Editora: Martins Fontes
ISBN: 978-85-7827-254-8
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 184
Sinopse: A mesma
razão que manda tolerar originou, ela própria, algumas das mais ferozes
manifestações de intolerância no século XX. Afinal, a cultura e o humanismo
também segregam a barbárie, tal como haviam feito e continuam a fazer as
religiões e a simples natureza. Do ponto de vista teórico, a consistência dos
laços sociais e a espessura do fio que liga entre si os diversos indivíduos e
comunidades é extremamente frágil, um fio de nada. Sem ele, porém, as nossas
sociedades transformar-se-iam num arquipélago de convicções mutuamente
ameaçadoras. O que está aqui em causa é precisamente esta ambiguidade: sabemos
que temos de tolerar, sabermos que nem tudo pode ser tolerado, e não sabemos
onde traçar exatamente a fronteira entre o tolerável e o intolerável.
“Em certo sentido, quase se diria estarmos em
presença de um prenúncio longínquo desses livres-pensadores e libertinos que, a
partir do século XVI, iniciam a marcha em direção ao tolerantismo, essa
“heresia das heresias” que traz consigo, no dizer do cardeal Bossuet, o gérmen
de uma nova Babel, atribuindo indiferentemente à verdade e ao erro, à virtude e
ao vício, o mesmo estatuto e os mesmos direitos.”
“O mesmo se poderia, aliás, deduzir das
palavras de Steven C. Rockefeller, quando recorda que “muitos adeptos do
multiculturalismo, hoje, contestam a ideia de que o liberalismo seja neutro a
respeito das concepções do bem, argumentando que ele traduz apenas uma cultura
regional, anglo-americana, a qual possuiria um efeito homogeneizante”.”
“No fundo, continuam os críticos da
tolerância a alegar, tolera-se hoje mais por falta de convicções próprias que
por respeito pelas convicções alheias. É, por assim dizer, uma homogeneização
negativa, tolerante mas tendencialmente vazia.”
“A diferença e a heterogeneidade é que são o
verdadeiro apanágio do homem.”
“A tolerância limita-se a propor uma unidade,
ou melhor, um consenso que só é possível obter mediante o deliberado adiamento
da verdade definitiva e o seu desterro para fora dos muros da pólis. Aparentemente, o propósito seria
modesto: um fio de nada, como aqui lhe chamamos, tendo em atenção o seu lado
irrepresentável e, bem assim, a natureza dos laços – irredutível a qualquer
dogma – com que a tolerância deveria imperativamente ligar os indivíduos. Na
realidade, ele é tanto ou mais problemático, porquanto requer a salvaguarda da
identidade de cada indivíduo e de cada grupo, e exige, simultaneamente, que
essa mesma identidade se flexibilize a ponto de permitir não só o diálogo, mas
a própria integração do outro sem que ele tenha de se despojar dos seus
valores, usos e costumes. Conviver sem converter, eis o desafio supremo. O
problema começa quando a identidade do outro, a sua própria razão de ser, é
contra tal contenção, essencial na razão tolerante.”
“Quando falamos de tolerância estamos nos
referindo à permissão de maneiras de pensar e de agir que vão contra aquelas
que adota para si aquele que tolera ou a permissão de maneiras de ser – cor da
pele, raça, origem étnica – diferentes da que apresenta o grupo em que o
tolerante está integrado.”
“Em certo sentido, que é, afinal, o sentido
que lhe dão a linguagem comum e a interpretação vulgar do termo, não haveria
mesmo tolerância sem pressupor certa superioridade daquele que tolera sobre
aquele que é tolerado. Em que medida se poderá, com efeito, tolerar se não se
dispõe do poder de não tolerar?”
“O acolhimento da diferença tanto pode,
enfim, manifestar-se por uma simples receptividade e eventual predisposição
para dialogar, mantendo-se inviolável a identidade do grupo ou dos indivíduos
que toleram e de quem é tolerado, como pela capacidade de integrar o outro e,
nessa medida, rearticular a própria identidade de forma a criar interiormente o
espaço para novas maneiras de ser pensar e agir. Vendo a história, deparamos
com exemplos de ambas as hipóteses: da tolerância como simples permissão do
diferente, na condição de este permanecer na periferia cultural e porventura
até geográfica, sem questionar e muito menos agredir o núcleo central das
convicções e a organização sociopolítica dominantes; e da tolerância como
abertura e assimilação do diferente, que carrega adaptações mais ou menos
profundas, tanto no interior do grupo ou do indivíduo que tolera como no
interior dos grupos que são tolerados.”
“A razão, como se pode ver pela história do
pensamento e a variedade de doutrinas, é incapaz de fornecer uma verdade
universalmente aceita sobre as questões essenciais ao homem. A revelação, por
seu turno, apresenta-se em mais do que um livro sagrado e, para cada um desses,
existe ainda uma infinidade de interpretações, pelo que tampouco poderá ser
invocada como chave da sabedoria ou tábua da lei. Assim sendo, a imposição de
uma opinião ou de uma norma de comportamento jamais poderá reivindicar qualquer
espécie de legitimidade e remeterá sempre para o domínio da violência. Dito de
outro modo, por natureza, cada um tem o direito de viver como achar melhor e de
sustentar a “verdade” que entender, ainda que esta não passe, para todos os
outros, de um simples erro.”
“Ora, a tolerância de que fala Voltaire visa
a supressão da violência, mas foi instaurada como lei prévia ao contrato, razão
pela qual se considera um “apanágio da humanidade”. Já não se trata apenas de
mera estratégia visando à pacificação. Trata-se de um elemento constitutivo da
verdadeira natureza humana, que se entende agora como uma estrutura de valores
universais e trans-históricos cujo cerne reside na liberdade. Negar a alguém o
direito de pensar livremente e de agir em conformidade com os seus próprios
critérios seria, a partir dessa perspectiva, recusar-lhe a autenticidade da sua
natureza e a integração no seio da humanidade a que, como pessoa livre, tem
direito. A tolerância é, antes de tudo, ditada pela condição do homem enquanto
homem.”
“Uma verdade surge menos como aquilo que um
grupo defende e mais como aquilo com que ele se defende: é, em suma, o que de
faz, a sua maneira de se apresentar, de difundir e de centralizar aquilo que
é.” (Michel de Cerceou)
“No momento em que a unanimidade é tida por
utópica e a homogeneização sociodoutrinal é reconhecida como violência, a
heterodoxia descobre-se como alteridade definitiva e não mais como desvio
transitório.”
“De alguma forma, o programa do iluminismo
vai também convergir para esse combate pelo triunfo da razão sobre a
superstição e as “trevas”, uma e outras invariavelmente associadas à
intolerância. Tal combate é, como se sabe, senão linear, pelo menos progressivo
e tem uma direção, ou melhor, uma causa: a liberdade. “A natureza” – diz Kant –,
“debaixo da rude carapaça, libertou um germe pelo qual vela com toda a ternura,
a saber, a inclinação e vocação do homem para pensar livremente”. A “rude
carapaça” da natureza humana, isto é, o seu condicionamento empírico, está
sujeito à necessidade das leis naturais. A par disso, porém, a razão
institui-se, no campo moral, em autonomia pura ao tomar-se legisladora de si
própria. Nessa medida, a liberdade não se reduz a um direito que os homens
fossem adquirindo através da história: é um direito inato. É mesmo, como afirma
Kant, o “único direito inato”. Com efeito, “a liberdade (a independência
relativamente ao arbítrio constritivo de outrem), na medida em que pode
coexistir com a liberdade de qualquer outro segundo uma lei universal, é este
direito único, originário, que corresponde a todo o homem em virtude da sua
humanidade. E, sendo inato, o direito à liberdade não pode constituir objeto de
contrato.
A partir daqui, se todos os homens, enquanto
homens, são igualmente livres, então a tolerância não pode conceber-se como uma
benesse que a caridade ou a razão aconselhariam, àquele que pretensamente detém
a verdade e o poder nela assente, a manifestar para com os que ele supõe
estarem no erro: a tolerância passou definitivamente a ser o equivalente da igualdade.
Mirabeau, no célebre discurso de 22 de agosto de 1789 à Assembleia
Constituinte, por detrás da retórica revolucionária, enunciara apenas este
paradoxo da tolerância que, ao definir-se como igualdade, atinge,
simultaneamente, a plenitude de sentido e a sua ausência: “Eu não vim pregar a
tolerância! Porque a mais ilimitada liberdade de religião é para mim um direito
tão sacrossanto, que a própria palavra ‘tolerância’ com que se pretende
exprimi-lo é já, de algum modo, tirânica [...]. A existência de uma autoridade
que tem o poder de tolerar atenta contra a liberdade de pensamento pelo fato
mesmo de que tolera e, por conseguinte, poderia não tolerar”.”
“É certo que a razão moderna se definiu,
histórica e ontologicamente, pela liberdade de pensar e de agir sem ser
coagido. Seu primeiro obstáculo seria, por isso mesmo, a autoridade
injustificada, fosse ela religiosa ou filosófica: ninguém pode ser compelido a
aceitar uma verdade ou uma moral que interiormente rejeita, esteja ela em que
página ou interpretação da Bíblia estiver, tenha ela sido garantida por quem
quer que seja. Acontece que a revelação, em qualquer da suas versões e dogmas,
se apresenta como verdade incontestável, gerando assim a exclusão e a
intolerância recíproca dos credos. O racionalismo detecta que essa é a raiz do
mal e propõe, como remédio, a liberdade. As diversas religiões resistem, a
menos que estejam na situação de perseguidas. Mas a ideia avança. E avança,
paradoxalmente, no mesmo sentido de uma qualquer crença, como detentora da
verdade e pronta a perseguir, assim que puder, todos os que lhe resistam, os
hereges da nova “seita”.”
“Qualquer uma das três religiões do Livro
ficara, por largo tempo, prisioneira da identificação do texto da lei – seja no
Antigo Testamento e no Talmude, no Novo Testamento ou no Corão – com uma
narrativa da verdade universal e sem poder admitir que a própria natureza dos
seus enunciados acarreta a pluralidade conflitual das interpretações. À sua
maneira, cada uma das sociedades, Estados e impérios fundados sobre essa
presunção de traduzir a vontade de um legislador divino tenderá a moldar-se à
imagem herdada do antigo Israel e a conceber-se como depositário exclusivo da
verdade. Teocráticos por vocação, qualquer atentado contra a doutrina será por
eles julgado como um crime de lesa-pátria, da mesma forma e pela mesma razão
que entre os judeus a blasfêmia era punida com a morte. Se a soberania repousa
em Deus e existe uma lei que lhe é atribuída, então a distinção entre o sagrado
e o temporal atenua-se. No limite, ela será suprimida: o erro e o crime, tal
como a verdade e o bem, confundem-se.”
“Religiões há, entretanto, em que prevalece
ainda intacto um pretenso direito exclusivo da verdade, com prerrogativas, se
possível, reforçadas. O retorno a que se assistiu, ao longo do século XX, a uma
versão pretensamente mais autêntica do Corão, no interior do islamismo, versão
essa que condena e persegue o mínimo desvio à verdade e à virtude, é bem o
exemplo da intolerância fundamentada na “palavra do profeta, intérprete de
Alá”. Evidentemente, tal intolerância só se retira dos textos aceitos como
sagrados – no islamismo, como no cristianismo e no judaísmo – a partir do
momento em que um grupo organizado, quer esteja no poder ou em busca de sua
conquista, se socorre deles e os promove a Constituição, real ou virtual. Boa
parte das tentativas de cariz teológico para apagar a posteriori as marcas da intolerância, que a seu tempo se
legitimou por recurso ao Livro, consistem em inocentar a doutrina e culpar as
interpretações, sendo que estas, em regra, se imputam aos chamados poderes
temporais. À semelhança, porém, da ave de Minerva, a versão tolerante só se
ergue do texto quando as versões intolerantes, desamparadas pela força do braço
secular, caminham para o ocaso. E a recíproca, infelizmente, também é
verdadeira.”
“Em reforço das considerações de natureza
política é normalmente invocado o papel das trocas comerciais e transações
financeiras. Já durante parte da Idade Média, sobretudo até às cruzadas, o
comércio tivera força bastante para fazer aceitar os judeus em vários reinos
cristãos, pese embora todo o tipo de restrições teológicas e sociais que, de
uma parte e de outra, rabinos e papas ou bispos mantinham relativamente a um
contato que, se excessivo, provocaria contaminações indesejadas. Sem dúvida, a
religião, ao mesmo tempo que era o cimento de cada uma das comunidades continha
em si o imperativo da mútua segregação. Da doutrina aos rituais, dos textos
sagrados aos modos de conduta, eram muitos os elementos identitários que
sustentavam não apenas a separação, mas também o sentimento de superioridade em
relação ao “outro” e, sobretudo, o ódio com fundamento religioso: o judeu via o
cristão como idólatra; o cristão olhava cada um dos judeus como implicado na
morte de Jesus Cristo. A economia, porém, vai ditar as suas leis e impor
ajustamentos doutrinais de toda ordem. De um lado e de outro.”
“A busca de uma fonte de legitimação da
tolerância parece, pois, sistematicamente votada a oscilações de contingência,
esbarrando no final de qualquer dos seus itinerários possíveis com a natureza
hipotética, provisória e equívoca daquilo que se tomara por fundamento
definitivo. Longe de poder escorar-se em alguma transcendência e deduzir-se
apoditicamente, a tolerância remete, antes, para vínculos circunstanciais, sem
chegar a projetar-se para além de um contexto espaciotemporalmente determinado.
Seu fundamento, aliás, não é outro senão essa mesma ausência de fundamentos
absolutos que se levanta entre um indivíduo e outro, condenando por
injustificado qualquer tipo de exclusão com base na natureza, na história, ou
nas convicções. Uma vez reconhecido o estatuto imanente da verdade, ou seja,
afastada a hipótese de ela se inscrever num plano igual ao da matemática e da
lógica, aos valores religiosos e morais não restará outra base que não seja o
consentimento intersubjetivo, mais ou menos alargado, mais ou menos
argumentado. Consequentemente, a vida social tolerante, a coabitação da
diferença na pólis, só é possível
mediante instituições que preservem a condição efêmera das verdades na esfera
pública e previnam contra o potencial de intolerância que nelas se abriga.”
“Como fundamentar, efetivamente, essa
superioridade da opção liberal*, para que ela não se reduza a uma simples
manifestação do impulso para impor aos outros as nossas próprias crenças e
modos de julgar, impulso típico das opções informadas por corpos de doutrina
que rotulamos de intolerantes? A natureza e os limites da racionalidade inibem
a proclamação de normas substantivas com caráter universal e enclausuram no
espaço de uma cultura e numa rede específica de procedimentos justificativos a
própria exigência da universalidade que a razão tolerante alimenta. Os valores
de que se constitui a sociedade liberal e democrática não são, por isso, o
fruto de uma evidência racional: são, pelo contrário, o fruto de um conflito de
evidências, a lição duramente colhida na guerra entre opiniões contraditórias.
À força de experimentar os resultados do combate por verdades imutáveis e bens
indiscutíveis, a Europa foi-se tornando receptiva à consideração da
contingência e da particularidade em que se traduz sempre o pensar e o agir
humano, abandonando ao mesmo tempo a pretensão de legislar na esfera pública
sobre convicções. O reconhecimento da liberdade é a consagração do irrepetível
de cada pessoa e de cada gesto individual. A partir daí, afastada a
transcendência da lei, o problema político passará a ser o da definição do
justo e a busca de critérios equitativos em que se manifestem a igualdade de
direitos e a reciprocidade de deveres. Como vimos, não existe nenhuma instância
de onde deduzir tais critérios. Mas há, pelo menos, a forte convicção, fundada
na experiência, de que eles são razoáveis, de que, por exemplo, convém a uma
sociedade pôr entre parênteses e remeter para o foro individual as decisões
quanto a matérias sabidas intuitivamente, através de uma história às vezes de
séculos, que não podem ser objeto de unanimidade. A isso chamou Aristóteles na Ética nicomaqueia, a phrónesis, a virtude da prudência, que
consiste numa disposição prática para encontrar a regra que deve presidir à
escolha das atitudes e à justiça dos critérios.
De acordo com essa sua natureza não
teorética, a prudência adere à particularidade, leva em conta o individual e o
contingente. Pela mesma razão, numa e noutra das suas margens podem-se apontar,
respectivamente, o conservadorismo e o relativismo, o horror à mudança e a
total impossibilidade de julgar os atos alheios. Mas a prudência define-se como
disposição para evitar qualquer desses escolhos e como premissa de onde se
deduzem as verdades e a tolerância, mesmo recorrendo, como vimos, à
argumentação nem sempre inequívoca de um ponto de vista lógico. Se, por um
lado, ela dita a necessidade de eliminar o arbítrio, por outro dita a
necessidade de se chegar a consensos práticos, de modo a estabelecer aquilo a
que Ricoeur chamaria um “consenso conflitual” entre indivíduos diferentes
inseridos em tradições diferentes. A tolerância não é senão esse consenso,
intrinsecamente precário, que surge no lugar declarado vago após o exílio das
ortodoxias.”
*: Faço um pequeno parêntese, para que não se confunda o
liberalismo econômico com o político. Quando esta obra – que, mesmo tendo sido
escrita por um português, se remete à tradição anglo-saxônica – se refere à
concepção liberal, ela aponta para o liberalismo político, que seria mais bem
traduzido como progressista, ocupando o espectro do
que seria a centro-esquerda.
O liberal deste
livro, portanto se opõe ao conservador,
termos pouco usuais em nosso vocabulário político (que usaria termos como
esquerda/direita ou socialdemocrata/neoliberal, por exemplo).
“A tolerância representa-se como uma espécie
de margem ou intervalo entre o que a lei e os costumes aprovam e aquilo que
aparece como inaceitável perante normas comumente aceitas. Essa margem se
consolidou, retirando progressivamente à lei uma parte dos seus conteúdos
tradicionais, a começar por aqueles que se prendiam a matérias religiosas. O
problema aí detectado poder-se-ia caracterizar como uma investigação dos modos
de legitimar esse espaço ambíguo ocupado por coisas ao mesmo tempo ilícitas e
admitidas.”
“Voltaire, por sua vez, dedica o capítulo
XVIII do Traité sur la tolérance a
analisar “os únicos casos em que a intolerância é de direito humano”. Sua ideia
a esse respeito, claramente explicitada no primeiro parágrafo, dispensa
comentários: “Para que um governo não tenha o direito de punir os erros dos
homens, é necessário que esses erros não sejam crimes; eles só são crimes
quando perturbam a sociedade: e perturbam a sociedade a partir do momento em
que inspiram o fanatismo; é, portanto, necessário que os homens comecem por não
ser fanáticos para merecerem a tolerância”.
Num registro marcadamente político, o artigo
da Encyclopédie dedicado ao tema
apresenta, logo na cabeça da lista dos intoleráveis”, todos “os dogmas
contrários à sociedade civil”. E explicita a seguir: “em particular os ateus,
que tiram aos poderosos o único freio que os detém e os fracos a sua única
esperança, que minam as leis humanas retirando-lhes a força que lhes advém da
existência de uma sanção divina”. Pelo mesmo motivo, segundo o autor, não se
deveriam tolerar os que “a pretexto da religião atentam contra a propriedade
dos particulares ou dos próprios príncipes”, e bem assim aquelas seitas que
submetem os respectivos membros a uma dupla autoridade […] e se dispõem a
sacrificar a sociedade geral aos seus interesses particulares”.
Dir-se-á, e é um fato, que tais exemplos
ocorrem ainda num contexto cultural e politicamente iluminista, em que a
deliberada redução dos poderes de natureza religiosa caminha junto a um reforço
do poder central e uma concepção dirigista do Estado, contra os quais se
insurgirá, mais tarde, o verdadeiro espírito liberal de, por exemplo, um Stuart
Mill: “o indivíduo” – escreve este – “não pode ser obrigado a fazer ou deixar
de fazer uma coisa porque isso será melhor para ele, porque o há de fazer
feliz, ou porque, na opinião dos outros, seria assim mais acenado ou mais
justo”. No entanto, o mesmo Stuart Mill, apesar das advertências que faz contra
as intromissões do poder e da chamada opinião pública na esfera privada,
declara como propósito fulcral do seu ensaio o seguinte princípio: “o único fim
pelo qual a humanidade é autorizada, individual ou coletivamente, a intervir
sobre a liberdade de ação de qualquer dos seus membros é a proteção de si
mesma. Só no caso de ser necessário impedir que um dos membros de uma sociedade
civilizada prejudique os outros é que, legitimamente, se poderá usar a força
contra ele”.
Essa Passagem de Stuart Mill tem a virtude de
delimitar o horizonte no interior do qual o problema, ainda hoje, é
frequentemente pensado. Num tal horizonte, o impossível de tolerar
resumir-se-ia àquilo que causa dano a alguém ou, muito simplesmente, que
interfere com a liberdade e a tranquilidade de outrem. Como a religião que cada
um pratica, a etnia a que pertence, ou o seu modo de vida, em princípio, não
prejudicam ninguém em particular nem o funcionamento global da sociedade, tudo
isso deve tolerar-se. Resta, no entanto, a pergunta: de que espécie de danos e
prejuízos se está falando? Serão apenas danos físicos? Impossível, uma vez que
os danos morais poderão igualmente ser tidos como intoleráveis. E em que
momento é que a ofensa deixará de ser tolerável? Quem o define? A principal
dificuldade está em que o princípio pode sempre ser reversível, designadamente
nas situações em que for legítimo interrogarmo-nos se é razoável alguém
declarar intolerável e fora dos seus limites de tolerância uma coisa que
outros, muitos ou poucos, entendem dever ainda ser tolerado. Nessa matéria, as
escalas de sensibilidade individual serão sempre incomensuráveis e a aparente
facilidade do critério enunciado por Stuart Mill desvanece-se perante a
concreta multiplicidade de regras de conduta e maneiras de sentir convergentes
numa sociedade formada por aglutinação ou mera justaposição de raças, credos e
culturas. Aqui, o dilema será sempre o de evitar, por um lado, que a coesão
social se rompa e abra espaço à irrupção da intolerância, por outro, que essa
mesma coesão seja alçada a critério exclusivo e justifique, assim, a “tirania
da maioria”, que não é senão um outro nome da intolerância.”
“No que toca, em primeiro lugar, ao
“agnosticismo” do Estado, é necessário ter em conta que esse agnosticismo não
exclui a existência de convicções profundas no interior da sociedade, das
quais, aliás, é condição necessária e cujo confronto arbitra de modo a que ele
se contenha no espaço delimitado pelas leis de uma reciprocidade racional.
Precisamente porque detém o monopólio da violência legítima, é suposto o Estado
apresentar-se como puro garante das regras do jogo, destituído, por
conseguinte, de convicções que o obriguem a tomar partido por uma qualquer
facção, majoritária ou minoritária, ou seja, a perseguir ou prejudicar as
restantes. Espinosa, ao atribuir ao Estado como função exclusiva a defesa da
liberdade individual, em vez da defesa da fé ou do bem que a tradição
pré-moderna lhe atribuíra, deixou, de uma vez por todas, definido o núcleo
essencial da tolerância. Ao Estado exige-se apenas que crie as condições para
que os indivíduos apresentem, discutam e promovam aquilo que consideram ser o
bem, para si mesmos ou para a comunidade, e que ao mesmo tempo evite que essa
discussão provoque danos (princípio de Stuart Mill) ou seja interdita
(princípio de Popper).”
“E, no entanto, uma integração tolerante do
diverso continua a não ser possível senão por uma ausência, um fio de nada,
mesmo que essa ausência já não possa agora configurar-se como se fosse um
abismo em cuja voragem se dissolveria não só o particular como também o
individual. Em vez de assimilar, digerir o diverso, a tolerância tem, antes de
tudo, de reconhecer o outro, seja individual, seja comunalmente. Mas reconhecer
é diferente de conhecer e diferente mesmo de compreender. Conhecer alguém é
perceber de quem se trata, que sinais de identidade apresenta, que
características o definem, de modo a conseguir explicar ou prever os seus
comportamentos, a saber lidar com ele. É uma relação em que, de um lado se
perfila um sujeito e, de outro, um objeto que se arruma num dos campos da
experiência sensorial ou intelectual. Em temos kantianos, dir-se-ia que o outro
é posto como um instrumento e não como fim em si mesmo. O que se passa no ato
de compreender é diferente. Aqui a relação que se estabelece é de uma
intersubjetividade e existe, portanto, a presunção de simetria, de igualdade de
direitos. Porém, aquele que é compreendido foi previamente desapossado de pelo
menos parte da sua alteridade e vê-se reduzido às categorias cognitivas do que
compreende. Há receptividade, simpatia,
mas só na medida em que alguém se vê a si mesmo no outro – “ama o próximo como a ti mesmo” –, isto é, na
medida em que a opinião e a vontade do outro
são representadas como um eco, uma repetição da opinião e da vontade do mesmo. Em contrapartida, o
reconhecimento inverte a relação, abre uma brecha na identidade do que
reconhece e faz ecoar nos seus muros a identidade do outro: os seus interesses,
opiniões, o modo de ser e de sentir. Já não se trata apenas de condescendência
ou sequer de simetria. O que se estabelece é a possibilidade de assimetria,
porquanto, ao reconhecer-se autenticamente o outro, pressupõe-se que ele possa
ter razão e venha, assim, a destituir, no todo ou em parte, a razão daquele que
reconhece.”
“Mão é a história que nos pertence, somos nós
que pertencemos à história. Muito antes de acedermos à compreensão de nós
mesmos pela meditação reflexiva, nós compreendemo-nos de maneira irrefletida na
família, na sociedade e no Estado em que vivemos. O foco da subjetividade é um
espelho que deforma [...]. É por isso que os preconceitos do indivíduo, muito
mais do que os seus juízos, constituem a realidade histórica do seu ser.” (H-G.
Gadamer)
“O autorreconhecimento de uma identidade,
nesse nível, não se pode furtar à dialética da reciprocidade e exilar-se no
solipsismo de uma autonomia incondicionada, de si para si mesmo, tal como esta
se apresenta moralmente. Quer, além disso, dizer que o reconhecimento do outro
não se processa nem por simples objetivação, tampouco pela “compreensiva”
concessão de um direito à igualdade que equivalesse ao direito de ser igual
àquele que o concede. Diferente da razão teórica, que se sustenta no princípio
da não contradição, diferente da razão prática, que é fundada no acordo consigo
mesmo e com “o que dita a consciência”, aquilo a que poderíamos chamar a razão
tolerante fundamentar-se-á no reconhecimento do outro como pura alteridade. Tal
alteridade não poderá manter-se absolutamente irredutível, sob pena de se
impossibilitar logo de início qualquer hipótese de conciliação. Mas é
necessário que ela seja tida por absoluta e inassimilável, de modo que as
regras de convivência venham a ser a resultante dos vários polos de soberania
em presença, ou seja, das várias pessoas implicadas.
Esse tipo de “altruísmo” (que em Levinas é
fundamento da ética, na medida em que o reconhecimento de outrem, ao confrontar-me
com a possibilidade de o matar, põe a minha liberdade em questão e sujeita a
julgamento), poder-se-ia já antever na observação de Leibniz de que “o lugar do
outro, em moral como em política, é um lugar adequado para nos fazer chegar a
considerações que, de outra forma, não nos chegariam a ocorrer e [de) que tudo
aquilo que consideraríamos injusto se estivéssemos no lugar do outro devemos
suspeitar que seja injusto. Imaginando-me no “lugar do outro”, dou-me conta de
uma realidade que se me impõe, quer seja a realidade de alguém que agiria
contra mim – “princípio do pior” adequado à política, em que se exigem todas as
precauções para garantir a segurança –, quer seja a realidade de alguém que
está num lugar ou numa situação que eu julgaria injusta se tivesse de estar
realmente nela. Não se trata, pois, da simples reiteração da moral cristã, nem
sequer é o ponto de vista do outro a fonte das normas justas, hipótese que
significaria apenas uma inversão de papéis na dialética do senhor e do escravo.
O que funda o justo é, por assim dizer, a “troca” de pontos de vista – eu no
lugar do outro, o outro no meu lugar – que obriga cada um a sair de si próprio,
da esfera em que racionalmente define os seus objetivos e busca os meios
adequados para a esfera em que razoavelmente se chega a critérios de arbitragem
e conciliação de objetivos antagônicos.”
“Cada indivíduo, cada comunidade formula os
seus juízos sobre o mundo e as coisas, e esses juízos, se por um lado não
abandonam a subjetividade, por outro não podem se confundir com juízos
privados, uma vez que são por natureza “públicos” – ainda quando proferidos na
solidão – e vêm movidos pela pretensão de persuadir os outros. Permanecerem
subjetivos significa que esses não serão demonstráveis por um raciocínio lógico
qualquer: querer, portanto, impô-los sem ser pela persuasão e o diálogo
equivale à violência. Não serem privados significa que não se determinam por
interesses particulares a sua “exposição” ao consentimento alheio é ditada
apenas pela pressuposição do sentido comum. De outra forma, é impossível pensar
uma comunidade de indivíduos – isto é, um mundo sentido em comum ainda que
sentido diferentemente, consoante as perspectivas – e, por maioria de razão,
uma comunidade de comunidades.”
“A estratégia argumentativa de Walzer toma
por base a verificação, historicamente demonstrável, de que o reconhecimento do
indivíduo sem o reconhecimento das suas referências comunitárias degenera em
intolerância e, por conseguinte, defende a opção pelo modelo do liberalismo
processual só em certas circunstâncias e sempre como uma das hipóteses que se
abrem no interior do horizonte multiculturalista. Mas o raciocínio que vale
para a identidade dos indivíduos é válido igualmente para as identidades
culturais, em cujos fundamentos se descobre uma diversidade de influências e
combinações e não a singularidade que os integrismos reivindicam. Se se partir
da prioridade do multiculturalismo, ainda que se escolha, dentro dele, a
“variante” processual e se não abdique, em caso algum, dos direitos
fundamentais, corre-se precisamente o risco de fomentar esse trabalho de
ocultação da diversidade inerente a cada cultura, o qual tende a encerrar os
elementos do grupo dentro dos seus próprios muros por receio de que o contato,
o diálogo e a troca de experiências arruíne a pureza mítica da nação ou da
cultura. Pelo contrário, partindo da inteira liberdade de todos os indivíduos,
tomando a neutralidade do Estado como referência, será porventura possível não
só escapar às potenciais armadilhas de uma mitificação extrema das identidades
comunitárias, como também delimitar com maior clareza a fronteira dos
princípios cuja infração a cultura liberal, mesmo quando pensada apenas como
transversal a todas as que têm de ser tidas em conta, tomará sempre por
intolerável.”
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