quarta-feira, 5 de julho de 2017

Crítica da Razão Pura (Parte II) – Immanuel Kant

Editora: Fundação Calouste Gulbenkian
ISBN: 978-97-2310-623-7
Tradução: Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão
Introdução e notas: Alexandre Fradique Morujão
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 682
Sinopse: Ver Parte I



“Aguçar a faculdade de julgar, tal é a grande e única utilidade dos exemplos. Pois, no tocante ao rigor e precisão dos conhecimentos do entendimento, os exemplos são, geralmente, mais prejudiciais que vantajosos, porque é raro cumprirem adequadamente a condição da regra (como casus in terminis) e enfraquecem, além disso, muitas vezes, o esforço do entendimento para apreender, em toda a suficiência, as regras em geral e independentemente das condições particulares da experiência, de tal modo que, por fim, nos habituamos a usá-las mais como fórmulas do que como princípios. Assim, os exemplos são as muletas da faculdade de julgar de que nunca poderá prescindir quem careça desse dom natural.”


“O esquema da causa e da causalidade de uma coisa em geral é o real, que, uma vez posto arbitrariamente, sempre é seguido de outra coisa. Consiste, pois, na sucessão do diverso, na medida em que está submetido a uma regra.
O esquema da comunidade (reciprocidade), ou da causalidade recíproca das substâncias em relação aos seus acidentes, é a simultaneidade das determinações de uma com as da outra, segundo uma regra geral.
O esquema da possibilidade é o acordo da síntese de representações diversas com as condições do tempo em geral (por exemplo, que os contrários não podem existir, simultaneamente, numa coisa, mas só sucessivamente) ou seja, a determinação da representação de uma coisa em tempo qualquer.
O esquema da realidade é a existência num tempo determinado.
O esquema da necessidade é a existência de um objeto em todo o tempo.
Por tudo isto se vê o que contém e torna representável o esquema de cada categoria: o da quantidade, a produção (síntese) do próprio tempo na apreensão sucessiva de um objeto; o esquema da qualidade, a síntese da sensação (percepção) com a representação do tempo, ou o preenchimento do tempo; o da relação, a relação das percepções entre si em todo o tempo, (quer dizer, segundo uma regra de determinação do tempo) e, por fim, o esquema da modalidade e suas categorias, o próprio tempo como correlato da determinação de um objeto, se e como o objeto pertence ao tempo. Os esquemas não são, pois, mais que determinações a priori do tempo, segundo regras; e essas determinações referem-se, pela ordem das categorias, respectivamente à série do tempo, ao conteúdo do tempo, à ordem do tempo e, por fim, ao conjunto do tempo no que toca a todos os objetos possíveis.
De tudo isto se depreende claramente que o esquematismo do entendimento, por intermédio da síntese transcendental da imaginação, desemboca tão-somente na unidade de todo o diverso da intuição no sentido interno, e assim, indiretamente, na unidade da apercepção como função que corresponde ao sentido interno (a uma receptividade). Os esquemas dos conceitos puros do entendimento são, pois, as condições verdadeiras e únicas que conferem a esses conceitos uma relação a objetos, portanto uma significação; e as categorias, portanto, no fim de contas, são apenas susceptíveis de um uso empírico possível, servindo unicamente para submeter os fenômenos às regras gerais da síntese, mediante os princípios de uma unidade necessária a priori (em virtude da reunião necessária de toda a consciência numa apercepção originária) e, deste modo, torná-los próprios a formar uma ligação universal numa experiência.”


“A experiência só é possível pela representação de uma ligação necessária das percepções.”


“Nascer e morrer não são mudanças do que nasce e morre. Mudar é um modo de existir, que se sucede a outro modo de existir de um mesmo objeto. Por conseguinte, tudo o que muda é permanente e só o seu estado se transforma. E como essa mudança atinge apenas as determinações que podem cessar ou começar, é-nos lícito dizer, em expressão que parece um tanto paradoxal, que só o permanente (a substância) muda; o variável não sofre qualquer mudança, apenas uma transformação, pois que algumas determinações cessam e outras começam.
Só nas substâncias pode haver percepção de mudança e não há percepção possível do nascer e do perecer absolutos, senão enquanto mera determinação do permanente, porque é essa mesma permanência que torna possível a representação da passagem de um estado para outro e do não-ser para o ser e só enquanto determinações mutáveis do que permanece, podem ser empiricamente conhecidos esses estados. Admiti que algo começa pura e simplesmente a ser. Tereis de admitir um ponto de tempo em que não era. Mas a que o ligareis, esse ponto de tempo, senão ao que já existe? Porquanto um tempo vazio precedente não é objeto de percepção; mas, se ligardes esse aparecimento a coisas, que eram antes e perduraram até à que surgiu, esta última é apenas determinação daquilo que já era, como de algo permanente. O mesmo sucede com o perecer; pois este pressupõe a representação empírica de um tempo em que o fenômeno já não é.
As substâncias (no fenômeno) são os substratos de todas as determinações de tempo. O nascimento de umas e o desaparecimento de outras suprimiriam mesmo a única condição da unidade empírica do tempo e os fenômenos referir-se-iam então a duas espécies de tempos, nos quais, paralelamente, fluiria a existência, o que é um absurdo. Porque há um só tempo, em que todos os diversos tempos têm de ser postos, não como simultâneos, mas como sucessivos.
Por conseguinte, a permanência é uma condição necessária, a única em relação à qual os fenômenos são determináveis como coisas ou objetos, numa experiência possível.”


“Todo o crescimento do conhecimento empírico e todo o progresso da percepção nada mais são que um alargamento da determinação do sentido interno, isto é, uma progressão no tempo, sejam quais forem os objetos, fenômenos ou intuições puras. Esta progressão no tempo determina tudo, e não é em si determinada por mais nada; ou seja, as suas partes são dadas apenas no tempo e pela síntese do tempo, mas não antes desta. Por esse motivo, na percepção, toda a passagem para algo, que se siga no tempo, é uma determinação do tempo operada pela produção desta percepção e, como essa determinação é sempre e em todas as suas partes uma grandeza, é a produção de uma percepção que é uma grandeza e, a este título, passa por todos os graus, dos quais nenhum é o mínimo, desde zero até ao seu grau determinado. Daqui se depreende claramente a possibilidade de conhecer a priori uma lei das mudanças, quanto à sua forma. Antecipamos apenas a nossa própria apreensão, cuja condição formal deve, contudo, poder ser conhecida a priori, visto residir em nós anteriormente a qualquer fenômeno dado.
Deste modo, assim como o tempo contém a condição sensível a priori da possibilidade de uma progressão contínua do que existe para o que se segue, assim também o entendimento, graças à unidade da apercepção, é a condição a priori da possibilidade de uma determinação contínua de todos os lugares para os fenômenos neste tempo, mediante a série de causas e efeitos, acarretando as primeiras, inevitavelmente, a existência dos segundos e, desse modo, tornando o conhecimento empírico das relações de tempo válidas para todo o tempo (em geral), quer dizer, objetivamente válido.”


“OS POSTULADOS DO PENSAMENTO EMPÍRICO EM GERAL
1.       O que está de acordo com as condições formais da experiência (quanto à intuição e aos conceitos) é possível.
2.       O que concorda com as condições materiais da experiência (da sensação) é real.
3.       Aquilo cujo acordo com o real é determinado segundo as condições gerais da experiência é (existe) necessariamente. (...)
O postulado relativo ao conhecimento da realidade das coisas exige uma percepção e, portanto, uma sensação, acompanhada de consciência; não exige, é certo, consciência imediata do próprio objeto, cuja existência deverá ser conhecida, mas sim o acordo desse objeto com qualquer percepção real, segundo as analogias da experiência, que representam toda a ligação real numa experiência em geral.”


“Vimos, nomeadamente, que tudo o que o entendimento extrai de si próprio, sem o recurso da experiência, não serve para qualquer outra finalidade que não seja o uso da experiência. Os princípios do entendimento puro, quer sejam constitutivos a priori (como os matemáticos), quer meramente regulativos (como os dinâmicos), contêm apenas, por assim dizer, o esquema puro para a experiência possível, pois a unidade desta provém, unicamente, da unidade sintética que o entendimento, por si só, originariamente, concede à síntese da imaginação, relativamente à apercepção; com essa unidade, devem os fenômenos, como data para um conhecimento possível, encontrar-se já a priori em relação e harmonia. Embora estas regras do entendimento sejam não somente verdadeiras a priori, mas mesmo a fonte de toda a verdade, isto é, da concordância do nosso conhecimento com os objetos, pelo fato de conterem em si o princípio da possibilidade da experiência, como conjunto de todo o conhecimento em que nos podem ser dados objetos, não nos parece, contudo, suficiente, expor simplesmente o que é verdadeiro, mas ainda expor o que se deseja saber. Se, mediante esta investigação crítica, nada mais aprendermos do que aquilo que por nós teríamos verificado no uso empírico do entendimento e mesmo sem qualquer investigação tão subtil, parece que o seu benefício não compensaria os esforços e os preparativos. Pode-se responder, é certo, que nenhuma curiosidade é mais prejudicial à ampliação do nosso conhecimento do que a de pretender sempre antecipadamente saber a utilidade das pesquisas, antes de iniciadas, e antes de se poder formar a mínima ideia dessa utilidade, mesmo que a tivéssemos diante dos olhos.”


“A reflexão não tem que ver com os próprios objetos, para deles receber diretamente conceitos; é o estado de espírito em que, antes de mais, nos dispomos a descobrir as condições subjetivas pelas quais podemos chegar a conceitos. É a consciência da relação das representações dadas às nossas diferentes fontes do conhecimento, unicamente pela qual pode ser determinada corretamente a relação entre elas.”


“Temos de reconhecer, com efeito, que só as categorias não chegam para o conhecimento das coisas em si e, sem os dados da sensibilidade, seriam apenas formas subjetivas da unidade do entendimento, porém destituídas de objeto. O pensamento não é em si, sem dúvida, um produto dos sentidos e não é, portanto, por eles limitado, mas nem por isso se pode fazer dele um uso próprio e puro, sem a colaboração da sensibilidade, porque nesse caso não teria objeto. Não se pode também considerar que esse objeto seria o númeno, pois este significa, afinal, o conceito problemático de um objeto para uma intuição e um entendimento totalmente diferente dos nossos e é, por conseguinte, ele próprio um problema. O conceito de númeno não é, pois, o conceito de um objeto, mas uma tarefa inevitavelmente vinculada à limitação da nossa sensibilidade: a de saber se não haverá objetos completamente independentes desta intuição da sensibilidade, questão esta que só pode ter resposta indeterminada, nomeadamente a seguinte: visto que a intuição sensível não se dirige a todos os objetos, indistintamente, sobeja lugar para muitos outros objetos diferentes, que ela não nega absolutamente, mas que, por carência de um conceito determinado (sendo para tal imprópria qualquer categoria), também não podem ser afirmados como objetos para o nosso entendimento.
O entendimento limita, por conseguinte, a sensibilidade, sem por isso alargar o seu próprio campo e, ao adverti-la de que não deva aplicar-se às coisas em si, mas apenas aos fenômenos, pensa um objeto em si, mas apenas como um objeto transcendental que é a causa do fenômeno (e por conseguinte não é, ele próprio, fenômeno), mas que não pode ser pensado nem como grandeza, nem como realidade, nem como substância, etc., (porque estes conceitos exigem sempre formas sensíveis em que determinam um objeto). É por isso que ignoramos totalmente se está dentro ou fora de nós e se seria anulado conjuntamente com a sensibilidade ou se, abolida esta, permaneceria. É-nos lícito, se quisermos, dar a esse objeto o nome de númeno, porque a sua representação não é sensível. Porém, como não podemos aplicar-lhe nenhum dos nossos conceitos do entendimento, esta representação mantém-se para nós vazia e serve apenas para delimitar as fronteiras do nosso conhecimento sensível e deixar livre um espaço que não podemos preencher, nem pela experiência possível, nem pelo entendimento puro.”


“Todo o nosso conhecimento começa pelos sentidos, daí passa ao entendimento e termina na razão, acima da qual nada se encontra em nós mais elevado que elabore a matéria da intuição e a traga à mais alta unidade do pensamento. (...)
Se o entendimento pode ser definido como a faculdade de unificar os fenômenos mediante regras, a razão é a faculdade de unificar as regras do entendimento mediante princípios. Nunca se dirige, portanto, imediatamente à experiência, nem a nenhum objeto, mas tão-só ao entendimento, para conferir ao diverso dos conhecimentos desta faculdade uma unidade a priori, graças a conceitos; unidade que pode chamar-se unidade de razão e é de espécie totalmente diferente da que pode ser realizada pelo entendimento.
Este é o conceito geral da faculdade da razão, na medida em que se pode tornar compreensível sem o auxílio de quaisquer exemplos.”


“A razão, no raciocínio, procura reduzir a grande diversidade dos conhecimentos do entendimento ao número mínimo de princípios (de condições gerais) e assim alcançar a unidade suprema dos mesmos.”


“Assim se desvanece em esperança ilusória, se pretendermos devê-lo à filosofia especulativa, um conhecimento buscado para além das fronteiras da experiência possível e todavia da mais alta importância para a humanidade; a severidade da crítica, porém, ao mesmo tempo que demonstra a impossibilidade de decidir, dogmaticamente, acerca de um objeto da experiência para além dos limites desta, presta à razão um serviço que não é de somenos importância para o interesse que a preocupa, o de a garantir, igualmente, contra todas as afirmações possíveis do contrário. Só pode fazê-lo de duas maneiras: ou demonstrando apodicticamente a sua proposição ou, caso não o consiga, indagar das causas dessa impossibilidade; se estas causas residem nos limites necessários da nossa razão, o adversário encontrar-se-á necessariamente submetido precisamente às mesmas leis que impõem a renúncia a qualquer pretensão de afirmações dogmáticas.
No entanto, nem por isso se verifica a menor perda no que respeita à legitimidade e até mesmo à necessidade de admitir uma vida futura segundo princípios do uso prático da razão, unido ao seu uso especulativo; porquanto, a prova simplesmente especulativa nunca pôde ter qualquer influência sobre a razão comum dos homens. Esta prova está suspensa por um fio de cabelo, de tal maneira que a própria escola só a pôde manter no tempo, fazendo-a girar sem cessar sobre si mesma, como um pião e nem a seus olhos mesmo constitui uma base estável sobre a qual algo se possa construir. As provas, que são para uso do mundo, conservam aqui, pelo contrário, todo o seu valor, e ganham antes maior clareza e força natural de persuasão pelo abandono das pretensões dogmáticas, colocando a razão no seu domínio próprio, ou seja, na ordem dos fins, que é, simultaneamente, uma ordem da natureza. Mas, sendo assim, a razão, enquanto faculdade em si mesma prática, livre das peias das condições desta segunda ordem, pode legitimamente alargar a primeira e, conjuntamente, a nossa própria existência para além dos limites da experiência e da vida. A julgar pela analogia com a natureza dos seres vivos neste mundo, para os quais a razão tem de admitir, necessariamente, como princípio, que não se encontra nenhum órgão, nenhuma faculdade, nenhum impulso, por conseguinte nada de inútil ou desproporcionado ao seu uso, e portanto nada desprovido de finalidade, mas que tudo, pelo contrário, se adapta, rigorosamente, ao seu destino na vida, o homem, que sozinho pode conter o último fim de todas as coisas, deverá ser a única criatura que constitui exceção ao princípio. As suas disposições naturais, não só os talentos e impulsos para deles fazer uso, mas, sobretudo, a lei moral no seu íntimo, vão muito além da utilidade e benefícios, que deles poderia auferir nesta vida, porque essa lei ensina a prezar, acima de tudo, a simples consciência da reta intenção em detrimento de qualquer proveito, mesmo o dessa sombra que é a glória e o homem sente a vocação íntima de, pela sua conduta neste mundo, desprezando muitas vantagens, se tornar digno de um mundo melhor de que possui a ideia. Este argumento poderoso, nunca refutável, acompanhado por um conhecimento sempre crescente da finalidade em tudo quanto vemos em torno e pela contemplação da imensidade da criação, como também pela consciência de uma certa possibilidade ilimitada dos nossos conhecimentos e junto a um impulso correspondente, esse argumento fica sempre de pé, muito embora tenhamos de renunciar a conhecer a continuação necessária da nossa existência mediante um simples conhecimento teórico de nós mesmos.
A aparência dialética na psicologia racional assenta na confusão de uma ideia da razão (ideia de uma inteligência pura) com o conceito, a todos os títulos indeterminado, de um ser pensante em geral. Penso-me a mim próprio com vista a uma experiência possível, abstraindo de toda a experiência real e daí concluo que também posso ter consciência da minha existência, fora da experiência e das condições empíricas da mesma. Confundo, por conseguinte, a abstração possível da minha existência, empiricamente determinada, com a suposta consciência de uma existência possível do meu eu pensante isolado e julgo conhecer o que há em mim de substancial como sujeito transcendental, quando apenas tenho no pensamento a unidade da consciência, que é o fundamento de toda a determinação, considerada como simples forma de conhecimento.
A tarefa de explicar a união da alma e do corpo não pertence propriamente àquela psicologia de que aqui se trata, porquanto o seu propósito é também demonstrar a personalidade da alma fora desta união (depois da morte), sendo pois transcendente no sentido próprio do termo, embora se ocupe de um objeto da experiência, mas só na medida em que deixa de ser um objeto da experiência. Contudo, também na nossa doutrina se encontra resposta satisfatória para esta questão. A dificuldade suscitada por este problema consiste, como se sabe, na pressuposta heterogeneidade do objeto do sentido Interno (a alma) e dos objetos dos sentidos externos, visto que só o tempo pertence ao primeiro como condição formal da sua intuição, enquanto a dos últimos pressupõe também o espaço. Se considerarmos, porém, que ambas as espécies de objetos se não distinguem neste ponto intrinsecamente, mas só na medida em que um objeto aparece exteriormente ao outro e que, por conseguinte, aquele que, como coisa em si, é manifestação fenomênica da matéria, poderia talvez não ser de natureza tão heterogênea, a dificuldade desaparece e resta apenas saber como é possível, em geral, uma comunidade de substâncias, dificuldade esta cuja solução está totalmente fora do campo da psicologia e, como o leitor facilmente avaliará depois do que foi dito na Analítica sobre formas constitutivas e faculdades, também está, sem dúvida, fora do campo de todo o conhecimento humano.”


“A própria apercepção é o fundamento da possibilidade das categorias, as quais, por seu turno, apenas representam a síntese do diverso da intuição, na medida em que este diverso encontra a sua unidade na apercepção. A consciência de si próprio, em geral, é, assim, a representação daquilo que é a condição de toda a unidade, mas, em si mesmo, é incondicionado. Pode-se, por isso, dizer do eu pensante (da alma), que se pensa como substância, como simples, como numericamente idêntico em todo o tempo e como o correlato de toda a existência, correlato a partir do qual deve ser concluída toda a outra existência, que, em vez de se conhecer a si próprio pelas categorias, conhece as categorias e, mediante elas, todos os objetos na unidade absoluta da apercepção, portanto, por si mesmo. Ora, é bem evidente, que aquilo que devo pressupor para conhecer em geral um objeto, não o posso, por sua vez, conhecer como objeto e que o eu determinante (o pensamento) deve ser distinto do eu determinável (o sujeito pensante), como o conhecimento é distinto do objeto. Não obstante, nada é mais natural e mais sedutor do que a aparência, que nos faz tomar a unidade, na síntese dos pensamentos, por uma unidade percebida no sujeito desses pensamentos. Poder-se-ia chamar essa aparência a sub-repção da consciência hipostasiada.”


“A razão é a faculdade dos princípios.”


“Suponhamos que o próprio mundo seja um ser necessário, ou que haja nele um ser necessário; sendo assim, ou haveria na série das mudanças um começo, que seria absolutamente necessário, e, por conseguinte, sem causa, o que é contrário à lei dinâmica da determinação de todos os fenômenos no tempo; ou a própria série não teria qualquer começo e, embora contingente e condicionada em todas as suas partes, seria no todo absolutamente necessária e incondicionada, o que é contraditório em si, porque a existência de uma multiplicidade não pode ser necessária se nenhuma das suas partes possuir uma existência necessária em si.
Se admitirmos, em contrapartida, que há uma causa exterior ao mundo, absolutamente necessária, sendo esta o elemento supremo na série das causas das mudanças do mundo, ela daria começo à existência destas causas e da sua série*. Mas se assim fosse, deveria também começar a agir e a sua causalidade pertenceria ao tempo e, precisamente por isso, ao conjunto dos fenômenos, ou seja, ao mundo, e portanto, a própria a causa pão estaria fora do mundo, o que contraria a hipótese. Não há portanto no mundo nem fora dele (mas em ligação causal com ele) nenhum ser absolutamente necessário.”
*: A palavra começar é tomada em dois sentidos. O primeiro sentido é ativo, pois a causa inicia (infit) uma série de estados, como seu efeito. O segundo é passivo, pois a causalidade começa (fit) na própria causa. Aqui, do primeiro infiro o segundo.


“O senso comum se encontra assim num estado em que nem os mais sábios lhe levam qualquer vantagem. (...)
Além do mais, se para um filósofo é muito difícil admitir como princípio qualquer coisa que, perante si próprio, não possa justificar, e ainda menos, introduzir conceitos cuja realidade objetiva não possa entender, nada há de mais habitual para o entendimento comum. Este tem necessidade de qualquer coisa pela qual possa começar com confiança. A dificuldade de compreender essa suposição não o inquieta, porque (não sabendo o que é compreender) nem sequer lhe vem ao espírito e assim reputa conhecido o que, por um uso frequente, se lhe tornou familiar. Por fim, também o interesse especulativo desaparece perante o interesse prático e imagina saber aquilo que os seus temores ou as suas esperanças o levam a admitir ou a crer.”


“Portanto, se eu pudesse saber antecipadamente acerca de uma ideia cosmológica que, seja qual for o lado do incondicionado da síntese regressiva dos fenômenos para o qual se inclina, seria contudo ou demasiado grande ou demasiado pequena para todo o conceito do entendimento, compreenderia então que essa ideia, visto referir-se unicamente a um objeto da experiência que deve ser adequado a um possível conceito do entendimento, tem que ser totalmente vazia e destituída de sentido, porque não lhe corresponde esse objeto por muito que a ela o tente adaptar. E é este, com efeito, o caso de todos os conceitos cosmológicos que, por isso mesmo, enredam em inevitável antinomia a razão que a eles se prenda. Considerai, com efeito, o seguinte:
Se o espaço for infinito e ilimitado, é demasiado grande para qualquer conceito empírico possível. Se for finito e limitado é legítimo perguntardes ainda: o que determina esse limite? O espaço vazio não é um correlato das coisas, existente por si mesmo, nem uma condição em que podereis deter-vos, e muito menos uma condição empírica que constitua uma parte de uma experiência possível (pois quem poderia ter a experiência do absolutamente vazio?). Porém, a totalidade absoluta da síntese empírica exige sempre que o condicionado seja um conceito da experiência. Assim, pois, um mundo limitado é demasiado pequeno para o vosso conceito.
Segundo: Se todo o fenômeno no espaço (matéria) é constituído por um número infinito de partes, a regressão da divisão é sempre demasiado grande para o vosso conceito; e se a divisão do espaço deve terminar em qualquer dos seus membros (no simples), a regressão é demasiado pequena para a ideia do incondicionado. Pois esse membro deixará sempre lugar para uma regressão a um maior número de partes nele contidas.
Terceiro: Se admitis que tudo o que no mundo acontece é tão-só proveniente das leis da natureza, a causalidade da causa será sempre, por sua vez, algo que acontece e vos exige, necessariamente, a regressão a uma causa sempre mais elevada e, por conseguinte, o prolongamento indefinido da série de condições a parte priori. A simples natureza eficiente é, pois, demasiado grande para o vosso conceito na síntese dos acontecimentos do mundo.
Se escolherdes aqui e ali acontecimentos espontaneamente produzidos, ou seja, uma produção pela liberdade, persegue-vos a necessidade de buscar o porquê, segundo uma inelutável lei da natureza que vos compele a ultrapassar esse ponto em conformidade com a lei causal da experiência; encontrareis que tal totalidade da ligação é demasiado pequena para o vosso conceito empírico necessário.
Quarto: Se admitis um ser absolutamente necessário (quer seja o próprio mundo, ou qualquer coisa no mundo, ou a causa do mundo), situá-lo-eis num tempo infinitamente afastado de qualquer instante dado, porque, caso contrário, dependeria de uma outra existência mais antiga. Essa existência, porém, é então inacessível ao vosso conceito empírico e demasiado grande para que pudésseis jamais atingi-la mediante uma regressão continuada.
Se, pelo contrário, em vossa opinião, tudo quanto pertence ao mundo é contingente (quer como condicionado quer como condição), toda a existência que vos seja dada é demasiado pequena para o vosso conceito. Porque vos compelirá a procurar sempre outra existência de que essa é dependente.
Dissemos, em todos estes casos, que a ideia do mundo é demasiado grande ou demasiado pequena para a regressão empírica e, por conseguinte, para todo o conceito possível do entendimento. Porque não dissemos, invertendo os termos, que no primeiro caso o conceito empírico é sempre demasiado pequeno para a ideia e no segundo caso demasiado grande, atribuindo deste modo, por assim dizer, a culpa à regressão empírica em vez de acusar a ideia cosmológica de se afastar, por excesso ou por defeito, da sua meta, ou seja da experiência possível? O motivo foi este: a experiência possível é a única que pode conceder realidade aos nossos conceitos; sem ela todo o conceito é tão-só uma ideia sem verdade nem relação com um objeto. Eis porque o conceito empírico possível era o padrão pelo qual se deveria julgar a ideia, para saber se ela é uma simples ideia e um ser de razão ou se encontra no mundo o seu objeto. Porque só se diz de uma coisa que é demasiado grande ou demasiado pequena, relativamente a outra, quando é apenas por causa desta última que se toma e se deverá dispor à sua medida. Nos exercícios das antigas escolas dialéticas também se incluía este problema: se uma bola não entra por um orifício deverá dizer-se que a bola é demasiado grande ou que o orifício é demasiado pequeno? Neste caso era indiferente a formulação, porque não se sabia qual das duas coisas existia para a outra. Em contrapartida, não direis que um homem é demasiado comprido para o fato, direis que o fato é demasiado curto para o homem.
Somos levados pelo menos à fundada suspeita de que as ideias cosmológicas e com elas todas as afirmações sofísticas em conflito umas com as outras terão, possivelmente, por fundamento um conceito vazio e puramente imaginário da maneira como o objeto dessas ideias nos é dado, e tal suspeita pode já conduzir-nos ao caminho certo que nos fará descobrir a ilusão que durante tanto tempo nos extraviou.”

2 comentários:

Doney disse...

No livro segundo, “Dos raciocínios dialécticos da razão pura”, em seu capítulo III “O ideal da razão pura”, existem cinco seções particularmente interessantes, respectivamente:
3 - Dos argumentos da razão especulativa em favor da existência de um ser supremo / Só há três provas possíveis da existência de Deus para a razão especulativa
4 - Da impossibilidade de uma prova ontológica da existência de Deus
5 - Da impossibilidade de uma prova cosmológica da existência de Deus
6 - Da impossibilidade da prova físico-teológica
7 - Crítica de toda a teologia fundada em princípios especulativos da razão
Infelizmente tais trechos não poderão ser citados por conta do tamanho, mas fica aqui o registro de sua particular importância.

Arthur Jermyn S.A disse...

Jovem, sempre que fazer menção a um livro segue o modelo da livraria travessa ou as normas da ABNT. Sempre apresente o título original (se houver), a editora, a data de edição, o nome do tradutor (se estiver na ficha do livro) e o ano da primeira publicação. E se você espera que seus leitores leiam o livro, mencione onde eles podem encontrar a obra. Eu por exemplo, agora quero comprar esse livro, mas nem sei qual é a editora.
Segue site da livraria travessa, para você dar uma olhada no sistema de informação deles:
http://www.travessa.com.br/?fbclid=IwAR1jnVYWUmfDvHQ9lsaGCIfxqrO8qGZ06MeLllMofi8_zqu7a9oDpB8FLnc