Editora: Jorge Zahar
ISBN: 978-85-3780-143-7
Tradução: Marco Antonio Casanova
Opinião: ★★☆☆☆
Páginas: 351
Sinopse: Ver Parte
I
“A dialética entre ser e ente, o fato de nenhum ser poder ser pensado sem
o ente e nenhum ente sem mediação, encontra-se reprimida por Heidegger: os
momentos que não são sem que um seja mediado pelo outro são para ele o uno sem
mediação, e esse uno é o ser positivo. Mas o cálculo não fecha. A relação de
débito entre as categorias é impugnada. Arrancado a fórceps, o ente retorna: o
ser purificado do ente só permanece fenômeno originário enquanto possui em si
uma vez mais o ente que exclui. Heidegger resolve esse problema com uma jogada
de mestre estratégica; essa é a matriz de todo o seu pensamento. Com o termo
“diferença ontológica”, sua filosofia toca até o momento indissolúvel do ente.
“Aquilo que com certeza deve ser compreendido por um tal ‘ser’, que se pretende
completamente independente da esfera do ôntico, precisa permanecer em suspenso.
Sua determinação o introduziria na dialética do sujeito e do objeto, da qual justamente
ele deve ser excluído. Nessa indeterminação, na posição sem dúvida alguma mais
central da ontologia heideggeriana reside o fato de os extremos ser e ente
precisarem necessariamente permanecer indeterminados em relação um ao outro,
por mais que não se possa nem mesmo indicar em que consiste essa diferença. O
discurso acerca da ‘diferença ontológica’ reduz-se à tautologia de que o ser
não é o ente porque ele é o ser. Portanto, Heidegger comete o erro pelo qual
repreende a metafísica ocidental, o fato de ter ficado constantemente sem ser
dito o que denota o ser em contraposição ao ente.”7 Sob o sopro da
filosofia, o ente torna-se um fato ontológico,j expressão distorcida
e hipostasiada do fato de o ser não poder ser pensado sem o ente, assim como o
ente, segundo a tese fundamental de Heidegger, sem o ser. Com isso, ele
constrói seus círculos. A penúria da ontologia é não poder sair daí sem o que
lhe é oposto, sem o ôntico; a dependência do princípio ontológico em relação à
sua contraparte, o escândalo incondicionável da ontologia, torna-se parte da
ontologia. O triunfo heideggeriano sobre as outras ontologias menos astutas é a
ontologização do ôntico. O fato de não haver nenhum ser sem o ente ganha a
fórmula de que o ser do ente pertence à essência do ser. Com isso, algo
verdadeiro se transforma em não-verdade: o ente torna-se essência. O ser se
apodera daquilo que uma vez mais não gostaria de ser na dimensão de seu ser-em-si,
apodera-se do ente, cuja unidade conceitual é sempre concomitantemente visada
pelo sentido literal de ser. Toda a construção da diferença ontológica é um
vilarejo de Potemkin. Ele não é erigido senão para que a dúvida em relação ao
ser absoluto possa ser eliminada de maneira tanto mais soberana em virtude da
tese do ente como um modo de ser do ser.k Na medida em que todo ente
particular é trazido ao seu conceito, ao conceito do ôntico, desaparece daí
aquilo que, ante o conceito, o torna um ente. A estrutura formal e totalmente
conceitual do discurso acerca do ôntico e todos os seus equivalentes colocam-se
no lugar do conteúdo heterogêneo para o conceitual desse conceito. Isso é
possibilitado por meio do fato de que o conceito do ente — nesse ponto de maneira
alguma tão dessemelhante em relação àquele conceito do ser festejado por
Heidegger — é aquele conceito que abarca o pura e simplesmente não-conceitual,
aquilo que não se esgota no conceito, sem, contudo, jamais expressar sua
diferença em relação àquilo que é abarcado. Porque “o ente” é o conceito para
todo ente, o próprio ente torna-se conceito, estrutura ontológica que passa sem
quebras para a estrutura do ser. A ontologização do ente recebe uma formulação
expressiva em Ser e tempo: “A ‘essência’ do ser-aí reside em sua
existência.”8 A partir da definição do-que-é-aí, do existente qua
existente, por meio dos conceitos ser-aí e existência, vem à tona o fato de que
aquilo que no que-é-aí não é essencial, não é ontológico, é ontológico. A
diferença ontológica é afastada à força da conceptualização do não-conceitual e
se transforma em não-conceptualidade. (...)
O trabalho e o
esforço da metafísica antiga, desde a metafísica parmenídica, que precisou
cindir pensamento e ser para poder identificá-los, até à metafísica
aristotélica consistiu em impor a separação. A desmitologização é separação, o
mito é a unidade enganosa daquilo que não é separado. No entanto, como a
insuficiência dos princípios originários para a explicação do mundo que é
copensado neles leva à sua decomposição e, com isso, como a
extraterritorialidade do ser enquanto algo errante entre essência e fato se vê
presa na teia do conceito, Heidegger se vê obrigado, em nome do privilégio do
ser, a condenar o trabalho crítico do conceito como história da decadência;
como se a filosofia pudesse, para além da história, possuir um ponto de vista
histórico, apesar de, por outro lado, dever obedecer à história que é ela
mesma, como a existência, ontologizada. Heidegger é anti-intelectualista por
compulsão sistemática, antifilosófico a partir da filosofia, assim como os
renascimentos religiosos atuais não se deixam inspirar pela verdade de suas
doutrinas, mas pela filosofia segundo a qual seria bom ter religião. A história
do pensamento é, até onde é possível retroceder e acompanhá-la, dialética do
Esclarecimento. É por isso que, de maneira bastante decidida, Heidegger não
para em algum de seus estágios, tal como talvez tenha se sentido seduzido a
fazer em seus anos de juventude, mas se precipita com uma máquina do tempo de
Wells no abismo do arcaísmo, no qual tudo pode ser tudo e tudo pode significar
tudo. Ele estende a mão para o mito; mas mesmo o seu mito permanece um mito do
século XX, uma aparência, tal como a história o desmascarou e que se torna
descomunal junto à plena incompatibilidade do mito com a figura racionalizada
da realidade na qual toda consciência se acha aprisionada. Esta se arroga o
estado mitológico, como se esse estado lhe fosse possível sem que ela fosse
igual a ele. Com o conceito de ser heideggeriano ganha voz o conceito mítico de
destino: “O advento do ente repousa no envio do ser.”12 A celebrada
não-separação entre a existência e a essência no ser torna-se assim — para dar-lhe
o nome preciso — isso que é: cegueira em relação à conexão natural, fatalidade
do encadeamento, negação absoluta da transcendência que tremula no discurso
sobre o ser. A aparência inerente ao conceito de ser é essa transcendência; seu
fundamento, porém, é o fato de as determinações heideggerianas, as
determinações do ser-aí, enquanto a penúria da história humana real até hoje,
terem sido eliminadas, de elas terem sido privadas da lembrança dessa história.
Elas se tornam momentos do próprio ser e, com isso, algo preordenado em relação
a essa existência. Seu poder astral e sua magnificência são tão frios ante o
aviltamento e a falibilidade da realidade histórica quanto essa realidade é
sancionada como inalterável. A celebração do sem-sentido enquanto sentido é
mítica; a repetição ritual das conexões naturais nas ações simbólicas dos
indivíduos como se elas fossem por isso supranaturais. Categorias tais como a
angústia, as quais ao menos não se deve estipular que precisariam durar para
sempre, tornam-se por meio de sua transfiguração constituintes do ser enquanto
tal, algo preordenado à existência, seu a priori. Elas se instalam justamente
como o sentido que não pode ser denominado no estado histórico atual de maneira
positiva, imediata. O sem-sentido é investido de sentido, na medida em que o
sentido do ser deve imergir precisamente em sua contraparte, na mera existência
enquanto sua forma.”
j A doutrina heideggeriana sobre
o privilégio do ser-aí como o privilégio do ôntico que é ao mesmo tempo
ontológico; a doutrina da presença do ser, hipostasia de antemão o ser. Somente
a medida que o ser, como ele o desejaria, é autonomizado como algo que precede
o ser-aí, o ser-aí recebe essa transparência em relação ao ser, uma
transparência que, porém, deve ser uma vez mais liberada por este. Também nessa
medida, a pretensa superação do subjetivismo é uma fraude. Apesar do plano
redutor de Heidegger, o que foi uma vez mais contrabandeado por meio da
doutrina da transcendência do ser para o interior do ente foi justamente o
primado ontológico da subjetividade, abjurado pela linguagem da ontologia
fundamental. Heidegger foi coerente ao inverter mais tarde a análise do ser-aí
no sentido do primado intacto do ser, um primado que não pode ser fundamentado
a partir de um ente porque, de acordo com ele, o ser não é um ente. Com
certeza, tudo aquilo por meio do que ele havia produzido um efeito cai por
terra, mas esse efeito já tinha passado para a autoridade do último Heidegger.
k “… se é que pertence à verdade do ser que o ser nunca se essencializa
sem o ente, que um ente nunca é sem o ser.” (Heidegger, O que é metafísica?,
5ª ed., Frankfurt am Main, 1949, p.41.)
7 Karl Heinz Haag, Kritik der
neueren Ontologien, Stuttgart, 1960, p.71.
8 Heidegger, Sein und Zeit,
op.cit., p.42.
12 Heidegger, Platons Lehre von der Wahrheit [A doutrina
platônica da verdade], 2ª ed., Berna, 1954, p. 75
“A ideia de que o critério de medida da verdade não é a sua objetividade,
qualquer que seja a forma que esta venha a assumir, mas o puro ser assim e se
comportar assim daquele que pensa, tal ideia domina o conceito do existenciário
em relação ao qual Heidegger prefere o já ontologizado existencial ser-aí qua
ser. A razão subjetiva dos positivistas é enobrecida, na medida em que se despe
essa razão de seu momento racional. Nesse ponto, Jaspers segue Kierkegaard
incondicionalmente; o objetivismo heideggeriano só muito dificilmente subscreveria
a sentença segundo a qual a subjetividade é a verdade; na análise dos
existenciais em Ser e tempo, porém, essa sentença ressoa
incessantemente. O que contribui com sua popularidade na Alemanha é o fato de o
gesto radical e o tom pastoral se unirem com uma ideologia dirigida à pessoa,
uma ideologia do vigoroso e do autêntico, qualidades que, com uma candura
esperta, os indivíduos reservam para si mesmos no espírito do privilégio. Se,
por meio de sua essência designada por Kant como funcional, a subjetividade
dissolve as substâncias firmes preordenadas, sua afirmação ontológica apazigua
a angústia diante disso. Subjetividade, o conceito de função ϰατ’, ἐξοχήν (sim, certo) torna-se o absolutamente
firme, tal como isso de resto já tinha sido estabelecido na doutrina kantiana
da unidade transcendental. Mas a verdade, a constelação de sujeito e objeto na
qual os dois se interpenetram, não pode ser reduzida nem à subjetividade, nem
tampouco, inversamente, àquele ser cuja relação dialética com a subjetividade
Heidegger busca turvar. Aquilo que é verdadeiro no sujeito desdobra-se na
relação com aquilo que ele mesmo não é, de maneira alguma por meio da afirmação
peremptória de seu ser-assim. Hegel sabia disso, mas isso é entediante para as
escolas da restauração. Se a verdade fosse de fato a subjetividade, se o
pensamento não fosse outra coisa senão repetição do sujeito, então esse
pensamento seria nulo. A elevação existencial do sujeito elimina em favor dele
aquilo que poderia sair dele. Com isso, ela se remete ao relativismo acima do
qual se imaginava estar e degrada o sujeito à sua contingência opaca. Um tal
existencialismo irracional enche o peito e se inflama contra os intelectuais,
reconhecendo-se também como um: “O filósofo, porém, arrisca-se ao discurso no
qual não há nenhuma diferença objetiva entre o falar autêntico a partir da
origem filosofante e uma intelectualidade vazia. Enquanto o homem como pesquisador
tem a cada vez critérios universalmente válidos para seus resultados e encontra
sua satisfação na inevitabilidade de sua validade, ele como filósofo só tem o
critério respectivamente subjetivo de seu próprio ser para diferenciar o falar
vazio do falar que desperta um interesse existencial. Portanto, há um ethos
diverso na raiz da atividade teórica nas ciências e na filosofia.”21
Privada do outro em direção ao qual se exterioriza, a existência que se
proclama assim critério do pensamento alcança autoritariamente validade para
seus meros decretos, tal como na prática política o ditador o faz
respectivamente para uma visão de mundo. Por meio da redução do pensamento aos
sujeitos pensantes, o progresso do pensamento é interrompido, o progresso no
qual ele se tornaria pela primeira vez pensamento e no qual somente a
subjetividade viveria. Enquanto terra batida da verdade, ela é reificada. Já
era possível escutar tudo isso no tom da palavra antiquada “personalidade”. O
pensar transforma-se naquilo que o sujeito pensante já é de antemão, em
tautologia, em uma forma da consciência regressiva. Ao invés disso, o potencial
utópico do pensamento consistiria no fato de que, mediado pela razão
corporificada nos sujeitos individuais, o pensamento romperia a limitação
daqueles que pensam assim. Sua força maior está em sobrepujar os sujeitos pensantes
fracos e falíveis. Essa força é paralisada — desde Kierkegaard em vista de
metas obscurantistas — pelo conceito existencial de verdade, e a estreiteza é
propagada como força para a verdade; por isso, o culto da existência floresce
na província de todos os países.
Há
muito tempo a ontologia cassou a oposição do conceito de existência contra o
idealismo. O ente que devia testemunhar outrora contra a consagração da ideia
feita pelos homens recebeu a consagração muito mais ambiciosa do próprio ser.
Seu éter o enobrece de antemão em face das condições da existência material
visada pelo Kierkegaard de O instante ao confrontar a ideia com a
existência. Por meio da absorção do conceito de existência no ser, sim, já por
meio de sua elaboração filosófica em conceito universal suscetível de ser
discutido, é uma vez mais escamoteada a história que em Kierkegaard, que não
subestimava os hegelianos de esquerda, irrompeu na especulação sob o signo
teológico do contato paradoxal entre tempo e eternidade. A ambivalência da
doutrina do ser, a ambivalência que consiste em ao mesmo tempo tratar do ente e
ontologizá-lo, ou seja, desapropriá-lo de todo o seu não-conceitual por meio do
recurso à sua characteristica formalis (característica formal), também determina a sua relação com a história.r
Por um lado, através de sua transposição para o existencial da historicidade, é
afastado o sal do histórico; a exigência de toda prima philosophia a uma
doutrina de invariantes é estendida para aquilo que varia: a historicidade
paralisa a história no não-histórico, sem se preocupar com as condições
históricas subentendidas pela conexão interna e pela constelação de sujeito e
objeto.s Isso permite então o veredicto sobre a
sociologia. Ela se desfigura, tal como antes a psicologia em Husserl, em uma
relativização extrínseca à coisa mesma que danifica o trabalho sólido do
pensamento: como se a história real não estivesse gravada no cerne de tudo
aquilo que é preciso conhecer; como se todo conhecimento que resiste de maneira
séria à reificação não colocasse as coisas enrijecidas em fluxo, não tomasse consciência
por meio daí da história presente nelas. Por outro lado, a ontologização da
história permite uma vez mais atribuir ao poder histórico irrefletido a
potência do ser e, com isso, justificar a subordinação a situações históricas,
como se elas fossem impostas pelo próprio ser. Esse aspecto da concepção heideggeriana
da história foi ressaltado por Karl Löwith.t O
fato de a história, sempre segundo o caso específico, poder ser ignorada ou
divinizada é uma consequência política praticável da filosofia do ser. O
próprio tempo e, com isso, o efêmero são tão absolutizados quanto
transfigurados pelos projetos ontológico-existenciais. O conceito de existência
enquanto o conceito da essencialidade do efêmero, da temporalidade do temporal,
mantém a existência distante por meio de sua denominação. Se ela é tratada um
dia como título de um problema fenomenológico, então ela já é integrada. Esses
são os consolos mais recentes da filosofia, do mesmo tipo do eufemismo mítico;
uma crença falsamente ressuscitada de que o encanto do natural seria quebrado
por meio do fato de o repetirmos de maneira apaziguante. O pensamento existencial
esconde-se na caverna da mímesis ultrapassada. Desse modo, porém, ele aceita o
preconceito mais fatidicamente repleto de consequências da história da
filosofia — licenciado por ele como se faz com os empregados supérfluos —, o
preconceito platônico de que o imperecível precisa ser o bem, um preconceito
com o qual não se diz outra coisa senão que aqueles que são a cada vez os mais
fortes na guerra permanente teriam razão. Não obstante, se a pedagogia
platônica cultivou as virtudes guerreiras, então essas tinham de qualquer modo,
de acordo com o diálogo Górgias, de se responsabilizar ante a ideia da
justiça, ante a ideia suprema. No céu mais obscurecido da doutrina da
existência, porém, não brilha mais nenhum astro. A existência é santificada sem
aquilo que a santifica. Não resta nada da ideia eterna, na qual o ente devia
tomar parte ou por meio da qual ele devia ser condicionado, senão a afirmação
nua e crua daquilo que já é simplesmente: a afirmação do poder.”
r “Somente o ente que é essencialmente em seu ser por-vir, de modo que
pode se deixar retrojetar, livre para a sua morte e se esfacelando nela, para o
seu aí fático, isto é, somente o ente que foi de maneira essencial
cooriginariamente por-vir pode, entregando a si mesmo a possibilidade herdada,
assumir o próprio caráter de jogado e ser instantaneamente para o ‘seu tempo’.
Somente uma temporalidade própria que é ao mesmo tempo finita torna possível
algo assim como o destino, isto é, uma historicidade própria.” (Heidegger, Ser
e tempo, op.cit., p.385.)
s Em sua forma linguística, a ontologia fundamental precisa ser remetida
a um momento histórico e social que não deveria ser por sua vez novamente
relacionado com a pura essentia da historicidade. Por isso, as
descobertas feitas em termos de crítica da linguagem no Jargão da
autenticidade são contrárias ao teor filosófico. A arbitrariedade que
Heidegger arrasta consigo no conceito de projeto, herança imediata da fenomenologia
desde a sua passagem para uma disciplina material, é flagrante nos resultados:
as determinações específicas de ser-aí e existência em Heidegger, aquilo que
ele atribui à condition humaine e considera como chave de uma verdadeira
doutrina do ser, tudo isso não é logicamente consistente, mas deformado pelo
elemento contingentemente privado. O tom falso abafa esse fato, mas o reconhece
precisamente por meio daí.
t “As aspas usadas por Heidegger para ‘seu tempo’ na citação acima devem
supostamente indicar que não se trata aí de um ‘empenho’ qualquer por um hoje
contemporâneo que se impõe momentaneamente, mas de um tempo decisivo de um
instante autêntico, cujo caráter de decisão se revela a partir da diferença
entre o tempo vulgar e o tempo existencial. Mas como é que se consegue, em um
caso dado, diferenciar inequivocamente se o tempo da decisão é um ‘instante’
originário ou apenas um ‘hoje’ premente no curso e no decurso de um
acontecimento mundial? A decisão que não sabe pelo que se decidiu não fornece
nenhuma resposta a essa pergunta. Já aconteceu mais de uma vez de pessoas muito
decididas se empenharem por uma coisa que levantava a pretensão de ser como um
destino e um momento decisivo e que, contudo, era vulgar e não era digna do
sacrifício. Como é afinal possível traçar os limites no interior de um
pensamento inteiramente histórico entre o acontecimento ‘próprio’ e aquele que
acontece ‘vulgarmente’, como é possível diferenciar inequivocamente entre o
destino escolhido por si mesmo e a fatalidade não escolhida que se abate sobre
os homens ou os seduz para uma escolha e uma decisão momentânea? E não é
verdade que a história vulgar se vingou de maneira suficientemente clara do
desprezo heideggeriano pelo simplesmente presente hoje ao seduzi-lo em um
instante vulgarmente decisivo a assumir durante o regime de Hitler a condução
da Universidade de Freiburg e conduzir o ser-aí mais propriamente decidido para
um ‘ser-aí alemão’, a fim de praticar a teoria ontológica da historicidade
existencial sobre o solo ôntico do acontecimento histórico, isto é, político?” (Karl Löwith, Heidegger,
Denker in durftiger Zeit, Frankfurt am Main, 1953, p.49.)
21 Jaspers, Philosophie,
op.cit., p.264.
“Nenhum ser sem ente. O algo enquanto substrato do conceito, necessário
em termos de pensamento, enquanto substrato mesmo do conceito de ser, é a
abstração mais extrema do caráter coisal não-idêntico ao pensamento. Essa
abstração, porém, não pode ser eliminada por nenhum outro processo de pensamento;
sem o algo, a lógica formal não pode ser pensada. Essa não pode ser purificada
de seu rudimento metalógico.a A possibilidade de o pensamento se livrar desse caráter coisal por meio
da forma do “em geral”, ou seja, a suposição de uma forma absoluta, é ilusória.
A experiência de algo que possui caráter coisal é constitutiva da forma
“caráter coisal em geral”. Correlativamente, junto ao polo oposto subjetivo, o
conceito puro, função do pensamento, também não pode ser radicalmente isolado
do eu que é. O primeiro erro* do idealismo desde Fichte foi a
suposição de que no movimento da abstração nos livramos daquilo de que nos
abstraímos. Esse é expulso do pensamento, banido de seu domínio originário, não
aniquilado em si; uma tal crença é mágica. O pensamento contradiria já o seu
próprio conceito sem o pensado, e esse pensado remete antecipadamente para o
ente tal como ele deve ao menos ser posicionado pelo pensamento absoluto: um
simples ὕστερον πρóτερον (posterior
anterior) Ele permaneceria inconveniente para a lógica da ausência de
contradição; somente a dialética pode compreendê-lo na autocrítica do conceito.
Ela é objetivamente provocada pelo conteúdo daquilo que é discutido pela
crítica à razão, pela teoria do conhecimento, e sobrevive por isso ao declínio
do idealismo que com ela alcança seu apogeu. Esse pensamento conduz ao momento
do idealismo que lhe é contrário: ele não se deixa volatizar uma vez mais em
pensamento. A concepção kantiana ainda permitia dicotomias como a dicotomia
entre forma e conteúdo, sujeito e objeto, sem que a mediação mútua dos pares
contraditórios a confundisse; ela não leva em conta sua essência dialética, a
contradição enquanto implicada em seu sentido. Foi somente o mestre de
Heidegger, Husserl, que aguçou a tal ponto a ideia de aprioridade que tornou
possível deduzir, contra a sua vontade e contra a vontade de Heidegger, da
própria pretensão às εἴδη (formas) a sua dialética.1 No entanto, no momento em que a
dialética se torna imperiosa, ela não pode insistir em seu princípio como a
ontologia e a filosofia transcendental, ela não pode ser fixada como uma
estrutura suportadora, como quer que venhamos a modificá-la. A crítica à
ontologia não tem por meta nenhuma outra ontologia, nem mesmo uma ontologia do
não-ontológico. Se esse fosse o caso, ela não faria outra coisa senão colocar
algo diverso como o pura e simplesmente primeiro; dessa vez não mais a
identidade absoluta, o ser, o conceito, mas o não-idêntico, o ente, a
facticidade. Com isso, ela hipostasiaria o conceito do não-conceitual e iria de
encontro àquilo que tem em vista. A filosofia fundamental, πρώτη φιλοσοφία (primeira
filosofia), implica necessariamente o primado do conceito; aquilo que se lhe
recusa também abandona a forma de um filosofar pretensamente a partir do
fundamento. A filosofia pôde aplacar-se no pensamento da apercepção
transcendental ou ainda no ser, enquanto esses conceitos permaneceram para ela
idênticos ao pensamento que ela pensa. Se rejeitamos de maneira principial uma
tal identidade, então ela arrasta para o interior de sua queda a quietude do
conceito enquanto algo derradeiro. Na medida em que o caráter fundamental de todo
conceito universal se dissolve ante o ente determinado, a filosofia não tem
mais o direito de esperar pela totalidade.”
a Na primeira
observação à primeira tríade da lógica, Hegel recusa-se a começar com o algo em
vez de com o ser (Cf. Hegel, WW 4, op.cit., em esp. p.89; também p.80).
Com isso, ele prejudica toda a obra que quer evidenciar o primado do sujeito no
sentido deste último, i.e, de uma maneira idealista. Só muito dificilmente a dialética
se desenvolveria nele de outra forma se, como corresponderia ao traço
fundamental aristotélico da obra, ele tivesse partido do algo abstrato. Por
mais que a representação de um tal algo enquanto tal possa mostrar mais
tolerância ante o não-idêntico do que a representação do ser, ela não é de
maneira alguma menos mediatizada. Não se poderia tampouco permanecer parado
junto ao conceito do algo. Sua análise precisaria continuar se movimentando em
direção àquilo que ele pensa: na direção do não-conceitual. Hegel, entretanto,
não consegue suportar o mínimo rastro de não-identidade no ponto de partida da
lógica, um rastro que a palavra “algo” relembra.
*: Os termos em em grego não foram aceitos pela configuração do blog.
*: Os termos em em grego não foram aceitos pela configuração do blog.
“Tais reflexões dão a impressão de paradoxo.
A subjetividade, o próprio pensamento, não pode ser explicado a partir de si
mesmo, mas somente a partir do elemento fático, sobretudo da sociedade; mas a
objetividade do conhecimento não é uma vez mais sem o pensamento, sem a
subjetividade. Um tal paradoxo emerge na norma cartesiana de que a explicação
precisaria fundamentar o posterior, ao menos logicamente posterior a partir do
anterior. A norma não é mais obrigatória. De acordo com o seu critério de medida,
o estado de coisas dialético seria a simples contradição lógica. Mas o estado
de coisas não pode ser explicado segundo um esquema de uma ordem hierárquica
citado de fora. Senão, a tentativa de explicação pressuporia a explicação que
ele precisa primeiro encontrar; senão, ela suporia a ausência de contradição, o
princípio subjetivo de pensamento, enquanto inerente ao que precisa ser
pensado, ao objeto. A partir de um certo ponto de vista, a lógica dialética é
mais positivista que o positivismo que a despreza: ela respeita, enquanto
pensar, aquilo que há para ser pensado, o pensamento, mesmo lá onde ele não consente
com as regras do pensar. Sua análise tangencia as regras do pensar. O pensar
não precisa deixar de se ater à sua própria legalidade; ele consegue pensar
contra si mesmo, sem abdicar de si; se uma definição de dialética fosse
possível, seria preciso sugerir uma desse gênero. A armadura do pensamento não
deve necessariamente permanecer aderida a ele; o pensar alcança um ponto
suficientemente distante para perceber a totalidade de sua requisição lógica
como ofuscação. O aparentemente insuportável, o fato de a subjetividade
pressupor algo fático, assim como a objetividade o sujeito, é insuportável
somente para uma tal ofuscação, para a hipóstase da relação entre fundamento e
consequência, do princípio subjetivo, ao qual a experiência do objeto não se
adéqua. A dialética é, enquanto modo de procedimento filosófico, a tentativa de
destrinçar os nós do paradoxo com o meio antiquíssimo do esclarecimento, a astúcia.
Não é por acaso que o paradoxo foi, desde Kierkegaard, a forma decadente da
dialética. A razão dialética segue o impulso de transcender a conexão natural e
sua ofuscação que prossegue na compulsão subjetiva das regras lógicas, sem lhe
impor sua dominação: sem vítima ou vingança. Mesmo sua própria essência veio a
ser e é tão efêmera quanto a sociedade antagonística. Com certeza, o
antagonismo tem tão pouco seus limites na sociedade quanto o sofrimento. Assim
como a dialética não pode ser estendida até a natureza enquanto princípio
universal de explicação, não se deve erigir um ao lado do outro os dois tipos
de verdade, a verdade dialética intrassocial e uma outra que lhe é indiferente.
A cisão orientada pela divisão das ciências entre ser social e ser extrassocial
ilude quanto ao fato de que na história heterônoma é a cegueira natural que se
perpetua.2 Nada conduz para fora da conexão dialética imanente senão
ela mesma. A dialética medita sobre essa conexão de maneira crítica, reflete
seu próprio movimento; senão, o título de Kant contra Hegel permaneceria
não-prescrito. Uma tal dialética é negativa. Sua ideia denomina a diferença de
Hegel. Junto a Hegel, coincidiam identidade e positividade; a inclusão de todo
não-idêntico e objetivo na subjetividade elevada e ampliada até espírito
absoluto deveria empreender a reconciliação. Em contraposição a isso, a força efetiva
em toda determinação particular não é apenas a sua negação, mas também é ela
mesma o negativo, não-verdadeiro. A filosofia do sujeito absoluto, total, é
particular.g A reversibilidade da tese da identidade que é inerente
a essa tese atua contrariamente ao princípio do espírito. Se o ente pode ser
deduzido totalmente a partir do espírito, então esse se torna, para o seu infortúnio,
similar ao mero ente que imagina contradizer: de outro modo, o espírito e o
ente não estariam em acordo. Justamente o princípio de identidade insaciável
eterniza o antagonismo em virtude da opressão daquilo que é contraditório.
Aquilo que não tolera nada que não seja como ele mesmo sabota a reconciliação
pela qual ele se toma equivocadamente. O ato de violência intrínseco ao ato de
igualar reproduz a contradição que ele elimina.”
2 Cf. Weltgeist und
Naturgeschichte, passim.
g A palavra
“identidade” possui muitos sentidos na história da filosofia moderna. Por um
lado, ela designa a unidade da consciência pessoal: o fato de um eu se manter
como o mesmo em todas as suas experiências. Era isso que tinha em vista a
sentença kantiana relativa ao “‘eu penso’ que deve poder acompanhar todas as
minhas representações”. Em seguida, a identidade deveria ser uma vez mais o
legalmente igual em todas as essências dotadas de razão, pensamento enquanto universalidade
lógica; mais além, a igualdade consigo mesmo de todo objeto de pensamento, o
simples A = A. Por fim, segundo o ponto de vista da teoria do conhecimento: o
fato de sujeito e objeto, como quer que venham a ser mediados, coincidirem. As
duas primeiras camadas de significação também não são mantidas de maneira
alguma estritamente afastadas uma da outra. Isso não é culpa de um uso pouco
rigoroso da linguagem. A identidade designa muito mais o ponto de indiferença
entre o momento psicológico e o lógico no idealismo. A universalidade lógica
enquanto a universalidade do pensamento é ligada à identidade individual, sem a
qual ela não chegaria a termo porque, de outro modo, nenhum passado seria
fixado em algo atual, e, com isso, não seria fixado absolutamente nada enquanto
igual. O recurso a isso pressupõe uma vez mais a universalidade lógica; ele é
um recurso do pensamento. O “eu penso” kantiano, o momento individual da
unidade, sempre exige também o universal supraindividual. O eu particular só é
um em virtude da universalidade do princípio numérico da unidade; a unidade da
própria consciência é uma forma de reflexão da identidade lógica. O fato de uma
consciência individual ser una só vale sob a pressuposição lógica do terceiro
excluído: o fato de ela não dever poder ser uma outra. Nessa medida, sua
singularidade, para ser apenas possível, precisa ser supraindividual. Nenhum
dos dois momentos tem prioridade em relação ao outro. Se não houvesse nenhuma
consciência idêntica, nenhuma identidade da particularização, então não haveria
nem algo universal nem o inverso. Assim, legitima-se em termos de teoria de
conhecimento a concepção dialética do particular e do universal.
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