própria teoria,
na medida em que pretende ser mais que um símbolo para procedimentos neutros,
converte-se num conceito ininteligível, e o pensamento só é aceito como dotado
de sentido após o abandono do sentido. Atrelado ao modo de produção dominante,
o esclarecimento, que se empenha em solapar a ordem tornada repressiva,
dissolve-se a si mesmo. Isso ficou manifesto já nos primeiros ataques que o
esclarecimento corrente empreendeu contra Kant, o “triturador universal”. Do
mesmo modo que a filosofia moral de Kant limitou sua crítica esclarecedora para
salvar a possibilidade da razão, assim também, inversamente, o pensamento
esclarecido mas irrefletido empenhou-se sempre, por uma questão de
autoconservação, em superar-se a si mesmo no ceticismo, a fim de abrir espaço
suficiente para a ordem existente.”
“Todo gozo, porém, deixa transparecer uma
idolatria: ele é o abandono de si mesmo a uma outra coisa. A natureza não
conhece propriamente o gozo: ela não o prolonga além do que é preciso para a
satisfação da necessidade. Todo prazer é social, quer nas emoções não
sublimadas quer nas sublimadas, e tem origem na alienação. Mesmo quando o gozo
ignora a proibição que transgride, ele tem sempre por origem a civilização, a
ordem fixa, a partir da qual aspira retornar à natureza, da qual aquela o
protege. Os homens só sentem a magia do gozo quando o sonho, liberando-os da
compulsão ao trabalho, da ligação do indivíduo a uma determinada função social
e finalmente a um eu, leva-os de volta a um passado pré-histórico sem dominação
e sem disciplina. É a nostalgia dos indivíduos presos na civilização, o
“desespero objetivo” daqueles que tiveram de se tornar em elementos da ordem
social, que alimenta o amor pelos deuses e demônios; era para estes, enquanto
natureza transfigurada, que eles se voltavam na adoração. O pensamento tem
origem no processo de liberação dessa natureza terrível, que acabou por ser
inteiramente dominada. O gozo é por assim dizer sua vingança. Nele os homens se
livram do pensamento, escapam à civilização. Nas sociedades mais antigas, os
festivais possibilitavam este retorno à natureza como um retorno em comum. As
orgias primitivas são a origem coletiva do gozo. “Esse intervalo de universal
confusão que constitui a festa”, diz Roger Caillois, “aparece assim como o
espaço de tempo em que a ordem do mundo está suspensa. Eis por que todos os
excessos são então permitidos. O que importa é agir contra as regras. Tudo deve
ser feito ao contrário. Na época mítica, o curso do tempo estava invertido:
nascia-se velho, morria-se criança… Assim, todas as prescrições que protegem a
boa ordenação natural e social são então sistematicamente violadas.”60
As pessoas se abandonam às potências transfiguradas da origem; mas, do ponto de
vista da suspensão da proibição, esse modo de agir tem o caráter do excesso e
do desvario61. É só com o progresso da civilização e do
esclarecimento que o eu fortalecido e a dominação consolidada transformam o
festival em simples farsa. Os dominadores apresentam o gozo como algo racional,
como tributo à natureza não inteiramente domada; ao mesmo tempo procuram
torná-lo inócuo para seu uso e conservá-lo na cultura superior; e finalmente,
na impossibilidade de eliminá-lo totalmente, tentam dosá-lo para os dominados.
O gozo torna-se objeto da manipulação até desaparecer inteiramente nos
divertimentos organizados. O processo se desenvolve do festival primitivo até
as férias. “Quanto mais se acentua a complexidade do organismo social, menos
ela tolera a interrupção do curso ordinário da vida. É preciso que tudo
continue hoje como ontem e amanhã como hoje. A efervescência geral não é mais
possível. O período de turbulência individualizou-se. As férias sucedem à
festa.”62 No regime fascista, elas são complementadas pela falsa
euforia coletiva produzida pelo rádio, pelos slogans e pela benzedrina.
60. Théorie de la Fête, Nouvelle
Revue Française, jan 1940, p.49.
61. Cf. Caillois, op.cit.
62. Ibid., p.58s.
“No amor, o gozo estava associado à
divinização da pessoa que o concedia, ele era a paixão propriamente humana. Mas
acaba por ser revogado como um juízo de valor condicionado pelo sexo. Na
adoração exaltada do amante, assim como na admiração irrestrita que lhe devia a
amada, o que se repetia sempre era a transfigura da efetiva servidão da mulher.
Com base no reconhecimento dessa servidão, os sexos voltavam sempre a se
reconciliar: a mulher parecia assumir livremente a derrota, o homem
conceder-lhe a vitória. O cristianismo transfigurou no casamento, como união
dos corações, a hierarquia dos sexos e o jugo imposto ao caráter feminino pela
ordenação masculina da propriedade, aplacando assim a lembrança de um passado
mais feliz desfrutado pelo sexo feminino na era pré-patriarcal. Na sociedade
industrial, o amor é faturado. A ruína da propriedade média e o desaparecimento
do sujeito econômico livre afetam a família: ela não é mais a célula da
sociedade, outrora tão celebrada, já que não constitui mais a base da vida
econômica do burguês. Os adolescentes não têm mais a família como seu
horizonte, a autonomia do pai desaparece e com ela a resistência a sua autoridade.
Antes, a servidão na casa paterna acendia na moça a paixão que parecia levar à
liberdade, ainda que esta não se realizasse nem no casamento nem em nenhum
outro lugar. Mas, ao mesmo tempo que se abre para a moça a possibilidade do jobd(
fecham-se para ela as perspectivas do amor. Quanto mais universalmente o
sistema industrial moderno exige de cada um que se deixe assalariar, mais se
acentua a tendência a transformar os que não foram engolfados neste mar do white trashe, em que se
converteu o trabalho e o desemprego não qualificados, no pequeno especialista,
obrigado a cuidar de sua própria vida. Sob a forma do trabalho qualificado, a
autonomia do empresário – que já pertence ao passado – torna-se característica
de todos os que são admitidos no processo de produção e assim também da mulher
“profissional”. O respeito próprio das pessoas cresce proporcionalmente a sua
fungibilidade. A oposição à família não é mais uma audácia, do mesmo modo que o
namoro com o boyfriendf tampouco
é o paraíso na terra. As pessoas assumem em face das outras aquela relação
racional, calculadora, que há muito fora proclamada como uma antiga sabedoria
no círculo esclarecido de Juliette. O espírito e o corpo são separados na
realidade, como haviam exigido aqueles libertinos, que não passavam de
burgueses indiscretos. “De novo, parece-me” – decreta Noirceuil como bom
racionalista64 – “que é uma coisa muito diferente amar e gozar… Pois
os sentimentos de ternura correspondem às relações de humor e de conveniências,
mas não se devem de modo algum à beleza de um colo ou ao bonito torneado dos
quadris; e esses objetos que, segundo o gosto de cada um, podem excitar
vivamente as afecções físicas, não têm, porém, parece-me, o mesmo direito às
afecções morais. Para completar minha comparação, Bélize é feia, tem 40 anos,
sua pessoa não tem a menor graça, não tem um só traço regular, um único
atrativo; mas Bélize tem espírito, um caráter delicioso, um milhão de coisas
que se encadeiam com meus sentimentos e meus gostos; não tenho nenhum desejo de
me deitar com Bélize, mas nem por isso eu a amarei menos loucamente; desejarei
fortemente ter Araminthe, mas eu a detestarei cordialmente tão logo a febre do
desejo houver passado…” A consequência inevitável, implicitamente colocada com
a divisão cartesiana do homem na substância pensante e na substância extensa, é
proferida com toda clareza como a destruição do amor romântico. Este é
considerado como disfarce, racionalização do instinto físico, “uma falsa e
sempre perigosa metafísica”65, como explica o conde de Belmor em seu
grande discurso sobre o amor. Apesar de toda a libertinagem, os amigos de
Juliette atribuem à sexualidade em oposição à ternura, ao amor terreno em
oposição ao celestial, não apenas um poder um pouquinho excessivo, mas também
um caráter excessivamente inócuo. A beleza do colo e o torneado dos quadris
agem sobre a sexualidade não como fatos a-históricos, puramente naturais, mas
como imagens que encerram toda a experiência social. Nesta experiência está
viva a intenção de algo diverso da natureza, o amor não limitado ao sexo. Mas a
ternura, até mesmo a mais incorpórea, é a sexualidade metamorfoseada. A mão
acariciando os cabelos e o beijo na fronte, que exprimem o desvario do amor
espiritual, são formas apaziguadas de golpes e mordidas que acompanham, por
exemplo, o ato sexual dos selvagens australianos. A separação é abstrata. A
metafísica falsifica, ensina Belmor, os fatos, ela impede de ver o amado como
ele é, ela nasce da magia, ela é um véu. “E eu não o arranco! É fraqueza…
pusilanimidade. Vamos analisar, após o gozo, esta deusa que me cegava antes.”66
O próprio amor é um conceito não científico: “… as definições errôneas nos
induzem sempre em erro”, explica Dolmance no memorável 5º diálogo da Philosophie dans le Boudoir, “não sei o
que é isto, o coração. Este é um nome que dou apenas à fraqueza do espírito”67.
“Passemos um momento, como Lucrécio diz aos ‘bastidores da vida”’68,
isto é, à análise “e veremos que nem a exaltação da amante nem o sentimento
romântico resiste à análise… é o corpo apenas que amo e é o corpo apenas que
lamento embora possa reencontrá-lo a qualquer instante.” O que é verdadeiro
nisso tudo é o discernimento da dissociação do amor, obra do progresso. Através
dessa dissociação, que mecaniza o prazer e distorce o anseio em trapaça, o amor
é atacado em seu núcleo. Quando Juliette faz do louvor da sexualidade genital e
perversa uma crítica do não natural, do imaterial, do ilusório, a libertina já
passou ela própria para o lado dessa normalidade que deprecia não somente o
arrebatamento utópico do amor, mas também o gozo físico, não somente a
felicidade mais celestial, mas também a mais terrena. O devasso sem ilusões que
Juliette defende transforma-se, graças à pedagogia sexual, à psicanálise e à
terapêutica hormonal, no homem prático e aberto que estende à vida sexual sua
fé no esporte e na higiene. A crítica de Juliette é dividida como o próprio
esclarecimento. Na medida em que a destruição sacrílega do tabu, que se aliou
em certa época à revolução burguesa, não levou a um novo senso de realidade,
ela continua a conviver com o amor sublime no sentido da fidelidade a uma
utopia agora mais próxima e que põe o gozo físico ao alcance de todos.”
64. Juliette, vol. II, op.cit., p.81s.
65. Ibid., vol. III, p.172s.
66. Ibid., vol. III, p.176s.
67. Edição particular Helpey, p.267.
68. Juliette, loc. cit.
d: Emprego. (N.T.)
e: A ralé, o zé-povinho branco. (N.T.)
f: Namorado. (N.T.)
“É na violência, por mais que ela se esconda
sob os véus da legalidade, que repousa afinal a hierarquia social. A dominação
da natureza se reproduz no interior da humanidade. A civilização cristã – que
permitiu que a ideia de proteger os fisicamente fracos revertesse em proveito
da exploração do servo forte – jamais conseguiu conquistar inteiramente os
corações dos povos convertidos.”
“Sob o poder do monopólio, toda cultura de
massas é idêntica, e seu esqueleto, a ossatura conceitual fabricada por aquele,
começa a se delinear. Os dirigentes não estão mais sequer muito interessados em
encobri-lo, seu poder se fortalece quanto mais brutalmente ele se confessa de
público. O cinema e o rádio não precisam mais se apresentar como arte. A
verdade de que não passam de um negócio, eles a utilizam como uma ideologia
destinada a legitimar o lixo que propositalmente produzem. Eles se definem a si
mesmos como indústrias, e as cifras publicadas dos rendimentos de seus
diretores gerais suprimem toda dúvida quanto à necessidade social de seus
produtos.
Os interessados inclinam-se a dar uma
explicação tecnológica da indústria cultural. O fato de que milhões de pessoas
participam dessa indústria imporia métodos de reprodução que, por sua vez,
tornam inevitável a disseminação de bens padronizados para a satisfação de
necessidades iguais. O contraste técnico entre poucos centros de produção e uma
recepção dispersa condicionaria a organização e o planejamento pela direção. Os
padrões teriam resultado originariamente das necessidades dos consumidores: eis
por que são aceitos sem resistência. De fato, o que o explica é o círculo da
manipulação e da necessidade retroativa, no qual a unidade do sistema se torna
cada vez mais coesa. O que não se diz é que o terreno no qual a técnica
conquista seu poder sobre a sociedade é o poder que os economicamente mais
fortes exercem sobre a sociedade. A racionalidade técnica hoje é a
racionalidade da própria dominação. Ela é o caráter compulsivo da sociedade
alienada de si mesma. Os automóveis, as bombas e o cinema mantêm coeso o todo e
chega o momento em que seu elemento nivelador mostra sua força na própria
injustiça à qual servia. Por enquanto, a técnica da indústria cultural levou
apenas à padronização e à produção em série, sacrificando o que fazia a
diferença entre a lógica da obra e a do sistema social. Isso, porém, não deve ser
atribuído a uma lei evolutiva da técnica enquanto tal, mas à sua função na
economia atual. A necessidade que talvez pudesse escapar ao controle central já
é recalcada pelo controle da consciência individual. A passagem do telefone ao
rádio separou claramente os papéis. Liberal, o telefone permitia que os
participantes ainda desempenhassem o papel do sujeito. Democrático, o rádio
transforma-os a todos igualmente em ouvintes, para entregá-los autoritariamente
aos programas, iguais uns aos outros, das diferentes estações. Não se
desenvolveu qualquer dispositivo de réplica e as emissões privadas são
submetidas ao controle. Elas limitam-se ao domínio apócrifo dos “amadores”, que
ainda por cima são organizados de cima para baixo. No quadro da rádio oficial,
porém, todo traço de espontaneidade no público é dirigido e absorvido, numa
seleção profissional, por caçadores de talentos, competições diante do
microfone e toda espécie de programas patrocinados. Os talentos já pertencem à
indústria muito antes de serem apresentados por ela: de outro modo não se
integrariam tão fervorosamente. A atitude do público que, pretensamente e de
fato, favorece o sistema da indústria cultural é uma parte do sistema, não sua
desculpa. Quando um ramo artístico segue a mesma receita usada por outro muito
afastado dele quanto aos recursos e ao conteúdo; quando, finalmente, os
conflitos dramáticos das novelas radiofônicas tornam-se o exemplo pedagógico
para a solução de dificuldades técnicas, que à maneira do jamb, são dominadas do mesmo
modo que nos pontos culminantes da vida jazzística; ou quando a “adaptação”
deturpadora de um movimento de Beethoven se efetua do mesmo modo que a
adaptação de um romance de Tolstoi pelo cinema, o recurso aos desejos
espontâneos do público torna-se uma desculpa esfarrapada. Uma explicação que se
aproxima mais da realidade é a explicação a partir do peso específico do
aparelho técnico e do pessoal, que devem todavia ser compreendidos, em seus
menores detalhes, como partes do mecanismo econômico de seleção. Acresce a isso
o acordo, ou pelo menos a determinação comum dos poderosos executivos, de nada
produzir ou deixar passar que não corresponda a suas tabelas, à ideia que fazem
dos consumidores e, sobretudo, que não se assemelha a eles próprios. (...)
A unidade implacável da indústria cultural
atesta a unidade em formação da política. As distinções enfáticas que se fazem
entre os filmes das categorias A e B, ou entre as histórias publicadas em
revistas de diferentes preços, têm menos a ver com seu conteúdo do que com sua
utilidade para a classificação, organização e computação estatística dos
consumidores. Para todos algo está previsto; para que ninguém escape, as
distinções são acentuadas e difundidas. O fornecimento ao público de uma
hierarquia de qualidades serve apenas para uma quantificação ainda mais
completa. Cada qual deve se comportar, como que espontaneamente, em
conformidade com seu levelc, previamente caracterizado por certos
sinais, e escolher a categoria dos produtos de massa fabricada para seu tipo. Reduzidos
a um simples material estatístico, os consumidores são distribuídos nos mapas
dos institutos de pesquisa (que não se distinguem mais dos de propaganda) em
grupos de rendimentos assinalados por zonas vermelhas, verdes e azuis.
O esquematismo do procedimento mostra-se no
fato de que os produtos mecanicamente diferenciados acabam por se revelar
sempre como a mesma coisa. A diferença entre a série Chrysler e a série General
Motors é no fundo uma distinção ilusória, como já sabe toda criança interessada
em modelos de automóveis. As vantagens e desvantagens que os conhecedores
discutem servem apenas para perpetuar a ilusão da concorrência e da
possibilidade de escolha. O mesmo se passa com as produções da Warner Brothers
e da Metro Goldwyn Mayer. Até mesmo as diferenças entre os modelos mais caros e
mais baratos da mesma firma se reduzem cada vez mais: nos automóveis, elas se
reduzem ao número de cilindros, capacidade, novidade dos gadgetsd, nos filmes ao
número de estrelas, à exuberância da técnica, do trabalho e do equipamento, e
ao emprego de fórmulas psicológicas mais recentes. O critério unitário de valor
consiste na dosagem da conspicuous
productione, do investimento
ostensivo. Os valores orçamentários da indústria cultural nada têm a ver com os
valores objetivos, com o sentido dos produtos. Os próprios meios técnicos
tendem cada vez mais a se uniformizar. A televisão visa uma síntese do rádio e
do cinema, que é retardada enquanto os interessados não se põem de acordo, mas
cujas possibilidades ilimitadas prometem aumentar o empobrecimento dos
materiais estéticos a tal ponto que a identidade mal disfarçada dos produtos da
indústria cultural pode vir a triunfar abertamente já amanhã – numa realização
escarninha do sonho wagneriano da obra de arte total. A harmonização da
palavra, da imagem e da música logra um êxito ainda mais perfeito que no Tristão, porque os elementos sensíveis –
que registram sem protestos, todos eles, a superfície da realidade social – são
em princípio produzidos pelo mesmo processo técnico e exprimem sua unidade como
seu verdadeiro conteúdo. Esse processo de elaboração integra todos os elementos
da produção, desde a concepção do romance (que já tinha um olho voltado para o
cinema) até o último efeito sonoro. Ele é o triunfo do capital investido.
Gravar sua onipotência no coração dos esbulhados que se tornaram candidatos a jobs como a onipotência de seu senhor,
eis aí o que constitui o sentido de todos os filmes, não importa o plotf
escolhido em cada caso pela direção de produção.”
c Nível. (N.T.)
d Todo aparelho mecânico pequeno, acessório.
(N.T.)
e Produção ostensiva. (N.T.)
f Enredo. (N.T.)
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