sexta-feira, 7 de junho de 2019

História e filosofia: uma introdução às reflexões filosóficas sobre a história (Parte II) – Antônio José Pereira Filho e Rodrigo Brandão

Editora: InterSaberes
ISBN: 978-85-5972-120-1
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 272
Sinopse: Parte I



A filosofia política de Maquiavel
Nicolau Maquiavel desenvolveu um tipo de pensamento político que se diferenciava do praticado na era medieval, encarregando-se de reformular a política do seu tempo, sua aliança com a ética e com os valores cristãos.
Enquanto, para os cristãos, o bom governante era aquele indivíduo que apresentasse virtudes cristãs e agisse de acordo com elas, o bom governante (o príncipe) de Maquiavel é aquele que faz o que for necessário para chegar ao poder e nele se manter, incluindo, se for preciso, violar os valores cristãos pregados em seu tempo. Ele criticou o direito divino de governar de seus predecessores e valorizou o desenvolvimento de algumas qualidades indispensáveis para aqueles que pretendiam ocupar o cargo de líder político: qualidades como a virtú e a capacidade de lidar com a fortuna.
O objetivo da política para Maquiavel é realizar a manutenção do poder com vistas ao bem comum e, para manter esse poder, o príncipe deve lutar com todas as suas forças. Justamente por conta disso é que os valores morais cristãos, tão apregoados em seu tempo, tornam-se obstáculos ao alcance desse propósito, isto é, cedo ou tarde, para não deixar de lado seu objetivo fundamental, o príncipe tem de abrir mão daqueles valores. Um príncipe não pode manter sua palavra (princípio moral cristão), por exemplo, se ela se voltar contra ele em suas decisões políticas ou forçar o surgimento de situações que o obriguem a tomar uma atitude contrária ao seu desejo. Se assim ocorrer, ele deve abrir mão de tal valor, como meio para a realização dos fins propostos. Da mesma forma, o príncipe deve, quando necessário, mentir para o povo, utilizar a força para repreendê-lo, enganá-lo (se não for possível dizer a verdade em determinados momentos) e fazer tudo o que for preciso para manter a ordem e o poder.
A manutenção da ordem e do poder é necessária para que o bem comum seja preservado. Os meios empregados serão honrosos e louvados se os fins forem alcançados por parte dos líderes políticos. Nesse sentido, vale ressaltar aqui que, para Maquiavel, o importante não é que o príncipe seja bom, basta que pareça bom; ele não precisa falar a verdade, basta que pareça estar dizendo a verdade; ele não precisa agir realmente de maneira justa, basta que pareça ao povo que sua atitude é justa. Essa diferença entre a essência (ser) e a aparência (parecer) é um elemento indispensável para um líder que queira manter o bem comum acima de tudo.
Essa nova forma de fazer política mostra que Maquiavel foi um pensador muito além do seu tempo e responsável por realizar a cisão entre o “ser” e o “dever ser” na política (Reale, História da filosofia, 2005, p. 93-94). Ele procurou pautar-se especificamente por um realismo político que procurava excluir toda e qualquer característica especulativa do dever ser, pois o príncipe (líder político de seu tempo) alcançaria sua ruína no momento em que deixasse de fazer aquilo que fazia para fazer aquilo que deveria fazer: um homem que quer em todo o lugar ser bom atrai ruína entre tantos que não são bons. Decorre disso que o príncipe que quer se manter no poder deve aprender os meios de não ser bom (apenas parecer bom já é suficiente) para, quando foi necessário, utilizar-se deles. Segundo Maquiavel, o líder ainda deve adotar remédios extremos para males extremos, ou seja, não deve fazer sempre o mal — deve fazer o bem quando possível e o mal apenas quando realmente for necessário.

A ética maquiavélica
No tocante à ética, vale destacar que Maquiavel reformula o conceito de virtude cristã vigente em sua época, baseada em princípios. Enquanto para os cristãos medievais o príncipe deveria ser portador das virtudes cristãs, ser bom, praticar sempre a temperança, falar a verdade aos seus súditos etc., a virtude a que Maquiavel se refere é exatamente a qualidade que o príncipe deve ter para chegar ao poder e nele se manter, o que ele chama de virtú. Ela é apreendida por Maquiavel em um sentido grego de “força, vontade, habilidade, astúcia e capacidade de dominar a situação” (Reale, 2005, p, 94). A virtú é a capacidade de derrotar a sorte e o acaso: segundo o autor italiano, metade das coisas que acontecem ao ser humano é proveniente da sorte, e a outra metade é de responsabilidade de cada indivíduo.
Diante dessa nova concepção de virtude, Maquiavel cria também uma nova ética, específica para todos aqueles que desejarem entrar para a vida política. Essa nova ética se preocupa não com os princípios (cristãos), mas com as consequências que as ações dos líderes políticos (os príncipes) terão sobre o povo, é uma ética de consequências que visa sempre à ação que beneficie o bem comum e o coletivo. Sempre que houver situações que fogem dos objetivos definidos pela República, o príncipe deve pensar quais serão as consequências que melhor atenderão ao bem comum e ao coletivo. Se as atitudes do príncipe não forem condizentes com os princípios dos indivíduos — no tempo de Maquiavel, eles eram os princípios cristãos da bondade, da verdade, da honra etc. — ele não deve deixar de realizá-las, pois é a consequência da ação que deve ser levada em conta. Portanto, se, para alcançar seus objetivos, o príncipe precisar matar, roubar, saquear, destruir, mentir, manipular, explorar, entre outras ações, ele deve fazê-lo, contanto que a consequência da ação seja para o bem comum de seu povo e a manutenção da ordem. Justamente por isso é que pensadores posteriores procuraram resumir todo o seu pensamento político com a seguinte frase: “Os fins justificam os meios”. Se a finalidade é o bem comum, não importa de quais meios o príncipe se utilize, assim ele deve fazer. O príncipe não pode se dar ao luxo, para conquistar seus objetivos, de agir politicamente tomando como base princípios (o homem comum, na vida privada, pode se dar ao luxo disso); deve agir levando em conta as consequências que suas ações trarão ao seu país. Desse modo, contra todos aqueles que consideram Maquiavel um sujeito sem ética (os que afirmam isso o fazem considerando que a ética cristã é a ética válida universalmente), um de seus intérpretes, o filósofo Isaiah Berlin, no livro Estudos sobre humanidade: uma antologia de ensaios (2002), mais especificamente no ensaio intitulado “A originalidade de Maquiavel”, afirma que existem duas éticas: uma baseada em princípios (a ética cristã), que prega a salvação da alma, e outra baseada nas consequências, que valoriza a cidade, o mundo e as ações dos políticos que estão na organização desse mundo (é a ética criada por Maquiavel).”


“Todavia, no início do que chamamos de contemporaneidade, Nietzsche revolucionou a forma como compreendemos o papel da razão na formulação de nossas concepções e valores morais, entendendo-a como algo que nos conduz a uma vida de valorização do nada (niilismo), de negação de nossos impulsos vitais, que é nossa vontade de poder, e, portanto, nos faz viver uma vida ética própria da classe dos escravos e ressentidos.
A razão, portanto, na concepção contemporânea, deve ser deixada de lado por não favorecer nossa liberdade, ou melhor, nossa vontade livre, pois, ao contrário, ela coloca limites e proibições a nossa conduta em vista de princípios metafísicos (niilistas). Com efeito, o fato de entendermos a razão sem a hipocrisia iluminista nos faz compreender que uma vida ética excelente é aquela que nos permite maior grau de liberdade e, por consequência, de responsabilidade pelos nossos atos, valorizando os impulsos vitais inerentes ao homem, contrariamente ao que pensavam os cristãos, que negavam esses impulsos, trocando-os pela promessa do paraíso, do céu, ou seja, de valores válidos universalmente e que são impostos a todos como deveres.”


Id, ego e superego
Em sua obra O ego e o id (1976a, p. 14), que é o último dos seus grandes trabalhos teóricos, Freud “oferece uma descrição da mente e de seu funcionamento que, à primeira vista, parece nova e até mesmo revolucionária”. Ele elabora uma teoria da mente mais sofisticada em comparação com as anteriormente propostas, aprimorando e clarificando sua grande descoberta teórica — que o lançou ao hall dos grandes pensadores de todos os tempos a saber, que nós não somos senhores de nossa própria casa, mas governados por nossos impulsos e desejos que ficam guardados no inconsciente*.
Formamos a ideia de que em cada indivíduo existe uma organização coerente de processos mentais e chamamos a isso o seu ego. É a esse ego que a consciência se acha ligada: o ego controla as abordagens à motilidade — isto é, à descarga de excitações para o mundo externo. Ele é a instância mental que supervisiona todos os seus próprios processos constituintes e que vai dormir à noite, embora ainda exerça a censura sobre os sonhos. (Freud, 1976a, p. 28)
Freud relaciona o ego com a parte do aparelho mental que é consciente. No aprofundando a análise, ele percebe que há no próprio ego algo que é também inconsciente, “que se comporta exatamente como o reprimido — isto é, que produz efeitos poderosos sem ele próprio ser consciente e que exige um trabalho especial antes de poder ser tornado consciente” (1976a, p. 30, grifo do original). É com base nisso que Freud passa a caracterizar o aparelho mental e suas divisões com outras denominações mais sofisticadas, preservando a originalidade principal. Nesse contexto, surgem os termos id, ego e superego.
Wilson Castello de Almeida (Defesas do ego, 1996, p. 15) explica de forma clara e didática esses conceitos.
O chamado Id (Isso) nomeia a instância virtual da personalidade correspondente à carga instintiva radicada na estrutura constitucional da espécie humana, exigindo respostas imediatas para suas necessidades básicas, elementares e vitais: pulsões de autoconservação, por exemplo. [...] Do Id sairiam os impulsos, passíveis de serem modificados pelo Ego, tarefa que este consegue através dos mecanismos de defesa. [...] O Ego (Eu) formar-se-ia do Id, seria mesmo uma parte dele, surgindo através de um processo de diferenciação. Se fosse possível situá-lo espacialmente, ocuparia uma zona entre o Id e a realidade do mundo externo. O Ego poderá inibir ou modificar o Id e também permitir-lhe transformar-se diretamente em ação; e registraria os impulsos do Id projetando-os sobre os objetos externos em forma de sentimentos e afetos.”
Em relação ao superego, Almeida (1996, p, 16) nos mostra que se formaria a partir do processo de identificação das figuras parentais que se inicia durante a fase de alimentação dos recém-nascidos. A partir dessa fase de desenvolvimento da criança, surge o superego, o qual tem a função de representar internamente as exigências normativas que a sociedade impõe a todos os sujeitos por meio dos códigos morais e éticos, que cumprem o papel de disciplinar, coagir e punir aqueles que não se enquadram no sistema social.
*: Esse foi o terceiro grande golpe que a humanidade sofreu em seu narcisismo. O primeiro golpe foi a criação da teoria do heliocentrismo por Nicolau Copérnico, que tirou a Terra do centro do Universo (e, consequentemente, 0 homem). O segundo golpe foi dado por Charles Darwin com sua teoria do evolucionismo: com ela, o homem passou a estar no mesmo nível dos outros animais, deixou de ser uma criatura especial, criada imagem e semelhança de Deus, e passou a ser uma criatura que provém de um processo evolutivo de outras criaturas, de outros animais.

Ética e psicanálise
O superego cria nossa consciência moral e nos leva a seguir as regras e normas sociais. Ele procura introjetar os valores morais em nós e nos obriga a cumpri-los sob pena de punição.
Claro que esse cumprimento nem sempre é feito de maneira pacífica pelo aparelho psíquico do indivíduo, e o superego, por vezes, é tomado como a instância que pune o próprio sujeito por não conseguir se adequar às regras e aos valores sociais. Como efeito dessa punição, surge o que Freud designa como culpa. Foi observado por Freud (1976a, p. 65) que, em muitos casos, a culpa era o mais poderoso obstáculo à cura de uma enfermidade. (...)
Uma das questões éticas que Freud procura resolver durante essa análise é o porquê de o superego desenvolver tanta rigidez para com o ego, introjetando neste valores e ideias morais que exigem a repressão dos instintos vitais de maneira radical. Segundo Freud, isso ocorre porque existem no ser humano basicamente dois impulsos básicos: os instintos de vida, ou instintos sexuais (de amor), Eros, e os instintos de morte, ou de agressividade, Thanatos.
Freud compreende que o objetivo primário de todo homem é a satisfação integral de suas necessidades. A partir do momento em que isso não ocorre, acontece um fenômeno interessante: os instintos voltam-se para trás, para o interior, para dentro do próprio homem. É aí que residem as doenças estudadas por Freud, é nessa repressão dos instintos básicos do homem, por meio da introjeção dos ideais e dos valores morais pelo superego ao ego, que surge a culpa e, como efeito desse poderoso sentimento, surgem a neurose e outras doenças psíquicas.
Freud, em sua obra O mal estar na civilização (1974b, p, 146), afirma que a agressividade que o ego gostaria de ter descarregado sobre outros indivíduos — sobre o pai, no caso do complexo de Édipo — é introjetada, internalizada, mandada de volta para o lugar de onde proveio, no sentido de seu próprio ego, sob a forma do superego.
A tensão entre o severo superego o ego, que a ele se acha sujeito, é por nós chamada de sentimento de culpa; expressa-se como uma necessidade de punição. A civilização, portanto, consegue dominar o perigoso desejo de agressão do indivíduo, enfraquecendo-o, desarmando-o e estabelecendo no seu interior um agente para cuidar dele, como uma guarnição numa cidade conquistada. (Freud, 1974b, p. 147)
O sentimento de culpa seria, portanto, fruto da ação desse guardião da moral internalizado em nós na forma de superego. Este tem a função de formar nossa consciência moral e fazer com que nossas ações estejam em concordância com as leis sociais. Com efeito, vemos que, na concepção formulada por Freud, nós somos impulsos e desejos inconscientes, não somos senhores de nós mesmos se nossa razão não consegue nos governar. Para a ética, isso tem consequências graves, pois, se não somos senhores de nossas ações, como podemos ser responsáveis por elas? Nesse caso, não somos livres, pois não conseguimos manter uma vontade livre que aja em conformidade com os deveres sociais.
Quando descrevemos as reflexões éticas elaboradas ao longo de toda a história, procuramos demonstrar como cada pensador, em seu tempo histórico, buscou contribuir com esse estudo e apresentar soluções para conflitos de ordem moral, mostrando-nos o caminho para uma vida virtuosa — a qual anseia pelo bem, pela verdade — e que, de certa forma, foi cristalizado em forma de leis, que devem ser seguidas por todos, leis que são frutos da autonomia moral e de uma liberdade que visa a trazer benefícios para os seres humanos como um todo. Todavia, diante da proposta de reflexão apresentada por Freud, vemos alguns problemas surgirem: o que produzimos é fruto do nosso inconsciente ou de nossos impulsos e instintos, mas a razão não tem autonomia sobre eles e muito menos consegue controlá-los. A razão, nesse caso, seria uma ficção moderna criada para iludir os indivíduos.
Da mesma forma, ao entendermos que a repressão dos impulsos vitais causa uma série de prejuízos ao homem (como a culpa ou as doenças de ordem psíquica), não podemos falar de autonomia moral que seja capaz de criar regras e deveres possíveis de serem cumpridos na prática, possíveis de serem realizados: a moral seria apenas um elemento criador de doenças e nunca um elemento virtuoso que visa à construção de uma sociedade harmoniosa e à felicidade.
Justamente por isso é que a psicanálise fundada por Freud nos mostra que praticar atos que ao longo da história foram considerados delitos ou violações de regras morais não podem ser tomados como tal:
Do ponto de vista do inconsciente, mentir, matar, roubar, seduzir, destruir, temer, ambicionar são simplesmente amorais, pois o inconsciente desconhece valores morais. Inúmeras vezes, comportamentos que a moralidade julga imorais são realizados como autodefesa do sujeito, que os emprega para defender sua integridade psíquica ameaçada (real ou fantasmagoricamente). Se são atos moralmente condenáveis, podem, porém, ser psicologicamente necessários. (Chaui, 2000, p. 458)”


“Aparentemente, a concepção dos direitos humanos apoia sua ideia de dignidade humana sobre a própria noção antropológica que indica, ou seja, sobre a afirmação de que nós, como seres racionais e autoconscientes, detemos uma condição única no mundo. Tal entendimento nos deve permitir constatar que a condição humana se determina como sendo digna na medida em que efetiva o seu ser no mundo, ou seja, por meio das experiências vivenciadas que possam humanizá-la. Se assim for, devemos compreender eticamente o ser humano mediante seu caráter volitivo, que sempre busca aperfeiçoar as condições de sua existência.
Os direitos humanos têm como objetivo sintetizar os mais variados referenciais éticos desenvolvidos ao longo da história para nos ajudar a compreender a existência humana como um processo, ou seja, para nos mostrar que o homem é um ser que está em constante transformação e que, por isso, precisamos estar atentos para que, em meio a essas mudanças, não percamos de vista alguns elementos essenciais que nos tornam humanos. Em outras palavras, mesmo que as sociedades produzam transformações inimagináveis para a espécie humana, devemos sempre preservar o que nos humaniza. Assim, a ética que ancora os direitos do indivíduo em transformação adota o existir da espécie humana sob desenvolvimento constante. Dá-se então que, humanamente, existimos sobre um solo axiológico, para o qual servem de base os direitos humanos como cabedal teórico/prático, impelindo nossa vontade — como capacidade de escolha racional — a superar nossos instintos de amor próprio, por vezes prejudiciais à vivência comunitária.”

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