quarta-feira, 25 de outubro de 2017

Genealogia da Moral: uma Polêmica (Parte II) – Friedrich Nietzsche

Editora: Companhia de Bolso
ISBN: 978-85-3591-456-6
Tradução, notas e posfácio: Paulo César de Souza
Opinião: ★★☆☆☆
Páginas: 176
Sinopse: Ver Parte I



“O sentimento de culpa em relação à divindade não parou de crescer durante milênios, e sempre na mesma razão em que nesse mundo cresceram e foram levados às alturas o conceito e o sentimento de Deus. (Toda a história de luta, vitória, conciliação e fusão étnica, tudo o que antecede a definitiva hierarquização de todos os elementos populares, em toda grande síntese racial, reflete-se no caos das genealogias dos deuses, nas sagas de suas lutas, vitórias e conciliações; o progresso em direção a impérios universais é também o progresso em direção a divindades universais; o despotismo, com seu triunfo sobre a nobreza independente, sempre abre o caminho para algum monoteísmo.) O advento do Deus cristão, o deus máximo até agora alcançado, trouxe também ao mundo o máximo de sentimento de culpa. Supondo que tenhamos embarcado na direção contrária, com uma certa probabilidade se poderia deduzir, considerando o irresistível declínio da fé no Deus cristão, que já agora se verifica um considerável declínio da consciência de culpa do homem; sim, não devemos inclusive rejeitar a perspectiva de que a vitória total e definitiva do ateísmo possa livrar a humanidade desse sentimento de estar em dívida com seu começo, sua causa primeira. O ateísmo e uma espécie de segunda inocência são inseparáveis.”


“Com a moralização das noções de culpa e dever, com seu afundamento na consciência, houve a tentativa de inverter a direção do desenvolvimento acima descrito, ou ao menos de deter o seu movimento: justamente a perspectiva de um resgate definitivo deve se encerrar, de modo pessimista, de uma vez por todas; o olhar deve se chocar e recuar desconsolado, ante uma impossibilidade férrea; as noções de culpa e dever devem se voltar para trás — contra quem? Não se pode duvidar: primeiramente contra o “devedor”, no qual a má consciência de tal modo se enraíza, corroendo e crescendo para todos os lados como um pólipo, que, por fim, com a impossibilidade de pagar a dívida, se concebe também a impossibilidade da penitência, a ideia de que não se pode realizá-la (o “castigo eterno”); mas finalmente se voltam até mesmo contra o “credor”: recordemos a causa prima do homem, o começo da espécie humana, o seu ancestral, que passa a ser amaldiçoado (“Adão”, “pecado original”, “privação do livre-arbítrio”), ou a natureza, em cujo seio surge o homem, e na qual passa a ser localizado o princípio mau (“demonização da natureza”), ou a própria existência, que resta como algo em si sem valor (afastamento niilista da vida, anseio do Nada, ou anseio do “contrário”, de um Ser-outro, budismo e similares) — até que subitamente nos achamos ante o expediente paradoxal e horrível no qual a humanidade atormentada encontrou um alívio momentâneo, aquele golpe de gênio do cristianismo: o próprio Deus se sacrificando pela culpa dos homens, o próprio Deus pagando a si mesmo, Deus como o único que pode redimir o homem daquilo que para o próprio homem se tornou irredimível — o credor se sacrificando por seu devedor, por amor (é de se dar crédito?), por amor a seu devedor!...”


“Já terão adivinhado o que realmente se passou com tudo isso, e sob tudo isso: essa vontade de se torturar, essa crueldade reprimida do bicho-homem interiorizado, acuado dentro de si mesmo, aprisionado no “Estado” para fins de domesticação, que inventou a má consciência para se fazer mal, depois que a saída mais natural para esse querer-fazer-mal fora bloqueada — esse homem da má consciência se apoderou da suposição religiosa para levar seu automartírio à mais horrenda culminância. Uma dívida para com Deus: este pensamento tornou-se para ele um instrumento de suplício. Ele apreende em “Deus” as últimas antíteses que chega a encontrar para seus autênticos insuprimíveis instintos animais, ele reinterpreta esses instintos como culpa em relação a Deus (como inimizade, insurreição, rebelião contra o “Senhor”, o “Pai”, o progenitor e princípio do mundo), ele se retesa na contradição “Deus” e “Diabo”, todo o Não que diz a si, à natureza, naturalidade, realidade do seu ser, ele o projeta fora de si como um Sim, como algo existente, corpóreo, real, como Deus, como santidade de Deus, como Deus juiz, como Deus verdugo, como Além, como eternidade, como tormento sem fim, como Inferno, como incomensurabilidade do castigo e da culpa. Há uma espécie de loucura da vontade, nessa crueldade psíquica, que é simplesmente sem igual: a vontade do homem de sentir-se culpado e desprezível, até ser impossível a expiação, sua vontade de crer-se castigado, sem que o castigo possa jamais equivaler à culpa, sua vontade de infectar e envenenar todo o fundo das coisas com o problema do castigo e da culpa, para de uma vez por todas cortar para si a saída desse labirinto de “ideias fixas”, sua vontade de erigir um ideal — o do “santo Deus” — e em vista dele ter a certeza tangível de sua total indignidade. Oh, esta insana e triste besta que é o homem! Que coisas não lhe ocorrem, que desnatureza, que paroxismos do absurdo, que bestialidade da ideia não irrompe de imediato, quando é impedida, apenas um pouco, de ser besta na ação!... Tudo isso é sumamente interessante, mas também de uma negra, sombria e enervante tristeza, de modo que devemos nos proibir severamente de olhar por longo tempo esses abismos. Aqui há doença, sem qualquer dúvida, a mais terrível doença que jamais devastou o homem — e quem ainda consegue ouvir (mas hoje não há ouvidos para isso!) como nessa noite de tormenta e absurdo ressoou o grito de amor, o grito do mais sequioso êxtase, da salvação no amor, voltará as costas, tomado de horror invencível... Há tanta coisa horrível no homem!... Já por muito tempo a terra foi um hospício!...”


“Nós, homens modernos, somos os herdeiros da vivissecção de consciência e da autoexperimentação de milênios: é o nosso mais longo exercício, talvez nossa vocação artística, sem dúvida nosso refinamento, nossa perversão do gosto. Já por tempo demais o homem considerou suas propensões naturais com “olhar ruim”, de tal modo que elas nele se irmanaram com a “má consciência”. Uma tentativa inversa é em si possível — mas quem é forte o bastante para isso?”


“No fato de o ideal ascético haver significado tanto para o homem se expressa o dado fundamental da vontade humana, o seu horror ao vácuo: ele precisa de um objetivo — e preferirá ainda querer o nada a nada querer.”


“O melhor é certamente separar o artista da obra, a ponto de não tomá-lo tão seriamente como a obra. Afinal, ele é apenas a precondição para a obra, o útero, o chão, o esterco e adubo no qual e do qual ela cresce — e assim, na maioria dos casos algo que é preciso esquecer, querendo-se desfrutar a obra mesma. A inquirição sobre a origem de uma obra concerne aos fisiólogos e vivisseccionistas do espírito: jamais absolutamente aos seres estéticos, aos artistas!”


“Devemos nos guardar da confusão em que, por contiguidade psicológica, para falar como os ingleses, um artista cai facilmente: como se ele mesmo fosse o que é capaz de representar, conceber, exprimir. Na verdade, se ele o fosse, não o poderia representar, conceber, exprimir; um Homero não teria criado um Aquiles, um Goethe não teria criado um Fausto, se Homero tivesse sido um Aquiles, e Goethe um Fausto. Um artista inteiro e consumado está sempre divorciado do “real”, do efetivo; por outro lado, compreende-se que ele às vezes possa cansar-se desesperadamente dessa eterna “irrealidade” e falsidade de sua existência mais íntima — e faça então a tentativa de irromper no que lhe é mais proibido, no real, a tentativa de ser real. Com que êxito? Fácil adivinhar...”


“O asceta trata a vida como um caminho errado, que se deve enfim desandar até o ponto onde começa; ou como um erro que se refuta — que se deve refutar com a ação: pois ele exige que se vá com ele, e impõe, onde pode, a sua valoração da existência. Que significa isso? Um tal monstruoso modo de valorar não se acha inscrito como exceção e curiosidade na história do homem: é um dos fatos mais difundidos e duradouros que existem. Lida de um astro distante, a escrita maiúscula de nossa existência terrestre levaria talvez à conclusão de que a terra é a estrela ascética por excelência, um canto de criaturas descontentes, arrogantes e repulsivas, que jamais se livram de um profundo desgosto de si, da terra, de toda a vida, e que a si mesmas infligem o máximo de dor possível, por prazer em infligir dor — provavelmente o seu único prazer. Pois consideremos com que regularidade, com que universalidade, como em quase todos os tempos aparece o sacerdote ascético; ele não pertence a nenhuma raça determinada; floresce em toda parte; brota de todas as classes. Não que ele cultive e propague seu modo de valoração através da herança: ocorre o contrário — em geral, um profundo instinto lhe proíbe a procriação. Deve ser uma necessidade de primeira ordem, a que faz sempre crescer e medrar essa espécie hostil à vida — deve ser interesse da vida mesma, que um tipo tão contraditório não se extinga. Pois uma vida ascética é uma contradição: aqui domina um ressentimento ímpar, aquele de um insaciado instinto e vontade de poder que deseja senhorear-se, não de algo da vida, mas da vida mesma, de suas condições maiores, mais profundas e fundamentais; aqui se faz a tentativa de usar a força para estancar a fonte da força; aqui o olhar se volta, rancoroso e pérfido, contra o florescimento fisiológico mesmo, em especial contra a sua expressão, a beleza, a alegria; enquanto se experimenta e se busca satisfação no malogro, na desventura, no fenecimento, no feio, na perda voluntária, na negação de si, autoflagelação e autossacrifício. Tudo isso é paradoxal no mais alto grau: estamos aqui diante de uma desarmonia que se quer desarmônica, que frui a si mesma neste sofrimento, e torna-se inclusive mais triunfante e confiante à medida que diminui o seu pressuposto, a vitalidade fisiológica. “O triunfo na agonia derradeira”: sob este signo superlativo lutou desde sempre o ideal ascético; neste enigma de sedução, nesta imagem de êxtase e tormento ele reconheceu sua luz mais intensa, sua salvação, sua vitória final.”


“O sacerdote ascético é a encarnação do desejo de ser outro, de ser-estar em outro lugar, é o mais alto grau desse desejo, sua verdadeira febre e paixão: mas precisamente o poder do seu desejo é o grilhão que o prende aqui; precisamente por isso ele se torna o instrumento que deve trabalhar para a criação de condições mais propícias para o ser-aqui e o ser-homem — precisamente com este poder ele mantém apegado à vida todo o rebanho de malogrados, desgraçados, frustrados, deformados, sofredores de toda espécie, ao colocar-se instintivamente à sua frente como pastor. Já me entendem: este sacerdote ascético, este aparente inimigo da vida, este negador — ele exatamente está entre as grandes potências conservadoras e afirmadoras da vida... Qual a origem dessa condição doentia? Pois o homem é mais doente, inseguro, inconstante, indeterminado que qualquer outro animal, não há dúvida — ele é o animal doente: de onde vem isso? É certo que ele também ousou, inovou, resistiu, desafiou o destino mais que todos os outros animais reunidos: ele, o grande experimentador de si mesmo, o insatisfeito, insaciado, que luta pelo domínio último com os animais, a natureza e os deuses — ele, o ainda não domado, o eternamente futuro, que não encontra sossego de uma força própria que o impele, de modo que seu futuro, uma espora, mergulha implacável na carne de todo presente — como não seria um tão rico e corajoso animal também o mais exposto ao perigo, o mais longa e profundamente enfermo entre todos os animais enfermos?... O homem frequentemente está farto, há verdadeiras epidemias desse estar-farto (— como por volta de 1348, no tempo da dança da morte): mas mesmo esse nojo, essa fadiga, esse fastio de si mesmo — tudo isso irrompe tão poderosamente nele, que se torna imediatamente um novo grilhão. O Não que ele diz à vida traz à luz, como por mágica, uma profusão de Sins mais delicados; sim, quando ele se fere, esse mestre da destruição, da autodestruição — é a própria ferida que em seguida o faz viver...”


“Os doentes são o maior perigo para os sãos; não é dos mais fortes que vem o infortúnio dos fortes, e sim dos mais fracos. Isto é sabido?... Grosso modo, não é absolutamente o temor ao homem, aquilo cuja diminuição se poderia desejar: pois esse temor obriga os fortes a serem fortes, ocasionalmente temíveis — ele mantém em pé o tipo bem logrado de homem. O que é de temer, o que tem efeito mais fatal que qualquer fatalidade, não é o grande temor, mas o grande nojo ao homem; e também a grande compaixão pelo homem. Supondo que esses dois um dia se casassem, inevitavelmente algo de monstruoso viria ao mundo, a “última vontade” do homem, sua vontade do nada, o niilismo. E de fato: muita coisa aponta para isso. Quem para farejar possui não apenas o nariz, mas também os olhos e ouvidos, sente, em quase toda parte aonde vai atualmente, algo semelhante a um ar de hospício, a um ar de hospital — falo, naturalmente, das áreas de cultura do homem, de toda espécie de “Europa” sobre a terra. Os doentios são o grande perigo do homem: não os maus, não os “animais de rapina”. Aqueles já de início desgraçados, vencidos, destroçados — são eles, são os mais fracos, os que mais corroem a vida entre os homens, os que mais perigosamente envenenam e questionam nossa confiança na vida, no homem, em nós. Onde se poderia escapar a ele, àquele olhar velado que nos deixa uma profunda tristeza, àquele olhar voltado para trás do homem deformado na origem, que revela como tal homem fala consigo mesmo — àquele olhar que é um suspiro! “Quisera ser alguma outra pessoa”, assim suspira esse olhar: “mas não há esperança. Eu sou o que sou: como me livraria de mim mesmo? E no entanto — estou farto de mim!”... Neste solo de autodesprezo, verdadeiro terreno pantanoso, cresce toda erva ruim, toda planta venenosa, e tudo tão pequeno, tão escondido, tão insincero, tão adocicado. Aqui pululam os vermes da vingança e do rancor; aqui o ar fede a segredos e coisas inconfessáveis; aqui se tece continuamente a rede da mais malévola conspiração — a conspiração dos sofredores contra os bem logrados e vitoriosos, aqui a simples vista do vitorioso é odiada. E que mendacidade, para não admitir esse ódio como ódio! Que ostentação de grandes palavras e atitudes, que arte de calúnia “honrada”! Esses malogrados: que nobre eloquência flui de seus lábios! Quanta resignação humilde, viscosa, açucarada, flutua em seus olhos! Que desejam realmente? Ao menos representar o amor, a justiça, a superioridade, a sabedoria — eis a ambição desses “ínfimos”, desses enfermos! E como esta ambição torna hábil! Admire-se principalmente a habilidade de falsários com que aí se imita o cunho da virtude, e mesmo o tilintar, o tilintar de ouro da virtude. Eles agora monopolizaram inteiramente a virtude, esses fracos e doentes sem cura, quanto a isso não há dúvida: “nós somente somos os bons, os justos”, dizem eles, “nós somente somos os homens de boa vontade”. Eles rondam entre nós como censuras vivas, como advertências dirigidas a nós — como se saúde, boa constituição, força, orgulho, sentimento de força fossem em si coisas viciosas, as quais um dia se devesse pagar, e pagar amargamente: oh, como eles mesmos estão no fundo dispostos a fazer pagar, como anseiam ser carrascos! Entre eles encontra-se em abundância os vingativos mascarados de juízes, que permanentemente levam na boca, como baba venenosa, a palavra justiça e andam sempre de lábios em bico, prontos a cuspir em todo aquele que não tenha olhar insatisfeito e siga seu caminho de ânimo tranquilo. Entre eles não falta igualmente a mais nojenta espécie de vaidosos, os monstros de mendacidade que buscam aparecer como “almas belas” e exibem no mercado, como “pureza do coração”, sua sensualidade estropiada, envolta em versos e outros cueiros: a espécie de onanistas morais e “autogratificadores”. A vontade dos enfermos de representar uma forma qualquer de superioridade, seu instinto para vias esquivas que conduzam a uma tirania sobre os sãos — onde não seria encontrada, essa vontade de poder precisamente dos mais fracos! A mulher doente em especial: ninguém a supera em refinamento para dominar, oprimir, tiranizar. Nisso a mulher doente nada poupa, vivo ou morto, ela desenterra de novo as coisas mais profundamente enterradas (os bogos dizem: “a mulher é uma hiena”). Olhe-se o interior de cada família, de cada corporação, de cada comunidade: em toda parte a luta dos enfermos contra os sãos — uma luta quase sempre silenciosa, com pequenos venenos, com agulhadas, com astuciosa mímica de mártir, por vezes também com esse farisaísmo de doente de gestos estrepitosos, que ama mais que tudo encenar a “nobre indignação”. Até nos espaços consagrados da ciência gostaria de fazer-se ouvir esse rouco latido de indignação dos cães doentes, a mordaz fúria e falsidade de tais “nobres” fariseus. Estes são todos homens do ressentimento, estes fisiologicamente desgraçados e carcomidos, todo um mundo fremente de subterrânea vingança, inesgotável, insaciável em irrupções contra os felizes, e também em mascaramentos de vingança, em pretextos para vingança: quando alcançariam realmente o seu último, mais sutil, mais sublime triunfo da vingança? Indubitavelmente, quando lograssem introduzir na consciência dos felizes sua própria miséria, toda a miséria, de modo que estes um dia começassem a se envergonhar da sua felicidade, e dissessem talvez uns aos outros: “é uma vergonha ser feliz! existe muita miséria!”... Mas não poderia haver erro maior e mais fatal do que os felizes, os bem logrados, os poderosos de corpo e alma começarem a duvidar assim do seu direito à felicidade. Fora com esse “mundo ao avesso”! Fora com esse debilitamento do sentimento! Que os doentes não tornem os sadios doentes — isto seria o debilitamento — deveria ser o ponto de vista supremo na Terra — mas isto requer, acima de tudo, que os sadios permaneçam apartados dos doentes, guardados inclusive da vista dos doentes, para que não se confundam com os doentes. Ou seria por acaso sua tarefa serem enfermeiros e médicos?... Não poderia haver pior maneira de desconhecer e negar a sua tarefa — o superior não deve rebaixar-se a instrumento do inferior, o pathos da distância deve manter também as tarefas eternamente afastadas! Seu direito de ser o privilégio do sino de plena ressonância diante daquele falho, dissonante, é afinal mil vezes maior: eles somente são os fiadores do futuro, eles somente estão comprometidos com o futuro do homem. O que eles podem, o que eles devem, jamais poderiam poder e dever os enfermos: mas para que eles possam o que apenas eles devem, como poderiam ainda fazer-se de médicos, consoladores, “salvadores” dos enfermos?... Ar puro, portanto! Ar puro! E afastamento de todos os hospícios e hospitais da cultura! E portanto boa companhia, nossa companhia! Ou solidão, se tiver de ser! Mas afastamento dos maus odores da degradação interna e da oculta carcoma da doença!... Para que nós mesmos, meus amigos, ao menos por algum tempo ainda nos defendamos das duas mais terríveis pragas que podem estar reservadas para nós precisamente — o grande nojo do homem e a grande compaixão pelo homem!...”


“Compreendendo-se em toda a profundidade — e eu exijo que precisamente aqui se apreenda fundo, se vá ao fundo — o quanto não pode ser tarefa dos sãos assistir doentes, tornar sãos doentes, compreende-se assim uma necessidade mais — a necessidade de médicos e enfermeiros que sejam eles mesmos doentes: e agora temos e apreendemos com ambas as mãos o sentido do sacerdote ascético. A ele devemos considerar o salvador, pastor e defensor predestinado do rebanho doente: somente então entenderemos a sua tremenda missão histórica. A dominação sobre os que sofrem é o seu reino, para ela o dirige seu instinto, nela encontra ele sua arte mais própria, sua mestria, sua espécie de felicidade. Ele próprio tem de ser doente, tem de ser aparentado aos doentes e malogrados desde a raiz, para entendê-los — para com eles se entender; mas também tem de ser forte, ainda mais senhor de si do que dos outros, inteiro em sua vontade de poder, para que tenha a confiança e o temor dos doentes, para que lhes possa ser amparo, apoio, resistência, coerção, instrução, tirano, deus. Ele tem que defendê-lo, ao seu rebanho — contra quem? Contra os sãos, não há dúvida, e também contra a inveja que têm dos sãos; ele tem que ser o opositor e desprezador natural de toda saúde e toda potência tempestuosa, dura, desenfreada, violenta e rapace. O sacerdote é a primeira forma do animal mais delicado, que despreza mais facilmente do que odeia. Não lhe será poupado fazer guerra aos animais de rapina, uma guerra de astúcia (de “espírito”) mais que de violência, está claro — para isto lhe será necessário, em certas circunstâncias, desenvolver-se quase que em um novo tipo de animal de rapina, ou ao menos representá-lo — uma nova ferocidade animal, na qual o urso polar, a elástica, fria, expectante pantera, e também a raposa, parecem juntados numa unidade tão atraente quanto aterradora. Supondo que a necessidade o obrigue, ele andará entre os outros animais de rapina, sério como urso, venerável, prudente, frio, superior-enganador, como arauto e porta-voz de poderes misteriosos, decidido a semear nesse terreno, onde puder, sofrimento, discórdia, contradição, e, seguro bastante de sua arte, fazer-se a todo instante senhor dos sofredores. Ele traz unguento e bálsamo, sem dúvida; mas necessita primeiro ferir, para ser médico; e quando acalma a dor que a ferida produz, envenena no mesmo ato a ferida — pois disso entende ele mais que tudo, esse feiticeiro e domador de animais de rapina, em volta do qual tudo o que é são torna-se necessariamente doente, e tudo doente necessariamente manso. De fato, ele defende muito bem o seu rebanho enfermo, esse estranho pastor — ele o defende também de si mesmo, da baixeza, perfídia, malevolência que no próprio rebanho arde sob as cinzas, e do que mais for próprio de doentes e combalidos; ele combate, de modo sagaz, duro e secreto, a anarquia e a autodissolução que a todo momento ameaçam o rebanho, no qual aquele mais perigoso dos explosivos, o ressentimento, é continuamente acumulado. Descarregar este explosivo, de modo que ele não faça saltar pelos ares o rebanho e o pastor, é a sua peculiar habilidade, e suprema utilidade; querendo-se resumir numa breve fórmula o valor da existência sacerdotal, pode-se dizer simplesmente: o sacerdote é aquele que muda a direção do ressentimento. Pois todo sofredor busca instintivamente uma causa para seu sofrimento; mais precisamente, um agente; ainda mais especificamente, um agente culpado suscetível de sofrimento — em suma, algo vivo, no qual possa sob algum pretexto descarregar seus afetos, em ato ou simbolicamente: pois a descarga de afeto é para o sofredor a maior tentativa de alívio, de entorpecimento, seu involuntariamente ansiado narcótico para tormentos de qualquer espécie. Unicamente nisto, segundo minha suposição, se há de encontrar a verdadeira causação fisiológica do ressentimento, da vingança e quejandos, ou seja, em um desejo de entorpecimento da dor através do afeto — de ordinário ela é procurada, muito erroneamente, me parece, em um contragolpe defensivo, uma simples medida protetora, um “movimento reflexo” em resposta a uma súbita lesão ou ameaça, do tipo que ainda executa uma rã sem cabeça, para livrar-se de um ácido corrosivo. Mas a diferença é fundamental: em um caso quer-se prevenir mais lesões, no outro caso quer-se entorpecer, mediante uma emoção mais violenta de qualquer espécie, uma dor torturante, secreta, cada vez mais insuportável, e retirá-la da consciência ao menos por um instante — para isto necessita-se de um afeto, um afeto o mais selvagem possível, e, para sua excitação, um bom pretexto qualquer. “Alguém deve ser culpado de que eu esteja mal” — esta maneira de raciocinar é comum a todos os doentes, tanto mais quanto lhes for desconhecida a verdadeira causa do seu mal-estar, a fisiológica. Os sofredores são todos horrivelmente dispostos e inventivos, em matéria de pretextos para seus afetos dolorosos; eles fruem a própria desconfiança, a cisma com baixezas e aparentes prejuízos, eles revolvem as vísceras de seu passado e seu presente, atrás de histórias escuras e questionáveis, em que possam regalar-se em uma suspeita torturante, e intoxicar-se do próprio veneno de maldade — eles rasgam as mais antigas feridas, eles sangram de cicatrizes há muito curadas, eles transformam em malfeitores o amigo, a mulher, o filho e quem mais lhes for próximo. “Eu sofro: disso alguém deve ser culpado” — assim pensa toda ovelha doente. Mas seu pastor, o sacerdote ascético, lhe diz: “Isso mesmo, minha ovelha! Alguém deve ser culpado: mas você mesma é esse alguém — somente você é culpada de si!...”. Isto é ousado bastante, falso bastante: mas com isto se alcança uma coisa ao menos, com isto, como disse, a direção do ressentimento é — mudada.”


“Que alguém se sinta “culpado”, “pecador”, não demonstra absolutamente que tenha razão para sentir-se assim; tampouco alguém é são apenas por sentir-se são. Recorde-se os célebres processos contra as bruxas: os mais perspicazes e humanos juízes não duvidavam da existência de culpa; as “bruxas” mesmas não duvidavam — e no entanto não havia culpa.”


“Mas é realmente um médico, este sacerdote ascético? — Já notamos que dificilmente podemos chamá-lo de médico, por mais que lhe agrade sentir-se “salvador”, ser venerado como “salvador”. Apenas o sofrimento mesmo, o desprazer do sofredor, é por ele combatido, não a sua causa, não a doença propriamente — esta deve ser nossa objeção mais radical à medicação sacerdotal. Mas, colocando-se uma só vez naquela perspectiva, a única que o sacerdote possui e conhece, não há limites para a admiração por tudo o que ele viu, buscou e achou sob tal perspectiva. A mitigação do sofrimento, o “consolo” de toda espécie — isto se revela como o seu gênio mesmo; com que inventividade compreendeu ele sua tarefa de consolador, de que modo irrefletido e ousado soube escolher os meios para ela! O cristianismo, em especial, pode ser considerado um grande tesouro dos mais engenhosos meios de consolo, pelo tanto de aliviador, mitigador, narcotizante que há nele acumulado, pelo tanto de perigoso e temerário que arriscou para esse fim, pelo modo sutil, refinado, meridional-refinado com que intuiu sobretudo os afetos estimulantes com que pode ser vencida a funda depressão, o cansaço de chumbo, a negra tristeza dos fisiologicamente travados. Pois falando em termos gerais: em todas as grandes religiões, a questão principal sempre foi combater uma certa exaustão e gravidade tornada epidemia. Podemos de antemão ter como verossímil que de tempos em tempos, em determinados lugares da terra, um sentimento de obstrução fisiológica deve quase que necessariamente apossar-se de vastas massas, o qual, no entanto, por falta de saber fisiológico não penetra como tal na consciência, de modo que seu “motivo”, seu remédio, pode ser procurado e experimentado tão somente no domínio psicológico-moral (— e esta é minha fórmula mais geral para o que comumente é chamado de “religião”).”


“Desatar a alma humana de todas as suas amarras, submergi-la em terrores, calafrios, ardores e êxtases, de tal modo que ela se liberte como que por encanto de todas as pequeninas misérias do desgosto, da apatia, do desalento: que caminhos levam a esse fim? E quais os mais seguros entre eles?... No fundo, todo grande afeto tem capacidade para isso, desde que se descarregue subitamente: cólera, pavor, volúpia, vingança, esperança, triunfo, desespero, crueldade; e de fato, o sacerdote ascético não hesitou em tomar a seu serviço toda a matilha de cães selvagens que existe no homem, soltando ora um, ora outro, sempre com o mesmo objetivo, despertar o homem da sua longa tristeza, pôr em fuga ao menos por instantes a sua surda dor, sua vacilante miséria, e sempre sob a coberta de uma interpretação e “justificação” religiosa. Todo excesso de sentimento dessa natureza tem o seu preço, está claro — ele torna o doente mais doente —: e por isso esse tipo de remédio contra a dor é, segundo a medida moderna, “culpado”. É preciso insistir, porém, pois a equidade o exige, no fato de que ele foi aplicado com boa consciência, no fato de que o sacerdote ascético o prescreveu com firmíssima crença em sua utilidade, em sua imprescindibilidade mesmo — e não raro quase que sucumbindo ele próprio diante do sofrimento que causava; do mesmo modo é preciso dizer que as veementes revanches fisiológicas de tais excessos, inclusive talvez as perturbações mentais, no fundo não contradizem realmente o sentido dessa espécie de medicação: a qual, como foi mostrado, não objetiva curar doenças, mas combater a depressão, diminuindo e amortecendo o seu desprazer. Também assim este fim foi alcançado. O grande estratagema de que se utilizou o sacerdote ascético para fazer ressoar na alma humana toda espécie de música pungente e arrebatada consistiu — todos sabem — em aproveitar-se do sentimento de culpa. A origem deste foi tratada brevemente na dissertação anterior — enquanto parte da psicologia animal, não mais: lá deparamos com o sentimento de culpa em seu estado bruto, por assim dizer. Apenas nas mãos do sacerdote, esse verdadeiro artista em sentimentos de culpa, ele veio a tomar forma — e que forma! O “pecado” — pois assim se chama a reinterpretação sacerdotal da “má consciência” animal (da crueldade voltada para trás) — foi até agora o maior acontecimento na história da alma enferma: nele temos o mais perigoso e fatal artifício da interpretação religiosa. Sofrendo de si mesmo de algum modo, em todo caso fisiologicamente, como um animal encerrado na jaula, confuso quanto ao porquê e o para quê, ávido de motivos — motivos aliviam —, ávido também de remédios e narcóticos, o homem termina por aconselhar-se com alguém que conhece também as coisas ocultas — e vejam! ele recebe uma indicação, recebe do seu mago, o sacerdote ascético, a primeira indicação sobre a “causa” do seu sofrer: ele deve buscá-la em si mesmo, em uma culpa, um pedaço de passado, ele deve entender seu sofrimento mesmo como uma punição... Ele ouviu, ele compreendeu, o infeliz: agora está como a galinha em torno da qual foi traçada uma linha. Ele não consegue sair do círculo: o doente foi transformado em “pecador”... E agora estamos condenados à visão desse novo doente, “o pecador”, durante alguns milênios — jamais nos livraremos dele? —; para onde quer que nos voltemos, em toda parte o olhar hipnótico do pecador, movendo-se sempre na mesma direção (na direção da “culpa”, como a única causa do sofrer); em toda parte a má consciência, essa “besta abominável”, no dizer de Lutero; em toda parte o passado ruminado, o fato distorcido, o “olhar bilioso” para toda ação; em toda parte, a incompreensão voluntária do sofrer tornada teor de vida, a reinterpretação do sofrer como sentimento de culpa, medo e castigo; em toda parte o flagelo, o cilício, o corpo macilento, a contrição; em toda parte o autossuplício do pecador na roda cruel de uma consciência inquieta, morbidamente lasciva; em toda parte o tormento mudo, o pavor extremo, a agonia do coração martirizado, as convulsões de uma felicidade desconhecida, o grito que pede “redenção”. De fato, com esse sistema de procedimentos a velha depressão, o peso e a fadiga foram radicalmente superados, a vida voltou a ser muito interessante: alerta, eternamente alerta, insone, ardente, consumida, esgotada, mas não cansada — assim apresentava-se o homem, o “pecador” que fora iniciado nesses mistérios. Esse velho grande mago em luta contra o desprazer, o sacerdote ascético — ele havia claramente vencido, o seu reino havia chegado: já não havia queixas contra a dor, ansiava-se por ela; “mais dor! mais dor!” — gritou durante séculos o desejo dos seus apóstolos e iniciados. Cada excesso do sentimento que produzia dor, tudo que destruía, transtornava, rompia, transportava, extasiava, os segredos das câmaras de tortura, a engenhosidade do próprio inferno — tudo estava então descoberto, percebido, explorado, tudo estava à disposição do mago, tudo serviu desde então à vitória do seu ideal, do ideal ascético... “Meu reino não é deste mundo” — ele continuava a dizer: possuía realmente o direito de dizê-lo ainda?... Goethe afirmou que existem apenas situações trágicas: nisto percebemos, se ainda não o sabíamos, que Goethe não foi um sacerdote ascético. Este — conhece um número maior...”


“(A arte, para antecipá-lo, pois ainda tornarei mais demoradamente ao assunto — a arte, na qual precisamente a mentira se santifica, a vontade de ilusão tem a boa consciência a seu favor, opõe-se bem mais radicalmente do que a ciência ao ideal ascético: assim percebeu o instinto de Platão, esse grande inimigo da arte, o maior que a Europa jamais produziu. Platão contra Homero: eis o verdadeiro, o inteiro antagonismo — ali, o mais voluntarioso “partidário do além”, o grande caluniador da vida; aqui, o involuntário divinizador da vida, a natureza áurea. A vassalagem de um artista ao ideal ascético é, portanto, a mais clara corrupção do artista que pode haver, e infelizmente das mais corriqueiras: pois nada é mais corruptível do que um artista.)”


“Quem poderia agora censurar os agnósticos, quando, adoradores do desconhecido e do misterioso em si, veneram o ponto de interrogação mesmo como Deus?”


“O ideal ascético significa precisamente isto: que algo faltava, que uma monstruosa lacuna circundava o homem — ele não sabia justificar, explicar, afirmar a si mesmo, ele sofria do problema do seu sentido. Ele sofria também de outras coisas, era sobretudo um animal doente: mas seu problema não era o sofrer mesmo, e sim que lhe faltasse a resposta para o clamor da pergunta “para que sofrer?”. O homem, o animal mais corajoso e mais habituado ao sofrimento, não nega em si o sofrer, ele o deseja, ele o procura inclusive, desde que lhe seja mostrado um sentido, um para quê no sofrimento. A falta de sentido do sofrer, não o sofrer, era a maldição que até então se estendia sobre a humanidade — e o ideal ascético lhe ofereceu um sentido! Foi até agora o único sentido; qualquer sentido é melhor que nenhum; o ideal ascético foi até o momento, de toda maneira, o mal menor par excellence. Nele o sofrimento era interpretado; a monstruosa lacuna parecia preenchida; a porta se fechava para todo niilismo suicida. A interpretação — não há dúvida — trouxe consigo novo sofrimento, mais profundo, mais íntimo, mais venenoso e nocivo à vida: colocou todo sofrimento sob a perspectiva da culpa... Mas apesar de tudo — o homem estava salvo, ele possuía um sentido, a partir de então não era mais uma folha ao vento, um brinquedo do absurdo, do sem-sentido, ele podia querer algo — não importando no momento para que direção, com que fim, com que meio ele queria: a vontade mesma estava salva. Não se pode em absoluto esconder o que expressa realmente todo esse querer que do ideal ascético recebe sua orientação: esse ódio ao que é humano, mais ainda ao que é animal, mais ainda ao que é matéria, esse horror aos sentidos, à razão mesma, o medo da felicidade e da beleza, o anseio de afastar-se do que seja aparência, mudança, morte, devir, desejo, anseio — tudo isto significa, ousemos compreendê-lo, uma vontade de nada, uma aversão à vida, uma revolta contra os mais fundamentais pressupostos da vida, mas é e continua sendo uma vontade!... E, para repetir em conclusão o que afirmei no início: o homem preferirá ainda querer o nada a nada querer...”

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