Editora:
Imago
ISBN:
978-85-3120-985-7
Tradução:
Christiano Monteiro Oiticica e Vera Ribeiro
Opinião: O Mal-Estar na Civilização: ★★★★☆ / Outros trabalhos (Dostoievski e
o parricídio / Alguns sonhos de Descartes: uma carta a Maxime Leroy / O prêmio
Goethe / Tipos libidinais): ★★★☆☆
Páginas: 228
O Mal-Estar na Civilização
“O
que chamamos de felicidade no sentido mais restrito provém da satisfação (de
preferência, repentina) de necessidades represadas em alto grau, sendo, por sua
natureza, possível apenas como uma manifestação episódica. Quando qualquer
situação desejada pelo princípio do prazer se prolonga, ela produz tão-somente
um sentimento de contentamento muito tênue. Somos feitos de modo a só podermos
derivar prazer intenso de um contraste, e muito pouco de um determinado estado
de coisas.
Assim,
nossas possibilidades de felicidade sempre são restringidas por nossa própria
constituição. Já a infelicidade é muito menos difícil de experimentar. O
sofrimento nos ameaça a partir de três direções: de nosso próprio corpo,
condenado à decadência e à dissolução, e que nem mesmo pode dispensar o
sofrimento e a ansiedade como sinais de advertência; do mundo externo, que pode
voltar-se contra nós com forças de destruição esmagadoras e impiedosas; e,
finalmente, de nossos relacionamentos com os outros homens. O sofrimento que
provém dessa última fonte talvez nos seja mais penoso do que qualquer outro.
Tendemos a encará-lo como uma espécie de acréscimo gratuito, embora ele não possa
ser menos fatidicamente inevitável do que o sofrimento oriundo de outras
fontes.”
“O
eremita rejeita o mundo e não quer saber de tratar com ele. Pode-se, porém,
fazer mais do que isso; pode-se tentar recriar o mundo, em seu lugar construir
um outro mundo, no qual os seus aspectos mais insuportáveis sejam eliminados e
substituídos por outros mais adequados a nossos próprios desejos. Mas quem quer
que, numa atitude de desafio desesperado, se lance por este caminho em busca da
felicidade, geralmente não chega a nada. A realidade é demasiado forte para
ele. Torna-se um louco; alguém que, a maioria das vezes, não encontra ninguém
para ajudá-lo a tornar real o seu delírio. Afirma-se, contudo, que cada um de
nós se comporta, sob determinado aspecto, como um paranoico, corrige algum
aspecto do mundo que lhe é insuportável pela elaboração de um desejo e introduz
esse delírio na realidade. Concede-se especial importância ao caso em que a
tentativa de obter uma certeza de felicidade e uma proteção contra o sofrimento
através de um remodelamento delirante da realidade, é efetuada em comum por um
considerável número de pessoas. As religiões da humanidade devem ser
classificadas entre os delírios de massa desse tipo. É desnecessário dizer que
todo aquele que partilha um delírio jamais o reconhece como tal.”
“Nunca
nos achamos tão indefesos contra o sofrimento como quando amamos, nunca tão
desamparadamente infelizes como quando perdemos o nosso objeto amado ou o seu
amor.”
“A
felicidade, no reduzido sentido em que a reconhecemos como possível, constitui
um problema da economia da libido do indivíduo. Não existe uma regra de ouro
que se aplique a todos: todo homem tem de descobrir por si mesmo de que modo
específico ele pode ser salvo. Todos os tipos de diferentes fatores operarão a
fim de dirigir sua escolha. É uma questão de quanta satisfação real ele pode
esperar obter do mundo externo, de até onde é levado para tornar-se
independente dele, e, finalmente, de quanta força sente à sua disposição para
alterar o mundo, a fim de adaptá-lo a seus desejos. Nisso, sua constituição
psíquica desempenhará papel decisivo, independentemente das circunstâncias
externas. O homem predominantemente erótico dará preferência aos seus
relacionamentos emocionais com outras pessoas; o narcisista que tende a ser
autossuficiente, buscará suas satisfações principais em seus processos mentais
internos; o homem de ação nunca abandonará o mundo externo, onde pode testar
sua força. Quanto ao segundo desses tipos, a natureza de seus talentos e a parcela
de sublimação instintiva a ele aberta decidirão onde localizará os seus
interesses. Qualquer escolha levada a um extremo condena o indivíduo a ser
exposto a perigos, que surgem caso uma técnica de viver, escolhida como
exclusiva, se mostre inadequada.”
“Assim
como o negociante cauteloso evita empregar todo seu capital num só negócio,
assim também, talvez, a sabedoria popular nos aconselhe a não buscar a
totalidade de nossa satisfação numa só aspiração. Seu êxito jamais é certo,
pois depende da convergência de muitos fatores, talvez mais do que qualquer
outro, da capacidade da constituição psíquica em adaptar sua função ao meio
ambiente e então explorar esse ambiente em vista de obter um rendimento de
prazer. Uma pessoa nascida com uma constituição instintiva especialmente
desfavorável e que não tenha experimentado corretamente a transformação e a
redisposição de seus componentes libidinais indispensáveis às realizações
posteriores, achará difícil obter felicidade em sua situação externa, em
especial se vier a se defrontar com tarefas de certa dificuldade. Como uma
última técnica de vida, pelo que menos lhe trará satisfações substitutivas,
é-lhe oferecida a fuga para a enfermidade neurótica, fuga que geralmente efetua
quando ainda é jovem. O homem que, em anos posteriores, vê sua busca da
felicidade resultar em nada ainda pode encontrar consolo no prazer oriundo da
intoxicação crônica, ou então se empenhar na desesperada tentativa de rebelião
que se observa na psicose.
A
religião restringe esse jogo de escolha e adaptação, desde que impõe igualmente
a todos o seu próprio caminho para a aquisição da felicidade e da proteção
contra o sofrimento. Sua técnica consiste em depreciar o valor da vida e
deformar o quadro do mundo real de maneira delirante – maneira que pressupõe
uma intimidação da inteligência. A esse preço, por fixá-las à força num estado
de infantilismo psicológico e por arrastá-las a um delírio de massa, a religião
consegue poupar a muitas pessoas uma neurose individual. Dificilmente, porém,
algo mais. Existem, como dissemos, muitos caminhos que podem levar à felicidade passível de ser atingida pelos homens, mas
nenhum que o faça com toda segurança. Mesmo a religião não consegue manter sua
promessa. Se, finalmente, o crente se vê obrigado a falar dos ‘desígnios
inescrutáveis’ de Deus, está admitindo que tudo que lhe sobrou, como último
consolo e fonte de prazer possíveis em seu sofrimento, foi uma submissão
incondicional. E, se está preparado para isso, provavelmente poderia ter-se
poupado o détour que efetuou.”
“É
impossível desprezar o ponto até o qual a civilização é construída sobre uma
renúncia ao instinto, o quanto ela pressupõe exatamente a não-satisfação (pela
opressão, repressão, ou algum outro meio?) de instintos poderosos. Essa
‘frustração cultural’ domina o grande campo dos relacionamentos sociais entre
os seres humanos. Como já sabemos, é a causa da hostilidade contra a qual todas
as civilizações têm de lutar. (...) Não é fácil entender como pode ser possível
privar de satisfação um instinto. Não se faz isso impunemente. Se a perda não
for economicamente compensada, pode-se ficar certo de que sérios distúrbios
decorrerão disso.”
“O
trabalho psicanalítico nos mostrou que as frustrações da vida sexual são
precisamente aquelas que as pessoas conhecidas como neuróticas não podem
tolerar. O neurótico cria em seus sintomas satisfações substitutivas para si, e
estas ou lhe causam sofrimento em si próprias, ou se lhe tornam fontes de
sofrimento pela criação de dificuldades em seus relacionamentos com o meio
ambiente e a sociedade a que pertence. Esse último fato é fácil de compreender;
o primeiro nos apresenta um novo problema. A civilização, porém, exige outros
sacrifícios, além do da satisfação sexual.
Abordamos
a dificuldade do desenvolvimento cultural como sendo uma dificuldade geral de
desenvolvimento, fazendo sua origem remontar à inércia da libido, à falta de
inclinação desta para abandonar uma posição antiga por outra nova. Dizemos
quase a mesma coisa quando fazemos a antítese entre civilização e sexualidade
derivar da circunstância de o amor sexual constituir um relacionamento entre
dois indivíduos, no qual um terceiro só pode ser supérfluo ou perturbador, ao
passo que a civilização depende de relacionamentos entre um considerável número
de indivíduos. Quando um relacionamento amoroso se encontra em seu auge, não
resta lugar para qualquer outro interesse pelo ambiente; um casal de amantes se
basta a si mesmo; sequer necessitam do filho que têm em comum para torná-los
felizes. Em nenhum outro caso Eros revela tão claramente o âmago do seu ser, o
seu intuito de, de mais de um, fazer um único; contudo, quando alcança isso da
maneira proverbial, ou seja, através do amor de dois seres humanos, recusa-se a
ir além.
Até
aqui, podemos imaginar perfeitamente uma comunidade cultural que consista em
indivíduos duplos como este, que, libidinalmente satisfeitos em si mesmos, se
vinculem uns aos outros através dos elos do trabalho comum e dos interesses
comuns. Se assim fosse, a civilização não teria que extrair energia alguma da
sexualidade. Contudo, esse desejável estado de coisas não existe, nem nunca
existiu. A realidade nos mostra que a civilização não se contenta com as ligações
que até agora lhe concedemos. Visa a unir entre si os membros da comunidade
também de maneira libidinal e, para tanto, emprega todos os meios. Favorece
todos os caminhos pelos quais identificações fortes possam ser estabelecidas
entre os membros da comunidade e, na mais ampla escala, convoca a libido
inibida em sua finalidade, de modo a fortalecer o vínculo comunal através das
relações de amizade. Para que esses objetivos sejam realizados, faz-se
inevitável uma restrição à vida sexual. Não conseguimos, porém, entender qual
necessidade força a civilização a tomar esse caminho, necessidade que provoca o
seu antagonismo à sexualidade.”
“Se
a civilização impõe sacrifícios tão grandes, não apenas à sexualidade do homem,
mas também à sua agressividade, podemos compreender melhor porque lhe é difícil
ser feliz nessa civilização. Na realidade, o homem primitivo se achava em
situação melhor, sem conhecer restrições de instinto. Em contrapartida, suas
perspectivas de desfrutar dessa felicidade, por qualquer período de tempo, eram
muito tênues. O homem civilizado trocou uma parcela de suas possibilidades de
felicidade por uma parcela de segurança. Não devemos esquecer, contudo, que na
família primeva apenas o chefe desfrutava da liberdade instintiva; o resto
vivia em opressão servil. Naquele período primitivo da civilização, o contraste
entre uma minoria que gozava das vantagens da civilização e uma maioria privada
dessas vantagens era, portanto, levada a seus extremos. Quanto aos povos
primitivos que ainda hoje existem, pesquisas cuidadosas mostraram que sua vida
instintiva não é, de maneira alguma, passível de ser invejada por causa de sua
liberdade. Está sujeita a restrições de outra espécie, talvez mais severas do
que aquelas que dizem respeito ao homem moderno.
Quando,
com toda justiça, consideramos falho o presente estado de nossa civilização,
por atender de forma tão inadequada às nossas exigências de um plano de vida
que nos torne felizes, e por permitir a existência de tanto sofrimento, que
provavelmente poderia ser evitado; quando, com crítica impiedosa, tentamos pôr
à mostra as raízes de sua imperfeição, estamos indubitavelmente exercendo um
direito justo, e não nos mostrando inimigos da civilização. Podemos esperar
efetuar, gradativamente, em nossa civilização alterações tais, que satisfaçam
melhor nossas necessidades e escapem às nossas críticas. Mas talvez possamos
também nos familiarizar com a ideia de existirem dificuldades, ligadas à
natureza da civilização, que não se submeterão a qualquer tentativa de reforma.
Além e acima das tarefas de restringir os instintos, para as quais estamos
preparados, reivindica nossa atenção o perigo de um estado de coisas que
poderia ser chamado de ‘pobreza psicológica dos grupos’. Esse perigo é mais
ameaçador onde os vínculos de uma sociedade são principalmente constituídos
pelas identificações dos seus membros uns com os outros, enquanto que indivíduos
do tipo de um líder não adquirem a importância que lhes deveria caber na
formação de um grupo. O presente estado cultural dos Estados Unidos da América
nos proporcionaria uma boa oportunidade para estudar o prejuízo à civilização,
que assim é de se temer. Evitarei, porém, a tentação de ingressar numa crítica
da civilização americana; não desejo dar a impressão de que eu mesmo estou
empregando métodos americanos.”
“São
a fome e o amor que movem o mundo.” (poeta-filósofo Schiller)
“De
início, portanto, mau é tudo aquilo que, com a perda do amor, nos faz sentir
ameaçados. Por medo dessa perda, deve-se evitá-lo.”
“Nesse
segundo estágio de desenvolvimento, a consciência apresenta uma peculiaridade
que se achava ausente do primeiro e que não é mais fácil de explicar, pois
quanto mais virtuoso um homem é, mais severo e desconfiado é o seu
comportamento, de maneira que, em última análise, são precisamente as pessoas
que levaram mais longe a santidade as que se censuram da pior pecaminosidade.
Isso significa que a virtude perde direito a uma certa parte da recompensa
prometida; o ego dócil e continente não desfruta da confiança de seu mentor, e
é em vão que se esforça, segundo parece, por adquiri-la. Far-se-á imediatamente
a objeção de que essas dificuldades são artificiais, e dir-se-à que uma
consciência mais estrita e mais vigilante constitui precisamente a marca distintiva
de um homem moral. Além disso, quando os santos se chamam a si próprios de
pecadores, não estão errados – considerando-se as tentações à satisfação
instintiva a que se encontram expostos em grau especialmente alto –, já que,
como todos sabem, as tentações são simplesmente aumentadas pela frustração
constante, ao passo que a sua satisfação ocasional as faz diminuir, ao menos
por algum tempo. O campo da ética, tão cheio de problemas, nos apresenta outro
fato: a má sorte – isto é, a frustração externa – acentua grandemente o poder
da consciência no superego. Enquanto tudo corre bem com um homem, a sua
consciência é lenitiva e permite que o ego faça todo tipo de coisas;
entretanto, quando o infortúnio lhe sobrevém, ele busca sua alma, reconhece sua
pecaminosidade, eleva as exigências de sua consciência, impõe-se abstinência e
se castiga com penitências. Povos inteiros se comportaram dessa maneira, e
ainda se comportam. Isso, contudo, é facilmente explicado pelo estágio infantil
original da consciência, o qual, como vemos, não é abandonado após a introjeção
no superego, persistindo lado a lado e por trás dele. O Destino é encarado como
um substituto do agente parental. Se um homem é desafortunado, isso significa
que não é mais amado por esse poder supremo, e, ameaçado por essa falta de
amor, mais uma vez se curva ao representante paterno em seu superego,
representante que, em seus dias de boa sorte estava pronto a desprezar. Esse
fato se torna especialmente claro quando o Destino é encarado segundo o sentido
estritamente religioso de nada mais ser do que uma expressão da Vontade Divina.
O povo de Israel acreditava ser o filho favorito de Deus e, quando o grande Pai
fez com que infortúnios cada vez maiores desabassem sobre seu povo, jamais a
crença em Seu relacionamento com eles se abalou, nem o Seu poder ou justiça foi
posto em dúvida. Pelo contrário, foi então que surgiram os profetas, que
apontaram a pecaminosidade desse povo, e, de seu sentimento de culpa,
criaram-se os mandamentos super estritos de sua religião sacerdotal. É digno de
nota o comportamento tão diferente do homem primitivo. Se ele se defronta com
um infortúnio, não atribui a culpa a si mesmo, mas a seu fetiche, que
evidentemente não cumpriu o dever, e dá-lhe uma surra, em vez de se punir a si
mesmo. Conhecemos, assim, duas origens do sentimento de culpa: uma que surge do
medo de uma autoridade, e outra, posterior, que surge do medo do superego. A
primeira insiste numa renúncia às satisfações instintivas; a segunda, ao mesmo
tempo em que faz isso exige punição, de uma vez que a continuação dos desejos
proibidos não pode ser escondida do superego. Aprendemos também o modo como a
severidade do superego – as exigências da consciência – deve ser entendida.
Trata-se simplesmente de uma continuação da severidade da autoridade externa, à
qual sucedeu e que, em parte, substituiu. Percebemos agora em que relação a
renúncia ao instinto se acha com o sentimento de culpa. Originalmente, renúncia
ao instinto constituía o resultado do medo de uma autoridade externa:
renunciava-se às próprias satisfação para não se perder o amor da autoridade.
Se se efetuava essa renúncia, ficava-se, por assim dizer, quite com a
autoridade e nenhum sentimento de culpa permaneceria. Quanto ao medo do
superego, porém, o caso é diferente. Aqui, a renúncia instintiva não basta,
pois o desejo persiste e não pode ser escondido do superego. Assim, a despeito
da renúncia efetuada, ocorre um sentimento de culpa. Isso representa uma grande
desvantagem econômica na construção de um superego ou, como podemos dizer, na
formação de uma consciência. Aqui, a renúncia instintiva não possui mais um
efeito completamente liberador; a continência virtuosa não é mais recompensada
com a certeza do amor. Uma ameaça de infelicidade externa – perda de amor e castigo
por parte da autoridade externa – foi permutada por uma permanente infelicidade
interna, pela tensão do sentimento de culpa.”
“Aqui,
talvez, nos possamos alegrar por termos assinalado que, no fundo, o sentimento
de culpa nada mais é do que uma variedade topográfica da ansiedade; em suas
fases posteriores, coincide completamente com o medo do superego. E as relações da ansiedade com a consciência
apresentam as mesmas e extraordinárias variações. A ansiedade está sempre
presente, num lugar ou outro, por trás de todo sintoma; em determinada ocasião,
porém, toma, ruidosamente, posse da totalidade da consciência, ao passo que, em
outra, se oculta tão completamente, que somos obrigados a falar de ansiedade
inconsciente, ou, se desejamos ter uma consciência psicológica mais clara –
visto a ansiedade ser, no primeiro caso, simplesmente um sentimento –, das
possibilidades de ansiedade. Por conseguinte, é bastante concebível que
tampouco o sentimento de culpa produzido pela civilização seja percebido como
tal, e em grande parte permaneça inconsciente, ou apareça como uma espécie de mal-estar, uma insatisfação, para a qual
as pessoas buscam outras motivações. As religiões, pelo menos, nunca
desprezaram o papel desempenhado na civilização pelo sentimento de culpa.
Ademais – ponto que deixei de apreciar em outro trabalho –, elas alegam redimir
a humanidade desse sentimento de culpa, a que chamam de pecado. Da maneira pela
qual, no cristianismo, essa redenção é conseguida – pela morte sacrificial de
uma pessoa isolada, que, desse modo, toma sobre si mesma a culpa comum a todos
–, conseguimos inferir qual pode ter sido a primeira ocasião em que essa culpa
primária, que constitui também o primórdio da civilização, foi adquirida.”
“Os
sintomas neuróticos são, em sua essência, satisfações substitutivas para
desejos sexuais não realizados. No decorrer de nosso trabalho analítico,
descobrimos, para nossa surpresa, que talvez toda neurose oculte uma quota de
sentimento inconsciente de culpa, o qual, por sua vez, fortifica os sintomas,
fazendo uso deles como punição. Agora parece plausível formular a seguinte
proposição: quando uma tendência instintiva experimenta a repressão, seus
elementos libidinais são transformados em sintomas e seus componentes
agressivos em sentimento de culpa.”
“Assim
como um planeta gira em torno de um corpo central enquanto roda em torno de seu
próprio eixo, assim também o indivíduo humano participa do curso do
desenvolvimento da humanidade, ao mesmo tempo que persegue o seu próprio
caminho na vida. Para nossos olhos enevoados, porém, o jogo de forças nos céus
parece fixado numa ordem que jamais muda; no campo da vida orgânica, ainda
podemos perceber como as forças lutam umas com as outras e como os efeitos desse
conflito estão em permanente mudança. Assim também as duas premências, a que se
volta para a felicidade pessoal e a que se dirige para a união com os outros
seres humanos, devem lutar entre si em todo indivíduo, e assim também os dois
processos de desenvolvimento, o individual e o cultural, têm de colocar-se numa
oposição hostil um para com o outro e disputar-se mutuamente a posse do
terreno.”
“Os
juízos de valor do homem acompanham diretamente os seus desejos de felicidade,
e por conseguinte, constituem uma tentativa de apoiar com argumentos as suas
ilusões.”
Dostoievski e o parricídio
“O
homem moral é aquele que reage à tentação tão logo a sente em seu coração, sem
submeter-se a ela. Um homem que alternadamente peca e depois, em seu remorso,
erige altos padrões morais, fica exposto à censura de tornar as coisas fáceis
demais para si. Não alcançou a essência da moralidade, a renúncia, pois a
conduta moral de vida é um interesse humano prático. Faz-nos lembrar dos
bárbaros das grandes migrações, que matavam e faziam penitência por matarem,
até que a penitência se transformou numa técnica real para permitir que o
homicídio fosse cometido. Ivan, o Terrível, comportava-se exatamente desse
modo; na verdade, essa transigência com a moralidade constitui um traço russo
característico.”
“A
neurose, afinal de contas, é apenas um indício de que o ego não conseguiu fazer
uma síntese, e de que, ao tentar fazê-la, perdeu sua unidade.”
“O
parricídio de acordo com uma conceituação bem conhecida, é o crime principal e
primevo da humanidade, assim como do indivíduo. (Ver meu Totem e Tabu, 1912-13.) É, em todo caso, a fonte
principal do sentimento de culpa, embora não saibamos se a única; as pesquisas
ainda não conseguiram estabelecer com certeza a origem mental da culpa e da
necessidade de expiação. Mas não lhe é necessário ser a única. A situação
psicológica é complicada e exige elucidação. O relacionamento de um menino com
o pai é, como dizemos, ‘ambivalente’. Além do ódio que procura livrar-se do pai
como rival, uma certa medida de ternura por ele também está habitualmente presente.
As duas atitudes mentais se combinam para produzir a identificação com o pai; o
menino deseja estar no lugar do pai porque o admira e quer ser como ele, e
também por desejar colocá-lo fora do caminho. Todo esse desenvolvimento se
defronta com um poderoso obstáculo. Em determinado momento, a criança vem a
compreender que a tentativa de afastar o pai como rival seria punida por ele
com a castração. Assim, pelo temor à castração – isto é, no interesse de
preservar sua masculinidade – abandona seu desejo de possuir a mãe e livrar-se
do pai. Na medida em que esse desejo permanece no inconsciente, constitui a
base do sentimento de culpa. Acreditamos que o que aqui descrevemos, são
processos normais, o destino normal do chamado ‘complexo de Édipo’.”
O prêmio Goethe
“O
trabalho de minha vida se dirigiu a um só objetivo. Observei os mais sutis
distúrbios da função mental em pessoas saudáveis e enfermas e procurei inferir
– ou, se preferirem, adivinhar -, a partir de sinais desse tipo, como o
aparelho que serve a essas funções é construído e quais as forças concorrentes
e mutuamente oponentes que nele se acham em ação. O que nós – eu, meus amigos e
colaboradores – conseguimos aprender seguindo esse caminho pareceu-nos de
importância para a construção de uma ciência mental que torna possível
compreender tanto os processos mentais normais quanto os patológicos como
partes do mesmo curso natural de eventos.”
Tipos libidinais
“Quando,
passamos em revista toda a gama de motivos para se afastar da mãe que a análise
traz à luz - que ela falhou em fornecer à menina o único ou órgão genital
correto, que não a amamentou o suficiente, que a compeliu a partilhar o amor da
mãe com outros, que nunca atendeu às expectativas de amor da menina, e,
finalmente, que primeiro despertou a sua atividade sexual e depois a proibiu –,
todos esses motivos, não obstante, parecem insuficientes para justificar a
hostilidade final da menina. Alguns deles decorrem inevitavelmente da natureza
da sexualidade infantil; outros aparecem como racionalizações imaginadas
posteriormente, para explicar a mudança incompreendida no sentimento. Talvez o
fato real seja que a ligação à mãe está fadada a perecer, precisamente por ter
sido a primeira e tão intensa, tal como frequentemente se pode ver acontecer
nos primeiros casamentos de mulheres jovens, que ingressaram neles quando
estavam mais apaixonadamente amorosas. Em ambas as situações, a atitude de amor
provavelmente passa para a de pesar pelos inevitáveis desapontamentos e pela
acumulação de ocasiões para a agressão. Via de regra, os segundos casamentos se
mostram muito melhores.
Não
podemos chegar ao ponto de afirmar que a ambivalência de catexias emocionais
seja uma lei universalmente válida, e que seja absolutamente impossível sentir
grande amor por uma pessoa sem que esse amor seja acompanhado por um ódio
talvez igualmente grande, ou vice-versa. Sem dúvida, os adultos normais
conseguem separar essas duas atitudes uma da outra, e não estão obrigados a
odiar seus objetos amorosos ou a amar seus inimigos tanto quanto a odiá-los.
Isso porém, parece resultar de desenvolvimentos posteriores. Nas primeiras
fases da vida erótica, a ambivalência é evidentemente a regra. Não poucas
pessoas retêm esse traço arcaico durante toda sua vida. É característico dos
neuróticos obsessivos que, em seus relacionamentos objetais, o amor e o ódio se
contrabalancem mutuamente. Também nas raças primitivas podemos dizer que a
ambivalência predomina. Concluiremos, então, que a intensa ligação da menina à
mãe é fortemente ambivalente, sendo precisamente em consequência dessa
ambivalência que (com a assistência dos outros fatores que aduzimos) sua
ligação se afasta à força da mãe mais uma vez, isto é, em consequência de uma
característica geral da sexualidade infantil.”
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