Editora: Jorge Zahar
ISBN: 978-85-3780-045-4
Tradução: Maria Luiza X. de A. Borges
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 276
Sinopse: Ver Parte
I
“A exegese deve sempre conduzir à ação. Para Orígenes,
isso significava contemplação (theoria). Os leitores deviam meditar sobre
o versículo até ser “capazes de receber os princípios da verdade”.1 Iriam
assim adquirir uma nova orientação rumo a Deus. Os comentários de Orígenes muitas
vezes pareciam carecer de uma conclusão firme, porque seus leitores tinham de dar
o passo final por si mesmos. Os comentários podiam apenas pô-lo na postura espiritual
correta; Orígenes não podia fazer a meditação por ele. Sem prolongada theoria,
não era possível compreender plenamente sua exegese.
Quando jovem, Orígenes ansiara por ser mártir.
Mas depois da conversão de Constantino, quando o cristianismo se tornou uma religião
legítima no Império Romano, não houve mais oportunidade para o martírio, e o monge
tornou-se o principal exemplo cristão. Durante o início do século IV, ascetas começaram
a se retirar para os desertos do Egito e da Síria a fim de se dedicar a uma vida
de prece solitária. Um dos mais notáveis desses monges foi Antônio do Egito (250-356),
que havia se sentido incapaz de conciliar sua fortuna com os evangelhos. Um dia,
ele ouviu na igreja a leitura em voz alta da história do jovem rico que recusou
o convite de Jesus: “Vai e vende tudo que tens e dá o dinheiro aos pobres… depois,
vem e segue-me.”2 Como os rabinos, Antônio experimentou essa Escritura
como um miqra, um “chamado”. Naquela mesma tarde, deu todos os seus bens
e partiu para o deserto. Os monges eram reverenciados como agentes da Palavra.3
Em suas cavernas no deserto, eles recitavam as Escrituras, aprendiam textos de cor
e meditavam sobre eles. À medida que essas passagens bíblicas se integravam ao mundo
interior de um monge, seu significado original tornava-se menos importante que seu
significado pessoal. Os monges acreditavam que Jesus lhes mostrava como ler a Bíblia:
no Sermão da Montanha, Jesus dera à Escritura um novo sentido, enfatizando algumas
porções da Bíblia mais que outras. Ele também sublinhara a importância da caridade.
Os monges foram pioneiros de um novo estilo de vida cristão, que exigia uma leitura
diferente do evangelho. Eles tinham de permitir que os textos que aprendiam reverberassem
em suas mentes, até que alcançassem o auto-esquecimento da apatheia, uma
falta de preocupação com o bem-estar pessoal que lhes dava liberdade para amar.
Um estudioso moderno explica:
Eles podiam ser ignorados o bastante, convidados
a sair de si mesmos o bastante, para amar e ser amados de uma maneira que atendia
às mais profundas necessidades sociais do mundo cheio de tensão da Antiguidade tardia.
Amar a Deus, amar os outros, amar o mundo criado em que estavam colocados – essa
era a grande e desejada conclusão da apatheia – a sublime indiferença que
terminava em amor.4
1: Orígenes, Comentário sobre João, 6:1, in Reno, “Origen”, p.28.
/ 2: Mateus
19:21. / 3: Douglas Burton Christie, The Word in the Desert: Scripture and
the Quest for Holiness in Early Christian Monasticism, Nova York / Oxford, 1993,
p.297-8; Kling, Bible in History, p.23-40. / 4: Beldon C. Lane, The Solace
of Fierce Landscapes: Exploring Desert and Monastic Spirituality, Nova York
/ Oxford, 1998, p.175.
“Agostinho, bispo de Hipona, na África do Norte
(354-430), havia estudado retórica e de início sentiu-se decepcionado com a Bíblia,
que parecia inferior aos grandes poetas e oradores latinos. No entanto, a Bíblia
desempenhou um papel crucial em sua conversão ao cristianismo após uma longa e penosa
luta. Num momento de crise espiritual, ele ouvira uma criança no jardim vizinho
cantando um refrão: “tolle, lege” (“pega e lê!”), e lembrou-se de que Antônio
havia decidido abraçar a vida monástica após uma leitura do evangelho. Em grande
alvoroço, passou a mão num exemplar das epístolas de Paulo e leu as primeiras palavras
em que bateu a vista: “Nada de orgias e bebedeiras, promiscuidade e licenciosidade,
nada de rixas e ciúmes. Ao contrário, deixais que sua armadura seja o Senhor Jesus
Cristo, esqueçais a satisfação da carne com todos os seus apetites.”1
Num dos primeiros casos registrados de conversões de “renascimento” que se tornariam
uma característica do cristianismo ocidental, Agostinho sentiu todas as suas dúvidas
desaparecerem: “Foi como se a luz da fé inabalável se derramasse dentro de meu coração,
e todas as sombras da hesitação fugiram.”2
Mais tarde Agostinho compreendeu que suas dificuldades
anteriores com a Bíblia decorriam do orgulho: a Escritura só era acessível àqueles
que haviam se esvaziado de vaidade e presunção.3 O Logos descera do céu
para partilhar nossa fragilidade humana; e, da mesma maneira, quando Deus revelava
sua Palavra na Escritura, tinha de descer ao nosso plano e usar imagens temporais
que pudéssemos compreender.4 Nunca poderíamos conhecer toda a verdade
nesta vida; nem mesmo Moisés pôde contemplar a essência divina diretamente.5
A linguagem era inerentemente falha: poucas vezes transmitimos nossos pensamentos
de modo adequado para outros, e isso torna problemáticas nossas relações com as
pessoas. Assim, nossa luta com a Escritura deveria nos lembrar da impossibilidade
de se expressar o mistério divino na fala humana. Discussões acrimoniosas e irritadas
sobre o significado da Escritura eram, portanto, absurdas. A Bíblia expressava uma
verdade infinita e acima da compreensão de cada pessoa isoladamente, de modo que
ninguém podia ter a última palavra. Mesmo que Moisés aparecesse em pessoa para explicar
o que tinha escrito, alguns seriam incapazes de aceitar sua interpretação do Pentateuco,
porque cada um de nós só poderia deter uma minúscula faceta de toda a revelação
em nossa mente.6 Em vez de nos envolvermos em controvérsias inclementes,
em que cada um insiste que só ele está certo, um humilde reconhecimento de nossa
falta de compreensão deveria nos aproximar.
A Bíblia dizia respeito ao amor; tudo que Moisés
escrevera “fora por amor”, de modo que brigar sobre a Escritura era perverso. “Há
tantos sentidos a extrair dessas palavras; é tão insensato, portanto, apressar-se
em afirmar o que Moisés realmente quis dizer, e com controvérsias destrutivas ofender
o espírito do amor – quando foi por amor que Moisés disse todas as coisas que estamos
tentando elucidar.”7 Agostinho havia chegado à mesma conclusão que Hillel
e os rabinos. A caridade era o princípio central da Torá, e tudo mais era comentário.
O que quer que Moisés tivesse escrito, seu principal objetivo era pregar o duplo
mandamento: o amor a Deus e o amor ao próximo. Essa havia sido também a mensagem
central de Jesus.8 Assim, se insultamos os outros em nome da Bíblia,
“fazemos de Deus um mentiroso”.9 Pessoas que discutiam acerca da Escritura
eram cheias de orgulho; elas “não conhecem o significado de Moisés, mas amam a si
mesmas e ao próximo, não porque são verdadeiras, mas porque é delas”.10
Portanto, “não fiquemos cheios de orgulho contra nosso irmão pelo que está escrito”,
Agostinho pedia à sua congregação: “Mas amemos o Senhor nosso Deus com todo nosso
coração, com toda nossa alma, e com toda nossa mente, e nosso próximo como a nós
mesmos.”11
A condenação hipócrita não somente é cruel, mas
tem laivos da autocomplacência e da fatuidade que são um grande impedimento para
nossa compreensão da Escritura. Portanto, “devemos meditar sobre o que lemos, até
que seja encontrada uma interpretação que tenda a estabelecer o reinado da caridade”,
insistia Agostinho. “A Escritura não ensina nada senão a caridade, nem condena coisa
alguma exceto a cupidez, e dessa maneira molda as mentes dos homens.12
Ireneu havia insistido que a exegese deve se conformar
à “regra da fé”. Para Agostinho, a “regra da fé” não era uma doutrina, mas o espírito
do amor. O que quer que o autor tivesse pretendido originalmente, uma passagem bíblica
que não fosse conducente ao amor devia ser interpretada figurativamente, porque
a caridade era o princípio e o fim da Bíblia. Todo aquele, portanto, que pensa compreender
as Escrituras divinas, ou alguma parte delas, de modo que elas não estabeleçam o
duplo amor de Deus e de nosso próximo, não as compreende em absoluto. Todo aquele
que encontra ali uma lição útil para o estabelecimento da caridade, mesmo que não
diga o que o autor pode, de modo demonstrável, ter querido dizer naquele lugar,
não se enganou.13”
1: Romanos
13:13-14. / 2: Agostinho,
Confissões, 8.12.29, in Philip Burton (trad.), Augustine, The Confessions,
Londres, 2001. / 3: Ibid.,
Confissões, 7.18.24. / 4: Ibid.,
Confissões, 13.15.18. Pamela Bright, “Augustine,” em Holcomb (org.),
Christian Theologies of Scripture, p.39-50. / 5: Êxodo 33:23. Agostinho, A Trindade, 2.16.27;
G.R. Evans, The Language and Logic of the Bible: The Earlier Middle Ages,
Cambridge, 1984), p.3-6. / 6: Agostinho,
Confissões, 12.25.35. / 7: Ibid., trad. Burton. / 8: Deuteronômio
6:5; Mateus
22:37-39; Marcos
23:30-31; Lucas
10:17. / 9: João
5:10. Agostinho,
Confissões, 12.25.35. / 10: Agostinho,
Confissões, 12.25.34-35, in Philip Burton (trad.,),
Augustine, The Confessions, Londres, 1907. / 11: Deuteronômio
6:5; Mateus
22:37-39; Marcos
12:30-31; Lucas
10:17; Agostinho,
Confissões 12.25.35, trad. Burton. / 12: 70. D.W. Robertson (trad.), Augustine: On Christian Doctrine,
Indianápolis, 1958, p. 30. / 73: Ibid.
“O Cristo que Agostinho encontrava na Escritura
não era nunca simplesmente o Jesus histórico, mas o Cristo integral, que, como são
Paulo ensinara, era inseparável¹ da humanidade.2 Após encontrar Cristo
na Escritura, o cristão devia retornar ao mundo e aprender a procurá-lo no serviço
amoroso à comunidade.
Agostinho não era um linguista. Não sabia hebraico
e não poderia ter conhecido o midrash judaico, mas chegara à mesma conclusão
que Hillel e Akiba. Qualquer interpretação da Escritura que espalhasse ódio e dissensão
era ilegítima; toda exegese devia ser guiada pelo princípio da caridade.”
1: Agostinho, Sobre o Salmo 98:1, in Michael Cameron “Enerrationes
in Psalms”, in Allen d. Fitzgerald (org.), Augustine Through the Ages, Grand
Rapids, 1999, p.292. / 2: 1 Coríntios 12:27-30; Colossenses 1:15-20. Charles Kannengiesser,
“Augustine of Hippo”, in Danald Mc.Kim (org.), Major Biblical Interpreters
(Downers Grove, Ill, 1998), p.22.
“Não devemos ler nosso próprio sentido (sententia)
na Escritura, mas apropriar-nos da sentença da Escritura.”¹
1: Hugo de são Vítor, Didascalion 8-11; Smalley, Study of the Bible,
p.69-70.
“Os humanistas começaram a estudar os autores
bíblicos individuais, notando seus talentos e idiossincrasias especiais. Sentiam-se
em especial atraídos por Paulo, cujo estilo ganhava uma nova proximidade no grego
koiné original. Sua busca apaixonada pela salvação parecia um antídoto salutar
para o racionalismo escolástico. Ao contrário dos humanistas de hoje, eles não eram
céticos em relação à religião, tendo se tornado ardentes cristãos paulinos.
Eles podiam compreender em particular o agudo
senso de pecado de Paulo. Um período de violenta mudança social é muitas vezes caracterizado
pela ansiedade. As pessoas sentem-se perdidas e impotentes; vivendo in medias
res, não conseguem ver que direção sua sociedade está tomando, mas experimentam
sua transformação subterrânea de maneiras incoerentes, esporádicas. Ao lado dos
fascinantes avanços do início do século XVI, havia uma angústia disseminada. Os
reformadores protestantes Huldrych Zwinglio (1484-1531) e João Calvino (1509-64)
experimentaram ambos uma sensação de agudo fracasso e impotência antes de encontrarem
uma nova solução religiosa. O reformador católico Inácio de Loyola (1491-1556),
fundador da Companhia de Jesus, chorava tão copiosamente durante a missa que os
médicos o advertiram de que poderia perder a vista. E o poeta italiano Francesco
Petrarca (1304-74) era igualmente lacrimoso: “Com que torrentes de lágrimas procurei
lavar minhas manchas, de modo que mal posso falar disso sem chorar, no entanto tudo
é vão. Deus realmente é o melhor: e eu sou o pior.”1
Poucos experimentaram mais penosamente a angústia
da idade do que um jovem monge no mosteiro agostiniano de Efurt, na Alemanha:
Embora vivesse uma vida irrepreensível como monge, eu sentia que era um pecador
com uma consciência inquieta perante Deus. Também não podia acreditar que lhe agradara
com minhas obras. Longe de amar esse Deus justo que punia os pecadores, eu na verdade
o abominava… Minha consciência não podia me dar certeza, mas eu sempre duvidava
e dizia: “Não fizeste aquilo direito. Não foste contrito o bastante. Deixaste aquilo
de fora de tua confissão.”2
Martinho Lutero (1483-1546) fora educado na filosofia
escolástica de Guilherme de Ockham (c.1287-1347), que havia instado os cristãos
a tentar merecer a graça de Deus por meio de suas boas obras.3 Mas Lutero
era vítima de uma torturante depressão, e nenhuma das piedades tradicionais podia
mitigar seu extremo terror da morte.4 Para escapar de seus medos, ele
mergulhou num frenesi de atividade reformadora, sentindo-se especialmente encolerizado
pela prática papal de vender indulgências para inchar os cofres da Igreja.
Lutero foi salvo de seu sofrimento existencial
pela exegese. A primeira vez que viu um exemplar de toda a Bíblia, ficou espantado
ao perceber que continha um número tão maior de Escritos do que imaginara.5
Sentiu que a via pela primeira vez.6 Tornou-se professor de Escritura
e filosofia na Universidade de Wittenberg, e, durante as aulas que dava sobre os
Salmos e as epístolas de Paulo aos Romanos e aos Gálatas (1513-18), experimentou
um avanço espiritual que lhe permitiu libertar-se de sua prisão ockhamita.7
As aulas sobre os Salmos começaram de maneira
bastante convencional – Lutero expunha o texto versículo por versículo, segundo
cada um dos quatro sentidos, sucessivamente. Mas houve duas mudanças significativas.
Primeiro, Lutero pediu ao responsável pela gráfica da universidade, Johannes Gutenberg,
que produzisse um Saltério especialmente para ele, com ampla margem e vastos espaços
para suas anotações. Tinha, por assim dizer, limpado a página sagrada, apagando
a glosa tradicional para começar de novo. Segundo, ele introduziu uma definição
inteiramente nova do sentido literal. Por “literal” ele não entendia a intenção
original do autor; entendia “cristológico”. “Em toda a Escritura”, afirmou ele,
“não há nada além de Cristo, seja em palavras simples ou palavras veladas.”8“Tira
Cristo das Escrituras”, ele perguntou numa outra ocasião, “e que mais encontrarás
lá?”9
A resposta rápida para essa pergunta é que encontraríamos
muita coisa. À medida que foi ficando mais familiarizado com a Bíblia, Lutero percebeu
que grande parte dela tinha muito pouco a ver com Cristo. Mesmo no Novo Testamento,
havia livros mais centrados em Cristo que outros. Isso o compeliu, ao longo dos
anos, a inventar uma nova hermenêutica. A solução de Lutero foi criar um “cânone
dentro do cânone”. Homem de seu tempo, se sentia especialmente atraído por Paulo,
achando aquelas cartas que descreviam a experiência cristã do Cristo ressuscitado
muito mais valiosas que os evangelhos sinóticos que eram apenas sobre Cristo. Pela
mesma razão, privilegiava o evangelho de João e a Primeira Epístola de Pedro, mas
relegava a segundo plano os Hebreus, as epístolas de Tiago e Judas e o Apocalipse.
Aplicou o mesmo critério ao “Antigo Testamento”: descartou os Apócrifos e tinha
pouco tempo para os livros históricos e as seções legais do Pentateuco. Mas admitiu
o Gênesis em seu cânone pessoal porque Paulo o citava, juntamente com os profetas,
que haviam previsto a vinda de Cristo, e os Salmos, que o haviam ajudado a compreender
Paulo.10
Durante suas aulas sobre o Saltério, Lutero começou
a refletir a respeito do significado da palavra “justiça” (hebraico: tsedek;
latim: justitia). Os cristãos haviam lido tradicionalmente os salmos da casa
real de Davi como profecias diretas de Jesus. Assim, por exemplo, o versículo “Reveste
da tua justiça o rei, ó Deus, e o filho do rei, da tua retidão”11 referia-se
a Cristo. Mas a ênfase de Lutero era diferente. Compreendido literalmente
– isto é, para ele, “cristologicamente” –, o apelo “Resgata-me e livra-me por tua
justiça”12 era uma prece pronunciada por Jesus para seu Pai. Mas, segundo
o senso moral, as palavras se referiam à libertação do indivíduo, a quem Cristo
concedera sua própria justiça.13 Lutero caminhava aos poucos para a ideia
de que a virtude não era um pré-requisito da graça de Deus, mas uma dádiva divina,
relacionando o texto diretamente com seu próprio dilema: Deus deu sua própria justiça
e retidão aos seres humanos.
Não muito depois dessas aulas sobre os Salmos,
Lutero realizou um avanço exegético em seu gabinete na torre do mosteiro. Ele vinha
lutando para compreender a descrição que Paulo fazia do evangelho como uma revelação
da justiça de Deus: “No [evangelho] é revelada a justiça de Deus, como está escrito:
O justo viverá pela fé…”14 Seus mestres ockhamitas o haviam ensinado
a compreender “a justiça (justitia) de Deus” como a justiça divina que condena
o pecador. Como poderia isso ser uma “boa nova”? E que tinha a justiça de Deus a
ver com a fé? Lutero meditou sobre o texto dia e noite até que a luz surgiu: a “justiça
de Deus” no evangelho era a misericórdia divina que investe o pecador da bondade
do próprio Deus. O pecador precisava unicamente de fé. De imediato, as ansiedades
de Lutero se reduziram. “Senti como se tivesse nascido de novo e como se tivesse
entrado através de portões abertos no próprio paraíso.”15
Depois disso, toda a Escritura assumiu um novo
significado. Durante as aulas de Lutero sobre os Romanos, houve uma acentuada mudança.
Sua abordagem tornou-se mais informal e menos presa ao costume medieval. Ele não
se incomodava mais com os quatro sentidos, concentrando-se em sua interpretação
cristológica da Bíblia, e era abertamente crítico dos escolásticos. Não havia necessidade
de medo. Enquanto tivesse “fé”, o pecador podia dizer: “Cristo fez o bastante por
mim. Ele é justo. Ele é minha defesa. Ele morreu por mim. Ele fez de sua justiça
a minha justiça.”16 Mas por “fé” Lutero não entendia “crença”, e sim
uma atitude de confiança e abandono de si. “A fé não requer informação, conhecimento
e certeza, mas uma rendição livre e uma aposta feliz na bondade não sentida, não
experimentada e não conhecida [de Deus].”17
Em suas aulas sobre os Gálatas, Lutero expandiu-se
sobre a “justificação pela fé”. Nessa epístola, Paulo havia atacado aqueles cristãos
judeus que queriam que os gentios observassem toda a Lei de Moisés, quando, segundo
Paulo, a única coisa necessária era confiança (pistis) em Cristo. Lutero
tinha começado a desenvolver uma dicotomia entre Lei e evangelho.18 A
Lei foi o meio que Deus usou para revelar sua ira e a pecaminosidade dos seres humanos.
Enfrentamos a Lei nos mandamentos inflexíveis que encontramos na Escritura, como
os Dez Mandamentos. O pecador acovarda-se diante dessas exigências, que lhe parecem
impossível cumprir. Mas o evangelho revelava a misericórdia divina que nos salva.
A “Lei” não se restringia à lei mosaica: havia “evangelho” no Antigo Testamento
(quando os profetas antecipavam o Cristo) e uma abundância de mandamentos assustadores
no Novo. Tanto a Lei quanto o evangelho vinham de Deus, mas somente o evangelho
podia nos salvar.
No dia 31 de outubro de 1517, Lutero pregou 95
teses na porta da igreja em Wittenberg, protestando contra a venda de indulgências
e a pretensão do papa de perdoar os pecados. A primeira dessas teses lançava a autoridade
da Bíblia contra a tradição sacramental: “Quando nosso Senhor e Mestre Jesus disse
‘Arrepende-te’, queria que toda a vida dos crentes fosse uma vida de arrependimento.”
Lutero aprendera com Erasmo que metanoia, que a Vulgata traduzia por poenitentiam
agere (“faz penitência”), significava uma “reviravolta” de todo o ser cristão.
Não significava confessar-se. Nenhuma prática ou tradição da Igreja podia reivindicar
sanção divina a menos que tivesse o apoio da Bíblia. Em seu debate público em Leipzig
com Johann Eck, professor de teologia em Ingolstadt (1519), Lutero explicitou pela
primeira vez sua controversa nova doutrina sola scriptura (“Escritura somente”).
Como podia Lutero compreender a Bíblia, perguntou Eck, sem os papas, os concílios
e as universidades? Lutero respondeu: “Um simples leigo armado com a Escritura merece
mais crédito que um papa ou um concílio sem ela.”19
Essa era uma afirmação sem precedentes.20
Judeus e cristãos sempre haviam sustentado a importância sagrada da tradição herdada.
Para os judeus, a Torá oral era essencial para a compreensão da Torá escrita. Antes
que o Novo Testamento fosse escrito, o evangelho havia sido pregado oralmente, e
a Escritura dos cristãos havia sido a Lei e os profetas. Na altura do século IV,
quando o cânone do Novo Testamento foi finalizado, as igrejas valiam-se de seus
credos, liturgias e pronunciamentos dos concílios eclesiásticos tanto quanto da
Escritura.21 Apesar disso, a Reforma Protestante, uma tentativa deliberada
de retornar às origens da fé, fez de sola scriptura um de seus princípios
mais importantes. De fato, o próprio Lutero não rejeitava a tradição. Usava com
prazer a liturgia e os credos, contanto que eles não contradissessem a Escritura,
e tinha plena ciência de que o evangelho fora pregado originalmente de maneira oral.
Só havia sido posto por escrito, explicou ele, por causa do perigo da heresia e
representava uma deficiência em relação ao ideal. O evangelho devia continuar sendo
um “grito alto”, um chamado vocal. A Palavra de Deus não podia ser confinada a um
texto escrito; devia ser vivificada pela voz humana na pregação, nos sermões e no
canto de hinos e salmos.22
Mas, apesar de seu compromisso com a Palavra falada,
a maior façanha de Lutero foi provavelmente sua tradução da Bíblia para o alemão.
Ele começou com o Novo Testamento, que traduziu do texto grego de Erasmo (1522),
e depois, trabalhando numa velocidade vertiginosa, completou o Antigo Testamento
em 1534. Quando Lutero morreu, um entre 70 alemães possuía um exemplar do Novo Testamento
vernacular, e a Bíblia alemã de Lutero tornou-se um símbolo da integridade alemã.
Ao longo dos séculos XVI e XVII, reis e príncipes por toda a Europa começaram a
declarar independência em relação ao papado e a instituir monarquias absolutas.
O Estado centralizado foi parte essencial do processo de modernização, e a Bíblia
vernacular tornou-se um símbolo da vontade nacional nascente. A tradução da Bíblia
para o inglês, que culminou com a Bíblia do rei Jaime (1611), foi endossada e controlada
quase passo a passo pelas monarquias Tudor e Stuart.
Zwingli e Calvino também basearam suas reformas
no princípio da sola scriptura, mas diferiam de Lutero em vários aspectos
importantes. Estavam menos interessados em teologia e mais preocupados com a transformação
social e política da vida cristã. Ambos deviam muito aos humanistas e insistiam
na importância da leitura da Bíblia nas línguas originais. Mas não aprovavam o “cânone
dentro do cânone” de Lutero. Ambos queriam que suas congregações se familiarizassem
com a Bíblia inteira. O seminário teológico de Zwingli em Zurique publicava excelentes
comentários bíblicos, distribuídos por toda a Europa; e a tradução da Bíblia de
Zurique foi publicada antes da de Lutero. Calvino estava convencido de que a Bíblia
fora escrita para gente simples, iletrada, e fora roubada deles pelos eruditos.
Mas compreendia que eles precisariam de orientação. Os pregadores deviam ser versados
em exegese rabínica e patrística, e familiarizados com os estudos contemporâneos.
Deviam sempre ver uma passagem bíblica em seu contexto original, mas ao mesmo tempo
tornar a Bíblia pertinente para as necessidades diárias de suas congregações.
O estudo dos clássicos gregos e romanos feito
por Zwingli o ensinara a apreciar outras culturas religiosas:23 a Bíblia
não tinha o monopólio da verdade revelada. Sócrates e Platão também haviam sido
inspirados pelo Espírito, e os cristãos os encontrariam no céu. Da mesma forma que
Lutero, Zwingli acreditava que a Palavra escrita devia ser proclamada em voz alta.
Como um pregador era guiado pelo Espírito, da mesma maneira que os autores bíblicos,
Zwingli via seus próprios sermões como proféticos. Sua missão era animar a Palavra
escrita e torná-la uma força viva na comunidade. A Bíblia não dizia respeito ao
que Deus havia feito no passado, mas ao que Ele fazia aqui e agora.24
Calvino, no entanto, não tinha tempo para a cultura
clássica. Concordava com Lutero que Cristo era o foco da Escritura e a manifestação
suprema de Deus. Tinha, contudo, um apreço muito maior pela Bíblia hebraica. A revelação
de Deus havia sido um processo gradual, evolutivo; em cada estágio da história dos
seres humanos, Ele havia adaptado sua verdade à capacidade limitada deles. O ensinamento
e a orientação que Deus dera a Israel mudaram e se desenvolveram com o tempo.25
A religião confiada a Abraão era talhada para as necessidades de uma sociedade mais
simples que a Torá concedida a Moisés ou Davi. A revelação tornou-se progressivamente
mais clara e centrada no christós, até o tempo de João, o Batista, que havia
olhado diretamente nos olhos de Jesus. Mas o Antigo Testamento não era simplesmente
sobre Cristo, como afirmara Lutero. O pacto com Israel tinha sua própria integridade;
vinha do mesmo Deus, e o estudo da Torá ajudaria os cristãos a compreender o evangelho.
Calvino viria a ser o mais influente dos reformadores protestantes e tornaria as
Escrituras judaicas mais importantes para os cristãos – especialmente no mundo anglo-saxão
– do que nunca.
Calvino nunca se cansou de salientar que, na Bíblia,
Deus foi condescendente com nossas limitações. A Palavra foi condicionada pelas
circunstâncias históricas em que foi pronunciada, de modo que as histórias menos
edificantes da Bíblia devem ser vistas em contexto, como fases de um processo em
curso. Não havia nenhuma necessidade de explicá-las alegoricamente. A história da
criação no Gênesis era um exemplo desse balbucio divino, que adaptava processos
imensamente complexos à mentalidade de pessoas sem instrução.26 Não era
surpreendente que a história do Gênesis diferisse das novas teorias dos filósofos
instruídos. Calvino tinha grande respeito pela ciência moderna. Achava que ela não
devia ser condenada simplesmente “porque alguns frenéticos costumam rejeitar com
atrevimento tudo que lhes é desconhecido. Pois a astronomia não só é agradável,
como seu conhecimento é de muita utilidade: não se pode negar que essa arte revela
a admirável sabedoria de Deus”.27 Era absurdo esperar que a Escritura
ensinasse o fato científico; quem desejasse aprender sobre astronomia devia procurar
em outro lugar. O mundo natural era a primeira revelação de Deus, e os cristãos
deveriam encarar as novas ciências geográficas, biológicas e físicas como atividades
religiosas.28
Os grandes cientistas compartilhavam essa concepção.
Nicolau Copérnico (1473-1543) via a ciência como “mais divina que humana”.29
Sua hipótese heliocêntrica era tão radical que poucos seriam capazes de entendê-la:
em vez de estar localizada no centro do Universo, a Terra e os outros planetas giravam
em torno do Sol; o mundo parecia estável, mas encontrava-se de fato em rápido movimento.
Galileu Galilei (1564-1642) testou a teoria copernicana empiricamente, observando
os planetas através de telescópio. Ele foi silenciado pela Inquisição e obrigado
a se desdizer, mas seu temperamento um tanto agressivo e provocativo também desempenhou
um papel em sua condenação. De início, católicos e protestantes não rejeitaram automaticamente
a nova ciência. O papa aprovou a teoria de Copérnico quando ela foi apresentada
pela primeira vez no Vaticano, e os primeiros calvinistas e jesuítas eram uns e
outros entusiásticos cientistas. Alguns, porém, sentiam-se perturbados pelas novas
teorias. Como conciliar a teoria de Copérnico com uma leitura literal do Gênesis?
Se, como Galileu sugeria, havia vida na Lua, como essas pessoas poderiam descender
de Adão? Como podiam as revoluções da Terra se harmonizar com a ascensão de Cristo
ao céu? A Escritura dizia que o céu e a Terra haviam sido criados para o benefício
do homem, mas como podia ser assim se a Terra era apenas mais um planeta girando
em torno de uma estrela como outra qualquer?30 A antiga exegese alegórica
teria tornado muito mais fácil para os cristãos enfrentar seu mundo em mudança.31
Mas a crescente ênfase no sentido literal da Escritura era o produto do início da
modernidade: a tendência científica do pensamento moderno inicial exigia que pessoas
vissem a verdade como conformada às leis do mundo externo. Não demoraria muito para
que alguns cristãos concluíssem que, a menos que fosse histórica ou cientificamente
demonstrável, um livro não podia ser verdadeiro.”
1: Charles Trinkaus, The Poet as Philosopher, Petrarch and the Formation
of Renaissance Consciousness, New Haven, 1977, p.87. / 2: Citado in Alastair
McGrath, Reformation Thought, an Introduction, Oxford e Nova York, 1988,
p.73. / 3: Marc Leinhard, “Luther and the Beginnings of the Reformation”, in Raitt
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