Editora: Jorge Zahar
ISBN: 978-85-3780-045-4
Tradução: Maria Luiza X. de A. Borges
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 276
Sinopse: Ver Parte
I
“(...) A nova disciplina da sola scriptura
não foi capaz de fazer isso pelos cristãos da Europa. Mesmo após sua grande ruptura,
Lutero continuou aterrorizado pela morte. Parecia estar constantemente num estado
de fúria latente: contra o papa, os turcos, os judeus, as mulheres, os camponeses
rebeldes, os filósofos escolásticos e cada um de seus opositores teológicos. Ele
e Zwingli envolveram-se numa furiosa controvérsia acerca do significado das palavras
de Cristo ao instituir a Eucaristia na última ceia, dizendo: “Este é o meu corpo.”1
Calvino ficou consternado com a raiva que anuviara as mentes dos dois reformadores
e causou uma desavença ímpia que podia e devia ter sido evitada: “Ambos os lados
foram completamente incapazes de ter paciência para ouvir o outro, de modo a seguir
a verdade sem paixão, onde quer que ela estivesse”, concluiu ele. “Ouso afirmar
com deliberação que, se suas mentes não tivessem estado em parte exasperadas pela
extrema veemência das controvérsias, a divergência não teria sido tão grande que
uma conciliação não pudesse ter sido facilmente alcançada.”2 Era impossível
para intérpretes concordar acerca de cada passagem da Bíblia; disputas deviam ser
conduzidas com humildade e mente aberta. Contudo, o próprio Calvino nem sempre pôs
em prática esses princípios elevados e estava disposto a executar dissidentes em
sua própria igreja.
A Reforma Protestante expressou muito dos ideais
da nova cultura que emergia no Ocidente. Em vez de se basear num excedente de produção
agrícola, como toda civilização anterior, sua economia se pautaria na reprodução
científica e tecnológica de recursos e no constante reinvestimento do capital. Essa
sociedade tinha de ser produtiva, e a teologia de Calvino seria usada para sustentar
a ética do trabalho. Os indivíduos deviam participar, mesmo num nível humilde, como
impressores, operários e escriturários, e tinham, portanto, de adquirir um pequeno
grau de educação e capacidade de ler e escrever. Em consequência, acabariam reivindicando
uma participação maior no processo de tomada de decisão do governo. Haveria convulsões
políticas, revoluções e guerras civis para estabelecer regimes mais democráticos.
A mudança social, política, econômica e intelectual era parte de um processo encadeado;
cada elemento dependia dos outros e a religião foi inevitavelmente arrastada para
essa espiral de desenvolvimento.
As pessoas agora liam a Escritura de uma maneira
“moderna”. Os protestantes postavam-se sozinhos diante de Deus, confiando unicamente
na Bíblia. Mas isso teria sido impossível antes que a invenção da imprensa tivesse
tornado viável para todos os cristãos possuir suas próprias cópias individuais e
antes que tivessem a habilidade para lê-las. Cada vez mais, à medida que o ethos
pragmático e científico da modernidade se impunha, a Escritura era lida pela informação
que comunicava. A ciência dependia de análise rigorosa, e isso tornava incompreensível
o sistema simbólico da filosofia perene. O pão eucarístico, a questão que dividira
Lutero e Zwingli, era agora “somente” um símbolo. As palavras da Escritura, outrora
vistas como réplicas terrenas do Logos divino, também haviam perdido sua dimensão
numinosa. Mas a leitura silenciosa, solitária, que libertava os cristãos da supervisão
de especialistas religiosos, expressava a independência que se tornaria essencial
ao espírito moderno.
Sola scriptura havia sido um ideal nobre, ainda que controverso. Na prática, porém, ela
significava que todo mundo tinha o direito, concedido por Deus, de interpretar aqueles
documentos extremamente complexos como bem entendesse.3 As seitas protestantes
proliferaram, cada uma proclamando que somente ela compreendia a Bíblia. Em 1534,
um grupo apocalíptico radical em Munster fundou um Estado teocrático independente
baseado numa leitura literal da Escritura, que permitia a poligamia, condenava toda
violência e proscrevia a propriedade privada. Esse breve experimento durou apenas
um ano, mas alarmou os reformadores. Se não havia nenhum corpo autorizado para controlar
a leitura bíblica, como poderia alguém saber quem estava certo? “Quem dará à nossa
consciência informação segura sobre quem está nos ensinando a pura Palavra de Deus,
nós ou nossos oponentes?”, perguntou Lutero. “Deve todo fanático ter o direito de
ensinar o que bem entende?”4, concordou Calvino: “Se todos têm direito
de ser juiz e árbitro nessa matéria, nada pode ser considerado certo, e toda a nossa
religião estará cheia de incerteza.”5
A liberdade religiosa estava se tornando problemática
num mundo que, cada vez mais, exigia conformidade e estava disposto a alcançá-la
por meios coercitivos. No século XVII, a Europa foi convulsionada por guerras que
podem ter sido expressadas em imagens religiosas, mas eram causadas na realidade
pela necessidade de um tipo diferente de organização política na nova Europa. Os
antigos reinos feudais tinham de ser transformados em Estados eficientes, centralizados,
inicialmente sob monarcas absolutos que podiam impor a unidade pela força. Fernando
e Isabel fundiam os antigos reinos ibéricos para formar uma Espanha unida, mas ainda
não tinham recursos para conceder aos seus súditos uma liberdade irrestrita. Não
havia lugar para corpos autônomos, que se autogovernassem, como as comunidades judaicas.
A Inquisição espanhola, que perseguiu tenazmente esses dissidentes, foi uma instituição
modernizante, projetada para criar conformidade ideológica e unidade nacional.6
À medida que a modernização avançava, soberanos protestantes em países como a Inglaterra
também foram cruéis com seus súditos católicos, vistos como inimigos do Estado.
As chamadas Guerras Religiosas (1618-48) foram de fato uma luta de 30 anos da parte
dos reis da França e dos príncipes alemães para se tornarem politicamente independentes
do Sacro Império Romano e do papado, embora tivessem se complicado com a confrontação
entre um calvinismo militante e um catolicismo revigorado, reformado.
A modernização foi progressiva e fortalecedora,
mas tinha uma intolerância inerente: sempre haveria pessoas que experimentavam essa
nova sociedade ocidental como cruel e invasiva. Liberdade para alguns significava
escravidão para outros. Em 1620, um grupo de colonos ingleses fez uma perigosa viagem
através do Atlântico no Mayflower e chegou ao porto de Plymouth, em Massachusetts.
Eram puritanos ingleses, calvinistas radicais que se sentiam perseguidos peloestablishment
inglês e haviam decidido emigrar para o Novo Mundo. Herdaram o interesse de Calvino
pelo Antigo Testamento e sentiam-se particularmente atraídos pela história do Êxodo,
que parecia uma previsão literal de seu próprio projeto. A Inglaterra era seu Egito;
a viagem transatlântica, sua estada no deserto, e agora haviam chegado à Terra Prometida,
que batizaram de Nova Canaã.7
Os puritanos deram nomes bíblicos às suas colônias:
Hebron, Salem, Bethlehem, Sion e Judaea. Quando John Winthrop, que se tornaria seu
líder, chegou ao Arabella em 1630, proclamou aos seus colegas passageiros
que a América era Israel; como os antigos israelitas, disse, eles estavam prestes
a tomar posse da terra, mas citou as palavras de Moisés no Deuteronômio: os puritanos
seriam vitoriosos se guardassem os mandamentos do Senhor, mas pereceriam se fossem
desobedientes.8 A apropriação da terra pôs os puritanos em choque com
as populações nativas americanas. Também nesse caso, eles encontraram uma autorização
na Escritura. Como colonialistas posteriores, alguns acreditavam que os habitantes
indígenas mereciam sua sorte: eles “não são industriosos, nem têm arte, ciência,
habilidade ou capacidade para preservar seja a terra ou seus produtos”, escreveu
Robert Cushman, o agente de negócios da colônia. “Portanto, assim como os antigos
patriarcas mudaram-se de lugares mais exíguos para outros mais espaçosos, onde a
terra estava abandonada e ociosa, e ninguém a usava, … assim é legítimo agora tomar
uma terra que ninguém procura para fazer uso dela.”9 Quando os pequots
permaneceram hostis, outros puritanos os compararam com os amalequitas e os filisteus,
“que se confederaram contra Israel” e tiveram por isso de ser destruídos.10
Mas alguns colonos acreditavam que os americanos nativos eram as dez tribos perdidas
de Israel, que haviam sido deportadas pelos assírios em 722 a.C. Como Paulo predissera
que os judeus aceitariam o cristianismo antes do fim, a conversão dos pequots apressaria
a Segunda Vinda de Cristo.
Muitos puritanos estavam convencidos de que sua
migração para a América era um prelúdio para os últimos dias. Sua colônia era a
“cidade no monte” prevista por Isaías, o começo de uma nova era de paz e beatitude.11
Em 1654, Edward Johnson publicou uma história da Nova Inglaterra:
Saibam que este é o lugar onde o Senhor haverá
de criar um novo céu e uma nova terra, e ao mesmo tempo uma nova nação…. Estes são
apenas os começos da gloriosa reforma e restauração por Cristo de suas igrejas,
para devolvê-las a um esplendor mais glorioso que nunca. Ele fez portanto com que
o brilho deslumbrante de sua presença fosse contraído no espelho ardente do zelo
de seu povo, a partir de onde começa a ser sentido em muitas partes do mundo.12
Nem todos
os colonos americanos partilhavam da visão puritana, mas ela deixou uma marca indelével
no ethos dos Estados Unidos. O Êxodo continuaria a ser um texto crucial. Foi citado
pelos líderes revolucionários da Guerra da Independência contra a Grã-Bretanha.
Benjamin Franklin queria que o “grande selo” da nação retratasse a separação das
águas do mar dos Juncos, mas a águia que se tornou o símbolo dos Estados Unidos
era não só um antigo emblema imperial como estava também associada ao Êxodo.13
Outros migrantes valeram-se da história do Êxodo
da mesma maneira: os mórmons, os africâners da África do Sul e os judeus que fugiram
da perseguição na Europa e buscaram refúgio nos Estados Unidos. Deus os salvara
da opressão e os estabelecera numa nova terra – algumas vezes à custa de outros.
Muitos norte-americanos ainda se veem como um povo escolhido com um destino manifesto;
e veem sua nação como um farol para o resto do mundo. Houve uma tradição de reformadores
norte-americanos que fizeram uma “incursão no deserto” para estabelecer um novo
começo. Um número significativo de protestantes americanos continuou preocupado
com os últimos dias e sentiu forte identidade com Israel. Contudo, embora os americanos
estivessem comprometidos com a libertação e a liberdade, durante 200 anos houve
uma Israel escravizada em seu meio.
Em 1619, um ano antes da chegada do Mayflower
a Plymouth, uma fragata holandesa havia lançado âncora ao largo da costa da Virgínia,
com 20 negros que haviam sido capturados na África ocidental e transportados à força
para a América. Em 1660, a condição desses africanos já estava definida. Eram escravos,
podendo ser comprados e vendidos, agrilhoados e separados de suas tribos, mulheres
e filhos.14 Eles foram introduzidos ao cristianismo como escravos, e
o Êxodo tornou-se sua história. De início, provavelmente conservavam sua religião
tradicional: os senhores de escravos viam com desconfiança sua conversão, temendo
que usassem a Bíblia para exigir liberdade e direitos humanos básicos. Mas o cristianismo
devia parecer extremamente hipócrita aos escravos, pois os pregadores citavam a
Escritura para justificar sua escravização. Citavam a maldição que Noé lançara sobre
seu neto Canaã, o filho de Cam, ancestral dos povos africanos: “Escravo de escravos
ele será para os seus irmãos.”15 Referiam-se às instruções de Paulo de
que escravos devem ser obedientes a seus senhores.16 Contudo, na altura
dos anos 1780, os escravos afro-americanos haviam redefinido a Bíblia em seus próprios
termos.
Central para seu cristianismo era o spiritual,
uma canção baseada em tema bíblico, acompanhada pelo bater dos pés, os soluços,
as palmas e os gritos que haviam caracterizado o culto africano. Como somente cerca
de 5% dos escravos sabiam ler, os spirituals focalizavam a essência da história
bíblica, e não o sentido literal das palavras. Como Lutero, eles criaram seu próprio
“cânone dentro do cânone”, concentrando-se em histórias que falavam diretamente
à sua própria condição: Jacó lutando com o anjo, Josué entrando na Terra Prometida,
Daniel no Covil dos Leões, o sofrimento e a ressurreição de Jesus. Mas a narrativa
mais importante era o Êxodo: o Egito dos escravos era a América, mas um dia Deus
os libertaria:
Quando Israel estava na terra do Egito,
Ó deixa meu povo partir!
Tão oprimidos que não podiam suportar,
Ó deixa meu povo partir!
Coro: Ó, trata de ir,
Moisés,
Até a terra do Egito
E diz ao rei faraó que deixe meu povo partir!
Os escravos usavam o Êxodo para despertar sua
consciência, para ajudá-los a suportar as condições desumanas em que viviam, e para
pedir justiça. Os spirituals persistiram muito tempo após a abolição da escravidão
por Abraham Lincoln; a história do Êxodo inspirou Martin Luther King Jr. durante
o Movimento dos Direitos Civis, na década de 1960, e, após os assassinatos de King
(1968) e Malcolm X (1965), o teólogo da libertação negro James Hal Cone afirmou
que a teologia cristã devia se tornar teologia negra, inteiramente identificada
com a causa dos oprimidos e afirmativa do caráter divino de sua luta pela liberdade.17
Um único texto podia ser interpretado para servir
a interesses diametralmente opostos. Quanto mais as pessoas eram estimuladas a fazer
da Bíblia o foco de sua espiritualidade, mais difícil se tornava encontrar uma mensagem
essencial. Ao mesmo tempo que afro-americanos recorriam à Bíblia para desenvolver
sua teologia da libertação, a Ku Klux Klan a utilizava para justificar o linchamento
de negros. Mas a história do Êxodo não significa libertação para todos. Os israelitas
que se rebelaram contra Moisés no deserto foram exterminados; os cananeus indígenas
foram massacrados pelos exércitos de Josué. Teólogas feministas negras mostraram
que os israelitas possuíam escravos; que Deus lhes permitia vender suas filhas para
a escravidão; e que Deus realmente ordenou a Abraão que abandonasse a escrava egípcia
Hagar no deserto.18 Sola scriptura podia orientar as pessoas na
direção da Bíblia, mas jamais conseguia fornecer uma prescrição absoluta: as pessoas
sempre podiam encontrar textos alternativos para apoiar um ponto de vista oposto.
No século XVII, as pessoas religiosas estavam se tornando agudamente conscientes
de que a Bíblia era um livro muito confuso, e isso numa época em que a clareza e
a racionalidade eram valorizadas como nunca.”
1: Mateus
26:26. / 2: John W. Fraser (trad.), John Calvin: Concerning Scandals,
Grand Rapids, MI, 1978, p.81. / 3: Pelikan, Whose Bible Is It?, p.132. /
4: LW, vol.36, p.67. / 5: Calvino, Commentaries J. Harontinian e L.P. Smith
(trads. e orgs.), Londres, 1958, p.104. / 6: Yirmany ahu Yovel, Spinoza and Other
Heretics, 2 vols., Princeton, 1989, vol.1, p.17. / 7: Kling, Bible in
History, p.205-7; Alan Heimert e Andrew Delbanco (orgs.), The Puritans
in America: A Native Anthology, Cambridge, MA, 1988. / 8: Deuteronômio 30:15-17;
John Winthrop, “A Model of Christian Charity ”, in Perry Miller, The American
Puritans: Their Prose and Poetry, Garden City, NY, 1956, p.83. / 9: Robert Cushman,
“Reasons and Considerations”, in Heimert e Delbanco (orgs.), The Puritans in
America, p.44. / 10: Regina Sharif, Non-Jewish Zionism: Its Roots in Western
History, Londres, 1983, p.90. / 11: Isaías 2: 1-6. / 12: Edward Johnson, “Wonder-Working
Providence of Sion’s Savior in New England”, in Heimert e Delbanco (orgs.), The
Puritans in America, p.115-16. / 13: Êxodo
19:4; Kling, Bible in History, p.206-7. / 14: Kling, Bible in History,
p.207-29; Theophilus H. Smith, “The Spirituality of Afro-American Traditions”, in
Louis Dupre e Don E. Saliers, Christian Spirituality: Post Reformation and Modern,
Nova York / Londres, 1989; Lewis V. Baldwin e Stephen W. Murphy, “Scripture in the
African-American Christian Tradition”, in Holcomb (org.), Christian Theologies;
Sterling Stuckey, Slave Culture: Nationalist Theory and the Foundations of Black
America, Nova York / Oxford, 1987. / 15: Gênesis 9:25. / 16: Efésios 6:5. /
17: James Hal Cone, A Black Theology of Liberation, Filadélfia, 1970, p.18-19,
26. / 18: Êxodo
21: 7-11; Gênesis 16; 21:8-21. Delores S. Williams, Sisters in the Wilderness:
The Challenge of Womanist God-Talk, Mary knoll, NY, 2003), p.144-9.
“No final do século XVII, os europeus haviam entrado
na idade da razão. Em vez de confiar na tradição sagrada, cientistas, estudiosos
e filósofos orientavam-se para o futuro, prontos a jogar fora o passado e iniciar
de novo. A verdade, começavam a descobrir, nunca era absoluta, já que novas descobertas
punham abaixo velhas certezas. Cada vez mais, a verdade tinha de ser demonstrada
empírica e objetivamente, avaliada por sua eficiência no mundo externo e por sua
fidelidade a ele. Por conseguinte, modos mais intuitivos de pensamento tornaram-se
suspeitos. Em vez de conservar o que fora alcançado, os estudiosos estavam se tornando
pioneiros e especialistas. O “homem do Renascimento”, com um domínio enciclopédico
do conhecimento, pertencia ao passado. Logo se tornaria quase impossível para um
especialista em determinado campo ser competente em outro. A racionalidade do movimento
filosófico conhecido como Iluminismo estimulou um modo de pensamento analítico:
em vez de tentar ver as coisas inteiras, as pessoas aprendiam a dissecar uma realidade
complexa e estudar suas partes componentes. Tudo isso teria profundo efeito na maneira
como liam a Bíblia.
Em seu tratado seminal, o Avanço do conhecimento
(1605), Francis Bacon (1561-1626), conselheiro do rei Jaime I da Inglaterra, foi
um dos primeiros a afirmar que mesmo as mais sagradas doutrinas deviam ser submetidas
aos métodos rigorosos da ciência empírica. Se essas crenças contradissessem a evidência
de nossos sentidos, deviam ser abandonadas. Bacon era encantado pela ciência, convencido
de que ela iria salvar o mundo e inaugurar o reino milenar previsto pelos profetas.
Seu progresso não devia, portanto, ser estorvado por clérigos temerosos, simplórios.
Mas Bacon estava convencido de que não podia vigorar nenhum conflito entre ciência
e religião, pois só havia uma verdade. A visão que Bacon tinha da ciência, contudo,
era diferente da nossa. Para ele, o método científico consistia em reunir fatos
provados; ele não avaliava a importância da conjectura e da hipótese na investigação
científica. A única informação em que podíamos confiar provinha de nossos cinco
sentidos; tudo que não pudesse ser empiricamente demonstrado – filosofia, metafísica,
teologia, arte, misticismo e mitologia – era irrelevante. Sua definição de verdade
tornou-se extremamente influente, em especial entre os defensores mais conservadores
da Bíblia.
O novo humanismo era cada vez mais antagônico
à religião. O filósofo francês René Descartes (1596-1650) sustentou que não havia
necessidade de Escritura revelada, já que a razão nos fornecia ampla informação
sobre Deus. O matemático britânico Isaac Newton (1642-1727) mal mencionou a Bíblia
em seus copiosos Escritos, porque extraía seu conhecimento de Deus de um intenso
estudo do Universo. A ciência logo elucidaria os “mistérios” irracionais da fé tradicional.
A nova religião do deísmo, defendida por John Locke (1632-1704), um dos fundadores
do Iluminismo, fundamentava-se unicamente na razão. Immanuel Kant (1724-1804) estava
convencido de que uma Bíblia divinamente revelada violava a autonomia e a liberdade
do ser humano. Alguns pensadores iam mais longe. O filósofo escocês David Hume (1711-76)
afirmou que não havia razão para se acreditar que alguma coisa se situava além da
experiência de nossos sentidos. Denis Diderot (1713-84), filósofo, crítico e romancista,
simplesmente não se importava com a existência ou não de Deus, ao passo que Paul
Heinrich, barão de Holbach (1723-89), afirmou que a crença num Deus sobrenatural
era um ato de covardia e desespero.
Outros estudiosos aplicaram suas habilidades ceticamente
críticas à Bíblia. Baruch Spinoza (1632-77) um judeu sefardita de ascendência espanhola
nascido na liberal cidade de Amsterdam, havia estudado matemática, astronomia e
física e as considerava incompatíveis com suas crenças religiosas.1 Em
1655 ele começou a expressar dúvidas que perturbaram sua comunidade: as contradições
manifestas na Bíblia provavam que ela não podia ser de origem divina; a ideia de
revelação era uma ilusão; e não havia nenhuma divindade sobrenatural – o que chamávamos
de “Deus” era simplesmente a própria natureza. Em 27 de julho de 1656, Spinoza foi
excomungado da sinagoga e tornou-se a primeira pessoa na Europa a viver com sucesso
fora do alcance da religião estabelecida. Spinoza rejeitava a fé convencional como
“um tecido de mistérios” sem sentido; ele preferia obter o que chamava de “beatitude”
a partir do livre exercício de sua razão.2 Spinoza estudou as origens
históricas e os gêneros literários da Bíblia com uma objetividade sem precedentes.
Concordou com Ibn Ezra que Moisés não poderia ter escrito todo o Pentateuco, mas
foi adiante ao afirmar que o texto era obra de vários autores diferentes. Havia
se tornado o pioneiro do método histórico-crítico que mais tarde seria conhecido
como a Crítica Superior da Bíblia.
Moisés Mendelssohn (1729-86), o brilhante filho
de um pobre estudioso da Torá em Dessau, na Alemanha, foi menos radical. Ele havia
se apaixonado pelo saber secular moderno, mas, como Locke, não tinha nenhuma dificuldade
em aceitar a ideia de um Deus benevolente, o que lhe parecia uma questão de senso
comum. Ele criou a Haskalah, um “iluminismo” judaico, que apresentava o judaísmo
como uma fé racional apropriada à modernidade. No monte Sinai, Deus havia se revelado
num código de leis, não num conjunto de doutrinas, de modo que a religião judaica
dizia respeito unicamente à ética e deixava a mente inteiramente livre. Antes de
aceitar a autoridade da Bíblia, os judeus deviam se convencer racionalmente de suas
pretensões. É difícil reconhecer isso como judaísmo. Mendelssohn havia tentado encaixá-lo
num molde racionalista que era indiferente à espiritualidade. Apesar disso, muitos
judeus, que se tornaram conhecidos como os maskilim (“os esclarecidos”),
mostraram-se prontos para segui-lo. Estavam ansiosos por escapar das limitações
intelectuais do gueto, transferir-se para a sociedade gentia, estudar as novas ciências
e manter sua fé como um assunto privado.”
1: Julius Guttman, Philosophies of Judaism, Londres / Nova York, 1964,
p.265-85; R.M. Silverman, Baruch Spinoza: Outcast Jew, Universal Sage, Northwood,
RU, 1995; Leo Strauss, Spinoza’s Critique of Religion, Nova York, 1982; Yovel
Yirmany ahu, Spinoza and Other Heretics, 2 vols., Princeton, 1989. / 2: Spinoza,
A Theologico-Political Treatise, R.H.M. Elwes (trad.), Nova York, 1951, p.7.
““A religião tem de lutar em defesa de sua vida
contra a grande classe dos cientistas”, escreveu Charles Hodge (1797-1878), professor
de teologia em Princeton.1 Em 1871 Hodge publicou o primeiro volume de
sua obra Systematic Theology. O título por si só já revelava seu viés baconiano.
O teólogo, Hodge afirmava, não devia procurar um significado além das palavras da
Escritura, mas apenas ordenar os ensinamentos da Bíblia num sistema de verdades
gerais – um projeto que envolveria grande quantidade de esforço mal aplicado, porque
esse tipo de sistema era inteiramente estranho à Bíblia.
Em 1881, Archibald A. Hodge, filho de Charles,
publicou uma defesa da verdade literal da Bíblia com seu colega mais jovem Benjamin
Warfield. O livro tornou-se um clássico: “As Escrituras não somente contêm mas são
a Palavra de Deus, e por isso todos os seus elementos e todas as suas afirmações
são absolutamente isentos de erro e obrigam os homens à fé e à obediência.” Toda
afirmação bíblica – sobre qualquer assunto – era a absoluta “verdade dos fatos”.2A
natureza da fé mudava. Agora não era mais uma “confiança”, mas uma submissão intelectual
a um conjunto de crenças. Para Hodge e Warfield, porém, isso não requeria nenhuma
suspensão da incredulidade, porque o cristianismo era inteiramente racional. “Foi
apenas pelo raciocínio que ele chegou tão longe”, afirmou Warfield num artigo posterior.
“E é unicamente pelo raciocínio que derrotará seus inimigos.”3
Essa era um ponto de partida inteiramente novo.
No passado, alguns intérpretes haviam defendido o estudo do sentido literal da Bíblia,
mas nunca haviam acreditado que cada palavra da Escritura era factualmente verdadeira.
Muitos haviam admitido que, se confinássemos nossa atenção à letra, a Bíblia era
um texto impossível. A crença na infalibilidade da Bíblia, cujos pioneiros foram
Warfield e Hodge, iria, no entanto, tornar-se crucial para o fundamentalismo cristão
e envolveria considerável negação. Hodge e Warfield respondiam ao desafio da modernidade,
mas, em seu desespero, distorciam a tradição de Escritura que tentavam defender.”
1: Charles Hodge, What is Darwinism?, Princeton, 1874, p.142. / 2:
A.A. Hodge e B.B. Warfield, “Inspiration”, Presbyterian Review, n.2, 1881.
/ 3: B.B. Warfield, Selected Shorter Writings of B.B. Warfield, 2 vols.,
John B Meeber (org.), Nutley, NJ, 1902, p.99-100.
“Frankel e Leopold Zunz (1794-1886) acreditavam
que havia grande perigo na abolição indiscriminada da tradição. Essas práticas haviam
se tornado parte essencial da experiência judaica e, sem elas, o judaísmo podia
degenerar num sistema de doutrinas abstratas, sem vida. Zunz temia, em particular,
que a Reforma estivesse perdendo contato com as emoções: a razão por si só não podia
produzir o deleite e a alegria que caracterizavam o judaísmo em sua melhor forma.
Esse era um ponto importante. No passado, a leitura da Bíblia sempre fora acompanhada
por rituais – liturgia, exercícios de concentração, silêncio, jejum, cantos e gestos
cerimoniais – que haviam dado vida à página sagrada. Sem esse contexto ritual, a
Bíblia poderia ser reduzida a um documento que fornecia informação, mas nenhuma
experiência espiritual. Finalmente o judaísmo reformado reconheceria a verdade da
crítica de Zunz e restauraria alguns dos ritos que havia abandonado.”
“Os horrores da Segunda Guerra Mundial (1939-45)
terminaram com a explosão das primeiras bombas atômicas sobre as cidades japonesas
de Hiroshima e Nagasaki. Durante séculos, homens e mulheres haviam sonhado com um
apocalipse final produzido por Deus. Agora haviam usado seu prodigioso conhecimento
para encontrar meios de fazer isso com muita eficiência, por si mesmos.”
“Quando liam a Bíblia, os cristãos fundamentalistas
viam – e ainda veem – a si mesmos na linha de frente contra forças satânicas que
logo iriam destruir o mundo.”
“Em 1920, o político democrata William Jennings
Bryan (1860-1925) lançou uma cruzada contra o ensino da teoria evolutiva nas escolas
públicas. Em sua opinião, embora os dois estivessem ligados, não fora a Crítica
Superior, mas o darwinismo o responsável pelas atrocidades da Grande Guerra.1
A pesquisa de Bryan o convencera de que a convicção darwiniana de que somente os
fortes deviam sobreviver havia “lançado o fundamento para a mais sangrenta guerra
da história”. Não era por acaso que “a mesma ciência que fabricou gases envenenados
para sufocar soldados está pregando que o homem tem uma genealogia brutal e eliminando
o milagroso e o sobrenatural da Bíblia”.2 Para Bryan, a evolução estava
cercada por um nimbo de mal, que simbolizava o potencial implacável da modernidade.
As conclusões de Bryan eram ingênuas e incorretas,
mas as pessoas estavam prontas para ouvi-lo. A guerra encerrara o período de lua-de-mel
com a ciência e elas a queriam mantida nos devidos limites. Os que esperavam uma
religião franca, baconiana, encontravam-na em Bryan, que, trabalhando sem ajuda,
empurrou o tópico da evolução para o topo do programa fundamentalista, onde ele
permaneceu. Mas ele poderia nunca ter substituído a Crítica Superior, não tivesse
sido por um dramático desenvolvimento ocorrido no Tennessee.
Os estados sulistas dos Estados Unidos tinham
tido, até então, pouca participação no movimento fundamentalista, mas estavam temerosos
com relação ao ensino da evolução. Projetos de lei foram introduzidos nos legislativos
estaduais da Flórida, do Mississipi, da Louisiana e do Arkansas para proibir o ensino
da teoria darwiniana. As leis anti-evolucionárias do Tennessee eram em particular
rigorosas, e John Scopes, um jovem professor na cidadezinha de Dayton, decidiu fazer
um gesto em prol da liberdade de expressão e confessou ter violado a lei ao dar
uma aula de biologia no lugar de seu diretor. Em julho de 1925 ele foi levado a
julgamento. A nova American Civil Liberties Union (Aclu) enviou uma equipe
de advogados para defendê-lo, encabeçada pelo defensor do racionalismo Clarence
Darrow. Bryan concordou em defender a lei. O julgamento logo se transformou numa
disputa entre a Bíblia e a ciência.
Bryan foi um desastre na tribuna, e Darrow emergiu
do julgamento como o defensor do pensamento racional. A imprensa criticou os fundamentalistas
alegremente, como adeptos de anacronismos inúteis, que não podiam fazer parte do
mundo moderno. Isso teve um efeito instrutivo para nós, hoje. Quando os movimentos
fundamentalistas são atacados, eles em geral se tornam mais radicais. Antes de Dayton,
os conservadores desconfiavam da evolução, mas muito poucos haviam defendido a “ciência
da criação”, que sustentava que o primeiro capítulo do Gênesis era verdadeiro do
ponto de vista factual em todos os detalhes. Após Scopes, no entanto, eles se tornaram
mais veementemente literais em sua interpretação da Escritura, e a ciência da criação
tornou-se a nau capitânia de seu movimento. Antes de Scopes, os fundamentalistas
se dispunham a trabalhar pela reforma social com pessoas da esquerda; depois de
Scopes, oscilaram para a extrema direita do espectro político, onde permaneceram.”
1: Ammerman, “North American Protestant Fundamentalism”, p.26; Marsden, Fundamentalism,
p.69-83; Ronald L. Numbers, The Creationists: The Evolution of Scientific Creationism,
Berkeley / Los Angeles / Londres, 1992, p.41-4; Szasz, The Divided Mind, p.107-18.
/ 2: J. Baldon, Marcos 27, 1923, in Numbers, The Creationists, p.41.
“No início da década de 1980, um pequeno grupo
de kookistas conspirou para destruir os santuários muçulmanos no Haram al-Sharif,
que haviam sido construídos no local do templo de Salomão e era o terceiro lugar
mais sagrado do mundo islâmico. Como poderia o Messias retornar se esse lugar sagrado
estivesse profanado? Numa interpretação literal do princípio cabalista de que os
eventos na terra podiam influenciar o divino, os extremistas calculavam que, arriscando
uma guerra total com todo o mundo muçulmano, “forçariam” Deus a enviar o Messias
para salvar Israel.1 A trama não apenas poderia, se tivesse sido implementada,
ter tido consequências fatais para o Estado judeu, como também estrategistas de
Washington acreditavam que no contexto da Guerra Fria, quando os soviéticos apoiavam
os árabes e os Estados Unidos apoiavam Israel, isso poderia ter até desencadeado
uma terceira guerra mundial.2 No entanto, esse projeto niilista não estava
fora de lugar num mundo em que as grandes potências se encontravam dispostas a expor
seu próprio povo à aniquilação nuclear para derrotar o inimigo.
Ocasionalmente essas interpretações perniciosas
da Escritura resultaram em atrocidades. A ideologia de Kahane inspirou Baruch Goldstein,
um colono em Kiryat Arba, a fuzilar 29 devotos palestinos na Tumba dos Patriarcas
em Hebron, na festa de Purim, em 25 de fevereiro de 1994. Em 4 de novembro de 1995,
Ygal Amir, ex-estudante de uma yeshivá sionista, assassinou o primeiro-ministro
Yizhak Rabin durante um comício pacifista em Tel-Aviv. Seu estudo da lei judaica,
declarou ele mais tarde, o convencera de que, ao transferir a terra sagrada nos
Acordos de Oslo, Rabin se tornara um rodef (perseguidor) que ameaçava a vida
de Israel, sendo portanto merecedor de punição.
Nos Estados Unidos, os fundamentalistas protestantes
haviam desenvolvido um sionismo cristão que era paradoxalmente antissemita. O povo
judeu fora central para a visão do “arrebatamento” de John Darby.3 Jesus
não podia retornar a menos que os judeus estivessem vivendo na Terra Santa.4
A criação do Estado de Israel em 1948 foi vista pelo ideólogo fundamentalista Jerry
Falwell como “o maior sinal isolado a indicar o iminente retorno de Jesus Cristo”.5
O apoio a Israel era obrigatório. Mas Darby ensinara que o Anticristo massacraria
dois terços dos judeus que viviam na Palestina no fim dos tempos: autores fundamentalistas
aguardavam um massacre em que os judeus morreriam em números horripilantes.6
Como os kookistas, os fundamentalistas cristãos
não estavam interessados em paz. Durante a Guerra Fria, foram inflexivelmente contrários
a qualquer détentecom a União Soviética, o “inimigo do norte”. A paz, disse
o televangelista James Robinson, era “contra a Palavra de Deus”.7 Eles
não se deixavam perturbar pela catástrofe nuclear, que fora prevista por são Pedro,8
e não iria, de todo modo, afetar os verdadeiros crentes, que seriam “arrebatados”
antes da Tribulação. O arrebatamento continua a ser uma grande força na política
dos Estados Unidos. A administração do presidente Bush, que se valeu do apoio da
direita cristã, retornou vez por outra ao discurso do arrebatamento. Durante algum
tempo, depois da extinção da União Soviética, Saddam Hussein desempenhou o papel
do “inimigo do norte”, e seu lugar logo foi tomado pela Síria ou o Irã. Ainda há
apoio incondicional a Israel, o que pode se tornar pernicioso. Em janeiro de 2006,
depois que o primeiro-ministro Ariel Sharon havia sofrido um violento derrame, o
líder fundamentalista Pat Robertson afirmou que isso era um castigo de Deus pela
retirada de tropas israelenses de Gaza.
Pat Robertson está associado à forma de fundamentalismo
cristão mais radical que a Maioria Moral de Jerry Falwell. O movimento Reconstrução,
fundado pelo economista texano Gary North e seu sogro Rousas John Rushdoony, tem
convicção de que a administração secular em Washington está condenada.9
Deus logo a substituirá por um governo cristão em linhas estritamente bíblicas.
Os reconstrucionistas então planejam a nação cristã, no qual a heresia moderna da
democracia será abolida e cada lei da Bíblia será implementada literalmente; a escravidão
será restabelecida; a contracepção proibida; adúlteros, homossexuais, blasfemos
e astrólogos serão executados; e crianças persistentemente desobedientes serão mortas
a pedradas. Deus não está do lado dos pobres: na verdade, explica North, há uma
“estreita relação entre maldade e pobreza”.10 Os impostos não devem ser
usados para a previdência social, pois “subsidiar preguiçosos é o mesmo que subsidiar
o mal”.11 A Bíblia proíbe toda ajuda estrangeira ao mundo em desenvolvimento:
seu apego ao paganismo, à imoralidade e ao culto do demônio é a causa de seus problemas
econômicos.12 No passado, exegetas tentaram contornar essas partes desumanas
da Bíblia ou lhes haviam dado uma interpretação alegórica. Os reconstrucionistas
parecem procurar essas passagens de modo deliberado e interpretá-las de maneira
anistórica e literal. Onde outros fundamentalistas absorveram a violência da modernidade,
os reconstrucionistas produziram uma versão religiosa de capitalismo militante.13”
1: Aviezer Ravitsky, Messianism, Zionism and Jewish Religious Radicalism,
Michael Swirsky e Jonathan Chipman (trad.), Chicago / Londres, 1983, p.133-4; Ehud
Sprinzak, The Ascendance of Israel’s Radical Right, p.94-8. / 2: Aran, “Jewish
Religious Zionist Fundamentalism”, p.267-8. / 3: John N. Darby, The Hopes
of the Church of God in Connexion with the Destiny of the Jews and the Nations as
Revealed in Prophecy, 2ª ed., Londres, 1842. / 4: Boy er, When Time Shall
Be No More, p.187-8. / 5: Jerry Falwell, Fundamentalist Journal, mai
1968. / 6: John Walvoord, Israel and Prophecy, Grand Rapids, MI, 1962. /
7: Boyer, When Time Shall Be No More, p.145. / 8: 2 Pedro 3:10. / 9: Ammerman,
“North American Protestant Fundamentalism,” p.49-53; Michael Liensesch, Redeeming
America: Piety and Politics in the New Christian Right, Chapel Hill, NC / Londres,
1995, p.226. / 10: Gary North, In the Shelter of Plenty: The Biblical Blueprint
for Welfare, Fort Worth, TX, 1986, p.xiii. / 11: Ibid., p.55. / 12: Gary North,
The Sinai Strategy: Economics and the Ten Commandments (Ty ler TX, 1986),
p.213-14. / 13: Ammerman, “North American Protestand Fundamentalism”, p.49-53; Liensesch,
Redeeming America, p.226.
“O estudo histórico da Bíblia mostra que houve
muitas visões rivais no antigo Israel, cada qual afirmando – muitas vezes de maneira
agressiva – ser a versão oficial do jeovismo.”
“Desde o início, os autores bíblicos se contradisseram
uns aos outros, e suas visões conflitantes foram todas incluídas pelos editores
no texto final.”
“Como Wilfred Cantwell Smith explicou, a Escritura
não era realmente um texto, mas uma atividade, um processo espiritual que introduzia
milhares de pessoas à transcendência. A Bíblia pode ter sido usada para apoiar doutrinas
e crenças, mas essa não foi sua principal função. A ênfase fundamentalista na letra
reflete o ethos moderno, mas é uma ruptura com a tradição, que em geral preferiu
algum tipo de interpretação figurativa ou inovadora. Não há, por exemplo, uma única
doutrina da criação na Bíblia, e o primeiro capítulo do Gênesis raramente foi lido
como uma descrição factual da origem do cosmo. Muitos dos cristãos que se opõem
ao darwinismo hoje são calvinistas, mas Calvino insistiu em que a Bíblia não era
um documento científico, e que aqueles que queriam aprender sobre astronomia ou
cosmologia deveriam procurar em outro lugar.
O mesmo pode ocorrer com a questão da violência
da Escritura. Há de fato muita violência na Bíblia – muito mais que no Corão. E
é inquestionavelmente verdadeiro que, ao longo da história, as pessoas usaram a
Bíblia para justificar atos atrozes. Como Cantwell Smith observou, a Bíblia e sua
interpretação devem ser vistas em contexto histórico. O mundo sempre foi um lugar
violento, e a Escritura e sua exegese tornaram-se muitas vezes vítimas da agressão
contemporânea. Josué foi apresentado pelos deuteronomistas combatendo com toda a
crueldade de um general assírio. Os cruzados ignoraram os ensinamentos pacifistas
de Jesus e alistaram-se para uma expedição à Terra Santa porque eram soldados, queriam
uma religião militante e aplicavam à Bíblia seu ethos caracteristicamente feudal.
O mesmo pode ser dito em nosso próprio tempo. O período moderno viu violência e
carnificina numa escala sem precedentes, e não surpreende que isso tenha afetado
a maneira como alguns leram a Bíblia.”
“Ao longo desta biografia, consideramos as maneiras
como judeus e cristãos haviam tentado cultivar uma abordagem receptiva e intuitiva
da Escritura. Isso é difícil para nós hoje. Somos uma sociedade loquaz e aferrada
à sua opinião, e nem sempre boa em ouvir. O discurso da política, dos meios de comunicação
e da academia é essencialmente antagonístico. Embora isso seja sem dúvida importante
numa democracia, pode significar que as pessoas não são de fato receptivas a um
ponto de vista oposto. Fica muitas vezes claro, durante um debate parlamentar, ou
painel de discussão na televisão, que, enquanto seus oponentes falam, os participantes
estão pensando na próxima coisa inteligente que vão dizer. O discurso bíblico é
muitas vezes conduzido no mesmo espírito de confrontação, muito diferente do “ouvido
atento” proposto pelo líder hassídico Dov Ber. Esperamos também respostas imediatas
para questões complexas. A frase de efeito é tudo. Nos tempos bíblicos, algumas
pessoas temiam que uma Escritura escrita encorajasse um “conhecimento” ilusório,
superficial. Este é certamente um perigo maior ainda na era eletrônica, quando as
pessoas estão acostumadas a encontrar a verdade ao clique de um mouse.
Isso torna difícil uma leitura verdadeiramente
espiritual da Bíblia. (...) O lógico N.L. Wilson afirmou que um crítico que se confronta
com um corpo estranho de textos deve aplicar o “princípio da caridade”. Deve buscar
uma interpretação que, “à luz do que ele conhece sobre os fatos, maximize a verdade
entre as sentenças do corpus”.1 O linguista Donald Davidson sustenta
que “interpretar a declaração e o comportamento dos outros, mesmo seu comportamento
mais aberrante, exige que encontremos neles muita verdade e razão”.2
Embora suas crenças possam ser muito diferentes das nossas, “temos de supor que
o estranho é muito semelhante ao que somos”, de outro modo corremos o perigo de
negar sua humanidade. “A caridade nos é imposta”, conclui Davidson. “Quer gostemos
dela ou não, se quisermos entender os outros, devemos considerá-los corretos na
maioria dos assuntos.”3 Na arena pública, no entanto, frequentemente
se presume que as pessoas estão erradas antes que se prove que estão certas, e isso
afetou inevitavelmente nossa compreensão da Bíblia.
O “princípio da caridade” está de acordo com o
ideal religioso da compaixão, o dever de “sentir com” o outro. Alguns dos maiores
exegetas do passado – Hillel, Jesus, Paulo, Johanan ben Zakkai, Akiba e Agostinho
– insistiram em que a caridade e a benevolência eram essenciais para a hermenêutica
bíblica. Num mundo perigosamente polarizado, uma hermenêutica comum entre os religiosos
deveria certamente enfatizar essa tradição. Judeus, cristãos e muçulmanos devem
primeiro examinar as falhas de suas próprias Escrituras, e só depois ouvir, com
humildade, generosidade e caridade, a exegese de outros. (...)
Hoje observamos uma certeza excessiva e estridente
tanto na esfera religiosa quanto na secular. Em vez de citar a Bíblia no intuito
de denegrir homossexuais, liberais ou sacerdotisas, poderíamos lembrar a regra da
fé de Agostinho: um exegeta deve sempre procurar a mais caridosa interpretação de
um texto. Em vez de usar uma passagem bíblica para apoiar a ortodoxia passada, uma
hermenêutica moderna poderia ter em mente o significado original de midrash:
“ir à procura de”. A exegese é a busca de algo novo. Buber disse que cada leitor
deveria se postar diante da Bíblia como Moisés diante da sarça ardente, ouvindo
atentamente e preparando uma revelação que o obrigará a abandonar antigos preconceitos.
Se isso ofende o establishment religioso, poderíamos lembrar-lhes, com Baltasar,
que as autoridades também são responsáveis pela miqra da Escritura.
As principais religiões insistem que a prática
da compaixão dia a dia, hora a hora, nos levará a Deus, ao Nirvana e ao Dao. Uma
exegese baseada no “princípio da caridade” seria uma disciplina espiritual profundamente
necessária em nosso mundo dilacerado e reduzido a fragmentos. A Bíblia atualmente
corre o risco de se tornar uma letra morta ou irrelevante; tem sido distorcida por
afirmações de infalibilidade literal; é ridicularizada – muitas vezes injustamente
– por fundamentalistas seculares; também se torna um arsenal tóxico que alimenta
o ódio e a polêmica estéril. O desenvolvimento de uma hermenêutica mais compassiva
poderia proporcionar uma importante contranarrativa em nosso mundo conflituoso.”
1: Citado por Ian Hacking, Why Does Language Matter to Philosophy?,
Cambridge, 1975, p.148. / 2: Donald Davidson, Inquiries into Truth and Interpretation,
Oxford, 1984, p.153. / 3: Ibid.
2 comentários:
Achei interessante do ponto de vista histórico de como um único livro, no caso a Bíblia, foi capaz de causar e continuar causando tanta violência simplesmente por interpretação egoísta.
Trechos interrssantes.
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