Editora: Martins Fontes
ISBN: 978-85-3361-630-1
Tradução: Almiro Pisetta e Lenita M. R. Esteves
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 736
Sinopse: Ver Parte
I
“Podemos observar que o princípio da
diferença dá algum peso às considerações preferidas pelo princípio da
reparação. De acordo com este último princípio, desigualdades imerecidas exigem
reparação; e como desigualdades de nascimento e de dotes naturais são imerecidas,
elas devem ser de alguma forma compensadas. Assim, o princípio determina que a
fim de tratar as pessoas igualitariamente, de proporcionar uma genuína
igualdade de oportunidades, a sociedade deve dar mais atenção àqueles com menos
dotes inatos e aos oriundos de posições sociais menos favoráveis. A ideia é de
reparar o desvio das contingências na direção da igualdade. Na aplicação desse
princípio, maiores recursos devem ser gastos com a educação dos menos
inteligentes, e não o contrário, pelo menos durante um certo tempo da vida,
digamos, os primeiros anos de escola.
Ora, o princípio da reparação não foi, que eu
saiba, proposto como o único critério de justiça, como único objetivo da ordem
social. Ele é, tanto quanto os outros, plausível como um princípio prima facie, que deve ser colocado na
balança juntamente com os outros. Por exemplo, devemos ponderá-lo em relação ao
princípio da melhoria do padrão médio de vida, ou da promoção do bem comum. Mas
quaisquer que sejam os outros princípios adotados, as reivindicações de
reparação devem ser levadas em conta. Considera-se que esse princípio
representa um dos elementos de nossa concepção da justiça. Mas o princípio da
diferença certamente não é o princípio da reparação. Ele não exige que a
sociedade tente contrabalançar as desvantagens como se fosse esperado de todos
que competissem numa base equitativa em uma mesa corrida. Mas o princípio da
diferença alocaria recursos na educação, por exemplo, a fim de melhorar as
expectativas a longo prazo dos menos favorecidos. Se esse objetivo é atingido
quando se dá mais atenção aos mais bem-dotados, é permissível fazê-lo; caso
contrário, não. E, nessa tomada de decisão, o valor da educação não deveria ser
avaliado apenas em termos de eficiência econômica e bem-estar social. O papel
da educação é igualmente importante, se não mais importante ainda, no sentido
de proporcionar a uma pessoa a possibilidade de apreciar a cultura de sua
sociedade e de tomar parte em suas atividades, e desse modo proporcionar a cada
indivíduo um sentimento de confiança seguro de seu valor próprio.
Assim, embora o princípio da justiça não seja
igual ao princípio da reparação, ele de fato realiza pelo menos uma parte dos
intentos deste último. Ele transforma os objetivos da estrutura básica de modo
que o esquema global das instituições deixa de enfatizar a eficiência social e
os valores tecnocráticos. O princípio da diferença representa, com efeito, um
consenso em se considerar, em certos aspectos, a distribuição de talentos
naturais como um bem comum, e em partilhar os maiores benefícios sociais e
econômicos possibilitados pela complementaridade dessa distribuição. Os que
foram favorecidos pela natureza, sejam eles quem forem, podem beneficiar-se de
sua boa sorte apenas em termos que melhorem a situação dos menos felizes. Os
naturalmente favorecidos não se devem beneficiar simplesmente porque são mais
bem-dotados, mas apenas para cobrir os custos de treinamento e educação e para
usar os seus dotes de maneiras que ajudem também os menos favorecidos. Ninguém
merece a maior capacidade natural que tem, nem um ponto de partida mais
favorável na sociedade. Mas, é claro, isso não é motivo para ignorar essas
distinções, muito menos para eliminá-las. Em vez disso, a estrutura básica pode
ser ordenada de modo que as contingências trabalhem para o bem dos menos
favorecidos. Assim somos levados ao princípio da diferença se desejamos montar
o sistema social de modo que ninguém ganhe ou perca devido ao seu lugar
arbitrário na distribuição de dotes naturais ou à sua posição inicial na
sociedade sem dar ou receber benefícios compensatórias em troca.
Tendo em vista essas observações, podemos
rejeitar o argumento de que a ordenação das instituições é sempre defeituosa
porque a distribuição de talentos naturais e as contingências das
circunstâncias sociais são injustas, e essa injustiça deve inevitavelmente
transferir-se para as organizações humanas. Ocasionalmente, essa reflexão é
apresentada como uma desculpa para se ignorar a injustiça, como se a recusa a
concordar com a injustiça fosse o mesmo que a incapacidade de aceitar a morte.
A distribuição natural não é justa nem injusta; nem é injusto que pessoas
nasçam em alguma posição particular na sociedade. Esses são simplesmente fatos
naturais. O que é justo ou injusto é o modo como as instituições lidam com
esses fatos. As sociedades aristocráticas e de castas são injustas porque fazem
dessas contingências a base de referência para o confinamento em classes
sociais mais ou menos fechadas ou privilegiadas. A estrutura básica dessas
sociedades incorpora a arbitrariedade encontrada na natureza. Mas não é
necessário que os homens se resignem a essas contingências. O sistema social
não é uma ordem imutável acima do controle humano, mas um padrão de ação
humana. Na justiça como equidade os homens concordam em se valer dos acidentes
da natureza ou das circunstâncias sociais, apenas quando disso resulta no benefício
comum. Os dois princípios são um modo equitativo de se enfrentar a
arbitrariedade da fortuna; e embora sem dúvida sejam imperfeitas em outros
aspectos, as instituições que satisfazem esses princípios são justas. (...)
Dessa forma, não é correto que indivíduos com
maiores dotes naturais, e com o caráter superior que tornou possível o seu
desenvolvimento, tenham o direito a um esquema cooperativo que lhes possibilite
obter ainda mais benefícios de maneiras que não contribuem para as vantagens
dos outros. Não merecemos nosso lugar na distribuição de dotes inatos, assim
como não merecemos nosso lugar inicial de partida na sociedade. Também é
problemática a questão de saber se merecemos o caráter superior que nos
possibilita fazer o esforço de cultivar nossas habilidades; pois esse caráter
depende em grande parte de circunstâncias familiares e sociais felizes no
início da vida, às quais não podemos alegar que temos direito. A noção de
mérito não se aplica aqui. (...)
Um outro mérito do princípio da diferença é
que ele fornece uma interpretação do princípio da fraternidade. Em comparação
com a liberdade e a igualdade, a fraternidade tem ocupado um lugar menos
importante na teoria democrática. Considera-se que ela é um conceito menos
especificamente político, que não define em si mesmo nenhum dos direitos
democráticos, mas que em vez disso expressa certas atitudes mentais e formas de
conduta sem as quais perderíamos de vista os valores expressos por esses
direitos. Ou então, o que está intimamente relacionado a isso, considera-se que
a fraternidade representa uma certa igualdade de estima social manifesta em
várias convenções sociais e na ausência de atitudes de deferência e
subserviência. Não há dúvidas de que a fraternidade implica tais coisas, assim
como um senso de amizade cívica e solidariedade social, mas, entendida desse
modo, ela não expressa nenhuma exigência definida. Ainda temos de encontrar um
princípio de justiça que se combine com a ideia subjacente. O princípio da
diferença, entretanto, parece corresponder a um significado natural de
fraternidade: ou seja, à ideia de não querer ter maiores vantagens, exceto quando
isso traz benefícios para os outros que estão em pior situação. A família, em
sua concepção ideal e muitas vezes na prática, é um lugar em que o princípio de
maximização da soma de vantagens é rejeitado. Os membros de uma família
geralmente não desejam ganhar a não ser que possam fazer isso de modos que
promovam os interesses dos outros. Ora, querer agir segundo o princípio da
diferença traz precisamente esse resultado. Aqueles que estão em melhor
situação estão dispostos a receber seus objetivos mais elevados apenas dentro
de um esquema no qual isso resulte em benefícios para os menos afortunados.
Algumas vezes se considera que o ideal de
fraternidade envolve laços sentimentais que, entre membros da sociedade mais
ampla, não seria realista esperar. E essa é certamente mais uma razão para que
ele seja relativamente negligenciado na doutrina democrática. Muitos sentiram
que esse ideal não tem um lugar próprio nas questões políticas. Mas se for
interpretado como um princípio que incorpora as exigências do princípio da
diferença, ele não é uma concepção impraticável. Parece de fato que as
instituições e as políticas que com a maior segurança consideramos justas
satisfazem as suas exigências, pelo menos no sentido de que as desigualdades
permitidas por elas contribuem para o bem-estar dos menos favorecidos. Nessa
interpretação, portanto, o princípio da fraternidade é um padrão perfeitamente
factível. Uma vez que o aceitarmos, podemos associar as ideias tradicionais de
liberdade, igualdade e fraternidade com a interpretação democrática dos dois
princípios da justiça da seguinte maneira: a liberdade corresponde ao primeiro
princípio, a igualdade à ideia de igualdade no primeiro princípio juntamente
com a igualdade equitativa de oportunidades, e a fraternidade corresponde ao
princípio da diferença. Desse modo encontramos um lugar para a concepção da
fraternidade na interpretação democrática dos dois princípios, e percebemos que
ela impõe uma exigência definida sobre a estrutura básica da sociedade. Os
outros aspectos da fraternidade não devem ser esquecidos, mas o princípio da
diferença expressa o seu significado fundamental do ponto de vista de justiça
social.”
“Volto-me agora para um dos princípios que se
aplicam aos indivíduos, o princípio de equidade. Tentarei usar esse princípio
para explicar todas as exigências que são obrigações, e não deveres naturais.
Esse princípio afirma que uma pessoa deve fazer a sua parte conforme definem as
regras de uma instituição, quando duas condições são observadas: primeiro, que
a instituição seja justa (ou equitativa), isto é, que ela satisfaça os dois
princípios da justiça; e, segundo, que a pessoa tenha voluntariamente aceitado
os benefícios da organização ou tenha aproveitado a vantagem das oportunidades
que ela oferece para promover os seus interesses próprios. A ideia principal é
a de que quando algumas pessoas se comprometem em uma empresa de cooperação
mutuamente vantajosa de acordo com certas regras, e assim restringem sua
liberdade do modo necessário a fim de produzir vantagens para todos, os que se
submeteram a essas restrições têm o direito a uma atitude semelhante da parte
dos que se beneficiaram com a sua submissão. Não devemos lucrar com os
trabalhos cooperativos dos outros sem que tenhamos contribuído com nossa quota justa.
Os dois princípios da justiça definem o que é uma quota justa no caso de
instituições pertencentes à estrutura básica. Portanto, se essas organizações
são justas, cada pessoa recebe uma quota justa quando todos (inclusive ela)
fazem a sua parte.”
“As circunstâncias da justiça se verificam
sempre que pessoas apresentam reivindicações conflitantes em relação à divisão
das vantagens sociais em condições de escassez moderada. A não ser que essas
circunstâncias existam, não há oportunidade para a virtude da justiça,
exatamente como não haveria, na falta de ameaças de agressão à vida ou à
integridade corporal, oportunidade para a coragem física.”
“Consideremos então o ponto de vista de uma
pessoa qualquer na posição original. Essa pessoa não tem meios de obter
vantagens especiais para si própria. Por outro lado, também não há fundamentos
para que ela concorde com desvantagens especiais. Como não é razoável que ela
espere mais do que uma parte igual na divisão dos bens sociais primários, e
como também não é racional que ela concorde em obter menos, o sensato é
reconhecer, como o primeiro passo, um princípio que exija uma distribuição
igual. De fato, esse princípio é tão óbvio em vista da simetria das partes, que
ocorreria imediatamente a qualquer pessoa. Assim, as partes começam com um
princípio que exige liberdades básicas iguais para todos, bem como uma
igualdade equitativa de oportunidades e uma divisão igual da renda e da
riqueza.
Mas, mesmo que defendamos a prioridade das
liberdades básicas e da igualdade equitativa de oportunidades, não há motivos
para que esse reconhecimento inicial seja definitivo. A sociedade deve levar em
consideração a eficiência econômica e as exigências organizacionais e
tecnológicas. Se existem desigualdades na renda e na riqueza, assim como
diferenças na autoridade e nos graus de responsabilidade que atuam para
melhorar a condição de todos, em relação ao ponto de referência da igualdade,
por que não permiti-las? Podemos pensar que, ideal- mente, os indivíduos
gostariam de servir uns aos outros. Mas, como se supõe que as partes são
mutuamente desinteressadas, a sua aceitação dessas desigualdades econômicas e
institucionais é apenas o reconhecimento das relações de oposição em que os
homens se colocam dentro das circunstâncias da justiça. Eles não têm
fundamentos para se queixar dos motivos uns dos outros. Assim, as partes
discordariam da existência dessas diferenças apenas se ficassem frustradas
simplesmente porque percebem ou sabem que os outros estão em melhor situação;
mas suponho que elas decidem como quem não é motivado pela inveja. Assim, a
estrutura básica permite essas desigualdades contanto que elas melhorem a situação
de todos, inclusive a dos menos favorecidos, desde que elas sejam consistentes
com a liberdade igual e com a igualdade equitativa de oportunidades. Devido ao
fato de as partes começarem a partir de uma divisão igual de todos os bens
sociais primários, aqueles que se beneficiam menos têm, por assim dizer, um
poder de veto. Chegamos assim ao princípio da diferença. Tomando a igualdade
como a base de comparação, aqueles que ganharam mais devem tê-lo feito em
termos que são justificáveis aos olhos daqueles que ganharam o mínimo.”
“Embora em geral uma teoria ética possa
certamente invocar fatos naturais, pode haver no entanto boas razões para
incorporarmos convicções da justiça aos princípios básicos de um modo mais
direto do que realmente possa ser exigido pela compreensão teoricamente plena
das contingências do mundo.”
“Anteriormente, afirmei que um ponto forte a
favor da uma concepção da justiça é que ela gera a sua própria sustentação.
Quando se reconhece publicamente que a estrutura básica da sociedade satisfaz
os seus princípios por um longo período de tempo, as pessoas sujeitas a essas
ordenações tendem a desenvolver um desejo de agir de acordo com esses
princípios e fazer a sua parte em instituições que lhes servem de modelo. Uma
concepção da justiça é estável quando o reconhecimento geral de sua realização
por parte do sistema social tende a fomentar o senso de justiça correspondente.
Se isso de fato ocorre ou não depende, sem dúvida, das leis da psicologia moral
e da disponibilidade dos motivos humanos. Podemos observar que o princípio da
utilidade parece exigir uma identificação maior com os interesses dos outros do
que os dois princípios da justiça. Assim, estes últimos serão uma concepção
mais estável, na medida em que essa identificação é difícil de obter. Quando os
dois princípios são satisfeitos, as liberdades básicas de cada pessoa são
asseguradas, e há um senso definido pelo princípio da diferença, no qual todos
se beneficiam da cooperação social. Portanto, podemos explicar a aceitação do sistema
social e dos princípios que ele satisfaz pela lei psicológica segundo a qual as
pessoas tendem a amar, defender e apoiar qualquer coisa que assegure o seu
próprio bem. Uma vez que o bem de todos é defendido, todos adquirem tendência a
apoiar o sistema.
Quando o princípio da utilidade é satisfeito,
entretanto, não existe essa garantia de que todos se beneficiem. A obediência
ao sistema social pode exigir que alguns, em especial os menos favorecidos,
renunciem a benefícios em favor de um bem maior para todos. Assim, o sistema
não será estável, a não ser que os que devem fazer sacrifícios tenham uma forte
identificação com interesses mais amplos que os seus próprios. Mas não é fácil
criar essa situação. Os sacrifícios em questão não são aqueles que se exigem em
épocas de emergência social, quando todos ou alguns são obrigados a trabalhar
pelo bem comum. Os princípios da justiça se aplicam à estrutura básica do
sistema social e à determinação das expectativas de vida. O que o princípio da
utilidade exige é justamente um sacrifício dessas expectativas. Mesmo quando
somos menos afortunados, temos de aceitar as maiores vantagens dos outros como
uma razão suficiente para termos expectativas mais baixas ao longo de toda a
nossa vida. De fato, quando a sociedade é concebida como um sistema de
cooperação destinado a promover bem de seus membros, parece inviável esperar
que alguns cidadãos aceitem, com base em princípios políticos, perspectivas de
vida ainda menores para que os outros se beneficiem. Fica evidente, então, o
motivo que leva os utilitaristas a enfatizarem papel da compreensão no
aperfeiçoamento moral e o lugar central da benevolência entre as virtudes
morais. A sua concepção da justiça é ameaçada pela instabilidade, a não ser que
a compreensão e a benevolência sejam ampla e intensamente cultivadas.”
“Além do mais, o reconhecimento público dos
dois princípios da justiça confere uma sustentação mais forte à autoestima das
pessoas, e esta, por sua vez, aumenta a eficácia da cooperação social. Os dois
efeitos são motivos para que se concorde com a adoção desses princípios. É
claramente racional que os homens assegurem sua autoestima. O senso de seu
próprio valor é necessário para que eles persigam a sua concepção do bem com
satisfação e tenham prazer em sua realização. A autoestima não é tanto uma
parte de algum plano racional de vida, mas é o senso de que vale a pena
realizar esse plano. Mas nossa autoestima geralmente depende do respeito dos
outros. A não ser que sintamos que nossos esforços são respeitados por eles,
nos é difícil, talvez impossível, manter a convicção de que vale a pena
promover nossos objetivos. Assim, por esse motivo, as partes aceitariam o dever
natural do respeito mútuo, que exige que as pessoas tratem umas as outras com
civilidade e estejam dispostas a explicar os motivos de suas ações,
especialmente quando as pretensões dos outros são rejeitadas. Além disso,
podemos supor que aqueles que respeitam a si próprios têm muito mais
probabilidades de respeitarem uns aos outros, e vice-versa. O desprezo por si
próprio conduz ao desprezo pelos outros e ameaça o bem desses outros tanto
quanto a inveja. A autoestima se autossustenta reciprocamente.
Assim, uma característica desejável de uma
concepção da justiça é que ela expresse publicamente o respeito mútuo entre os
homens. Desse modo, eles asseguram um senso de seu próprio valor. Ora, os dois
princípios da justiça atingem esse objetivo. Pois, quando a sociedade segue
esses princípios, o bem de todos é incluído em um sistema de benefício mútuo e
essa afirmação pública, nas instituições, dos esforços de cada homem sustenta a
autoestima de todos os homens. O estabelecimento da liberdade igual e a
operação do princípio da diferença tendem a produzir esse efeito. Os dois
princípios são equivalentes, como já observei, a um compromisso de se
considerar a distribuição das habilidades naturais, sob certos aspectos, como
um dom coletivo, de modo que os mais afortunados se possam beneficiar apenas de
formas que ajudem os menos beneficiados. Organizando-se as desigualdades de
modo que haja vantagens mútuas e abstendo-se da exploração das contingências do
acaso natural e social dentro de uma estrutura de liberdades iguais, as pessoas
expressam sua obrigação com o respeito umas pelas outras na própria constituição
de sua sociedade. Desse modo, asseguram seu respeito a si próprios, como é
racional que façam.
Um outro modo de colocar a questão é dizer
que os princípios da justiça manifestam, na estrutura básica da sociedade, o
desejo dos homens de tratar uns aos outros não apenas como meios, mas como
finalidades em si mesmos. (...)
Considerar as pessoas como fins em si
próprias na concepção básica da sociedade é concordar em abdicar dos ganhos que
não contribuem para as expectativas de todos. Em contraste com isso, considerar
as pessoas como meios é estar disposto a impor àqueles já menos favorecidos
perspectivas ainda mais baixas de vida, em favor das expectativas mais altas de
outros.”
“Sempre que uma sociedade decide maximizar a
soma dos valores intrínsecos ou o saldo líquido de satisfação dos interesses,
corre-se o risco de descobrir que a negação da liberdade para alguns se
justifica em nome desse objetivo único. As liberdades de cidadania igual estão
inseguras quando fundadas em princípios teleológicos. A argumentação a favor
delas se apoia em cálculos tão precários quanto controversos, e em premissas
incertas.
Além disso, nada se ganha dizendo que as
pessoas têm um valor intrínseco igual, a menos que isso seja simplesmente uma
maneira de usar os pressupostos clássicos como se fizessem parte do princípio
de utilidade. Isto é, alguém aplica esse princípio como se essas hipóteses
fossem verdadeiras. Tal procedimento tem certamente o mérito de reconhecer que
depositamos mais confiança no princípio da liberdade igual do que na veracidade
das premissas das quais uma visão perfeccionista ou utilitarista derivaria esse
princípio. As razões para essa confiança, segundo o entendimento
contratualista, estão no fato de que as liberdades têm um fundamento
completamente diferente. Elas não são uma maneira de maximizar a soma dos
valores intrínsecos ou de se atingir o maior saldo líquido de satisfação. A
ideia de maximizar a soma de valores ajustando os direitos dos indivíduos não
se apresenta. Em vez disso, esses direitos são atribuídos para satisfazer os
princípios de cooperação que os cidadãos reconheceriam quando cada um estivesse
representado de forma justa como uma pessoa ética. A concepção definida por
esses princípios não é a de maximizar o que quer que seja, exceto no sentido
vago de, tudo considerado, melhor satisfazer as exigências da justiça.
Podemos observar neste caso uma analogia com
o método de comparações interpessoais de bem-estar. Essas comparações se fundam
na lista dos bens primários que alguém pode razoavelmente esperar,
entendendo-se por bens primários aqueles que supostamente todos querem. Essa é
uma base de comparação com a qual todas as partes podem concordar para os
propósitos da justiça social. Não exige estimativas sutis da capacidade humana
de felicidade, muito menos do valor relativo de seus planos de vida. Não
precisamos questionar a natureza do significado dessas noções; elas, porém, são
impróprias para projetar instituições justas. De modo semelhante, as partes
consentem com critérios reconhecidos publicamente para determinar o que
constitui evidência de que sua liberdade igual está sendo utilizada de maneiras
que ofendem o interesse comum na ordem pública e na liberdade de outros. Essas
convicções de evidência são adotadas para a busca da justiça; não são concebidas
para aplicar-se a todas as questões de significado e verdade. A extensão de sua
validade na filosofia e na ciência é uma questão à parte.
O traço característico desses argumentos a
favor da liberdade de consciência é que eles se baseiam unicamente numa
concepção da justiça. A tolerância não se origina de necessidades práticas ou
razões de Estado. A liberdade religiosa e moral decorre do princípio da
liberdade igual; e supondo-se a prioridade desse princípio, a única razão para
negar as liberdades iguais é a de evitar uma injustiça ou uma perda de
liberdade ainda maior. Além disso, a argumentação não se apoia em nenhuma
doutrina filosófica ou metafísica específica. Não pressupõe que todas as
verdades possam ser estabelecidas mediante opiniões aceitas pelo senso comum;
nem sustenta que tudo seja, em algum sentido, uma construção lógica derivada do
que se pode observar ou provar através da investigação científica racional. O
apelo, na verdade, se dirige ao senso comum, mas está estruturado de tal
maneira que pode tornar desnecessárias maiores presunções. Por outro lado, a
defesa da liberdade também não implica ceticismo em relação à filosofia ou
indiferença religiosa. Talvez se possam apresentar argumentos a favor da
liberdade de consciência que tenham uma ou mais dessas doutrinas como
premissas. Isso não é motivo de surpresa, já que argumentos diferentes podem
levar à mesma conclusão. Mas não precisamos prosseguir nessa questão. A defesa
da liberdade é no mínimo tão forte como o mais forte de seus argumentos; os
fracos e falaciosos é melhor esquecê-los. Aqueles que gostariam de negar a
liberdade de consciência não podem justificar sua posição pela condenação do
ceticismo em relação à filosofia e da indiferença religiosa, nem pelo apelo aos
interesses sociais e questões de Estado. A limitação da liberdade só se
justifica quando for necessária para a própria liberdade, para impedir uma
incursão contra a liberdade que seria ainda pior.”
“Podemos partir da convicção de que um regime
democrático pressupõe liberdade de expressão e de assembleia, e liberdade de
consciência e de pensamento. Essas instituições não são apenas exigidas pelo
primeiro princípio da justiça mas, como argumentava Mill, elas são necessárias
para que os negócios políticos sejam conduzidos de maneira racional. Embora a
racionalidade não seja garantida por essas ordenações, parece que em sua
ausência o curso de ação mais razoável será fatalmente rejeitado, em prol de
políticas sugeridas por interesses particulares. Para que o fórum público seja
livre e aberto a todos, e permaneça em sessão contínua, todos devem poder
participar dele. Todos os cidadãos devem ter os meios de informar-se sobre
questões políticas. Deveriam ter condições de avaliar como certas propostas
afetam seu bem-estar e quais políticas promovem sua concepção do bem público.
Além disso, deveriam ter uma oportunidade equitativa de acrescentar à pauta
propostas alternativas para a discussão política. As liberdades protegidas pelo
princípio da participação perdem muito de seu valor sempre que os detentores de
maiores recursos privados têm permissão de usar suas vantagens para controlar o
curso do debate público. Pois, no fim, essas desigualdades possibilitarão que
aqueles que estão em melhores condições exerçam uma influência maior sobre a
evolução da legislação. Com o tempo, eles tendem a conquistar um peso
preponderante na decisão de questões sociais, pelo menos no que se refere
àqueles assuntos sobre os quais normalmente concordam, isto é, em relação
àquilo que favorece suas circunstâncias privilegiadas.
Medidas compensatórias devem, portanto, ser
tomadas a fim de se preservar o valor equitativo para todas as liberdades
políticas iguais. Pode-se usar uma variedade de recursos. Por exemplo, numa
sociedade que permite a propriedade privada dos meios de produção, a
propriedade e a riqueza devem ser amplamente distribuídas e verbas públicas
devem ser destinados regularmente a encorajar a livre discussão pública. Mais
ainda, deve-se tornar os partidos políticos independentes dos interesses
econômicos privados, destinando-lhes suficientes recursos provindos da
arrecadação para desempenhar seu papel no sistema constitucional. (As
subvenções partidárias podem, por exemplo, basear-se em alguma regra que leva
em conta o número de votos recebidos em várias eleições recentes, ou em algo
semelhante.) O que se requer é que os partidos políticos sejam autônomos no que
diz respeito aos interesses privados, isto é, demandas não expressas no fórum
público e não discutidas abertamente com referência a uma concepção do bem público.
Se a sociedade não arcar com os custos de sua organização e se for necessário
levantar fundos para os partidos entre os setores socioeconômicos mais
favorecidos, as reivindicações desses grupos fatalmente receberão atenção
excessiva. E a probabilidade de isso acontecer é ainda maior quando os membros
menos favorecidos da sociedade, após serem efetivamente impedidos de exercer
seu grau equitativo de influência devido à carência de bens, se fecham na
apatia e no ressentimento.
Historicamente, um dos principais defeitos do
governo constitucional tem sido a sua incapacidade de assegurar o valor
equitativo da liberdade política. As medidas corretivas necessárias não têm
sido tomadas; na verdade, parece que nunca foram consideradas seriamente.
Disparidades na distribuição da propriedade e riqueza que em muito excedem o
que é compatível com a liberdade política têm sido geralmente toleradas pelo
sistema legal. Recursos públicos não têm sido empregados a fim de manter as
instituições exigidas para garantir o valor equitativo da liberdade política. A
falha reside essencialmente no fato de que o processo político democrático é,
na melhor das hipóteses, uma rivalidade regulada; nem sequer teoricamente
possui as propriedades desejáveis que a teoria dos preços atribui aos mercados
realmente competitivos. Além disso, os efeitos das injustiças no âmbito do
sistema político são mais graves e duradouros do que as imperfeições do
mercado. O poder político rapidamente se acumula e se torna desigual; e,
servindo-se do aparelho coercitivo do Estado e de suas leis, aqueles que
conseguem a predominância podem muitas vezes garantir para si mesmos uma
posição privilegiada. Assim, as desigualdades do sistema socioeconômico podem
solapar qualquer igualdade política que possa ter existido em condições
historicamente favoráveis. O sufrágio universal é um contrapeso insuficiente;
pois, quando os partidos e as eleições são financiados não por fundos públicos
mas por contribuições privadas, o fórum político fica tão condicionado pelos desejos
dos interesses dominantes que as medidas básicas necessárias para estabelecer
uma regra constitucional justa raramente são apresentadas de modo adequado.”
“Vemos então que, entendido corretamente, o
desejo de agir com justiça deriva em parte do desejo de expressar, da maneira
mais plena, o que somos ou podemos ser, isto é, seres racionais iguais e
livres, com liberdade de escolha. É por essa razão, creio eu, que Kant fala da
incapacidade de agir segundo a lei moral como sendo causa de vergonha e não de
sentimentos de culpa. E isso é apropriado, uma vez que, para ele, agir
injustamente é agir de uma maneira que não expressa a nossa natureza de seres
racionais iguais e livres. Tais ações ferem, portanto, o nosso amor-próprio, o
senso de nosso valor como pessoas, e a experiência dessa perda causa vergonha.
Agimos como se pertencêssemos a uma categoria inferior, como se fôssemos
criaturas cujos princípios básicos fossem determinados pelas contingências
naturais. Aqueles que pensam na doutrina de Kant como uma doutrina da lei e da
culpa fazem dele uma interpretação bastante equivocada. O principal objetivo de
Kant é aprofundar e justificar a ideia de Rousseau de que liberdade é agir de
acordo com a lei que nós estabelecemos para nós mesmos. E isso conduz não a uma
moralidade de comando austero, mas sim a uma ética de autoestima e respeito
mútuo.
A posição original pode, então, ser vista
como uma interpretação procedimental da concepção kantiana de autonomia, e do
imperativo categórico, dentro da estrutura de uma teoria empírica. Os
princípios que regulam o domínio dos objetivos são os que seriam escolhidos
nessa posição, e a descrição dessa posição nos possibilita explicar em que
sentido agir com base nesses princípios expressa a nossa natureza de pessoas racionais
iguais e livres. Essas noções já não são puramente transcendentes e desprovidas
de conexões explicáveis com a conduta humana, pois a concepção procedimental da
posição original nos permite estabelecer esses vínculos.”
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