sexta-feira, 7 de junho de 2019

História e filosofia: uma introdução às reflexões filosóficas sobre a história (Parte I) – Antônio José Pereira Filho e Rodrigo Brandão

Editora: InterSaberes
ISBN: 978-85-8212-364-5
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 204
Sinopse: Ao retratar os principais conceitos e problemas que envolvem as concepções de história na perspectiva ­filosó­fica, esta obra visa reunir, brevemente, alguns dos fi­lósofos que contribuíram para analisar esse tema. De Santo Agostinho a Vico, de Kant a Hegel, passando pelas considerações iluministas até chegar a Marx e Walter Benjamin, o leitor é convidado a captar o saber histórico como instrumento para entender o nosso tempo e, assim, poder refletir sobre o atual horizonte histórico em que estamos inseridos. Aqui se apresentam indagações que possibilitarão uma compreensão mais profunda do real signifi­cado da história, levando o leitor à reflexão sobre a vida dos homens em sociedade, sobre o que somos e fazemos e, sobretudo, sobre como modi­camos ou influenciamos a história e somos influenciados por ela.



“A visão agostiniana não está preocupada com questões metodológicas acerca do estatuto do conhecimento histórico, ou seja, Agostinho não investiga os fundamentos da história como disciplina teórica nem está interessado no modo como se escreve a história; na verdade, sua preocupação é fornecer uma resposta para o problema do sentido da história universal. Nesse caso, diferentemente do que acontecia no mundo pagão, a história não se resume a narrativas que pertencem aos contextos isolados desta ou daquela nação, mas ganha contornos mais amplos, podendo ser vista como o palco em que se desenrola o drama de toda a humanidade. Na visão teológica agostiniano, a história é definida nos termos de um progresso espiritual, no qual por trás dos acontecimentos, aparentemente irracionais e desconexos, atravessados por guerras e catástrofes, há uma coerência e um sentido que só podem ser revelados peta fé, nunca exclusivamente pela razão humana.”


“Conforme argumenta Pierre Bayle, citado por Cassirer (A filosofia do iluminismo, 1994, p. 281):
todos os que conhecem as leis da história estarão de acordo que um historiador, se cumprir fielmente suas funções, deve despojar-se do espírito de adulação e de maledicência e colocar-se o mais possível na posição de um estoico, a quem nenhuma paixão agita. Insensível a todo o resto, só deve estar atento para os interesses da verdade, sacrificando a essa o ressentimento de uma injúria, a lembrança de um benefício e até mesmo o amor à pátria. Deve esquecer que está num certo país, que foi instruído numa certa comunhão, que é devedor de gratidão a este ou aquele, que tais e tais são seus progenitores ou seus amigos.
O que podemos observar, porém, é que Bayle tem em vista apenas a história considerada sob o viés da crítica historiográfica, ou seja, da história entendida como narrativa que obedece a normas rigorosas para a reconstrução do material histórico (fontes). Bayle em nada nos adverte a respeito de um processo histórico, ou seja, de um processo racional que recobre o curso das coisas humanas como um todo, configurando-lhe um sentido. Desse ponto de vista, a realidade histórica se apresenta a Bayle, conforme esclarece Cassirer (1994, p. 275), como um “amontoado monstruoso de escombros e faltam todos os meios para se assenhorear dessa massa de materiais”. Desse modo, Bayle recusa a possibilidade de uma lógica no interior dos fatos históricos, que são vistos como um agregado de escombros que o cartesianismo, em sua seriedade, rigor, transparência discursiva, coerência e unidade, sempre rejeitou. Mas é preciso notar que Bayle é impedido de seguir na direção de uma visão filosófica da história não apenas devido a questões de ordem metodológica, mas em razão de ele ter uma visão cética e pessimista, que o afasta da possibilidade de descobrir na história um plano coerente, um sentido que permita a verificação de um todo racionalmente organizado.
Na concepção de Bayle, se examinarmos os fatos de frente, sem preconceitos, uma simples olhada para a história real da humanidade é mais do que suficiente para nos curarmos de todas as especulações e construções totalizantes, ensinando-nos que essa história nunca foi outra coisa senão um rosário de crimes e desgraças do gênero humano. Para Bayle, citado por Cassirer (1994, p. 269-281), quanto mais dirigirmos um olhar lúcido para a descrição de um fato singular, mais leremos motivos para renunciar ao conhecimento do todo e reduzir a nada nossa esperança de compreensão de um sentido total da história. Apesar de não acreditar que possamos encontrar um sentido para a história, Bayle colocou uma importante questão para o historiador ao mostrar que a remissão aos fatos não é uma atitude simples. Em vez de estes serem tomados, de modo direto e apressado, como a fonte do conhecimento histórico, a atitude do historiador perante os fatos deve ser cautelosa. Ele deve tomar todo o cuidado para que ele mesmo, com seus ideais, educação e preconceitos, não interprete à sua maneira os fatos históricos que estão sendo investigados.”


“Segundo Giambattista  Vico, ainda que muitas vezes o material historiográfico tenha se mostrado fragmentário, obscuro e parcial, ele pode servir aos propósitos de uma ciência que possui mais coerência do que as ciências que investigam a natureza, como é o caso da física e da astronomia. Isso porque, para Vico, os homens são os autores de sua própria história e por isso podem conhecê-la por dentro, investigando seus desdobramentos no tempo, ao passo que a natureza só pode ser conhecida de modo superficial pela mente humana, pois não foi feita pelo homem.”


“Vico foi o primeiro autor a reconhecer a importância dos mitos para a história e mostrar que aquilo que aparentemente não passa de lenda é uma forma de expressão reveladora da mentalidade mais arcaica. Assim, a figura de Hércules, por exemplo, não representa um indivíduo de qualidades excepcionais, mas o modo como os povos primitivos, que ainda não pensavam em termos racionais, podiam expressar-se quando queriam significar o mundo do trabalho. Do mesmo modo, o herói Ulisses não é uma figura lendária de especial sabedoria, mas encarna o tipo de mentalidade astuciosa, desenvolvida na época em que floresceram, na Grécia, as grandes cidades e o mundo do comércio. Nesse sentido, os mitos expressam uma “verdade”, não são simples obras de ficção. Só muito mais tarde, na fase humana, ou racional, é que os mitos assumem um caráter lendário, de ficção, de narrativas impróprias feitas para iludir e enganar os homens. Na sua origem, eles não são nada disso.
É interessante observar, no entanto, que Vico não acredita que as formas expressivas de caráter mítico de uma sociedade primitiva desaparecem ou são superadas definitivamente com o advento da razão, como se o progresso estivesse justificado para sempre. Ao contrário, tanto os traços positivos quanto os aspectos negativos da vida arcaica ainda perduram na história. Assim, o temor dos deuses e as religiões mais diversas acabam sempre reaparecendo de diferentes maneiras no curso que percorrem as nações; do mesmo modo, a capacidade de imaginar mitos permanece presente, de alguma forma, na mentalidade dos povos, que continuam criando lendas e inventando narrativas que não podem ser ignoradas por quem deseja escrever a história. Por outro lado, nada garante que uma razão formal pode livrar completamente os homens da sua condição natural, como mostra a recorrência da barbárie, do medo, da superstição e de seus males ao longo das épocas.”


“Para Voltaire, o trabalho do historiador não é narrar tudo, todos os detalhes. Se fosse assim, diz ele, a história se tornaria algo tedioso demais. O historiador deve se ater àquilo que possa contribuir para que ele capte o espírito de um povo ou de uma época. O que ele quer dizer com isso? Que o historiador deve tentar captar aquilo que caracteriza um povo, aquilo que o torna particular e distinto dos demais. Daí porque Voltaire aparece como um autor importante para a historiografia moderna – ele se preocupou em mostrar que esta tarefa de captar o espírito de um povo deve levar em conta inúmeros aspectos da vida em sociedade: a religião, a língua, o clima, as leis e o governo, bem como os costumes em geral.
O historiador deve também ter muito cuidado com suas fontes e documentos. Quando possível, deve comparar testemunhos diferentes e buscar mais de uma perspectiva sobre o evento. A preocupação que Bayle tinha com os fatos é compartilhada por Voltaire, mesmo que hoje suas narrativas nos pareçam algumas vezes demasiado frágeis em termos documentais e muito parciais quanto ao sentido e à importância dos eventos. Ademais, o historiador deve evitar as fábulas. Aqui está um ponto normalmente criticado na perspectiva de Voltaire: ele seria incapaz de perceber que as fábulas e os mitos têm valor histórico. Algumas vezes ele chega a narrar como um mito pode ter surgido, como algum elemento religioso pode ter uma história, mas julga essas narrativas como algo negativo, como algo distante da razão. Todo o passado é medido pelo crivo da razão; assim, mitos e fábulas são relegados ao âmbito do irracional e do absurdo. Será apenas a partir do desenvolvimento da antropologia, da sociologia e do historicismo, inaugurado mais tarde pelos alemães, leitores de Vico, que as fábulas e os mitos ganharão importância para a história.”


“Além da diferença entre ser e dever ser, entre o fato histórico e a ideia de história, Kant lança mão de outra distinção muito importante, qual seja: o homem não pode ser visto simplesmente como uma criatura totalmente racional nem como um animal que se orienta por seus próprios instintos, paixões e interesses particulares. Na verdade, segundo o filósofo, o homem participaria de dois mundos: o mundo sensível, no qual ele segue suas paixões, e o mundo inteligível ou racional, no qual, de acordo com o princípio da autonomia e da liberdade da vontade, ele dá fins para si mesmo, podendo aperfeiçoar-se moralmente e não agir simplesmente com base em seus instintos. Como os homens, de um ponto de vista factual, não agem moralmente nem seguem planos estabelecidos, Kant pretende mostrar que há, sim, um plano oculto ou secreto por trás das ações humanas, o que permitiria ver a história como um sistema, uma espécie de organismo em que as partes estão naturalmente ligadas, de modo que, por mais que as ações humanas pareçam sem sentido, haveria um progresso sempre rumo ao melhor.
De modo resumido, o argumento de Kant (Ideia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita, 2003) é o seguinte:
• É impossível falar de um sentido da história se ficarmos apenas no nível dos indivíduos e suas ações particulares, mas é perfeitamente possível supor um sentido na história do ponto de vista do desenvolvimento da espécie humana como um todo.
• Haveria um plano secreto na própria natureza que, deixando os homens agirem livremente, buscando somente o que lhes interessa, acaba por levá-los a uma meta, objetivo ou fim racional mais elevado.
Em outros termos, por trás dos impulsos naturais, como a inveja competitiva, o desejo de possuir e dominar dos indivíduos que pensam apenas em si mesmos e nunca no outro, haveria a necessidade de se estabelecer a ordem; caso contrário, os homens se destruiriam uns aos outros numa guerra sem fim. Surge daí a ideia de associação política, a necessidade de viver em comunidade, de se instaurar a paz entre os indivíduos, que leva, necessariamente, à formação dos Estados. Estes, por sua vez, também competem entre si, dando origem a guerras e discórdias; todavia, são forçados naturalmente a pôr um limite nessas competições e passam a associar-se em ligas de nações, assumindo, assim, um ponto de vista cosmopolita, quer dizer, um ponto de vista de uma comunidade política universal.”


“Coube ao filósofo alemão Georg W. F. Hegel (1770-1831) esquadrinhar o problema dessa tensão entre a imposição da lei externa e a liberdade interna do indivíduo, entre uma justiça meramente formal e a autonomia do sujeito. Segundo Hegel, tendo em vista o desenvolvimento da modernidade, é complicado pensar uma liberdade de ação focada exclusivamente no indivíduo isolado, pois “ele nunca deixa de fazer parte, para qualquer lado que se volte, de uma ordem social estabelecida, e longe de ser uma representação total, individual e vivente desta sociedade, não passa de um membro dela com possibilidades muito limitadas” (Hegel, Estética, 1996, p. 204). O filósofo quis dizer com isso que, na modernidade, é inevitável pensarmos o indivíduo como uma peça dentro da máquina estatal e que, se nos fixarmos apenas na vontade do indivíduo considerado isoladamente, aí, sim, teremos uma visão abstrata e parcial das coisas, pois com o desenvolvimento do Estado de direito não há mais espaço para uma liberdade que parta espontaneamente do indivíduo e se cumpra integralmente nele. Ao contrário, nossas ações estão circunscritas num contexto. Assim, só somos livres, por exemplo, dentro dos limites prescritos pela lei. Com efeito, no âmbito da burocracia estatal moderna, “quando um representante da justiça se comporta e age como lhe exigem a função e o dever, não faz mais do que cumprir uma obrigação determinada de acordo com a ordem estabelecida pelo direito e pela lei” (Hegel, 1996, p. 205). Como pensar, então, uma forma de sociabilidade que garanta a autonomia do sujeito (a liberdade) e, ao mesmo tempo, permita o pleno desenvolvimento da humanidade em seu conjunto?
Kant havia dito que os homens são racionais, autônomos, porque dão fins a si mesmos e agem conforme o dever que a razão prescreve. Mas como conciliar os fins racionais do Estado moderno se nele o indivíduo nunca é absolutamente livre, se sua liberdade aparentemente é sempre limitada e parcial? A resposta de Hegel retoma de Kant a ideia de que o homem não pode ser livre sozinho, de que ele vive com seus pares e de que o desenvolvimento da autonomia do sujeito só é possível nos limites de uma sociedade organizada. Mas, ao contrário de Kant, cuja filosofia da história, como vimos, se apresenta sob a forma de um dever ser, como uma ideia da razão, em Hegel (1996), ao contrário, a própria razão vai tomando forma concreta na história humana. Se Kant pensa a história a partir da construção do reino da moralidade, isto é, das ações morais feitas conforme a autonomia do sujeito, situando esse plano de moralidade no âmbito do dever ser, Hegel, ao contrário, procura trazer a razão para o plano da efetividade histórica. Nesse sentido, ele supera a distinção kantiana entre ser e dever ser, mostrando que a racionalidade vai se cumprindo, de fato, em cada fase da história do espírito humano, no seu desdobrar-se. A liberdade não é, pois, uma ideia situada no infinito de uma história apenas possível, tampouco se encontra apenas na interioridade do sujeito isolado; ao contrário, ela vai se moldando em instituições objetivas, reais, concretas, como a família, a sociedade civil e o Estado, absorvendo, assim, os indivíduos tomados isoladamente num processo de caráter universal.”


“Ora, segundo Hegel, nada fica completamente perdido na história, pois esta não é vista como oposição radical entre os polos opostos da vida e da morte, da beleza e da ruína, do ser e do não ser e é, antes de tudo, processo, devir, o desdobrar-se da razão no tempo. É justamente a isso que Hegel chama de dialética, a busca de reunir num todo processual o que parece fragmentário e solto na história. Assim, a filosofia da história de Hegel pode ser vista pelo modo como a razão vai constituindo o domínio do espírito em diferentes momentos. O que Hegel chama de domínio do espírito tem semelhança com a distinção que Vico havia estabelecido entre natureza e história. Hegel parte da mesma distinção: “o reino do espirito compreende tudo que é produzido pelo homem” (Hegel, La raison dans l’historie, 1965, p. 71). Surge, assim, o mundo da cultura, dos artefatos, dos feitos humanos, de tudo aquilo que pode ser visto como tendo um sentido ou significado, posto ser produzido com intenção humana, isto é, com liberdade. Segundo Hegel, o espírito se define justamente por uma atividade livre situada acima das determinações inconscientes da natureza. Liberdade é aqui, justamente, atividade, superação: “a liberdade do espírito não é, pois, uma existência imóvel, mas uma negação constante de tudo que contesta a liberdade [...]. As coisas naturais não são por si mesmas, por isso não são livres” (Hegel, 1965, p. 76). O espírito, ao contrario, “é seu próprio produto, ele é seu começo e seu fim”. Isso equivale a dizer que o espírito é livre porque tem consciência de sua própria atividade, mas, para saber-se livre, o espírito deve experimentar a sua própria liberdade, o que é o mesmo que dizer que “é somente a experiência da liberdade que libera o espírito” (Hegel, 1965, p. 76). Numa palavra, o espírito humano só se reconhece livre na história, pois ele próprio é história, processo, devir. A liberdade é, assim, algo que se conquista na história concretamente, não algo que nasce de uma dádiva divina, ou de uma mera visão contemplativa e estática do universo, nem deve ser confundida com as ações arbitrárias de um indivíduo isolado.
É preciso dizer, portanto, que o domínio do espírito de que fala Hegel “não é aquele de um indivíduo humano singular” (Hegel, 1965, p. 80). Para ele, “é verdade que o espírito é essencialmente indivíduo; mas, no elemento da história universal, não temos de levar em conta as pessoas reduzidas à sua singularidade particular”. Na história considerada sob uma perspectiva filosófica, o espirito é um indivíduo ao mesmo tempo universal e determinado, a saber: um povo. É o espírito do povo (Volksgeist) que deve ser levado em conta pela consideração filosófica da história; todavia, os povos são diversos, de modo que o grau de liberdade de um pode ser medido pelo grau de apreensão que ele faz de si mesmo no seu desdobrar-se temporal. É dentro desse elemento, também, que deve ser encarado o certo nível de consciência que o indivíduo tem de si mesmo, bem como dos seus limites históricos. Daí os infortúnios de um indivíduo que perde a consciência do seu papel na história, que fica, por assim dizer, deslocado do contexto. Esse é o caso de Dom Quixote, que deseja reviver os antigos valores da cavalaria da Idade Média, ou seja, os ideais de justiça baseados nas relações pessoais, como o favor e a amizade, não percebendo que um novo tempo surgiu (o tempo do Estado moderno), uma época que converteu a antiga forma de vida em ruína, mas abriu uma nova etapa no desenvolvimento do espírito humano.
Neste ponto, podemos perceber claramente por que o verdadeiro sujeito da história não é, para Hegel, o indivíduo. É que este sempre age na história tendo em vista seus próprios interesses, seguindo suas próprias paixões. Todavia, para se revelar o sentido da história, é preciso admitir um sujeito agente, ativo, criador. A questão é que o indivíduo, tomado isoladamente, não pode ser esse sujeito. O significado do curso da história ultrapassa sempre a ação dos indivíduos. Hegel admite que os interesses e as paixões são a fonte ou o motor da história, o que aparentemente levaria a pensar na falta de sentido ou na “desrazão” da história. Entretanto, há para o filósofo um verdadeiro sujeito agindo sobre as costas ou ações dos homens isolados, servindo-se de suas ações como “meios e instrumentos de uma coisa mais elevada, mais vasta e que eles realizam inconscientemente” (Hegel, 1965, p. 110). Esse sujeito é o que Hegel chama de espírito do mundo, ou seja, a encarnação da razão no âmbito da história universal.
Para Hegel, a razão caminha sempre com astúcias: deixa os homens agirem na espontaneidade dos seus interesses privados somente com o intuito de atingir um fim ou objetivo mais elevado. Assim, ao buscarem satisfazer seus próprios interesses, os indivíduos vão promovendo o progresso do espírito e da liberdade, superando o caráter arbitrário que motivou suas ações. Hegel observa que a consciência dos indivíduos é sempre motivada por interesses particulares, de modo que, nessa perspectiva, os homens não fazem a história com autonomia, mas apenas executam seus negócios. Há, porém, determinados indivíduos que superam esse nível, convertendo-se em agentes históricos efetivos, embora também suas ações sejam motivadas por interesses egoístas e nunca em prol do bem comum. O filósofo toma como exemplo a luta de César pelo poder. Foi uma ambição pessoal que levou César a destruir a forma tradicional do Estado romano, mas, assim agindo, ele destruiu uma forma de vida que havia caducado e deu origem a uma forma de organização política mais racional. Do mesmo modo, Napoleão Bonaparte, ao levar o Estado moderno para os quatro cantos da Europa, não o fez de modo racional ou por livre escolha, mas apenas pelo desejo de domínio e para provar que era o maior estrategista de todos os tempos.
Hegel considera indivíduos como César e Napoleão a encarnação do “espírito do mundo”, quer dizer, guiados por um instinto inconsciente que a própria época deles exige. Eles são os heróis que, apesar de não saberem completamente o que fazem, rompem com as velhas formas de vida, promovendo a mudança, o progresso e a liberdade. Como agentes históricos universais, os heróis aparecem no momento em que uma forma de vida está morrendo, em que o espírito humano está estabilizado, tornando-se inativo, e, por isso, essa forma de vida deve ser substituída por outra. Desse ponto de vista, a ideia de uma razão astuciosa agindo por intermédio dos heróis cumpre uma função vital para a inteligibilidade do aspecto orgânico da vida social, e coincide com um processo intencional que sempre ultrapassa a ação do indivíduo isolado em benefício do bem comum. Esse processo, ao conciliar o conflito entre as paixões imediatas do indivíduo, cria a ordem racional no interior das sociedades, além da justiça e das virtudes necessárias para o desenvolvimento da liberdade humana na história. (...)
Nesse sentido, a história é vista como palco do conflito dramático entre o velho e o novo. Como já assinalamos, sob um certo ponto de vista, a história desperta o sentimento de tristeza, de ruína, pois os indivíduos levam uma vida infeliz, já que trabalham arduamente, mas depois morrem. Entretanto, de outro ponto de vista, o fruto do seu sacrifício individual fica para a posteridade; seu sofrimento e fracasso contribuem, assim, para o desenvolvimento da liberdade e do progresso. Isso está conforme a astúcia da razão, de que fala Hegel. Essa razão astuciosa vai moldando a necessária concatenação racional dos acontecimentos, absorvendo o mal, o fracasso, a desordem, vistos como momentos parciais, mas necessários, para a construção do reino da liberdade, que só se realizaria com o advento do Estado moderno. A filosofia da história de Hegel pode, portanto, ser vista como a construção de um enredo que mostra a coerência ou a racionalidade inerente a esse processo.
É preciso dizer que a tarefa a que Hegel se propõe na construção do seu grande enredo dramático da história universal consiste, em primeiro lugar, em isolar os povos, as épocas e os heróis que realmente contribuíram para a efetivação do reino da liberdade. O filósofo vai mostrando, passo a passo, como se deu o desenvolvimento do espírito desde os povos do Oriente, passando pelos gregos e romanos, até chegar a sua própria época, quando os homens já se encontram no interior de um Estado juridicamente constituído, passando a ser senhores autoconscientes de sua existência e a viver conforme as prescrições da razão. A história pode ser vista, assim, como a realização ou efetivação da ideia de liberdade ao longo do tempo, atingindo sua plenitude justamente na forma do Estado moderno, que supera a visão da liberdade vista em termos abstratos.”


“No que concerne a Hegel, podemos perceber até mesmo certo recuo em face do processo crítico que ele próprio identificou no interior da história. De fato, o filósofo se esforça em mostrar que a história já teria alcançado, em seu tempo, o pleno desenvolvimento da atividade espiritual, ao assumir a forma do Estado de direito. Com efeito, o Estado é uma instância completamente espiritual, uma conquista do pensamento humano, algo que não se pode agarrar com as mãos, mas cuja força podemos sentir pesando sobre nossas cabeças, pondo freios a nossa liberdade. Mas, além de nos limitar, o Estado também faz a mediação dos interesses privados, preservando os interesses conflitantes da sociedade no âmbito do poder legislativo, que vai articulando as leis necessárias à preservação da ordem pública. É possível concluir que, com o desenvolvimento dessa forma de Estado, a história universal, concebida por Hegel, teria chegado a seu pleno desenvolvimento, atingindo sua mela, fim ou sentido. Isso não quer dizer que a história de fato terminou, mas todos os seus possíveis avanços se darão sempre a partir desta última conquista histórica.”

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