Editora: InterSaberes
ISBN: 978-85-5972-509-4
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 214
“Conforme Melani (Diálogo, 2013, p. 178), “Marx dedicou
sua vida a organizar a luta dos trabalhadores e a refletir teoricamente sobre a
política, a economia e a filosofia da época em que viveu, período em que o
capitalismo se estabelecia plenamente”. O capitalismo no século XIX já estava
consolidado e a exploração era seu sinal mais vigoroso. No entendimento de
Marx, “capitalismo significa não apenas um sistema de produção de mercadorias,
como também um determinado sistema no qual a força de trabalho se transforma em
mercadoria e se coloca no mercado como qualquer objeto de troca” (Catani, O que é capitalismo, 2011, p. 8),
privilegiando um pequeno grupo e extorquindo a maioria da população. É contra
esse sistema que supervaloriza o ter em relação ao ser que Marx dedicou sua
vida. Transformar ou até mesmo abolir essa realidade de exploração constitui um
dos fundamentos do pensamento marxista.
O capitalismo,
como forma de exploração do homem pelo próprio homem, só existe porque aqueles
que detêm a concentração da propriedade dos meios de produção exploram a classe
para a qual a venda da força de trabalho é a única fonte de subsistência. O
sistema capitalista, na visão de Marx, estrutura-se de tal forma que aquele que
vende sua força de trabalho na condição de mercadoria não tem como não se submeter à lógica do sistema, uma vez que
precisa do necessário para sobreviver, nem que para isso tenha de trabalhar sob
condições inadequadas e em troca de ordenados injustos. (...)
Nesse sentido, a
fim de esclarecermos a crítica de Marx ao capitalismo, julgamos necessário
recorrer ao entendimento de Huberman (História
da riqueza do homem, 1986, p. 212) a respeito do assunto:
Talvez o princípio básico mais importante para
todos os sonhadores de utopias fosse a abolição do capitalismo. [...] No
sistema capitalista viam apenas males. Era desperdiçado, injusto, sem plano.
Desejavam uma sociedade planificada, que fosse eficiente e justa. [...] Surgiu
então Karl Marx. Também ele era socialista. Também ele desejava melhorar as
condições da classe trabalhadora. Também ele desejava uma sociedade
planificada. Também ele desejava que os meios de produção fossem propriedade de
todo o povo. Mas — isso é muito importante — não planejou nenhuma utopia.
Praticamente nada escreveu sobre a sociedade do futuro. Estava tremendamente
interessado na sociedade do passado, em como evoluiu, desenvolveu-se e decaiu,
até se tornar a sociedade do presente. Estava tremendamente interessado na
sociedade do presente porque desejava descobrir as forças que nela provocariam
a modificação para a sociedade do futuro. Mas não gastou seu tempo nem se
preocupou com as instituições econômicas do amanhã. Passou quase todo o seu
tempo estudando as instituições econômicas de hoje. Desejava saber o que
movimentava as rodas da sociedade capitalista onde vivia.
Para Marx, esse
capitalismo em que “o trabalhador é forçado a bastar-se com o mínimo vital,
para não perder o emprego” (Catani, 2011, p. 30) não surgiu do nada, ele se
desenvolveu historicamente, considerando-se as quatro grandes fases (primitiva,
escravista, feudal e capitalista). O fator comum que permeia todas essas fases
é o trabalho. O homem não trabalha
porque quer trabalhar, ele trabalha porque tem necessidades básicas que devem
ser supridas, como alimentar-se, ter uma moradia, dormir e vestir-se. Nesse
sentido, a comunidade primitiva trabalhava pouco, indubitavelmente, porque tinha
poucas necessidades, isto é, não se preocupava em acumular bens, vivia com o
mínimo necessário.
As necessidades
básicas evoluíram com a evolução do homem e da vida complexa em sociedade. Com
essa evolução, que perpassa todas as fases, as necessidades básicas cederam
lugar às necessidades sofisticadas.
Assim, o homem passou a não se satisfazer mais com qualquer tipo de alimento.
Surgiu certo refinamento e ele começou a fazer uma seleção daquilo que ingeria.
Dessa forma, gosto, textura e sabor, por exemplo, passaram a ocupar lugar
privilegiado nesse cenário.
Outro aspecto que
podemos citar para exemplificar essa ideia diz respeito ao vestuário. Na
sociedade primitiva, o homem vestia-se com peles de outros animais para se
proteger do frio e usava poucas roupas. Com a evolução e a sofisticação, as
peles rústicas foram substituídas por tecidos confeccionados pelo homem,
variando de época para época e de cultura para cultura, segundo o poder
aquisitivo de cada classe social. Além disso, os tecidos, que antes serviam
apenas para encobrir os corpos, aquecê-los e protegê-los das intempéries,
passaram a ter um valor simbólico, pois meramente vestir-se não era mais
suficiente, tornou-se fundamental ostentar uma marca específica. O status
social passou a ser determinado por aquilo que se possuía e pelas vestes que se
usavam. A vaidade passou a ocupar um lugar de destaque na sofisticada vida em
sociedade.
A propriedade privada, inexistente na
fase primitiva, porém presente nas demais fases, sobretudo na capitalista,
tornou-se um fator de extrema relevância, porque demonstrava a importância e a
posição social que o indivíduo ocupava em determinada sociedade. Para Marx, “a
propriedade privada não é dado absoluto que se deva pressupor em toda
argumentação. Ela é muito mais “o produto, o resultado e a consequência
necessária do trabalho do trabalhador expropriado” (Antiseri; Reale, História da filosofia, 2005, p. 174),
fruto das relações entre os homens marcadas pela exploração.
Das relações entre
os homens nasceram a riqueza, a pobreza e muitos males que assolam a humanidade
até hoje. Marx entendia que à “máxima produção de riqueza corresponde o
empobrecimento máximo do operário” (Antiseri; Reale, 2005, p. 174). Como
esclarece Herculano (Em busca da
sociedade, 2006, p. 6), “para sobreviverem, os homens entram em relação com
a natureza, transformando-a, e em relação com os outros. Assim, ao mesmo tempo
em que produzem a sua sobrevivência, produzem também a sociedade”, que,
historicamente, dada a sua evolução, foi valorizando o ter e menosprezando o
ser.
Esse sistema no qual
tudo se torna válido em nome da
riqueza, inclusive o empobrecimento máximo, representa o capitalista, que Marx
condena. “No capitalismo, os poucos que não trabalhavam viviam com conforto e
luxo, graças à propriedade dos meios de produção” (Huberman, História da riqueza do homem, 1986, p.
212). Na lógica do sistema capitalista, muitos perdem e poucos ganham. O
acúmulo de capital não deve ser acessível a todos, pois, se assim fosse, não
haveria a concentração de capital nas mãos de poucos. O capital é, para Marx, “a propriedade privada dos produtos do
trabalho alheio” (Antiseri; Reale, 2005, p. 174, grifo nosso). É essa
realidade que deve sofrer interferência e ser transformada, pois todo homem tem
direito de desfrutar daquilo que seu trabalho produz.
Marx buscava
entender os meandros do capitalismo para poder transformar a realidade
capitalista, diminuindo ou erradicando a exploração. Fica claro que Marx compreendia
bem o sistema, mas não conseguiu, contudo, transformá-lo. Os mecanismos de
exploração foram ficando cada vez mais sofisticados. As pessoas se mostram cada
vez menos conscientes da exploração que sofrem, e a educação está a serviço do
sistema, reproduzindo e legitimando a desigualdade social. Para Marx, não é a educação que transforma a sociedade:
a educação transforma as pessoas e elas é que podem transformar a sociedade,
desde que não sejam vítimas de uma educação a serviço das finalidades do sistema.
Nas Teses sobre Feuerbach, mais precisamente
na terceira tese, Marx (1999, p. 5) afirma:
A teoria materialista de que os homens são produto
das circunstâncias e da educação e de que, portanto, homens modificados são
produtos de circunstâncias diferentes e de educação modificada esquece que as
circunstâncias são modificadas precisamente pelos homens e que o próprio
educador precisa ser educado. Leva, pois, forçosamente, à divisão da sociedade
em duas partes, uma das quais se sobrepõe à sociedade [...]. A coincidência da
modificação das circunstâncias e da atividade humana só pode ser apreendida e
racionalmente compreendida como prática transformadora.
É importante
ressaltar, com base no exposto, que Marx nunca apostou que a educação seria o
instrumento que iria pôr fim à realidade capitalista. Sem dúvida, trata-se de
um instrumento significativo no processo de conscientização da exploração, mas
não é o fator que gera o fim da exploração. O que poderia barrar a exploração
gerada pelo sistema capitalista é a conscientização
da classe trabalhadora quanto à exploração sofrida, a união e o uso da força
para expropriar das mãos da classe dominante os meios de produção.
O ideal marxista,
que consistia na supressão da exploração de um indivíduo por outro, bem como da
exploração de uma nação por outra (Marx; Engels, Manifesto
do Partido Comunista, 2015, p.
86), não vigorou, não se fortaleceu, e a exploração continua: o homem está
explorando cada vez mais o próprio homem, assim como fazem as nações entre si.
Nessa realidade
hostil à vida – em que o menos favorecido é explorado e ganha apenas o
essencial para a própria subsistência, enquanto o mais favorecido enriquece e
usufrui dos benefícios do lucro acumulado e da riqueza produzida à custa do
suor e do sangue alheio –, a igualdade não conquista espaço, porque há uma fissura
longa e profunda que separa a sociedade em classes: aquela que detém o capital
e os meios de produção e aquela que possui apenas a força de trabalho e deve
vendê-la para sobreviver aos efeitos do sistema.
No mundo
capitalista, o detentor dos meios de produção não se contenta em explorar ao
extremo; ele cria mecanismos para retirar do explorado o pouco que lhe foi
concedido, em forma de pagamento, por seus serviços prestados, muitas vezes em
condições insalubres. Nesse sentido, Marx e Engels (2015, p. 72) ressaltam que,
“terminada temporariamente a exploração do operário pelo fabricante, na medida
em que recebe o seu salário em dinheiro, logo lhe caem em cima os outros
setores da burguesia, o senhorio, o varejista, o agiota etc”,
Em outros termos, a exploração é incessante. O
capitalista não enxerga limites, o que significa que será tirado daquele que
quase não tem até o que ele possui. Isso, para Marx, é inadmissível, pois é
preciso que cada indivíduo tenha acesso
ao que for necessário, segundo sua capacidade e suas necessidades, a fim de
construir uma vida digna. Esse sistema que explora a maioria para garantir uma
vida de opulência, conforto e luxúria para uma minoria deve ser transformado
com base na conscientização acerca da exploração e da luta para evitá-la. Desse
modo, seria possível construir uma sociedade em que todos os cidadãos tivessem
uma vida digna.”
“Não há história
sem conflitos, assim como não há conflitos que estejam fora da história. Na
maioria das vezes, a consciência gera o conflito, o conflito gera a revolta, e
a revolta conflitante, dados os interesses inconciliáveis, é o fator gerador de
mudanças na sociedade.”
“Com Marx, o
capitalismo é entendido como uma consequência histórica relacionada ao homem,
ao trabalho, ao produto do trabalho e à economia. Com o advento do capitalismo
e da exploração do homem pelo próprio homem, Marx intentou a edificação de uma
sociedade em que o produto do trabalho não fosse mais valorizado do que o
sujeito histórico que o produziu.”
“Ao tomarmos como
base a Grécia antiga, podemos ressaltar que as origens do pensamento
predominante no Ocidente surgiram com a filosofia de Platão. Sua proposta
estava vinculada a uma racionalização da
vida, o que a distanciava de toda visão cosmológica adotada por seus antecessores.
Ele deslocou a primeira motivação da filosofia, que estava centrada na noção de
arché (com ênfase na natureza), para
a segunda perspectiva, segundo a qual o homem ocupa uma posição privilegiada,
com destaque para a alma. Assim, Platão elabora, no interior da história da
filosofia, a dicotomia corpo versus alma. Platão via o corpo como
uma prisão da alma, aquilo que impedia o homem de alcançar o conhecimento do
bem e da verdade. Ele valorizava a alma em detrimento do corpo, pois queria
destacar uma sobreposição de um “eu”, um sujeito, um ser racional, ou seja, a essência humana.
Friedrich Nietzsche
(1844-1900), ao contrário de Platão, via no corpo aquilo que é o homem, o fio
condutor* da própria vida. Além disso, o filósofo alemão entendia as
configurações platônicas como apenas uma interpretação humana, mas advinda de
um erro, de uma ficção. (...)
A única realidade
existente é a física em detrimento de
todas as causas mentais ou espirituais.
O corpo passou a
ser visto, então, como o labirinto no qual o indivíduo se confronta. Para
Nietzsche (2005b, Humano, demasiado
humano, p. 119), “se quiséssemos e ousássemos uma arquitetura conforme a
natureza de nossa alma (somos covardes demais para isso!) – então o labirinto
seria o nosso modelo”. O pensador lança mão da metáfora do labirinto para
demonstrar que a vida não tem essa racionalidade pensada por Platão. Isto é, se
nos encontrássemos em um lugar com muitos obstáculos e pensássemos como Platão,
possivelmente desejaríamos sair, mas, para o filósofo alemão, a intenção é não racionalizar a vida, não
mensurá-la, e a meta aqui apresentada “é não ter meta, mas oportunizar o
experimento e a vida” (Lacerda, 2015, p. 127), ou simplesmente vivê-la, não fugir dela e do incremento de prazer que
carrega consigo. (...)
Em A gaia
ciência, Nietzsche (2004a, p.
10) se questiona “se até hoje a filosofia, de modo geral, não teria sido apenas
uma interpretação do corpo e uma má-compreensão do corpo”, que foi apresentada
de forma dogmática levando o homem a eximir-se de qualquer explicação ou
questionamento sobre si mesmo. Podemos afirmar que Nietzsche vai apontar o
corpo para expressar um rompimento do dualismo entre corpo e alma. O que
Nietzsche pretende com sua crítica é desmistificar as crenças que nascem no âmago
da metafísica desde Platão e “em contraposição a este, mostrar que a sabedoria
não está em conquistar o conhecimento sobre o que é fixo (aos moldes da ideia e
do conceito), mas no que é, justamente, passageiro como se apresenta a ideia do
andarilho” (Lacerda, A noção de metafísica a partir do arcabouço
teórico do segundo período da obra nietzschiana, 2014, p. 157, grifo do
original).
Seu escopo é valorizar o devir, o fluir de todas as
coisas, e mostrar que elas têm uma história
e não são dadas como miraculosas, como propõe a filosofia metafísica.
Conforme
Nietzsche, em sua obra O nascimento da
tragédia, o grego era aquele que, na época trágica, experimentava a vida em
sua forma natural, vivendo intensamente os valores inerentes à sua natureza. A
dicotomia de um mundo aparente e outro verdadeiro não passa de um sintoma de
decadência, associada à ideia de não saber valorizar a vida com alegria. “Pois ‘a
aparência’ significa, nesse caso, novamente a realidade, mas numa seleção, correção, reforço... O artista trágico não é um pessimista — ele diz justamente
Sim a tudo questionável e mesmo terrível, ele é dionisíaco...” (Nietzsche, Crepúsculo
dos ídolos, 2006, p. 19, grifo do original). Assim, ele pode experimentar a
si mesmo e reconhecer-se com base na “satisfação consigo” (Nietzsche, 2004a, p.
173), o que o levará a ter um novo olhar sobre tudo o que é humano.
*: O corpo deve ser tomado como
“fio condutor” (KSA 11, 40 [15], p. 634) porque é através dele que se exprime
tudo aquilo que caracteriza a vida e todas as suas relações de força.
“A proposta fundamental da fenomenologia é que
o filósofo se volte para as próprias
coisas. Para além de construções e teorizações aparentemente justificadas,
o fenomenólogo deve construir uma filosofia que se fundamente sobre dados indubitáveis, isto é, sobre
evidências estáveis. Sem evidências,
não há ciência, como afirma Husserl em suas Pesquisas
lógicas. Os limites das evidências apodíticas revelam as limitações do
saber. Assim, é preciso buscar fenômenos tão evidentes que não se possa
negá-los.
Esse, portanto, é
o pano de fundo da fenomenologia: a epoché
fenomenológica, isto é, pôr em parênteses as percepções filosóficas, os
resultados da ciência e as certezas embotadas das crenças naturais que se
impõem em determinada visão de mundo e das coisas.
Em outras
palavras, é essencial suspender os
juízos sobre tudo o que não é apodítico nem controverso até que se consiga
encontrar aqueles dados que resistem aos assaltos da epoché.”
“Para Kierkegaard,
o “esteta”, a rigor, não tem como meta “possuir” todas as vítimas de suas
conquistas; seu deleite mais profundo consiste em conquistar e logo em seguida
abandonar a jovem conquistada. Dessa forma, talvez seja necessário nos
perguntarmos: Por que o esteta tem mais prazer em conquistar do que em possuir
o objeto de sua conquista? Por que a conquista é mais importante do que usufruir
daquilo que foi conquistado? Talvez porque o esteta é demasiadamente cauteloso
e ciente de sua posição, pois seu escopo consiste em fazer-se amar antes de amar.
Eu sou um
esteta, um erótico, que apreendeu a natureza do amor, a sua essência, que crê
no amor e o conhece a fundo, e apenas me reservo a opinião muito pessoal de que
uma aventura galante só dura, quando muito, seis meses, e que tudo chegou ao
fim quando se alcançam os últimos favores. Sei tudo isto, mas sei também que o
supremo prazer imaginável é ser amado, ser amado acima de tudo. Introduzir-se
como um sonho na imaginação de uma jovem é uma arte, sair dela, uma obra-prima.
Mas esta depende essencialmente daquela. (Kierkegaard, Diário de um
sedutor – Temor e tremor – O desespero humano, 1979, p. 51)
Percebe-se,
portanto, que a satisfação do esteta não atinge seu ápice no momento de se
apropriar do objeto de sua conquista, mas na hora de seu abandono, sem lhe dar
direito a palavras, razões ou justificativas para deixar aquilo que se
empenhara em conquistar. O esteta, ao ter a certeza de que a jovem é “capaz de
tudo lhe sacrificar”, chega ao momento mais sublime para ele: o instante em que
tudo se rompe sem que tenha feito sequer uma declaração ou uma promessa.
Prevalece apenas o silêncio.
Embora o esteta
esteja envolvido com suas afecções, é por demais racionalista. Isso o impede de se envolver para além daquilo que
tinha sido arquitetado para suas vítimas. “No entanto, algo ficara impresso
nela, como uma marca, ou seja, o rompimento sem direito a satisfações”. (...)
O esteta está em
paz consigo, pois tudo não passa de “uma conduta simulada” na qual as promessas
e as juras não são mais do que meras palavras desprezíveis, desprovidas de
sentido, verdade e compromisso. Por outro lado, para a pobre jovem rejeitada,
as promessas são verdadeiras e, por isso,
difícil
será reencontrar a paz. Ela perdoa-lhe, do mais fundo do seu coração, mas não
encontra repouso porque a dívida regressa; foi ela quem acabou o noivado, foi
ela a culpada da desgraça, foi o seu orgulho que aspirou ao que foge ao banal.
Ela arrependeu-se, mas não encontra repouso, porque os pensamentos acusadores a
desculpam; foi ele quem, pela sua astúcia, lhe introduziu na alma tal projeto.
E então odeia-o, o seu coração alivia-se em maldições, mas, uma vez mais, não
encontra repouso; censura-se por tê-lo odiado, ela, que é afinal uma pecadora;
censura-se porque, apesar de todas as perfídias por ele praticadas, sempre será
culpada. (Kierkegaard, 1979, p. 7)
No uso de sua
liberdade irrestrita, o esteta, sob o invólucro do desejo da conquista pela
conquista, desperta no âmago do alvo a ser conquistado um dos mais nobres
sentimentos que o ser humano pode nutrir: o amor. Ele se realiza no “fato de entregar-se ao gozo das sensações
imediatas” (Farago, Compreender
Kierkegaard, 2006, p. 121). O esteta, ao perceber que esse sentimento que
“habita no secreto, ou se acha escondido no mais profundo do coração”
(Kierkegaard, citado por Farago, 2006, p. 73) do ser humano está se
fortalecendo no interior de sua vítima, deixa-a desamparada. Nesse momento, o
sentimento de culpa aloja-se no
interior da jovem e não a abandona. Enquanto isso, o esteta está continuamente
distanciando-se do objeto de sua conquista sem remorso algum.
No estádio
estético, o homem da sensualidade, isto é, o esteta, o Don Juan, encontra-se
tão voltado para si próprio que se torna incapaz de se abrir para a relação com
o outro. Nesse estádio, o esteta não se compreende como alguém capaz de
partilhar sua existência com outrem. Desse modo, após a conquista, o abandono
torna-se iminente.
Por um lado, o
grande objeto de conquista do esteta não é apenas uma ou outra bela e
bem-educada jovem, mas a própria vida:
uma razão pela qual possa lutar, viver e morrer. Por outro lado, ainda falta ao
esteta, mesmo depois de ter colecionado uma série de conquistas, um sentido
para seu existir, o que o coloca diante do vazio, de dúvidas e, sobretudo, do
desespero. Isso ocorre porque,
cortado de
si mesmo, ele se isola cada momento do tempo para dele fazer uma totalidade
intensiva que lhe serve de eternidade. Esta vida, feita de uma série de
momentos contraditórios, cada um dos quais pretende realizar um absoluto gozo,
corresponde a esta fuga do homem para frente procurando separar-se de sua
sombra, sem conseguir jamais.
(Farago, 2006, p. 120)
Na fuga incessante
de si mesmo, o esteta, o homem de extremos e insensível, esconde o desespero e
sacrifica tudo “à busca do prazer imediato” (Farago, 2006, p. 122), que o leva
ao encontro com o outro, mas não à realização de si mesmo. Essa situação
“condena-o ao desespero” (Farago, 2006, p. 122). E, uma vez mais, o esteta,
tentando fugir do desespero que o envolve, depara-se com a esfera estética da
existência. Assim, cada conquista consumada na esfera estética se resume a uma
atualização do presente, que visa “restaurar a imediatez do instante vivido
sendo ao mesmo tempo um ato refletido” (Farago, 2006, p. 122). Mesmo se
tratando de um ato refletido a cada conquista, o esteta olha para si próprio e
diz: “Minha vida está totalmente nua de sentido [...]. Assim comigo, diante de
mim, [há] sempre um espaço vazio; [...] é cruel e insuportável... ” (Farago,
2006, p. 122).
A consciência do
vazio e da angústia experimentados pelo esteta acentua o limite da esfera
estética da existência, o que exige um novo modo de vida, a fim de que o fardo
da existência se torne suportável. O vazio culmina no desespero da existência
do esteta, caracterizado pela falta de
sentido com a qual se depara em seu existir, envolvido pela angústia, que
“é a realidade da liberdade enquanto possibilidade para a possibilidade”
(Kierkegaard, O conceito de angústia,
2010, p. 45), ou, ainda, “como o mostrar-se da liberdade para si mesma na
possibilidade” (Kierkegaard, 2010, p. 119). Essa realidade da liberdade, que
Kierkegaard denomina angústia, coloca o homem diante do nada quando ele
valoriza apenas o prazer, o efêmero, o fugaz, enquanto atualização do instante.
A possibilidade consiste em ser capaz de se tornar o que se almeja ser. Assim,
o indivíduo, sob a ótica kierkegaardiana, é mais do que a imediatez do prazer;
ele é aquilo que faz de si na
realidade da liberdade enquanto possibilidade de ser capaz de ser o que deseja
ser.
O vazio e a
angústia que envolvem o esteta abrem espaço para a vivência do estádio ético da
existência. “O instante tem sempre uma importância capital, pois o que lhe diz
respeito é sempre uma aparência. [...] O instante é tudo” (Kierkegaard, 1979,
p. 96). É nele que o homem se deleita de sua conquista, mas é nele também que
ele se depara com o vazio em sua existência e percebe “como a vida é cheia de
mistérios” (Kierkegaard, 1979, p. 93). Então, esse estilo de vida não se sustenta
mais. Para continuar a viver, torna-se fundamental realizar a passagem do
estádio estético para o estádio ético e, assim, apaziguar o desespero que o
invade. A existência no modo estético chega ao fim quando o esteta esgota todas
as possibilidades de significar sua existência, ao apostar em suas conquistas,
mas sem encontrar o verdadeiro sentido de existir nelas, dada a fugacidade do
prazer.”
“Se no estádio
estético o homem vivia segundo suas paixões, em busca de uma nova vítima para
conquistar, no estádio ético o que o conduz não são seus desejos, mas,
sobretudo, a razão. Isso não
significa que as paixões não existam — elas existem, mas estão subordinadas ao intelecto.
Como se
sabe, na dimensão estética o indivíduo atua de acordo com seu instinto à procura
desinibida pelo prazer, pela beleza e pela felicidade. Antagonicamente, na
dimensão ética ele deixa de agir sem refletir, pois suas ações visam um fim com
perspectivas de futuro; fato que no primeiro estádio não se é pensado devido à
ação sem ter em vista algo de futuro, no entanto, almejando, em suma, uma
conquista presente. (Caes, O indivíduo segundo a caracterização
kierkegaardiana em contraposição ao indivíduo hegeliano, 2012, p. 92)
Nesse estádio, o
homem não está mais apenas preocupado ou comprometido com o presente. Ele já
compreendeu que as ações no presente podem comprometer o futuro. Por esse
motivo, antes de tomar quaisquer decisões, a reflexão precede os sentimentos e
os controla, uma vez que a escolha realizada acarretará consequências, sejam
elas positivas, sejam negativas.”
“Para Sartre, o
homem, quando compreende que sua escolha não é apenas para si, mas envolve a
humanidade inteira, assimila e assume essa responsabilidade e, por isso,
angustia-se. A angústia, por sua vez, sendo oriunda do sentimento de
responsabilidade que todo homem tem para com a humanidade, não coloca o sujeito
em estado de inércia – ao contrário, exige dele uma escolha que o leva a agir.
E a consequência dessa ação é o próprio
homem quem deve decidir e julgar como boa ou má.
No caso do chefe
militar, Sartre (2014, O existencialismo
é um humanismo, p. 30) ressalta:
Quando,
por exemplo, um chefe militar assume a responsabilidade de atacar e envia um
certo número de homens à morte, ele faz uma escolha, e a faz, no fundo,
totalmente só. Sem dúvida há ordens que vêm de cima, mas elas são amplas e
precisam de uma interpretação, que será dada por ele, e dessa interpretação
depende a vida de dez, quatorze ou vinte homens. É inevitável que ele tenha, ao
tomar essa decisão, uma certa angústia. Todo chefe militar conhece essa
angústia. Isso não os impede de agir, pelo contrário, é a condição mesma de sua
ação, pois supõe que eles vislumbrem diversas possibilidades e, quando optam
por uma delas, percebem que ela só tem valor por ter sido escolhida. E essa
espécie de angústia, que é a que descreve o existencialismo, [...] não é uma
cortina a nos separar da ação, mas antes, faz parte da ação em si.
O chefe militar,
ao decidir atacar o inimigo, envia seus soldados à batalha. Em combate, alguns
perecerão, enquanto outros viverão a glória da conquista pela destruição do
inimigo. O chefe militar tinha consciência das vidas que seriam perdidas e
assumiu a responsabilidade por elas, pois não havia como se esquivar das
exigências da escolha realizada. “O que quer que ele faça, não tem como não
assumir a total responsabilidade diante dessa situação” (Sartre, 2014, p. 51).
Isso acontece porque “fazemos escolhas
perante os outros” (Sartre, 2014, p. 54, grifo nosso), embora as escolhas sejam
nossas. A escolha foi de Abraão pelo sacrifício de seu filho, ao ouvir a
suposta voz do anjo que lhe exigia tal feito; a escolha foi do chefe militar
pelo envio de seus soldados ao combate, mesmo sabendo que muitos não
retornariam vivos, depois de receber a mensagem de instância superior.
O que Sartre
almeja demonstrar, em ambas as situações, é que o homem não pode eximir-se da responsabilidade pela consequência da
escolha, que faz parte da ação. Toda ação é precedida por uma escolha, que
nunca será impedimento para a ação, mas condição para sua concretização.
Nesse ponto,
havendo clareza de que a angústia surge do sentimento de total e profunda
responsabilidade sobre a humanidade, o sujeito da ação, isto é, o homem,
depara-se com a necessidade de decidir,
sendo, portanto, livre para escolher da maneira que quiser. A escolha pela não
escolha, assim como a procrastinação da decisão, a incapacidade ou a recusa de
assumir os riscos que estiverem aliados à escolha, coloca, por sua vez, em
estreita relação a angústia e a má-fé.
A má-fé, segundo
Sartre (A idade da
razão, 1996, p. 95), está
relacionada à indecisão e à contradição: talvez uma das melhores
definições de má-fé apresentadas por
Sartre é aquela segundo a qual o homem sabe, mas, ao mesmo tempo, não quer
saber – ou seja, é uma contradição interna do sujeito, algo que se manifesta
como aquilo que ele sabe que é, mas que não gostaria de saber. Por isso, não se
decide e passa a viver de forma indecisa e contraditória – não em relação aos
outros, mas em relação a si próprio.
Quando Sartre ressalta que a má-fé é, também, mentira, é no sentido de uma
mentira que se conta para si mesmo, e não para outra pessoa, numa tentativa de
fugir de si próprio.
Além disso, a
ocultação da verdade, as desculpas e a ação descomprometida com o outro,
associada à incapacidade de admitir a angústia ou à tentativa de evitá-la mesmo
sabendo que é iminente, não deixam de ser facetas da má-fé – especialmente quando
vinculadas ao ingênuo pensamento de que é possível, ao agir, comprometer apenas
a si próprio. E o principal desses pontos é o erro. “Ao definirmos a situação humana como sendo de uma escolha
livre, sem escusas e sem auxílios, todo homem que se refugia por trás da
desculpa de suas paixões, todo homem que inventa um determinismo, é um homem de
má-fé. [...] A má-fé é, evidentemente, uma mentira [...], um erro” (Sartre,
2014, p. 54).
Enquanto, de um
lado, a angústia se apresenta como expressão autêntica da liberdade do homem na
busca pela realização última da própria liberdade em cada circunstância
concreta, a má-fé, de outro lado, manifesta-se como uma rejeição que o sujeito
faz de sua liberdade ao se refugiar em suas paixões e desculpas, numa tentativa
de evitar ou mascarar a angústia que o insere imediatamente na vida, em função
de sua liberdade.”
“Na primeira fase
de Wittgenstein, mais influenciada pelo pensamento de Russell e representada
pelo Tractatus Logico-Philosophicus,
Wittgenstein se dedica à busca por uma estrutura lógica que caracterize o
funcionamento da linguagem, que é concebida como o espelho do mundo, de tudo
aquilo que existe. O que não pudesse ser dito pela linguagem de forma clara
cairia no campo metafísico, isto é, no campo do indizível, restando apenas à
filosofia criticar esses equívocos. Em termos teóricos, só haveria a
possibilidade de conhecer o mundo por meio da linguagem. Portanto, “toda
filosofia é crítica da linguagem” (Wittgenstein, Tratado lógico-filosófico, 1987b, § 4.0031). Por isso, o filósofo
remete à seguinte asserção: “Os limites da minha linguagem significam os
limites do meu mundo” (Wittgenstein, 1987b, § 5.6).
Em sua segunda
fase, Wittgenstein deu o chamado giro de
180º e distanciou-se do entendimento de que a proposição e sua verdade
devem ser verificadas na experiência do mundo real. Nesse período, passou a
afirmar que há uma impossibilidade legítima entre um conceito lógico (da
linguagem) e um conceito empírico (da realidade).
Em outros termos,
a linguagem não se limitaria a uma capacidade conceitual da realidade, isto é, não seria a reprodução fiel do objeto,
o espelho do mundo, mas uma atividade, um jogo, e os jogos de linguagem
adquirem seu significado no social, na intersubjetividade, nos diferentes modos
de ser e de viver nos quais a fala está inserida. Dessa forma, de certa
maneira, é a linguagem que passa a
determinar a concepção que adquirimos acerca da realidade.”
“Ao longo da
história, a humanidade criou maneiras para aprender a lidar com suas perguntas.
Tais formas surgiram das necessidades impostas pelos problemas cotidianos, por
dificuldades que se apresentavam em determinado contexto ou época.
O próprio
surgimento da filosofia ocorreu dessa maneira, como tentativa de situar o homem
no mundo, de compreender os fenômenos da natureza, de encontrar respostas para
as perguntas que pareciam não ter solução ou aquelas que o pensamento mítico já
não conseguia responder satisfatoriamente.
A razão humana,
considerada no período do surgimento da filosofia, era capaz de agir sobre o
próprio ser humano e suas formas de organização, mas não sobre a natureza, com
a qual o homem precisa se entender, uma vez que não dispõe de meios para
transformá-la. Por esse motivo, no surgimento da filosofia, conhecer a
natureza, seus limites e suas possibilidades era fundamental para
contextualizar as questões humanas.
Diante disso, é
possível afirmar que a filosofia, desde o seu surgimento, é uma forma de pensamento sistemático,
organizado, que exige profundidade e que busca uma compreensão dos contextos
nos quais se insere. Assim, não é possível dissociá-la do mundo, tampouco da
vida. A filosofia, para Jaspers, deve retirar o homem da zona de conforto, isto
é, levá-lo a uma inquietação profunda,
distanciando-o da situação de anestesia perante os problemas do mundo. Ela,
portanto, deve questionar essa postura e obrigar cada um a olhar o processo a
partir do qual constrói seu pensamento e que lhe serve de base para concluir o
que conclui.
A filosofia,
portanto, não é um pensar descontextualizado, uma viagem ao mundo de ideias
fantasiosas. Ela se constrói a partir de conceitos que têm uma gênese e um
contexto. Pressupõe que se tenha um profundo conhecimento de si e da realidade
para que se possa pensar com fundamentos sólidos acerca de questões e problemas
fundamentais que envolvem a existência humana.”
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