Editora: InterSaberes
ISBN: 978-85-8212-364-5
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 204
Sinopse: Ao
retratar os principais conceitos e problemas que envolvem as concepções de
história na perspectiva filosófica, esta obra visa reunir, brevemente, alguns
dos filósofos que contribuíram para analisar esse tema. De Santo Agostinho a
Vico, de Kant a Hegel, passando pelas considerações iluministas até chegar a
Marx e Walter Benjamin, o leitor é convidado a captar o saber histórico como
instrumento para entender o nosso tempo e, assim, poder refletir sobre o atual
horizonte histórico em que estamos inseridos. Aqui se apresentam indagações que
possibilitarão uma compreensão mais profunda do real significado da história,
levando o leitor à reflexão sobre a vida dos homens em sociedade, sobre o que
somos e fazemos e, sobretudo, sobre como modicamos ou influenciamos a história
e somos influenciados por ela.
“A visão agostiniana não está preocupada com
questões metodológicas acerca do estatuto do conhecimento histórico, ou seja,
Agostinho não investiga os fundamentos da história como disciplina teórica nem
está interessado no modo como se escreve a história; na verdade, sua
preocupação é fornecer uma resposta para o problema do sentido da história
universal. Nesse caso, diferentemente do que acontecia no mundo pagão, a
história não se resume a narrativas que pertencem aos contextos isolados desta
ou daquela nação, mas ganha contornos mais amplos, podendo ser vista como o
palco em que se desenrola o drama de toda a humanidade. Na visão teológica
agostiniano, a história é definida nos termos de um progresso espiritual, no
qual por trás dos acontecimentos, aparentemente irracionais e desconexos, atravessados
por guerras e catástrofes, há uma coerência e um sentido que só podem ser revelados
peta fé, nunca exclusivamente pela razão humana.”
“Conforme argumenta Pierre Bayle, citado por
Cassirer (A filosofia do iluminismo, 1994,
p. 281):
todos os que conhecem as leis da história estarão de
acordo que um historiador, se cumprir fielmente suas funções, deve despojar-se
do espírito de adulação e de maledicência e colocar-se o mais possível na
posição de um estoico, a quem nenhuma paixão agita. Insensível a todo o resto,
só deve estar atento para os interesses da verdade, sacrificando a essa o
ressentimento de uma injúria, a lembrança de um benefício e até mesmo o amor à
pátria. Deve esquecer que está num certo país, que foi instruído numa certa
comunhão, que é devedor de gratidão a este ou aquele, que tais e tais são seus
progenitores ou seus amigos.
O que podemos observar, porém, é que Bayle
tem em vista apenas a história considerada sob o viés da crítica
historiográfica, ou seja, da história entendida como narrativa que obedece a
normas rigorosas para a reconstrução do material histórico (fontes). Bayle em
nada nos adverte a respeito de um processo histórico, ou seja, de um processo
racional que recobre o curso das coisas humanas como um todo, configurando-lhe
um sentido. Desse ponto de vista, a realidade histórica se apresenta a Bayle,
conforme esclarece Cassirer (1994, p. 275), como um “amontoado monstruoso de
escombros e faltam todos os meios para se assenhorear dessa massa de materiais”.
Desse modo, Bayle recusa a possibilidade de uma lógica no interior dos fatos
históricos, que são vistos como um agregado de escombros que o cartesianismo, em
sua seriedade, rigor, transparência discursiva, coerência e unidade, sempre
rejeitou. Mas é preciso notar que Bayle é impedido de seguir na direção de uma
visão filosófica da história não apenas devido a questões de ordem
metodológica, mas em razão de ele ter uma visão cética e pessimista, que o
afasta da possibilidade de descobrir na história um plano coerente, um sentido
que permita a verificação de um todo racionalmente organizado.
Na concepção de Bayle, se examinarmos os
fatos de frente, sem preconceitos, uma simples olhada para a história real da
humanidade é mais do que suficiente para nos curarmos de todas as especulações e
construções totalizantes, ensinando-nos que essa história nunca foi outra coisa
senão um rosário de crimes e desgraças do gênero humano. Para Bayle, citado por
Cassirer (1994, p. 269-281), quanto mais dirigirmos um olhar lúcido para a
descrição de um fato singular, mais leremos motivos para renunciar ao
conhecimento do todo e reduzir a nada nossa esperança de compreensão de um
sentido total da história. Apesar de não acreditar que possamos encontrar um
sentido para a história, Bayle colocou uma importante questão para o
historiador ao mostrar que a remissão aos fatos não é uma atitude simples. Em
vez de estes serem tomados, de modo direto e apressado, como a fonte do conhecimento
histórico, a atitude do historiador perante os fatos deve ser cautelosa. Ele
deve tomar todo o cuidado para que ele mesmo, com seus ideais, educação e
preconceitos, não interprete à sua maneira os fatos históricos que estão sendo
investigados.”
“Segundo Giambattista Vico, ainda que muitas vezes o material
historiográfico tenha se mostrado fragmentário, obscuro e parcial, ele pode servir
aos propósitos de uma ciência que possui mais coerência do que as ciências que
investigam a natureza, como é o caso da física e da astronomia. Isso porque, para
Vico, os homens são os autores de sua própria história e por isso podem
conhecê-la por dentro, investigando seus desdobramentos no tempo, ao passo que
a natureza só pode ser conhecida de modo superficial pela mente humana, pois
não foi feita pelo homem.”
“Vico foi o primeiro autor a reconhecer a
importância dos mitos para a história e mostrar que aquilo que aparentemente
não passa de lenda é uma forma de expressão reveladora da mentalidade mais
arcaica. Assim, a figura de Hércules, por exemplo, não representa um indivíduo
de qualidades excepcionais, mas o modo como os povos primitivos, que ainda não pensavam
em termos racionais, podiam expressar-se quando queriam significar o mundo do
trabalho. Do mesmo modo, o herói Ulisses não é uma figura lendária de especial
sabedoria, mas encarna o tipo de mentalidade astuciosa, desenvolvida na época
em que floresceram, na Grécia, as grandes cidades e o mundo do comércio. Nesse
sentido, os mitos expressam uma “verdade”, não são simples obras de ficção. Só muito
mais tarde, na fase humana, ou racional, é que os mitos assumem um caráter
lendário, de ficção, de narrativas impróprias feitas para iludir e enganar os
homens. Na sua origem, eles não são nada disso.
É interessante observar, no entanto, que Vico
não acredita que as formas expressivas de caráter mítico de uma sociedade
primitiva desaparecem ou são superadas definitivamente com o advento da razão, como
se o progresso estivesse justificado para sempre. Ao contrário, tanto os traços
positivos quanto os aspectos negativos da vida arcaica ainda perduram na
história. Assim, o temor dos deuses e as religiões mais diversas acabam sempre
reaparecendo de diferentes maneiras no curso que percorrem as nações; do mesmo
modo, a capacidade de imaginar mitos permanece presente, de alguma forma, na
mentalidade dos povos, que continuam criando lendas e inventando narrativas que
não podem ser ignoradas por quem deseja escrever a história. Por outro lado,
nada garante que uma razão formal pode livrar completamente os homens da sua
condição natural, como mostra a recorrência da barbárie, do medo, da
superstição e de seus males ao longo das épocas.”
“Para Voltaire, o trabalho do historiador não
é narrar tudo, todos os detalhes. Se fosse assim, diz ele, a história se tornaria
algo tedioso demais. O historiador deve se ater àquilo que possa contribuir
para que ele capte o espírito de um povo ou de uma época. O que ele quer dizer
com isso? Que o historiador deve tentar captar aquilo que caracteriza um povo,
aquilo que o torna particular e distinto dos demais. Daí porque Voltaire
aparece como um autor importante para a historiografia moderna – ele se
preocupou em mostrar que esta tarefa de captar o espírito de um povo deve levar
em conta inúmeros aspectos da vida em sociedade: a religião, a língua, o clima,
as leis e o governo, bem como os costumes em geral.
O historiador deve também ter muito cuidado
com suas fontes e documentos. Quando possível, deve comparar testemunhos
diferentes e buscar mais de uma perspectiva sobre o evento. A preocupação que Bayle
tinha com os fatos é compartilhada por Voltaire, mesmo que hoje suas narrativas
nos pareçam algumas vezes demasiado frágeis em termos documentais e muito
parciais quanto ao sentido e à importância dos eventos. Ademais, o historiador
deve evitar as fábulas. Aqui está um ponto normalmente criticado na perspectiva
de Voltaire: ele seria incapaz de perceber que as fábulas e os mitos têm valor
histórico. Algumas vezes ele chega a narrar como um mito pode ter surgido, como
algum elemento religioso pode ter uma história, mas julga essas narrativas como
algo negativo, como algo distante da razão. Todo o passado é medido pelo crivo
da razão; assim, mitos e fábulas são relegados ao âmbito do irracional e do
absurdo. Será apenas a partir do desenvolvimento da antropologia, da sociologia
e do historicismo, inaugurado mais tarde pelos alemães, leitores de Vico, que
as fábulas e os mitos ganharão importância para a história.”
“Além da diferença entre ser e dever ser, entre
o fato histórico e a ideia de história, Kant lança mão de outra distinção muito
importante, qual seja: o homem não pode ser visto simplesmente como uma criatura
totalmente racional nem como um animal que se orienta por seus próprios
instintos, paixões e interesses particulares. Na verdade, segundo o filósofo, o
homem participaria de dois mundos: o mundo sensível, no qual ele segue suas
paixões, e o mundo inteligível ou racional, no qual, de acordo com o princípio
da autonomia e da liberdade da vontade, ele dá fins para si mesmo, podendo
aperfeiçoar-se moralmente e não agir simplesmente com base em seus instintos.
Como os homens, de um ponto de vista factual, não agem moralmente nem seguem
planos estabelecidos, Kant pretende mostrar que há, sim, um plano oculto ou
secreto por trás das ações humanas, o que permitiria ver a história como um
sistema, uma espécie de organismo em que as partes estão naturalmente ligadas,
de modo que, por mais que as ações humanas pareçam sem sentido, haveria um
progresso sempre rumo ao melhor.
De modo resumido, o argumento de Kant (Ideia de uma história universal de um ponto
de vista cosmopolita, 2003) é o seguinte:
• É impossível falar de um sentido da
história se ficarmos apenas no nível dos indivíduos e suas ações particulares,
mas é perfeitamente possível supor um sentido na história do ponto de vista do
desenvolvimento da espécie humana como um todo.
• Haveria um plano secreto na própria
natureza que, deixando os homens agirem livremente, buscando somente o que lhes
interessa, acaba por levá-los a uma meta, objetivo ou fim racional mais
elevado.
Em outros termos, por trás dos impulsos
naturais, como a inveja competitiva, o desejo de possuir e dominar dos
indivíduos que pensam apenas em si mesmos e nunca no outro, haveria a
necessidade de se estabelecer a ordem; caso contrário, os homens se destruiriam
uns aos outros numa guerra sem fim. Surge daí a ideia de associação política, a
necessidade de viver em comunidade, de se instaurar a paz entre os indivíduos,
que leva, necessariamente, à formação dos Estados. Estes, por sua vez, também
competem entre si, dando origem a guerras e discórdias; todavia, são forçados
naturalmente a pôr um limite nessas competições e passam a associar-se em ligas
de nações, assumindo, assim, um ponto de vista cosmopolita, quer dizer, um
ponto de vista de uma comunidade política universal.”
“Coube ao filósofo alemão Georg W. F. Hegel
(1770-1831) esquadrinhar o problema dessa tensão entre a imposição da lei
externa e a liberdade interna do indivíduo, entre uma justiça meramente formal
e a autonomia do sujeito. Segundo Hegel, tendo em vista o desenvolvimento da
modernidade, é complicado pensar uma liberdade de ação focada exclusivamente no
indivíduo isolado, pois “ele nunca deixa de fazer parte, para qualquer lado que
se volte, de uma ordem social estabelecida, e longe de ser uma representação
total, individual e vivente desta sociedade, não passa de um membro dela com
possibilidades muito limitadas” (Hegel, Estética,
1996, p. 204). O filósofo quis dizer com isso que, na modernidade, é inevitável
pensarmos o indivíduo como uma peça dentro da máquina estatal e que, se nos fixarmos
apenas na vontade do indivíduo considerado isoladamente, aí, sim, teremos uma
visão abstrata e parcial das coisas, pois com o desenvolvimento do Estado de
direito não há mais espaço para uma liberdade que parta espontaneamente do
indivíduo e se cumpra integralmente nele. Ao contrário, nossas ações estão
circunscritas num contexto. Assim, só somos livres, por exemplo, dentro dos
limites prescritos pela lei. Com efeito, no âmbito da burocracia estatal
moderna, “quando um representante da justiça se comporta e age como lhe exigem
a função e o dever, não faz mais do que cumprir uma obrigação determinada de acordo
com a ordem estabelecida pelo direito e pela lei” (Hegel, 1996, p. 205). Como
pensar, então, uma forma de sociabilidade que garanta a autonomia do sujeito (a
liberdade) e, ao mesmo tempo, permita o pleno desenvolvimento da humanidade em
seu conjunto?
Kant havia dito que os homens são racionais,
autônomos, porque dão fins a si mesmos e agem conforme o dever que a razão
prescreve. Mas como conciliar os fins racionais do Estado moderno se nele o
indivíduo nunca é absolutamente livre, se sua liberdade aparentemente é sempre
limitada e parcial? A resposta de Hegel retoma de Kant a ideia de que o homem
não pode ser livre sozinho, de que ele vive com seus pares e de que o
desenvolvimento da autonomia do sujeito só é possível nos limites de uma
sociedade organizada. Mas, ao contrário de Kant, cuja filosofia da história,
como vimos, se apresenta sob a forma de um dever ser, como uma ideia da razão,
em Hegel (1996), ao contrário, a própria razão vai tomando forma concreta na
história humana. Se Kant pensa a história a partir da construção do reino da
moralidade, isto é, das ações morais feitas conforme a autonomia do sujeito, situando
esse plano de moralidade no âmbito do dever ser, Hegel, ao contrário, procura
trazer a razão para o plano da efetividade histórica. Nesse sentido, ele supera
a distinção kantiana entre ser e dever ser, mostrando que a racionalidade vai
se cumprindo, de fato, em cada fase da história do espírito humano, no seu
desdobrar-se. A liberdade não é, pois, uma ideia situada no infinito de uma
história apenas possível, tampouco se encontra apenas na interioridade do
sujeito isolado; ao contrário, ela vai se moldando em instituições objetivas,
reais, concretas, como a família, a sociedade civil e o Estado, absorvendo,
assim, os indivíduos tomados isoladamente num processo de caráter universal.”
“Ora, segundo Hegel, nada fica completamente
perdido na história, pois esta não é vista como oposição radical entre os polos
opostos da vida e da morte, da beleza e da ruína, do ser e do não ser e é,
antes de tudo, processo, devir, o desdobrar-se da razão no tempo. É justamente
a isso que Hegel chama de dialética,
a busca de reunir num todo processual o que parece fragmentário e solto na
história. Assim, a filosofia da história de Hegel pode ser vista pelo modo como
a razão vai constituindo o domínio do
espírito em diferentes momentos. O que Hegel chama de domínio do espírito tem semelhança com a distinção que Vico havia
estabelecido entre natureza e história. Hegel parte da mesma distinção: “o
reino do espirito compreende tudo que é produzido pelo homem” (Hegel, La raison dans l’historie, 1965, p. 71).
Surge, assim, o mundo da cultura, dos artefatos, dos feitos humanos, de tudo
aquilo que pode ser visto como tendo um sentido ou significado, posto ser produzido
com intenção humana, isto é, com liberdade. Segundo Hegel, o espírito se define
justamente por uma atividade livre situada acima das determinações inconscientes
da natureza. Liberdade é aqui,
justamente, atividade, superação: “a liberdade do espírito não é, pois, uma
existência imóvel, mas uma negação constante de tudo que contesta a liberdade
[...]. As coisas naturais não são por si mesmas, por isso não são livres”
(Hegel, 1965, p. 76). O espírito, ao contrario, “é seu próprio produto, ele é
seu começo e seu fim”. Isso equivale a dizer que o espírito é livre porque tem
consciência de sua própria atividade, mas, para saber-se livre, o espírito deve
experimentar a sua própria
liberdade, o que é o mesmo que dizer que “é somente a experiência da liberdade
que libera o espírito” (Hegel, 1965, p. 76). Numa palavra, o espírito humano só
se reconhece livre na história, pois ele próprio é história, processo, devir. A
liberdade é, assim, algo que se conquista na história concretamente, não algo
que nasce de uma dádiva divina, ou de uma mera visão contemplativa e estática
do universo, nem deve ser confundida com as ações arbitrárias de um indivíduo isolado.
É preciso dizer, portanto, que o domínio do
espírito de que fala Hegel “não é aquele de um indivíduo humano singular”
(Hegel, 1965, p. 80). Para ele, “é verdade que o espírito é essencialmente
indivíduo; mas, no elemento da história universal, não temos de levar em conta as
pessoas reduzidas à sua singularidade particular”. Na história considerada sob
uma perspectiva filosófica, o espirito é um indivíduo ao mesmo tempo universal
e determinado, a saber: um povo. É o espírito do povo (Volksgeist) que deve ser levado em conta pela consideração filosófica
da história; todavia, os povos são diversos, de modo que o grau de liberdade de
um pode ser medido pelo grau de apreensão que ele faz de si mesmo no seu
desdobrar-se temporal. É dentro desse elemento, também, que deve ser encarado o
certo nível de consciência que o indivíduo tem de si mesmo, bem como dos seus
limites históricos. Daí os infortúnios de um indivíduo que perde a consciência
do seu papel na história, que fica, por assim dizer, deslocado do contexto. Esse
é o caso de Dom Quixote, que deseja reviver os antigos valores da cavalaria da
Idade Média, ou seja, os ideais de justiça baseados nas relações pessoais, como
o favor e a amizade, não percebendo que um novo tempo surgiu (o tempo do Estado
moderno), uma época que converteu a antiga forma de vida em ruína, mas abriu
uma nova etapa no desenvolvimento do espírito humano.
Neste ponto, podemos perceber claramente por
que o verdadeiro sujeito da história não é, para Hegel, o indivíduo. É que este
sempre age na história tendo em vista seus próprios interesses, seguindo suas próprias
paixões. Todavia, para se revelar o sentido da história, é preciso admitir um
sujeito agente, ativo, criador. A questão é que o indivíduo, tomado isoladamente,
não pode ser esse sujeito. O significado do curso da história ultrapassa sempre
a ação dos indivíduos. Hegel admite que os interesses e as paixões são a fonte
ou o motor da história, o que aparentemente levaria a pensar na falta de
sentido ou na “desrazão” da história. Entretanto, há para o filósofo um
verdadeiro sujeito agindo sobre as costas ou ações dos homens isolados,
servindo-se de suas ações como “meios e instrumentos de uma coisa mais elevada,
mais vasta e que eles realizam inconscientemente” (Hegel, 1965, p. 110). Esse
sujeito é o que Hegel chama de espírito
do mundo, ou seja, a encarnação da razão no âmbito da história universal.
Para Hegel, a razão caminha sempre com
astúcias: deixa os homens agirem na espontaneidade dos seus interesses privados
somente com o intuito de atingir um fim ou objetivo mais elevado. Assim, ao
buscarem satisfazer seus próprios interesses, os indivíduos vão promovendo o
progresso do espírito e da liberdade, superando o caráter arbitrário que
motivou suas ações. Hegel observa que a consciência dos indivíduos é sempre
motivada por interesses particulares, de modo que, nessa perspectiva, os homens
não fazem a história com autonomia, mas apenas executam seus negócios. Há,
porém, determinados indivíduos que superam esse nível, convertendo-se em
agentes históricos efetivos, embora também suas ações sejam motivadas por
interesses egoístas e nunca em prol do bem comum. O filósofo toma como exemplo
a luta de César pelo poder. Foi uma ambição pessoal que levou César a destruir
a forma tradicional do Estado romano, mas, assim agindo, ele destruiu uma forma
de vida que havia caducado e deu origem a uma forma de organização política
mais racional. Do mesmo modo, Napoleão Bonaparte, ao levar o Estado moderno
para os quatro cantos da Europa, não o fez de modo racional ou por livre
escolha, mas apenas pelo desejo de domínio e para provar que era o maior
estrategista de todos os tempos.
Hegel considera indivíduos como César e
Napoleão a encarnação do “espírito do mundo”, quer dizer, guiados por um
instinto inconsciente que a própria época deles exige. Eles são os heróis que, apesar
de não saberem completamente o que fazem, rompem com as velhas formas de vida,
promovendo a mudança, o progresso e a liberdade. Como agentes históricos
universais, os heróis aparecem no momento em que uma forma de vida está
morrendo, em que o espírito humano está estabilizado, tornando-se inativo, e,
por isso, essa forma de vida deve ser substituída por outra. Desse ponto de
vista, a ideia de uma razão astuciosa agindo por intermédio dos heróis cumpre uma
função vital para a inteligibilidade do aspecto orgânico da vida social, e
coincide com um processo intencional que sempre ultrapassa a ação do indivíduo
isolado em benefício do bem comum. Esse processo, ao conciliar o conflito entre
as paixões imediatas do indivíduo, cria a ordem racional no interior das
sociedades, além da justiça e das virtudes necessárias para o desenvolvimento
da liberdade humana na história. (...)
Nesse sentido, a história é vista como palco
do conflito dramático entre o velho e o novo. Como já assinalamos, sob um certo
ponto de vista, a história desperta o sentimento de tristeza, de ruína, pois os
indivíduos levam uma vida infeliz, já que trabalham arduamente, mas depois morrem.
Entretanto, de outro ponto de vista, o fruto do seu sacrifício individual fica
para a posteridade; seu sofrimento e fracasso contribuem, assim, para o
desenvolvimento da liberdade e do progresso. Isso está conforme a astúcia da
razão, de que fala Hegel. Essa razão astuciosa vai moldando a necessária
concatenação racional dos acontecimentos, absorvendo o mal, o fracasso, a
desordem, vistos como momentos parciais, mas necessários, para a construção do
reino da liberdade, que só se realizaria com o advento do Estado moderno. A filosofia
da história de Hegel pode, portanto, ser vista como a construção de um enredo
que mostra a coerência ou a racionalidade inerente a esse processo.
É preciso dizer que a tarefa a que Hegel se
propõe na construção do seu grande enredo dramático da história universal
consiste, em primeiro lugar, em isolar os povos, as épocas e os heróis que
realmente contribuíram para a efetivação do reino da liberdade. O filósofo vai mostrando,
passo a passo, como se deu o desenvolvimento do espírito desde os povos do
Oriente, passando pelos gregos e romanos, até chegar a sua própria época,
quando os homens já se encontram no interior de um Estado juridicamente
constituído, passando a ser senhores autoconscientes de sua existência e a
viver conforme as prescrições da razão. A história pode ser vista, assim, como
a realização ou efetivação da ideia de liberdade ao longo do tempo, atingindo
sua plenitude justamente na forma do Estado moderno, que supera a visão da
liberdade vista em termos abstratos.”
“No que concerne a Hegel, podemos perceber
até mesmo certo recuo em face do processo crítico que ele próprio identificou
no interior da história. De fato, o filósofo se esforça em mostrar que a
história já teria alcançado, em seu tempo, o pleno desenvolvimento da atividade
espiritual, ao assumir a forma do Estado de direito. Com efeito, o Estado é uma
instância completamente espiritual, uma conquista do pensamento humano, algo
que não se pode agarrar com as mãos, mas cuja força podemos sentir pesando
sobre nossas cabeças, pondo freios a nossa liberdade. Mas, além de nos limitar,
o Estado também faz a mediação dos interesses privados, preservando os
interesses conflitantes da sociedade no âmbito do poder legislativo, que vai
articulando as leis necessárias à preservação da ordem pública. É possível
concluir que, com o desenvolvimento dessa forma de Estado, a história
universal, concebida por Hegel, teria chegado a seu pleno desenvolvimento, atingindo
sua mela, fim ou sentido. Isso não quer dizer que a história de fato terminou,
mas todos os seus possíveis avanços se darão sempre a partir desta última
conquista histórica.”
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