Editora: Companhia Editora Nacional
Tradutor: Brenno Silveira
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 206
Sinopse: Ver Parte
I
“A síntese do século XIII, que tinha um ar de
perfeição e finalidade, foi destruída por diversas causas. Destas, talvez a
mais importante haja sido o desenvolvimento de uma rica classe comercial,
primeiro na Itália e depois em outros lugares. A aristocracia feudal, em geral,
fora ignorante, estúpida e bárbara; a gente comum havia tomado o partido da
Igreja, como superior à nobreza em inteligência, na moralidade e na capacidade
para combater a anarquia. Mas a nova classe comercial era tão inteligente quanto
o clero, tão bem informada em assuntos mundanos, mais capaz de lidar com os
nobres e mais aceitável, para as classes inferiores urbanas, como campeã da
liberdade civil. As tendências democráticas vieram à tona e, após ajudarem o
Papa a vencer o Imperador, empreenderam a tarefa de emancipar a vida econômica
do controle eclesiástico.
Outra causa do fim da Idade Média foi o
advento de fortes monarquias nacionais na França, Inglaterra e Espanha. Havendo
suprimido a anarquia interna, e aliando-se aos mercadores ricos contra a
aristocracia, os reis, depois de meados do século XV, estavam suficientemente
fortes para lutar contra o Papa no interesse nacional. (...)
E, assim, a Renascença e a Reforma
romperam a síntese medieval, que não havia ainda sido sucedida por nada tão
metódico e aparentemente tão completo.”
“Os judeus distinguiam-se de todas as outras
nações da antiguidade pelo seu inflexível orgulho nacional. Todas as outras,
quando conquistadas, aquiesciam tanto em seu íntimo como exteriormente; somente
os judeus conservavam a crença em sua própria preeminência e a convicção de que
seus infortúnios eram devidos à ira de Deus, porque haviam deixado de conservar
a pureza de sua fé e de seu ritual. Os livros históricos do Antigo Testamento,
que foram, em sua maioria, compilados depois do cativeiro dão uma impressão
errônea, já que sugerem que as práticas idólatras contra as quais os profetas
protestaram eram uma decadência da primitiva severidade, quando, na verdade, a
primitiva severidade jamais existiu. Os profetas eram inovadores, num grau
muito maior do que o que aparece na Bíblia quando não é lida de maneira
histórica.
Certas coisas que se tornaram, depois,
características da religião judaica, se desenvolveram, embora provenientes, em
parte, de fontes anteriormente existentes, durante o cativeiro. Devido à
destruição do Templo, que era o único lugar onde podiam oferecer-se
sacrifícios, o ritual judaico tornou-se, forçosamente, privado dos mesmos. As
sinagogas começaram nesse tempo, com leituras das partes das Escrituras já
existentes. A importância do Sabá foi ressaltada, pela primeira vez, nesse
período, bem como a circuncisão, como sendo a marca dos judeus. Foi somente
durante o exílio que o casamento com os gentios passou a ser proibido.
Desenvolveu-se toda a forma de exclusividade. “Eu sou o Senhor vosso Deus, que
vos separarei dos outros povos” (Lv 20,24). “Sede santos, porque eu sou santo,
o Senhor vosso Deus” (Lv 19,2). A Lei é um produto deste período. Foi uma das
forças principais que preservaram a unidade nacional.
O que temos como Livro de Isaías é obra de
dois profetas diferentes, um anterior ao desterro e outro posterior. O segundo
destes, que é chamado, pelos estudantes bíblicos, Deutero-Isaías, é o mais
notável dos profetas. É o primeiro que se refere ao Senhor como tendo dito:
“Não há outro Deus senão eu”. Acredita na ressurreição do corpo, talvez como
resultado da influência persa. Suas profecias relativas ao Messias foram, mais
tarde, os principais textos do Antigo Testamento utilizados para mostrar que os
profetas previram a vinda de Cristo.”
“À medida que o Cristianismo se ia
helenizando, ia-se tornando teológico. A teologia judaica sempre foi simples.
Jeová, de deidade tribal que era, passou a ser o único Deus onipotente que
criou o céu e a terra; a justiça divina, quando se viu que não conferia
prosperidade terrena aos virtuosos, foi transferida para o céu, o que implicava
a crença na imortalidade. Mas, em toda a sua evolução, o credo judaico não
envolvia nada de complicado ou metafísico; não tinha mistérios, e todo judeu
podia compreendê-lo.
Essa simplicidade judaica, de um modo geral,
ainda caracteriza os Evangelhos sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas), mas já
desapareceu em João onde Cristo é identificado com o Logos platônico-estoico. É menos o Cristo homem que o Cristo figura
teológica o que interessa ao quarto evangelista. Isto é ainda mais verdade
quanto ao que diz respeito aos Padres; encontrar-se-á em seus escritos um
número muito maior de alusões a São João do que aos outros três evangelhos
reunidos. As epístolas paulinas também contém muita teologia, principalmente
com respeito à salvação; mostram, ao mesmo tempo, considerável conhecimento de
cultura grega: uma citação de Menandro, uma alusão a Epimênides o cretense, que
disse que todos os cretenses são mentirosos, e assim por diante. Não obstante,
São Paulo* diz: “Guarda-te, para que nenhum homem te despoje pela filosofia e
pelo vão engano”.”
*: Ou antes o autor de uma Epístola atribuída
a São Paulo (Cl 2,8).
“Quatro homens são os chamados Doutores da
Igreja ocidental: Santo Ambrósio, São Jerônimo, Santo Agostinho e o Papa
Gregório, o Grande. Destes, os três primeiros eram contemporâneos, enquanto que
o quarto pertenceu a uma época posterior.
Ambrósio, Jerônimo e Agostinho floresceram
durante o breve período que medeia entre a vitória da Igreja católica no
Império Romano e a invasão dos bárbaros. Os três eram jovens durante o reinado
de Juliano, o Apóstata; Jerônimo viveu ainda dez anos depois do saque de Roma
pelos godos comandados por Alarico; Agostinho viveu até a irrupção dos vândalos
na África, e morreu enquanto estes estavam assediando Hipona, da qual era
bispo. Imediatamente após sua época, os donos da Itália, Espanha e África não
eram só bárbaros, mas heréticos arianos.
A civilização declinou durante séculos, e não
foi senão quase mil anos depois que a Cristandade produziu de novo homens que
foram seus iguais em erudição e cultura. Durante toda a idade do obscurantismo
e o período medieval, sua autoridade foi reverenciada; eles, mais dos quaisquer
outros homens, fixaram o molde a que se ajustou a Igreja. De um modo geral,
Santo Ambrósio determinou a concepção eclesiástica da relação entre a Igreja e
o Estado; São Jerônimo deu à Igreja ocidental a sua Bíblia latina e uma grande
parte do ímpeto monástico; enquanto que Santo Agostinho fixou a teologia da
Igreja até a Reforma e, mais tarde, uma grande parte das doutrinas de Lutero e
Calvino. Poucos homens foram mais influentes que esses três no decurso da
história. A independência da Igreja em relação ao Estado secular, como foi triunfalmente
mantida por Santo Ambrósio, era uma doutrina nova e revolucionária, que
prevaleceu até a Reforma. Quando Hobbes a combateu no século XVII, era contra
Santo Ambrósio que principalmente argumentava. Santo Agostinho ocupou o
primeiro plano das controvérsias teológicas durante os séculos XVI e XVII,
sendo a seu favor os protestantes e jansenistas, e contra eles os católicos.
A capital do Império Ocidental, no fim do
século IV, era Milão, da qual Ambrósio era bispo. Seus deveres punham-no
constantemente em contato com os imperadores, com os quais falava como um igual
e, às vezes, como um superior. Suas relações com a corte imperial ilustram um
contraste geral característico da época: enquanto o Estado era fraco,
incompetente, governado por homens sem princípios, que procuravam defender
apenas seus próprios interesses, sem qualquer política que fosse além de
expedientes do momento, a Igreja era vigorosa, hábil, dirigida por homens
prontos a sacrificar tudo no interesse dela, e possuidora de uma política de
tão grande alcance que lhe assegurou a vitória durante os mil anos
subsequentes. É verdade que esses méritos eram com frequência contrabalançados
pelo fanatismo e pela superstição, mas, sem eles, nenhum movimento reformador
poderia haver triunfado naquele tempo.”
“Os cristãos puseram a Igreja no lugar do
Povo Escolhido, mas, exceto sob um aspecto, isso fez pouca diferença quanto à
psicologia do pecado. A Igreja, como os judeus sofria tribulações; a Igreja era
perturbada por heresias; os cristãos individuais caíam em apostasia sob o peso
da perseguição. Houve, porém, um progresso importante, já feito, em grande
parte, pelos judeus, e que foi a substituição do pecado comunal pelo pecado
individual. Originariamente, era a nação judaica que pecava, e que era punida
coletivamente; mais tarde, porém, o pecado tornou-se mais pessoal, perdendo,
assim, o seu caráter político. Quando a nação judaica foi substituída pela
Igreja, essa mudança se tornou essencial, já que a Igreja, como uma entidade
espiritual, não podia pecar, mas o pecador individual poderia deixar de estar
em comunhão com a Igreja. O pecado, como acabamos de dizer, está ligado à
importância que o indivíduo atribui a si mesmo. No princípio, a importância era
da nação judaica, mas, subsequentemente, passou a ser a do indivíduo – não
da Igreja, porque a Igreja jamais pecou. E, assim, aconteceu que a teologia
cristã teve duas partes, uma concernente à Igreja, e outra à alma individual.
Em épocas posteriores, a primeira delas foi a mais ressaltada pelos católicos,
e a segunda pelos protestantes, mas em Santo Agostinho ambas existem
igualmente, sem que ele tenha qualquer sensação de desarmonia. Os que são
salvos são aqueles que Deus predestinou à salvação; esta é uma relação direta
da alma com Deus. Mas ninguém será salvo a menos que haja sido batizado,
tendo-se tornado, assim, um membro da Igreja; isto faz da Igreja uma
intermediária entre a alma e Deus.
O pecado é o que é essencial à relação
direta, já que explica como uma Deidade benfeitora pode fazer com que os homens
sofram, e como, apesar disso, as almas individuais podem ser o que há de mais
importante no mundo criado. Não é, pois, surpreendente que a teologia sobre a
qual se baseava a Reforma fosse devida a um homem cujo sentido do pecado era
anormal.”
“O Livro XI das Confissões
trata do problema: tendo a Criação ocorrido como afirma o primeiro capítulo
do Gênese, e como Santo Agostinho mantém contra os maniqueus, devia ter
ocorrido o mais cedo possível. Assim imagina ele a objeção de algum
interlocutor.
O primeiro ponto a verificar, para que se
compreenda a sua resposta, é que a Criação saiu do nada, como ensina o Antigo
Testamento, como uma ideia inteiramente alheia à filosofia grega. Quando Platão
fala de criação, imagina uma matéria primitiva a que Deus deu forma; e o mesmo
ocorre com Aristóteles. Seu Deus é um artífice ou arquiteto, mais do que um
criador. A substância é considerada como eterna e incriada; somente a forma é
devida à vontade de Deus. Contra essa opinião, Santo Agostinho afirma, como o
deve fazer todo cristão ortodoxo, que o mundo foi criado não de uma certa
matéria, mas do nada. Deus criou a substância, e não somente a ordem e a
disposição.
O conceito grego, de que a criação partindo
do nada é impossível, foi repetido, a intervalos, nos tempos cristãos tendo
conduzido ao panteísmo. O panteísmo afirma que Deus e o mundo não são
distintos, e que tudo no mundo é parte de Deus. Este conceito é desenvolvido
mais amplamente por Spinoza, mas do nada. Deus criou a substância, e não
somente a ordem durante todos os séculos cristãos, que os místicos tiveram
dificuldade em manter-se ortodoxos, já que acham difícil acreditar que o mundo
é exterior a Deus. Agostinho, porém, não vê dificuldade alguma nisso; o Gênese
é explícito, e isso lhe basta. Sua opinião sobre esta matéria é essencial à sua
teoria do tempo.
Por que não foi o mundo criado antes? Porque
não havia o “antes”. O tempo foi criado quando se criou o mundo. Deus é eterno,
no sentido em que está fora do tempo; em Deus não existe antes nem depois, mas
só um presente eterno. A eternidade de Deus está isenta da relação de tempo;
todo tempo está presente para Ele simultaneamente. Ele não precede sua própria criação do tempo, pois isso implicaria que Ele
estava no tempo, enquanto que Ele permanece eternamente fora da corrente do
tempo. Isto leva Santo Agostinho a uma teoria relativista do tempo sumamente
admirável.
“Que é, pois, o tempo?”, pergunta. “Se
ninguém me pergunta, eu o sei; se desejo explicar a quem o pergunta, não o
sei”.”
“A Cidade
de Deus contém pouca coisa que seja fundamentalmente original. A
escatologia é de origem judaica, e entrou no Cristianismo principalmente
através do Livro da Revelação. A doutrina da predestinação e eleição é paulina,
embora Santo Agostinho a desenvolvesse mais ampla e logicamente do que se pode
encontrar nas Epístolas. A diferença entre a história sagrada e a profana é
exposta com muita clareza no Antigo Testamento. O que Santo Agostinho fez foi
reunir esses elementos e relacioná-los com a história de sua própria época, de
tal modo que a queda do Império ocidental e o período subsequente de confusão
pudessem ser assimilados pelos cristãos sem que isso constituísse uma provação
demasiado severa para a sua fé. O exemplo judaico de história, passada e
futura, é de molde a atrair poderosamente os oprimidos e infortunados de todos
os tempos.
Santo Agostinho adaptou esse modelo ao
Cristianismo; Marx, ao socialismo. Para se compreender psicologicamente Marx,
dever-se-ia empregar o seguinte dicionário:
Jeová = Materialismo dialético
O Messias = Marx
Os eleitos = O proletariado
A Igreja = O Partido Comunista
O Segundo Advento = A revolução
Inferno = O castigo dos capitalistas
O milênio = O Estado comunista
Os termos da esquerda dão o conteúdo
emocional dos termos da direita, e é esse conteúdo emocional, familiar àqueles
que tiveram uma educação cristã ou judaica, o que torna cível a escatologia de
Marx. Um dicionário semelhante poderia ser feito para os nazistas, mas suas
concepções são mais puramente estilo Antigo Testamento e menos cristãs que as
de Marx – e o seu Messias é mais análogo aos macabeus do que a Cristo.”
“É estranho que os últimos homens de
eminência intelectual (Santo Ambrósio, São Jerônimo, Santo Agostinho e o Papa
Gregório, o Grande), antes da época do obscurantismo, se ocupassem não de
salvar a civilização, ou de expulsar os bárbaros, ou de reformar os abusos da
administração, mas de pregar o mérito da virgindade e falar da condenação das
criancinhas não batizadas. Vendo-se que essas eram as preocupações que a Igreja
transmitiu aos bárbaros convertidos, não é de estranhar que a época seguinte
ultrapasse, em crueldade e superstição, quase todos os outros períodos
históricos.”
“As organizações têm vida própria,
independente das intenções de seus fundadores. Deste fato, o exemplo mais
evidente é a Igreja Católica, que assombraria Jesus e, mesmo, Paulo.”
“O Venerável W. H. Hutton, arcediago de
Northampton afirma que Gregório foi o maior homem do século VI; seus únicos
competidores poderiam ser, diz ele, Justiniano e São Benedito. Todos três, sem
dúvida exerceram profunda influência sobre as épocas subsequentes: Justiniano,
pelas suas leis (não pelas suas conquistas, que foram efêmeras); Benedito pela
sua ordem monástica; e Gregório pelo incremento do poder papal, que se deve a
ele. Nos diálogos que venho citando, ele parece pueril e crédulo, mas, como estadista,
é astuto, hábil, perfeitamente a par do que se podia conseguir no mundo
variável e complexo em que tinha de agir. O contraste é surpreendente; mas os
mais eficientes homens de ação são, com frequência, inferiores
intelectualmente. (...)
O período que estivemos considerando é
peculiar pelo fato de que, embora seus grandes homens sejam inferiores aos de
muitas outras épocas, sua influência sobre as épocas futuras foi maior. O
direito romano, o monasticismo e o papado devem em grande parte sua longa e profunda
influência a Justiniano, Benedito e Gregório. Os homens do século IV, embora
menos civilizados que seus predecessores, foram muito mais civilizados que os
homens dos quatro séculos seguintes, conseguindo estabelecer instituições que,
por fim, domesticaram os bárbaros. É digno de nota o fato de que, dos três
homens referidos, dois foram aristocratas nativos de Roma e o terceiro um
imperador romano. Gregório é, num sentido bastante real, o último dos romanos.
Seu tom de comando, embora justificado pelo seu posto, tem sua base instintiva
no orgulho aristocrático romano. Depois dele, durante muito tempo, a cidade de
Roma deixou de produzir grandes homens. Mas, em sua queda, conseguiu prender as
almas de seus conquistadores: a reverência que sentiam pela Cadeira de Pedro
era uma consequência do temor respeitoso que sentiram pelo trono dos Césares.”
“A conquista da Itália pelos sarracenos foi
evitada pelo Império oriental, que derrotou, em 915, os sarracenos de
Garigliano. Mas não foi bastante forte para governar Roma, como fizera depois
da conquista de Justiniano, e o papado se converteu, durante cerca de um
século, numa fonte de vantagem acidental da aristocracia romana ou dos condes
de Túsculo. Os romanos mais poderosos, no começo do século X, eram o “Senador”
Teofilacto e sua filha Marozia, em cuja família o papado se tornou quase
hereditário. Marozia teve vários maridos sucessivos, bem como um número
desconhecido de amantes. Um destes últimos ela elevou ao papado, sob o título
de Sérgio II (904-11). O filho de ambos foi o Papa João XI (931-36); seu neto
era João XII (955-64), que se tornou Papa aos dezesseis anos de idade e
“completou a decadência do papado com sua vida licenciosa e as orgias que logo
tivera como palco o palácio de Latrão”*. Marozia é, provavelmente, o motivo
para a lenda de “Papisa Joana”.
Os papas desse período perderam,
naturalmente, a influência que seus predecessores haviam conservado no Oriente.
Perderam também o poder que Nicolau I havia exercido com êxito sobre os bispos,
ao norte dos Alpes Os concílios provinciais confirmaram sua completa
independência do Papa, mas não conseguiram manter-se independentes dos
soberanos e senhores feudais. Os bispos assemelhavam-se, cada vez mais, aos
magnatas leigos feudais. “A própria Igreja aparece, assim, como vítima da mesma
anarquia em que se achava mergulhada a sociedade mundana; todos os maus
instintos se achavam, mais do que em qualquer outra época, desenfreados de modo
que o clero que ainda conservava algum interesse pela religião e pela salvação
das almas se lamentava da decadência universal, e dirigiu os olhos dos fiéis
para o espectro do fim do mundo e do Juízo Final.”**
É um engano, porém, supor-se que prevalecia
nessa época um temor especial pelo fim do mundo no ano 1000, como se costumava
pensar. Os cristãos, de São Paulo em diante, acreditavam que o fim do mundo
estava próximo, mas continuavam, não obstante, na sua maneira de viver
habitual.
O ano 1000 pode ser tomado, convenientemente,
como assinalando o fim da maior decadência a que a civilização da Europa
ocidental havia chegado. A partir de então, começou o movimento ascendente, que
prosseguiu até 1914. No começo, o progresso foi devido principalmente à reforma
monástica. Fora das ordens monásticas, o clero havia-se tornado, em sua maior
parte, violento, imoral e mundano: achava-se corrompido pela riqueza e o poder,
que devia à caridade dos piedosos. O mesmo ocorria, repetidamente, mesmo nas
ordens monásticas; mas os reformadores, com novo zelo, reanimavam sua força
moral sempre que esta decaía.
Outra razão que faz do ano 1000 um momento
decisivo é a cessação, mais ou menos nessa época, da conquista tanto dos
maometanos como dos bárbaros nórdicos, pelo menos quanto ao que dizia respeito
à Europa ocidental. Os godos, lombardos, húngaros e normandos vieram em ondas
sucessivas; cada horda era, por sua vez, cristianizada, mas também enfraquecia
a tradição da civilização. O império ocidental dividiu-se em muitos reinos
bárbaros; os reis perderam sua autoridade sobre os vassalos; havia anarquia
geral, com incessante violência, tanto em pequena como em grande escala. Por
fim, todas as raças dos vigorosos conquistadores do norte foram convertidas ao
Cristianismo, adquirindo morada fixa. Os normandos, que foram os últimos a
chegar, mostraram-se particularmente capazes de civilização. Reconquistaram a
Sicília dos maometanos. Trouxeram a Inglaterra de volta ao mundo romano, do
qual os dinamarqueses a haviam, em grande parte, excluído. Uma vez assentados
na Normandia, permitiram que a França revivesse, contribuindo materialmente
para isso.
Nosso emprego da frase “a era do
obscurantismo”, referente ao período que vai de 600 a 1000, revela que nos
concentramos indevidamente na Europa ocidental. Na China, esse período inclui o
tempo da dinastia Tang, a época mais alta da poesia chinesa e, sob muitos
outros aspectos, um período sumamente notável. Passando da Índia à Espanha,
floresceu a brilhante civilização do Islã. O que a Cristandade perdeu nessa
época, não o perdeu a civilização, ocorrendo antes o contrário. Ninguém poderia
ter previsto que a Europa ocidental dominaria mais tarde, tanto em poder como
em cultura. Para nós, parece que a civilização europeia ocidental é a
civilização, mas este é um ponto de vista estreito. A maior parte do conteúdo
de nossa civilização vem do Mediterrâneo oriental, através dos gregos e judeus.
Quanto ao poder, a Europa ocidental predominou desde as guerras púnicas até a
queda de Roma, ou seja, aproximadamente, durante os seis séculos que vão do ano
200 A. C. ao ano 400 de nossa era. Depois disso, nenhum Estado da Europa
ocidental podia comparar-se, em poder, à China, ao Japão ou ao Califado.
Nossa superioridade, desde a Renascença, é
devida, em parte, à ciência e à técnica científica e, em parte, a instituições
políticas construídas lentamente durante a Idade Média. Não há razão, na
natureza das coisas, para que essa superioridade deva continuar.”
*: Cambridge Medieval History, III,
455. / **: Ibid.
“Santo
Anselmo era, como Lanfranc, italiano, frade em Bec e arcebispo de Cantuária
(1093-1109), em cuja capacidade seguiu os princípios de Gregório VII e entrou
em disputa com o rei. Sua fama se baseia, principalmente, na invenção do
“argumento ontológico” quanto a existência de Deus. Segundo ele, o argumento é
o seguinte: definimos “Deus” como o maior objeto possível do pensamento. Ora,
se um objeto do pensamento não existe, outro, exatamente igual a ele, que
exista, é maior. Portanto, o maior de todos os objetos do pensamento deve
existir, porque senão outro, ainda maior, seria possível. Portanto, Deus
existe.
Este argumento jamais foi aceito pelos
teólogos. Foi contrariamente criticado em sua época; depois, foi esquecido, até
a última parte do século XIII. Tomás de Aquino rejeitou-o e, entre os teólogos,
sua autoridade prevaleceu desde então. Mas, entre os filósofos, teve melhor
destino. Descartes ressuscitou-o de forma um tanto modificada; Leibniz achou
que podia ser tornado válido, acrescentando-lhe uma prova de que Deus é
possível. Kant julgava que o havia demolido de uma vez para sempre. Não
obstante, em certo sentido, constitui a base do sistema de Hegel e seus
adeptos, reaparecendo no princípio de Bradley: “O que pode e deve ser, é”.
Não há dúvida de que um argumento com uma
história tão ilustre deve ser tratado com respeito, quer seja válido ou não. A
questão real é: Existe algo em que possamos pensar que, pelo simples fato de
que possamos pensar nele, exista fora de nosso pensamento? Todo filósofo
gostaria de responder que sim, pois a missão do filósofo é descobrir coisas
acerca do mundo mais pelo pensamento que pela observação. Se o sim for a
resposta correta, existe uma ponte entre o pensamento puro e as coisas; senão,
não. Nesta forma generalizada, Platão emprega uma espécie de argumento
ontológico para provar a realidade objetiva das ideias. Mas ninguém, antes de
Anselmo, havia exposto o argumento em toda a sua pureza lógica. Ao ganhar em
pureza, perde em plausibilidade; mas isto também constitui crédito para
Anselmo.”
“Quanto ao resto, a filosofia de Anselmo
deriva-se principalmente de Santo Agostinho, de quem adquire muitos elementos
platônicos. Ele acreditava nas ideias platônicas, das quais deduz outra prova
da existência de Deus. Mediante argumentos neoplatônicos, professa provar não
apenas a existência de Deus, mas da Trindade. (Recordar-se-á que Plotino tinha
uma Trindade, embora não fosse tal que um cristão pudesse aceitá-la como
ortodoxa). Anselmo considera a razão inferior à fé. “Creio para compreender”,
diz ele. Segundo as pegadas de Agostinho, afirma que, sem fé, é impossível
compreender. Deus, diz ele, não é justo,
mas justiça. Recordar-se-á que João
Scoto diz coisas parecidas. A origem comum está em Platão.
Santo Anselmo, como seus predecessores em
filosofia cristã, representa mais a tradição platônica que a aristotélica. Por
essa razão, não possui as nítidas características chamadas “escolásticas”, que
culminaram em Tomás de Aquino. Esta espécie de filosofia pode considerar-se
como tendo sua origem em Roscelino, que era contemporâneo de Anselmo, sendo
dezessete anos mais moço que ele. Roscelino assinala um novo começo.
Quando se diz que a filosofia medieval, até o
século XIII, foi principalmente platônica, é preciso lembrar que Platão, exceto
num fragmento do Timeu, era conhecido somente de segunda ou terceira mão. João
Scoto Erígena, por exemplo, não poderia ter tido as ideias que teve se não
fosse por Platão, mas a maior parte do que nele existe de platônico provém do
pseudo Dionísio. A data deste autor é incerta, mas parece provável que haja
sido discípulo de Proclo, o neoplatônico. É também provável que João Scoto
jamais haja ouvido falar de Proclo ou lido uma linha de Plotino. À parte o
pseudo Dionísio, a outra fonte do platonismo na Idade Média foi Boécio. Este
platonismo era, sob muitos aspectos, diferente daquele que o estudante moderno
tira dos próprios escritos de Platão. Omitia quase tudo que não tinha relação
evidente com a religião e, na filosofia religiosa, aumentava e realçava certos
aspectos a expensas de outros. Essa modificação no conceito relativo a Platão
já havia sido feita por Plotino. O conhecimento de Aristóteles era também
fragmentário, mas em sentido contrário: tudo o que se conhecia dele até o
século XII era a tradução de Boécio das Categorias
e De Emendatione. Assim, concebeu-se
Aristóteles como mero dialético e Platão somente como filósofo religioso e
autor da teoria das ideias. Durante o curso da última fase da Idade Média,
estas duas concepções parciais foram corrigidas pouco a pouco, principalmente
com relação a Aristóteles. Mas, quanto ao que concerne a Platão, esse processo
não chegou a seu termo senão na Renascença.”
“Uma das coisas mais curiosas acerca da Idade
Média, é que foi original e criadora sem que o soubesse. Todos os partidos
justificavam sua política mediante argumentos antiquados e arcaicos. O
imperador apelava, na Alemanha, para os princípios feudais do tempo de Carlos
Magno; na Itália, para o direito romano e o poder dos antigos imperadores. As
cidades lombardas voltavam-se para tempos ainda mais distantes: as instituições
da Roma republicana. O partido do Papa baseava suas reivindicações em parte na
forjada Doação de Constantino, em parte nas relações entre Saul e Samuel,
segundo conta o Antigo Testamento. Os escolásticos referiam-se às Escrituras ou
a Platão e, depois, a Aristóteles. Quando eram originais, procuravam ocultar
tal fato. As cruzadas estavam empenhadas em restaurar o estado de coisas
existente antes da expansão do Islã.
Não devemos deixar que este arcaísmo
literário nos engane. Somente no caso do imperador correspondia ele aos fatos.
O feudalismo estava em decadência, principalmente na Itália; o Império Romano
já não passava de uma recordação. Assim, pois, o imperador foi derrotado. As
cidades do norte da Itália, ao mostrar, em seu desenvolvimento posterior, muita
semelhança com as cidades da antiga Grécia, repetiam o mesmo padrão, não por
imitação, mas devido à analogia das circunstâncias: comunidades pequenas,
ricas, muito civilizadas, republicanas e comerciais, cercadas por monarquias de
um nível de cultura inferior. Os escolásticos, por muito que reverenciassem
Aristóteles, mostravam mais originalidade que qualquer árabe – mais, com
efeito, que ninguém desde Plotino ou, de qualquer modo, desde Agostinho. Tanto
na política como no pensamento, havia a mesma superior originalidade.”
“Quanto à santidade, São Francisco não teve
iguais; o que o torna único entre os santos é a sua felicidade espontânea, o
seu amor universal e os seus dons de poeta. Sua bondade surge sempre sem
esforço, como se não tivesse de vencer nada. Amava todas as coisas vivas, não
somente como cristão ou homem benevolente, mas como poeta. Seu hino ao Sol,
escrito pouco antes de sua morte, quase
podia ter sido escrito por Ikhnaton, o adorador do Sol, mas não de todo, pois o
Cristianismo, embora não o faça de maneira muito evidente, o inspira. Sentia
seu dever para com os leprosos – para bem deles, e não dele. Ao contrário
de muitos santos cristãos, interessava-se mais pela felicidade dos outros que
pela sua própria salvação. Jamais revela qualquer sentimento de superioridade,
mesmo diante dos mais humildes e dos perversos. Tomás de Celano disse dele que
era mais que um santo entre santos: era-o entre os pecadores.
Se Satanás existisse, o futuro da ordem
fundada por São Francisco lhe proporcionaria a mais saborosa satisfação. O
sucessor imediato do santo como dirigente da ordem, o irmão Elias, entregou-se
ao luxo, permitindo que se abandonasse completamente a pobreza. A principal
tarefa dos franciscanos, nos anos imediatamente posteriores à morte de seu
fundador, foi recrutar sargentos para as rancorosas e sangrentas guerras entre
guelfos e gibelinos. A Inquisição, fundada sete anos depois de sua morte, foi
conduzida em vários países principalmente por franciscanos. Uma pequena minoria,
chamada os espirituais, permaneceu fiel aos seus ensinamentos; muitos deles
foram queimados pela Inquisição por heresia. Estes homens afirmavam que Cristo
e os Apóstolos não possuíam propriedades, nem mesmo as roupas que usavam; esta
opinião foi condenada com herética em 1323, por João XXIII. O resultado final
da vida de São Francisco foi criar uma ordem ainda mais rica e corrupta,
fortalecer a hierarquia e facilitar a perseguição de todos os que se
sobressaíam por correção moral ou liberdade de pensamento. Tendo-se em conta os
seus próprios objetivos e caráter, é impossível imaginar-se um resultado mais
amargamente irônico.”
“Dante (1265-1321), embora como poeta fosse
um grande inovador, estava, como pensador, atrasado quanto à sua época. Sua obra
De Monarchia é um tanto gibelina em sua
perspectiva, e teria sido mais oportuna cem anos antes. Considera o imperador e
o Papa independentes, ambos designados por Deus. Na Divina Comédia, seu
Satanás tem três bocas, com as quais mastiga eternamente Judas Iscariotes,
Bruto e Cássio, que são, todos três igualmente traidores, o primeiro contra
Cristo e os outros dois contra César. O pensamento de Dante é interessante, não
só em si mesmo, como o de um leigo; mas não exerceu influência e estava
irremediavelmente fora de época.”
“O século XIII levara a termo uma grande
síntese, filosófica, teológica, política e social que havia sido elaborada
lentamente por uma combinação de muitos elementos. O primeiro elemento foi a
filosofia grega pura, principalmente as filosofias de Pitágoras, Parmênides,
Platão e Aristóteles. Depois veio, em consequência das conquistas de Alexandre,
um grande influxo de crenças orientais. Estas, valendo-se do orfismo e dos
mistérios, transformaram a perspectiva do mundo de língua grega e, por último,
também a do mundo de língua latina. O deus morto e ressuscitado, o comer
sacramental do que representava a carne do deus, o segundo nascimento para uma
vida nova por meio de uma cerimônia análoga ao batismo, passaram a fazer parte
da teologia de amplos setores do mundo romano pagãos. A estas coisas,
associava-se uma ética de libertação da escravidão da carne, que era, ao menos
teoricamente, ascética. Da Síria, do Egito, da Babilônia e da Pérsia veio a
instituição de um sacerdócio separado da população leiga, dotado de poderes
mais ou menos mágicos e capaz de exercer considerável influência política.
Rituais impressionantes, relacionados em grande parte com a vida depois da
morte, provieram dessas mesmas fontes. Da Pérsia, em particular, veio um
dualismo que considerava o mundo como um campo de batalha de duas grandes
hostes – uma, que era o bem, chefiada por Ahura Mazda, a outra, que era o
mal, dirigida por Ahriman. A magia negra era a do tipo que se realizava com a
ajuda de Ahriman e seus adeptos no mundo dos espíritos. Satã é uma derivação de
Ahriman.
Este influxo de ideias e práticas bárbaras
foi sintetizado com certos elementos helênicos na filosofia neoplatônica. No
orfismo, no pitagorismo e em algumas partes de Platão, os gregos haviam
desenvolvido pontos de vista fáceis de combinar com os do Oriente, talvez
porque haviam sido recebidos do Oriente em épocas muito mais remotas. Com
Plotino e Porfírio, termina o desenvolvimento da filosofia pagã.
O pensamento desses homens, conquanto
profundamente religioso, não era, no entanto, capaz, sem grandes
transformações, de inspirar uma religião popular vitoriosa. Sua filosofia era
difícil e não podia ser entendida geralmente, sua maneira de salvação era
demasiado intelectual para as massas. Seu conservantismo fez com que
mantivessem a religião tradicional da Grécia, que, no entanto, tiveram de
interpretar alegoricamente, a fim de atenuar seus elementos pouco morais e
reconciliá-la com o seu monoteísmo filosófico. A religião grega entrara em
decadência, sendo incapaz de competir com os rituais e as teologias orientais.
Os oráculos haviam silenciado e o clero jamais formou uma casta diferente e
poderosa. A tentativa no sentido de reviver a religião grega teve, por
conseguinte, um caráter arcaico que lhe deu certa debilidade e pedantismo,
particularmente perceptível no imperador Juliano. Já no século III, poder-se-ia
ter previsto que alguma religião asiática iria conquistar o mundo romano,
embora ainda houvesse, naquele tempo, vários competidores que pareciam ter,
todos eles, probabilidade de êxito.
O Cristianismo reuniu elementos de força
oriundos de várias fontes. Dos judeus, aceitou um Livro Sagrado e a doutrina de
que todas as religiões, salvo uma, são falsas e más; mas evitou o exclusivismo
racial dos judeus e os inconvenientes da lei mosaica. O judaísmo dos últimos
tempos já havia aprendido a acreditar na vida depois da morte, mas os cristãos
deram uma nova precisão ao céu e ao inferno, bem como as maneiras de se escapar
de um e alcançar o outro. A Páscoa da Ressurreição combinou a Páscoa dos judeus
com as celebrações pagãs do Deus ressuscitado. O dualismo persa foi absorvido,
mas com uma certeza mais firme na onipotência final do princípio do bem, com a
adição de que os deuses pagãos eram adeptos de Satanás. A princípio, os
cristãos não estavam em pé de igualdade com os seus adversários em questões de
filosofia ou de ritual, mas, aos poucos, essas deficiências foram sendo
sanadas. A princípio, a filosofia era mais adiantada entre os gnósticos
semi-cristãos que entre os ortodoxos; mas, a partir de Orígenes, os cristãos
desenvolveram uma filosofia adequada por meio de uma modificação do
neoplatonismo. O ritual entre os primeiros cristãos é uma questão um tanto
obscura, mas, de qualquer modo, ao tempo de Santo Ambrósio, já havia se tornado
extremamente impressionante. O poder e a separação do clero foram tomados do
Oriente, mas, gradualmente, foram-se fortalecendo com métodos de governo,
dentro da Igreja, que deviam muito à prática do Império Romano. O Antigo
Testamento, as religiões de mistério, a filosofia grega e os métodos de
administração romanos foram todos associados na Igreja Católica, e se
combinaram para dar-lhe uma força que não havia sido igualada por nenhuma
organização social anterior.”
“Wycliffe (ca. 1320-84) ilustra, com a sua
vida e a sua doutrina, a diminuída autoridade do papado no século XIV. Ao
contrário dos primeiros escolásticos, era um clérigo secular, e não um monge ou
frade. Gozava de grande reputação em Oxford, onde se tornou, em 1372, doutor em
teologia. Durante curto período, foi Superior de Balliol. Foi o último dos
escolásticos importantes de Oxford. Como filósofo, não era progressista; foi
realista, e mais platônico que aristotélico. Afirmava que os decretos de Deus
não são arbitrários, como alguns afirmavam; o mundo real não é um entre os
mundos possíveis, mas o único mundo possível, já que Deus não escolhe senão o
melhor. Tudo isto não é o que o torna interessante, nem parece ter sido o que
mais o interessou, pois se retirou de Oxford para viver a vida de um clérigo
rural. Durante os últimos dez anos de sua existência, foi pároco de
Lutterworth, por nomeação da coroa. Continuou, porém, a realizar conferências
em Oxford.
Wycliffe é notável pela extrema lentidão de
sua evolução. Em 1372, quando contava cinquenta anos ou mais, era ainda
ortodoxo; foi somente depois desta data, ao que parece, que se tornou herético.
Parece haver sido levado à heresia inteiramente por força de seus sentimentos
morais: sua simpatia pelos pobres e seu horror aos eclesiásticos ricos e
mundanos. A princípio, seu ataque ao papado foi somente político e moral, e não
doutrinal; só aos poucos é que foi levado a uma revolta mais ampla.
O afastamento de Wycliffe da ortodoxia
começou em 1376, com um curso de conferências em Oxford intitulado “Do Domínio
Civil”. Expôs a teoria de que só a retidão de conduta dá direito ao domínio e à
propriedade; que o clero injusto não tem tal direito – e que a decisão
sobre se um eclesiástico deveria ou não manter a sua propriedade devia ser
tomada pelo poder civil.
Ensinava, ainda, que a propriedade é
consequência do pecado; Cristo e os Apóstolos não tiveram propriedade e o clero
também não devia tê-la. Estas doutrinas desgostaram todos os clérigos, exceto os
frades. O governo inglês, não obstante, as apoiou, pois, o Papa recebia imenso
tributo da Inglaterra, e a doutrina de que o dinheiro não devia ser enviado da
Inglaterra para o Papa era uma doutrina conveniente. Este foi particularmente o
caso enquanto o Papa se mostrava subserviente à França, estando a Inglaterra em
guerra com a França. João de Gante, que reteve o poder durante a menoridade de
Ricardo II, favoreceu Wycliffe enquanto lhe foi possível. Gregório XI, por
outro lado, condenou dezoito teses das conferências de Wycliffe, dizendo que
haviam sido tiradas de Marsílio de Pádua. Wycliffe foi intimado a comparecer
ante um tribunal de bispos, mas a rainha e a multidão o protegeram, enquanto
que a Universidade de Oxford se recusava a admitir a jurisdição sobre seus
professores. (As universidades inglesas, já naquela época, acreditavam na
liberdade acadêmica).
Entrementes, Wycliffe continuou, durante 1378
e 1379, a escrever tratados eruditos, afirmando que o rei é vigário de Cristo,
e que os bispos estão sujeitos a ele. Quando surgiu o grande cisma, foi ainda
mais longe, acusando o Papa de anticristão e dizendo que a aceitação da doação
de Constantino havia tornado apóstatas a todos os Papas subsequentes. Traduziu
a Vulgata para o inglês e criou os “sacerdotes pobres”, que eram seculares.
(Com esta ação, acabou por desgostar os frades). Empregou os “sacerdotes
pobres” como pregadores ambulantes, cuja missão era dedicada especialmente aos
pobres. Por fim, ao atacar o poder sacerdotal, foi levado a negar a transubstanciação,
que qualificou de embuste e de blasfema insensatez. A essa altura, João de
Gante ordenou-lhe que se calasse.
A revolta dos camponeses de 1381, chefiada
por Wat Tyler, tornou as coisas ainda mais difíceis para Wycliffe. Não há
provas de que ele a encorajasse de maneira ativa, mas, ao contrário de Lutero
em circunstâncias semelhantes, absteve-se de condená-la. João Bali, o sacerdote
destituído, socialista, que era um dos líderes, admirava Wycliffe, o que era
embaraçoso. Mas como havia sido excomungado em 1366, quando Wycliffe era ainda
ortodoxo, deve ter chegado independentemente às suas opiniões. As opiniões
comunistas de Wycliffe, embora os “sacerdotes pobres”, sem dúvida, as
disseminassem, eram por ele expostas somente em latim, de modo que, em primeira
mão, não estavam ao alcance dos camponeses.
É surpreendente que Wycliffe não haja sofrido
mais do que sofreu devido às suas opiniões e atividades democráticas. A
Universidade de Oxford defendeu-o, enquanto lhe foi possível, contra os bispos.
Quando a Câmara dos Lordes condenou seus pregadores ambulantes, a Câmara dos
Comuns negou-se a dar o seu assentimento. Não há dúvida de que teria de passar
por grandes dificuldades, se houvesse vivido mais, mas quando morreu, em 1384,
não havia ainda sido condenado formalmente. Foi enterrado em Lutterworth, onde
faleceu, e seus restos mortais foram deixados em paz, até que o Concílio de
Constança os desenterrou e queimou.
Seus adeptos na Inglaterra, os Lollardos
foram severamente perseguidos e praticamente eliminados. Mas, devido ao fato de
a esposa de Ricardo II ser natural da Boêmia, suas doutrinas se tornaram
conhecidas nesse país, onde Huss foi seu discípulo; e, na Boêmia, apesar da
perseguição, chegaram até a Reforma. Na Inglaterra, embora de modo subterrâneo,
a revolta contra o papado permaneceu no espírito dos homens, e preparou o
terreno para o protestantismo.
Durante o século XV, várias outras causas se
uniram ao declínio do papado para produzir uma mudança muito rápida tanto
política como cultural. A pólvora fortaleceu os governos centrais a expensas da
nobreza feudal. Na França e na Inglaterra, Luís XI e Eduardo IV aliaram-se à
rica classe média, que os ajudaram a sufocar a anarquia aristocrática. A
Itália, até os últimos anos do século, esteve bastante livre dos exércitos do
Norte progrediu rapidamente tanto em riqueza como em cultura. A nova cultura
era essencialmente pagã; admirava a Grécia e Roma e desprezava a Idade Média. A
arquitetura e o estilo literário foram adaptados aos modelos antigos. Quando
Constantinopla, a última sobrevivente da antiguidade, foi capturada pelos
turcos, os gregos que se refugiaram na Itália foram recebidos com entusiasmo
pelos humanistas. Vasco da Gama e Colombo alargaram o mundo, e Copérnico
dilatou os céus. A Doação de Constantino foi rejeitada como uma fábula,
submergindo ante a zombaria dos eruditos. Com a ajuda dos bizantinos, Platão
veio a ser conhecido, não só em versões platônicas e agostinianas, mas também
em primeira mão. Esta esfera sublunar já não aparecia como um vale de lágrimas,
um lugar de dolorosa peregrinação ao outro mundo, mas como algo que
proporcionava oportunidade para delícias pagãs, para a glória, a beleza e a
aventura. Os longos séculos de ascetismo foram esquecidos num tumulto de arte,
poesia e prazer. Mesmo na Itália, é certo, a Idade Média não morreu sem luta;
Savonarola e Leonardo nasceram ambos no mesmo ano. Mas, de um modo geral, os
velhos terrores deixaram de aterrorizar, e a nova liberdade do espírito
revelou-se embriagadora. A embriaguez não podia durar, mas, entrementes,
dissipou o medo. Nesse momento de jubilosa libertação nasceu o mundo moderno.”
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