Editora: Companhia das Letras
ISBN: 978-85-3591-962-2
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 464
Sinopse: Ver Parte
I
“O advogado colonial não é o simples
profissional de nossos dias; tem a categoria de um alto serventuário da
justiça, e é uma parte, um verdadeiro órgão da justiça pública. Vestígio deste
passado encontramos ainda nas fórmulas de praxe que os advogados contemporâneos
empregam nos seus discursos oficiais.”
“Todas estas limitações da autoridade do
governador são consequência do sistema geral da administração portuguesa:
restrição de poderes, estreito controle, fiscalização opressiva das atividades
funcionais. Sistema que não é ditado por um espírito superior de ordem e
método, mas reflexo da atividade de desconfiança generalizada que o governo
central assume com relação a todos seus agentes, com presunção muito mal
disfarçada de desleixo, incapacidade, desonestidade mesmo em todos eles. A
confiança com outorga de autonomia, contrabalançadas embora por uma
responsabilidade efetiva, é coisa que não penetrou nunca nos processos da
administração portuguesa.
Ainda há uma circunstância, de ordem mais
geral, que apara muito as asas governamentais do Brasil colônia: é o espírito
de indisciplina que reina por toda parte e em todos os setores. Fruto de
condições geográficas e da forma com que se constituiu o país: imensidade do
território, dispersão da população, constituição caótica e heterogênea dela,
falta de sedimentação social, de educação e preparo para um regime policiado.
São fatores profundos e gerais, mas a sua consequência mais flagrante, e que se
reflete diretamente no terreno da administração, é a do solapamento da
autoridade pública, a dissolução de seus poderes que se anulam muitas vezes
diante de uma desobediência e indisciplina sistemáticas.”
“Por mais indevida que à primeira vista
pareça sua inclusão neste lugar, a religião e o clero a pertencem a administração
colonial por todos os títulos. A posição da Igreja e do seu culto é então muito
diferente da de hoje. E para compreendê-la na sua intimidade, não nos basta
assinalá-la traçando paralelos. Precisamos transportar-nos com um esforço de
imaginação para ambiente inteiramente diverso, procurar participar daquela
atmosfera clerical e de religiosidade em que mergulha a vida colonial. Não que
haja então um sentimento religioso mais agudo, mais profundo e elevadamente
sentido. Ou, se houve, não é isso que mais importa aqui. De muito maiores
consequências é o fato da onipresença de um conjunto de crenças e práticas que
o indivíduo já encontra dominantes ao nascer, e que o acompanharão até o fim,
mantendo-o dentro do raio de uma ação constante e poderosa. Ele participará dos
atos da religião, das cerimônias do culto, com a mesma naturalidade e convicção
que de quaisquer outros acontecimentos banais e diuturnos da sua existência
terrena; e contra eles não pensaria um momento em reagir. Será batizado,
confessará e comungará nas épocas próprias, casar-se-á perante um sacerdote,
praticará os demais sacramentos e frequentará festas e cerimônias religiosas
com o mesmo espírito com que intervém nos fatos que chamaríamos hoje, em
oposição, da sua vida civil. Uma coisa necessária e fatal, como vestir-se,
comer a certas horas, seguir um regime de vida geral para todo o mundo. O
cidadão da colônia atravessará seus anos de existência sem que lhe aflore à
mente um instante sequer a mais leve suspeita de que tais atos poderiam ser
dispensados. Haverá incréus e céticos — e a época no momento que nos ocupa era
propícia à sua multiplicação —, mas a incredulidade deles ficará restrita a
seus pequenos, fechados e insulados círculos de maçons e livres-pensadores que
escondem cuidadosamente sua descrença; mais que criminosos, eles apareceriam
aos olhos do mundo que os cerca como loucos temíveis. A religião não era ainda
admitida; ela “era” simplesmente.
Decorre daí que as necessidades espirituais
se colocam no mesmo plano que as exigências da vida civil. A participação nas
atividades religiosas não é menos importante que nas daquela última. Poder
frequentar os sacramentos, o culto, as cerimônias da Igreja, constitui urgência
que nada fica a dever ao que se pede noutro setor: a justiça, a segurança, ou
as demais providências da administração pública. O Estado não se podia furtar a
ela. E nem jamais cogitou disto. Pelo contrário, disputou sempre à Igreja de
Roma o direito de ministrar ele próprio, a seus súditos, o alimento espiritual
que reclamavam. Nunca lhe escapou a importância política disto.
Mas não é só inconcebível e inconcebida uma
existência à margem da religião e da Igreja: ela é impraticável mesmo para o
incréu convicto e relutante. Atos de que ninguém se podia passar, mesmo pondo
de parte qualquer sentimento religioso, só se praticavam por intermédio da
Igreja: a constatação do nascimento se fazia pelo batismo, o casamento só se
realizava perante autoridade clerical. Além disto, o poder eclesiástico tinha
jurisdição privativa em muitos assuntos de fundamental importância, como nas
questões relacionadas com o casamento: divórcio (ou, se preferirem, o
“repúdio”), separação de corpos, anulação. Também nos assuntos que envolvessem
matéria de pecado¹. Eram as estipulações do Concílio de Trento, que Portugal
foi a única das nações cristãs a aprovar sem restrições; e que se mantiveram em
vigor no Brasil, em seus traços essenciais, até a República².”
Ainda há muitos setores em que a atividade
administrativa da Igreja teve não só a participação notável, mas ainda, em
muitos casos importantes, exclusiva. Assim em tudo que hoje chamaríamos de
assistência social ao pauperismo e indigência; à velhice e infância
desamparadas; aos enfermos etc. O mesmo podemos dizer do ensino. Também da
catequese e civilização dos índios, em que, apesar de excluída do terreno
temporal pela legislação pombalina, continuava a ação da Igreja, através de
suas missões regulares, e mesmo em alguns casos seculares. E ainda, finalmente,
não devemos esquecer o papel que representa no setor das diversões públicas,
sabido como é que a maior parte das festividades e divertimentos populares se
realizava sob seus auspícios ou direção³.
A Igreja forma assim uma esfera de grande
importância da administração pública. Emparelha-se à administração civil, e é
mesmo muito difícil, se não impossível, distinguir na prática uma da outra em
muitos correntes casos. Daí os atritos, que são frequentes, entre autoridades
civis e eclesiásticas4. Porém mais comum e normal é a colaboração —
colaboração tão íntima e indispensável ao funcionamento regular da
administração em geral que nada há que lembre o que se passa na atualidade. É
um anacronismo berrante projetar relações de hoje da Igreja com a administração
civil naquele passado, procurando analisá-las com critérios semelhantes. Mais
que simples relações, o que havia era uma verdadeira comunhão, uma identidade
de propósitos animados pelo mesmo espírito.”
1: Assim nos contratos jurados, pois o perjúrio
constituía pecado. É por isso que as Ordenações proibiam os contratos com
juramento, pois isto seria transferir para a jurisdição eclesiástica a
competência para conhecer de seu não cumprimento (Ordenações, livro IV,
título 73). Competia ainda às autoridades eclesiásticas a abertura dos
testamentos, por causa dos eventuais legados em favor da Igreja. Sobre
jurisdição eclesiástica em geral na colônia, veja-se Lacerda de Almeida, op.
cit.
2: As disposições do Concílio foram
confirmadas no Brasil independente pelo decreto de 3 de novembro de 1827.
3: Notemos que em todos estes setores cabe
ainda hoje em dia à Igreja um papel considerável entre nós. Mas entre o
presente e o passado há uma diferença a tal respeito essencial, porque hoje ela
age como entidade privada, e não se distingue, senão quantitativamente, de
outras com objetivos iguais; enquanto na colônia, ela constitui autoridade
pública.
4: Lembremos unicamente o padroado, concedido
ao rei de Portugal e nas suas possessões ultramarinas, o que lhe permitia larga
ingerência nos negócios eclesiásticos, inclusive e sobretudo a criação e
provimento dos bispados; ereção de igrejas e delimitação de jurisdições
territoriais; autorização para estabelecimento de ordens religiosas, conventos
ou mosteiros. Cabia ainda ao monarca — por concessão, como vimos, à Ordem de
Cristo — a percepção dos dízimos, que é um tributo eclesiástico destinado
originalmente à manutenção do clero. Em compensação, competia à Coroa prover a
esta manutenção, e tal é o objetivo das côngruas, isto é, subvenções
pecuniárias aos membros do clero.
“Está aí, em suma, o esboço da organização
administrativa da colônia. Vimos aí a falta de organização, eficiência e
presteza do seu funcionamento. Isto sem contar os processos brutais empregados,
de que o recrutamento e a cobrança dos tributos são exemplos máximos e índice
destacado do sistema geral em vigor. A complexidade dos órgãos, a confusão de
funções e competência; a ausência de método e clareza na confecção das leis, a
regulamentação esparsa, desencontrada e contraditória que a caracteriza,
acrescida e complicada por uma verborragia abundante em que não faltam às vezes
até dissertações literárias; o excesso de burocracia dos órgãos centrais em que
se acumula um funcionalismo inútil e numeroso, de caráter mais deliberativo,
enquanto os agentes efetivos, os executores, rareiam; a centralização
administrativa que faz de Lisboa a cabeça pensante única em negócios passados a
centenas de léguas que se percorrem em lentos barcos a vela; tudo isto, que
vimos acima, não poderia resultar noutra coisa senão naquela monstruosa,
emperrada e ineficiente máquina burocrática que é a administração colonial. E
com toda aquela complexidade e variedade de órgãos e funções, não há, pode-se
dizer, nenhuma especialização. Todos eles abrangem sempre o conjunto dos
negócios relativos a determinado setor, confundindo assuntos os mais variados e
que as mesmas pessoas não podiam por natureza exercer com eficiência. O que
mais se assemelharia a departamentos especializados, como as Intendências do
Ouro, a dos Diamantes, as Mesas de Inspeção e alguns outros, nada são disto na
realidade. Acumulam atribuições completamente distintas, ocupando-se das
simples providências administrativas e de política, como do fomento da produção,
da direção técnica, arrecadação de tributos e solução de contendas entre
partes. E é por isso que raramente se encontram neles técnicos especializados.
Nas várias Intendências do Ouro, por exemplo, nunca se viu um geólogo, um
mineralogista, um simples engenheiro. Eram indivíduos inteiramente leigos em
ciências naturais e conhecimentos técnicos que se ocupavam com os assuntos de
mineração. E isto porque deviam ser, ao mesmo tempo, e sobretudo, burocratas,
juristas, juízes.
Mas não precisamos ir procurar funções
especializadas para descobrir as fraquezas da administração colonial. Nas
próprias atividades essenciais do Estado ela é lamentável. Justiça cara, morosa
e complicada; inacessível mesmo à grande maioria da população. Os juízes
escasseavam; grande parte deles não passava de juízes leigos e incompetentes;
os processos, iniciados aí, subiam para sucessivos graus de recurso: ouvidor,
Relação, Suplicação de Lisboa, às vezes até Mesa do Desembargo do Paço,
arrastando-se sem solução por dezenas de anos. A segurança pública era
precária. Já vimos os recursos e adaptações a que a administração teve de
recorrer para suprir sua incapacidade neste terreno da ordem legal, delegando
poderes que darão nestes quistos de mandonismo que se perpetuarão pelo Império adentro,
se não a República, e tornando tão difícil em muitos casos a ação legal e
política da autoridade. Mas mesmo com esta adaptação forçada, não se conseguiu
fazer predominar a ordem; a insegurança foi sempre a regra, não só nestes
sertões despoliciados que constituem a maior parte da colônia, mas nos próprios
grandes e maiores centros, à sombra das principais autoridades. Se o banditismo
e o crime permanente não assolaram a colônia excessivamente, isto se deveu
muito mais à índole da população, e não às providências de uma administração
inexistente na maior parte do território da colônia.
As finanças não estão em melhor postura;
alguma coisa, e bastante ilustrativa, já foi dita acima com respeito à
arrecadação das rendas públicas. O manejo delas não é de melhor qualidade.
Nunca se viveu, em todas as capitanias, cidades e vilas de cujas finanças temos
notícias, senão em regime permanente de déficit. E um déficit “desorganizado”,
se podemos sem pleonasmo acrescentar esse qualificativo para caracterizar o sistema
financeiro da colônia, onde a falta de rendimentos para cobrir as despesas se
resolvia sumariamente com o calote, não se pagando, nem com boas intenções, os
credores que não fossem protegidos das autoridades. Nem o soldo das tropas se
satisfazia regularmente, e o espetáculo de soldados mendigando pelas ruas era
comum.
Se nas suas funções essenciais a
administração era isso, nas outras é pior. A instrução pública estava reduzida
a umas poucas aulas de primeiras letras, latim e grego, esparsas pelos principais
centros, e ao parco ensino ministrado nas maiores cidades pelas ordens
religiosas. Os serviços de higiene e saúde pública se constatam pelo estado das
principais cidades, Bahia e Rio de Janeiro. Hospitais não havia senão uns
raríssimos militares, como o do Rio de Janeiro, que se instalou no antigo
colégio dos jesuítas, e as Santas Casas de Misericórdia, que, embora poucas,
constituem a mais bela e quase única instituição social de certo vulto da
colônia. Das obras públicas, vimos já uma amostra nestes miseráveis caminhos e
mais vias de comunicação. E afora isso, legou-nos a colônia pouquíssimas obras
dignas de menção; algumas fortalezas medíocres e o aqueduto da Carioca, no Rio
de Janeiro, quase esgotam a lista.
O fomento da produção estava inteiramente
entregue à boa vontade de um ou outro administrador mais esforçado, e nunca
passou de pequenas e limitadas providências. A lista poderia ser alongada, mas
inutilmente, neste mesmo diapasão: a mesma falta de esforço construtivo, a
mesma ineficiência e negligência se encontrará por toda parte. Um exemplo
bastaria para caracterizar a administração colonial: a mineração. Durante quase
um século, a exploração do ouro e dos diamantes constituiu a maior riqueza da
monarquia, a base em que assentou a prosperidade e até mesmo a existência do
trono português. Pois nem assim ela mereceu mais que a consideração de um bem
tributável, uma fonte de renda que se tratava de explorar ao máximo. Afora
isto, nada se fez, e deixou-se toda a matéria ao abandono. A incapacidade da
administração colonial, a negligência e inércia que demonstrou diante da imensa
dissipação e destruição de riqueza natural que se praticava nas minas, é um
atestado que dispensa quaisquer outros comentários.
Se no terreno da eficiência é este o retrato
da administração colonial, não é ele mais avantajado no da moralidade. De alto
a baixo da escala administrativa, com raras exceções, é a mais grosseira
imoralidade e corrupção que domina desbragadamente. Poder-se-ia repetir aqui,
sem nenhuma injustiça, o conceito do Soldado prático: “Na Índia não há coisa
sã: tudo está podre e afistulado, e muito perto de herpes”. Os mais honestos e
dignos delegados da administração régia são aqueles que não embolsam
sumariamente os bens públicos, ou não usam dos cargos para especulações
privadas; porque de diligência e bom cumprimento dos deveres, nem se pode
cogitar. Aliás o próprio sistema vigente de negociar os cargos públicos abria
naturalmente portas largas à corrupção. Eles eram obtidos e vendidos como a
mais vulgar mercadoria. Mas isto ainda é o de menos, porque estava nos métodos
aceitos e reconhecidos. O que fazia Vieira, já século e meio antes, conjugar no
Brasil o verbo “rapio” (no sermão do Bom Ladrão) em todos os modos, tempos e
pessoas, era esta geral e universal prática, que já passara para a essência da
administração colonial, do peculato, do suborno e de todas as demais formas de
corrupção administrativa. Se fosse alinhar aqui testemunhos, seria um não
acabar nunca. (...)
Portugal no entanto sempre interpretou
mesquinhamente este objetivo primordial e latente em todas as colonizações de
caráter oficial. Suas vistas raramente foram além dos proveitos imediatos que
sob a forma de tributos podia auferir da colônia. Um governador do Rio Grande
do Sul, aliás um dos mais notáveis, Silva Gama, resumia em 1805 este pensamento
numa confissão crua e nua: “Nada me interessa com mais fervor”, escrevia ele ao
governo do reino, “do que a fiscalização da Real Fazenda. Diminuir as suas
despesas o quanto é possível, fazer arrecadar ansiosamente tudo que possa
pertencer-lhe sem dano dos vassalos, e esquadrinhar novos recursos para
aumentá-la, são os objetivos do meu maior desvelo”. Um objetivo fiscal, nada
mais que isto, é o que anima a metrópole na colonização do Brasil. Raros são os
atos da administração ou os administradores que fazem exceção à regra. Pombal,
cujo governo é o único talvez, depois do período heroico da história
portuguesa, que teve vistas largas, Pombal mesmo não conseguiu desvencilhar-se
inteiramente do que estava no fundo da consciência nacional, ou antes da
política da monarquia. O ouro e os diamantes, então, fizeram perder o resto da
cabeça e bom senso que sobrava à metrópole. Com uma ânsia sem paralelo, ela se
atira sobre o metal e as pedras como um cão esfaimado sobre o osso que aflora
na terra cavada. Só que não tinha sido ela quem o escavara... Durante um século
quase, não haverá outra preocupação séria e de consequência que a cobrança dos
direitos régios, o quinto; a história administrativa do Brasil se contará em
função dela.
Assente numa tal base, a administração
colonial não podia ser outra coisa que foi. Negligencia-se tudo que não seja
percepção de tributos; e a ganância da Coroa, tão crua e cinicamente afirmada,
a mercantilização brutal dos objetivos da colonização, contaminará todo mundo.
Será o arrojo então geral para o lucro, para as migalhas que sobravam do
banquete real. O construtivo da administração é relegado para um segundo plano
obscuro em que só idealistas deslocados debateram em vão.
Tudo isto se refere, em particular, à
administração civil. A eclesiástica, nada ou quase nada lhe fica a dever.
Admitamos contudo, de início, uma restrição que é de justiça salientar. Se não
muito pouco ao nível moral, pelo menos no da capacidade, o clero da colônia é
nitidamente superior ao funcionalismo civil, como, aliás, a qualquer outra
categoria particular da população colonial. Não seria por simples coincidência
que boa parte dos indivíduos de formação intelectual acima do comum
extremamente baixo com que tomam contato os viajantes estrangeiros que nos
visitaram em princípios do século passado seja de eclesiásticos. Em Goiás,
Saint-Hilaire chega a afirmar que as únicas pessoas com “alguns conhecimentos”
são os padres. Também não será tida como fruto do acaso a circunstância da
tamanha proporção de membros do clero aparecerem entre aqueles que se
destacaram nas letras e ciências da colônia; e de terem saído dele os expoentes
de seus principais ramos. Aliás, já referi no capítulo anterior a razão por que
o clero se tornou a carreira intelectual por excelência na colônia: é a única
que abre as portas a todos sem distinção de categoria. Refugiar-se-ão nele
todos ou quase todos a quem a inteligência faz cócegas.
Mas noutro terreno, no seu teor moral médio,
a massa do clero não se destaca muito acima de seus colegas da administração
leiga. A mercantilização das funções sacerdotais tornara-se pela época em que
nos achamos um fato consumado. Citei já a observação de uma autoridade
eclesiástica, que reconhece ter-se tornado a batina um simples “modo de vida”,
um emprego, parecendo aliás perfeitamente conformado com o fato. Que se podia
esperar daí? A geral e persistente grita dos povos contra os tributos
eclesiásticos é aliás um sintoma bem sensível do caminho que tomara o clero
colonial. Baltasar da Silva Lisboa, alto funcionário da administração, expondo
ao vice-rei os assuntos de suas atribuições, assim rematava as considerações
que faz sobre o clero: “Eles só querem dinheiro, e não se embaraçam que tenham
bom título”. Para se ter uma ideia do que ia pelos conventos do Brasil em
matéria de costumes e corrupção, leia-se a longa exposição que a respeito faz o
vice-rei Luís de Vasconcelos ao secretário de Estado, e que repete
resumidamente no relatório com que entrega o governo ao sucessor que o vinha
substituir; se se desejar um depoimento ainda mais autorizado e insuspeito,
veja-se o que dizem de seus conventos respectivos os superiores dos carmelitas
e dos capuchos. Mas não é de um bispo, frei Antônio do Desterro, do Rio de
Janeiro, e em correspondência oficial ao secretário de Estado, o seguinte texto
tão elucidativo da compreensão que tinha o clero colonial de suas funções
sacerdotais? “Como prêmio e remuneração do trabalho”, escreve ele, que estimula
fortemente a todos, principalmente neste Brasil onde se cuida mais no interesse
do que na boa fama e glória do nome, me parecia mais preciso e justo que sua
Majestade remunerasse inefetivamente a estes párocos (aqueles que tivessem
servido com os índios) com igrejas de Minas, dando a cada um tantos anos de
párocos nas ditas igrejas, por serem pingues, quantos tiverem
servido nas freguesias dos índios.
Poderiam ser alongados estes testemunhos,
encontradiços nos documentos da época, e que se não abundam tanto como os relativos
à administração leiga, não são menos precisos ou convincentes. Mas bastará,
para supri-los todos, o que Saint-Hilaire, católico e crente convicto,
deplorando-o embora e procurando consolar o leitor cristão de tantos golpes
vibrados à sua sensibilidade, descreve com minúcias em seu longo capítulo
dedicado ao clero brasileiro.
Nestas condições, não é de esperar do clero
colonial, animado de tal espírito, grande diligência no cumprimento dos seus
deveres. E de fato, é o que se verifica. Ele exercerá ativamente sua função de
satisfazer às necessidades espirituais da população lá onde pode ser e é bem
remunerado por ela: nas paróquias “pingues” a que se refere o bispo acima
citado; nas capelas de engenhos abastados. O resto da população fica ao
desamparo. Para ela, os padres rezarão no máximo as missas e ministrarão a
comunhão da desobriga que constitui o melhor de seus rendimentos. O resto do
tempo, ocupar-se-ão em afazeres bem distanciados de suas obrigações — muitos
são fazendeiros; era eclesiástico o melhor farmacêutico de São João Del Rei, e
preparava e vendia ele próprio suas drogas; um outro sacerdote vendia tecidos
no balcão de sua loja...
E se assim cumpriam, ou deixavam de cumprir
seus deveres fundamentais, que dizer dos de assistência e amparo social que a
tradição, como seus estatutos e a divisão estabelecida das funções públicas
lhes impunham? Algumas ordens, alguns raríssimos de seus membros pelo menos,
ocupavam-se ainda com a catequese dos índios. Em certos conventos
ministravam-se educação e ensino; mas só nas maiores capitais, e para grupos
reduzidos da população. Algumas irmandades leigas dedicavam-se aos enfermos,
expostos e indigentes, como os sempre lembrados com justiça Irmãos da
Misericórdia. Há exemplos de dedicação e trabalho, e não quero subestimá-los;
mas infelizmente exceções, casos raros num oceano de necessidades não atendidas
e de que ninguém se preocupava. A grande maioria do clero, secular e regular,
desde os mais altos dignatários até os mais modestos coadjutores, deixava-se ficar
numa indiferença completa de tais assuntos, usufruindo placidamente suas
côngruas e demais rendimentos, ou suprindo a deficiência deles com atividades e
negócios privados.
Que parcela de responsabilidade caberá disto,
diretamente, à política metropolitana? Com a expulsão dos jesuítas,
desfalcara-se a colônia do quase único elemento que promovera em larga escala
uma atividade social apreciável. Mas os efeitos nocivos da medida de Pombal,
neste terreno de que nos ocupamos, não devem ser exagerados. Já passara, fazia
muito, o tempo dos Nóbregas e Anchietas, e a Companhia de Jesus decaíra
consideravelmente. O que seria no futuro, é difícil, se não impossível,
assentar com segurança. Mas avaliar a perda pela bitola daqueles primeiros
missionários seria anacronismo lamentável.”
“Observamos nos seus diferentes aspectos esse
aglomerado heterogêneo de raças que a colonização reuniu aqui ao acaso, sem
outro objetivo que realizar uma vasta empresa comercial, e para que
contribuíram, conforme as circunstâncias e as exigências daquela empresa,
brancos europeus, negros africanos, indígenas do continente. Três raças e
culturas largamente díspares, de que duas, semibárbaras em seu estado nativo, e
cujas aptidões culturais originárias ainda se sufocaram, fornecerão o contingente
maior; raças arrebanhadas pela força e incorporadas pela violência na
colonização, sem que para isso se lhes dispensasse o menor preparo e educação
para o convívio em uma sociedade tão estranha para elas; cuja escola única foi
quase sempre o eito e a senzala.
Numa população assim constituída
originariamente e em que tal processo da formação se perpetuava e se mantinha
ainda no momento que nos ocupa, o primeiro traço que é de esperar, e que de
fato não falhará à expectativa, é a ausência de nexo moral. Raças e indivíduos
mal se unem; não se fundem num todo coeso: justapõem-se antes uns aos outros;
constituem-se unidades e grupos incoerentes que apenas coexistem e se tocam. Os
mais fortes laços que lhes mantêm a integridade social não serão senão os primários
e mais rudimentares vínculos humanos, os resultantes direta e imediatamente das
relações de trabalho e produção: em particular, a subordinação do escravo ou do
semiescravo ao seu senhor. Muito poucos elementos novos se incorporarão a este
cimento original da sociedade brasileira, cuja trama ficará assim reduzida
quase exclusivamente aos tênues e sumários laços que resultam do trabalho
servil.”
“Para compreendermos a sociedade colonial no
seu conjunto, os laços que lhe mantêm a coesão e de que se forma a sua trama,
temos que vê-la como de fato ela se constitui: de um núcleo central organizado,
cujo elemento principal é a escravidão; e envolvendo este núcleo, ou
dispondo-se nos largos vácuos que nele se abrem, sofrendo-lhe mesmo, em muitos
casos, a influência da proximidade, uma nebulosa social incoerente e desconexa.
Não preciso acentuar mais uma vez o papel que
a escravidão tem naquele primeiro setor, o orgânico da sociedade colonial. Mas
devemos acrescentar aqui o caráter primário das relações sociais que dela
resultam, e daquilo que com ela se constituiu. Primário no sentido em que não
se destacam do terreno puramente material em que se formam; ausência quase
completa de superestrutura, dir-se-ia para empregar uma expressão que já se
vulgarizou. Realmente a escravidão, nas duas funções que exercerá na sociedade
colonial, fator trabalho e fator sexual, não determinará senão relações
elementares e muito simples. O trabalho escravo nunca irá além do seu ponto de
partida: o esforço físico constrangido; não educará o indivíduo, não o
preparará para um plano de vida humana mais elevado. Não lhe acrescentará
elementos morais; e, pelo contrário, degradá-lo-á, eliminando mesmo nele o
conteúdo cultural que porventura tivesse trazido do seu estado primitivo. As
relações servis são e permanecerão relações puramente materiais de trabalho e
produção, e nada ou quase nada mais acrescentarão ao complexo cultural da
colônia.
A outra função do escravo, ou antes, da
mulher escrava, instrumento de satisfação das necessidades sexuais de seus
senhores e dominadores, não tem um feito menos elementar. Não ultrapassará
também o nível primário e puramente animal do contato sexual, não se
aproximando senão muito remotamente da esfera propriamente humana do amor, em
que o ato sexual se envolve de todo um complexo de emoções e sentimentos tão
amplos que chegam até a fazer passar para o segundo plano aquele ato que afinal
lhe deu origem.
Em alguns outros setores, a escravidão foi
mais fecunda. Destaquemos a “figura boa da ama negra” — a expressão é de
Gilberto Freyre —, que cerca o berço da criança brasileira de uma atmosfera de
bondade e ternura que não é fator de menor importância nesta florescência de
sentimentalismo, tão característica da índole brasileira, e que se de um lado amolece
o indivíduo e o desampara nos embates da vida — não padece dúvida que boa parte
da deficiente educação brasileira tem aí sua origem —, doutro contribui para
quebrar a rudeza e brutalidade próprias de uma sociedade nascente. Mas neste,
como em muitos casos semelhantes, é preciso distinguir entre o papel do escravo
e do negro, o que Gilberto Freyre acentuou com tanto acerto. A distinção é
difícil: ambas as figuras confundem-se no mesmo indivíduo, e a contribuição do
segundo se realiza quase sempre através do primeiro. Mas não é impossível, e,
de uma forma geral, o que se conclui é que se o negro traz algo de positivo,
isto se anulou na maior parte dos casos, deturpou-se em quase tudo mais. O
escravo enche o cenário, e permitiu ao negro apenas que apontasse em raras
oportunidades. Já notei acima que outro teria sido o papel do africano na
formação cultural da colônia se lhe tivessem permitido, se não o pleno, ao
menos um mínimo de oportunidade para o desenvolvimento de suas aptidões
naturais. Mas a escravidão, como se praticou na colônia, o esterilizou, e ao
mesmo tempo que lhe amputava a maior parte de suas qualidades, aguçou nele o
que era portador de elementos corruptores ou que se tornaram tal por efeito
dela mesma. E o baixo nível de sua cultura, em oposição ao da raça dominante,
impediu-lhe de se afirmar com vigor e sobrepor-se à sua miserável condição, ao
contrário do que em tantas instâncias ocorreu no mundo antigo.
Em suma, a escravidão e as relações que dela
derivam, se bem que constituam a base do único setor organizado da sociedade
colonial, e tivessem por isso permitido a esta manter-se e se desenvolver, não
ultrapassam contudo um plano muito inferior, e não frutificam numa
superestrutura ampla e complexa. Serviram apenas para momentaneamente conservar
o nexo social da colônia. No outro setor dela, o que se mantém à margem da
escravidão, a situação se apresenta, em certo sentido, pior. A inorganização é
aí a regra. O que aliás sua origem faz prever; vimo-lo anteriormente: aquela
parte da população que o constitui e que vegeta à margem da vida colonial não é
senão um derivado da escravidão, ou diretamente, ou substituindo-a lá onde um
sistema organizado de vida econômica e social não pôde constituir-se ou se
manter.
Para este setor não se pode nem ao menos
falar em “estrutura” social, porque é a instabilidade e incoerência que o
caracterizam, tendendo em todos os casos para estas formas extremas de
desagregação social, tão salientes e características da vida brasileira, e que
notei em outro capítulo: a vadiagem e a caboclização.
É isto, em resumo, que o observador
encontrará de essencial na sociedade da colônia: de um lado, uma organização
estéril no que diz respeito a relações sociais de nível superior; doutro, um
estado, ou antes, um processo de desagregação mais ou menos adiantado, conforme
o caso, resultante ou reflexo do primeiro, e que se alastra progressivamente. E
note-se, antes de seguirmos adiante, e repisando um assunto já ventilado, que
tais aspectos correspondem grosseiramente, no terreno econômico, aos dois
setores que aí fomos encontrar: a grande lavoura e a mineração, de um lado; as
demais atividades que reuni na categoria geral de “economia de subsistência”,
do outro. A observação é importante porque vem confirmar mais uma vez o que já
foi dito sobre a caracterização da economia brasileira, votada essencialmente à
produção de alguns gêneros exportáveis; este seu caráter unilateral se revela
aqui sensivelmente, mostrando a precariedade daquilo que sai do círculo
estreito desta forma particular de atividade produtora.
À luz desta vista d’olhos preliminar por
sobre a sociedade colonial, torna-se possível compreender a maior parte dos
seus traços e caracteres essenciais. Porque ela se soma e sumaria na observação
geral feita de início: a falta de nexo moral que define a vida brasileira em
princípios do século passado, a pobreza de seus vínculos sociais. Tomo aquela
expressão “nexo moral” no seu sentido amplo de conjunto de forças de
aglutinação, complexo de relações humanas que mantêm ligados e unidos os
indivíduos de uma sociedade e os fundem num todo coeso e compacto. A sociedade
colonial se definirá antes pela desagregação, pelas forças dispersivas; mas elas
são em nosso caso as da inércia; e essa inércia, embora infecunda, explica
suficientemente a relativa estabilidade da estrutura colonial: para
contrariá-la e manter a precária integridade do conjunto, bastaram os tênues
laços materiais primários, econômicos e sexuais, ainda não destacados de seu
plano original e mais inferior, que se estabelecem como resultado imediato da
aproximação de indivíduos, raças, grupos díspares, e não vão além deste contato
elementar. É fundada nisso, e somente nisso, que a sociedade brasileira se
manteve, e a obra da colonização pôde progredir.”
“Toda sociedade organizada se funda
precipuamente na regulamentação (não importa a complexidade posterior que dela
resultará) dos dois instintos primários do homem: o econômico e o sexual. Na
primeira categoria, o elemento que definirá, e na base do qual se formarão
aquelas relações, é o trabalho, tomado aqui no sentido amplo e mais
geral de atividade que proporciona ao indivíduo seus meios de subsistência. Na
outra, o conteúdo serão as relações que se estabelecem entre sexos opostos e as
que daí resultam: as relações de família, em suma.
Relativamente ao trabalho, já se viu acima
alguma coisa que servirá para caracterizar os laços que dele derivam. Assim o
efeito deprimente que exerce sobre sua conceituação o regime servil. Há outro
de quase igual importância: o estímulo para a ociosidade que, para os senhores,
resulta do trabalho entregue inteiramente a escravos. É esta uma atitude
psicológica por demais conhecida para nela nos demorarmos. Um e outro efeito da
escravidão se somarão para fazer ou evitar quaisquer atividades. A indolência,
o ócio dos casos extremos, mas sempre uma atividade retardada, uma geral moleza
e um mínimo de dispêndio de energia resultarão daí para o conjunto da sociedade
colonial. Tudo repousará exclusivamente no trabalho forçado e não consentido
imposto pela servidão; fora disto, a atividade colonial é quase nula. Onde
falta a obrigação sancionada pelo açoite, o tronco e demais instrumentos
inventados para dobrar a vontade humana, ela desaparece. Os libertos que se
fazem por via de regra vadios, apesar da escola em que se formaram, é disto uma
das provas. (...) As outras funções se praticam sempre com um mínimo de
energia. Uma lentidão e economia de esforços que faziam a cada passo o
desespero dos enérgicos europeus que nos visitavam. (...)
Uma tal atitude da grande maioria, da quase
totalidade da colônia relativa ao trabalho, de generalizada que é, e mantida
através do tempo, acabará naturalmente por se integrar na psicologia coletiva
como um traço profundo e inerraigável do caráter brasileiro. A preguiça e o
ócio, aqui no Brasil, “até se pega como visgo”, dirá Vilhena. Mas se a
escravidão, nas suas várias repercussões, é a responsável principal por isso,
há outros fatores de segundo plano que não deixam de ter o seu papel. O
principal deles é a contribuição do sangue indígena, considerável como sabemos.
A indolência do índio brasileiro tornou-se proverbial, e de certo modo a
observação é exata. Onde se erra é atribuindo-a a não se sabe que “caracteres
inatos” do selvagem. Na sua vida nativa, mesmo na civilizada quando se empenha
em tarefas que conhece, e sobretudo cujo alcance compreende, o selvagem
brasileiro é tão ativo como os indivíduos de qualquer outra raça. Será
indolente, e só aí o colono interessado o enxergava e julgava, quando metido
num meio estranho, fundamentalmente diverso do seu, onde é forçado a uma
atividade metódica, sedentária e organizada segundo padrões que não compreende.
Em que até os estímulos nada dizem a seus instintos: a ganância, a participação
em bens, os prazeres que para ele não são nem bens nem prazeres. Nada houve de
mais ridículo nos sistemas de educação dos índios que isto de tentar levá-los
por tais incentivos, modelados por figurinos europeus e estranhos a seus
gostos.
A indolência e a falta de ambição que se
observam no índio não são senão fruto de sua completa indiferença, quando não
de hostilidade, relativamente a uma civilização que se lhe impôs, e cujo valor,
com todos os atrativos que tem para nós, é para ele nulo. Enxergar no indígena
brasileiro, ou em outras raças de cultura diferente da nossa, falhas de caráter
onde não há senão atitudes próprias de um inadaptado ou revoltado, é o vezo
sobretudo dos anglo-americanos. Mas qual seria, perguntamos nós, a reação de um
destes enérgicos anglo-saxões a quem lhe pedisse um dia de trabalho a ser pago
com um jantar de pirão de açaí ou de mandioca puba? Mutatis mutandis,
é a mesma coisa que se passa com o indígena. O único estímulo civilizado que o
índio compreendeu foi a aguardente, que por isso a colonização empregou
largamente. (...)
Ao influxo do sangue indígena como fator de
indolência, ainda há que acrescentar esta causa geral que é o sistema econômico
da colônia, tão acanhado de oportunidades e de perspectivas tão mesquinhas. Não
seria um tal ambiente propício a estimular as energias e atividades dos
indivíduos, uma escola muito favorável de trabalho. De tudo isso resultará para
a colônia, em conjunto, um tom geral de inércia. Paira na atmosfera em que a
população colonial se move, ou antes, “descansa”, um vírus generalizado de
preguiça, de moleza que a todos, com raras exceções, atinge. O aspecto do
Brasil é de estagnação.”
“Lançadas nesta base não familiar, outras
circunstâncias vêm reforçar a irregularidade dos costumes sexuais da colônia. A
escravidão, a instabilidade e insegurança econômicas...; tudo contribuiria para
se opor à constituição da família, na sua expressão integral, em bases sólidas
e estáveis. A formação brasileira, ao contrário do que se afirma correntemente,
não se processou, salvo no caso limitado e, como veremos, deficiente das
classes superiores da “casa-grande”, num ambiente de família. Não é isso que
ocorre com a massa da população: nem com o colono recém-chegado, nem com o
escravo, escusado acrescentá-lo; talvez ainda menos com esta parte da população
livre, econômica e socialmente instável que temos já visto sob outros aspectos,
e à qual falta base sólida em que assentar a constituição da família. (É talvez
por isso que tanto se insiste no Brasil sobre a origem familiar. Esta origem
eleva e distingue os indivíduos, porque é própria só de uma classe superior
reduzida. Ser “de família” entre nós constituía um distintivo de superioridade,
de quase nobreza.)
Quanto à casa-grande, se é certo que o seu
núcleo é a família, ou antes, a família do senhor, e só ele (da pequena, da
minúscula minoria portanto, e isto se esquece frequentemente); e se, neste
sentido, é um ambiente familiar que cerca o filho rico da sociedade colonial,
exceção, no conjunto, quase única; há que abrir larga margem para restrições se
pelo conceito de família não entendemos apenas uma estrutura exterior, mas todo
aquele complexo de normas, de “atmosfera” mesmo, que concede à família, nas sociedades
da nossa civilização, o grande papel de formador dos indivíduos e do seu
caráter. Neste sentido, a casa-grande ficou muito aquém de sua missão. O
sistema de vida a que dá lugar, a promiscuidade com escravos (e escravos do
mais baixo teor moral), as facilidades que proporciona às relações sexuais
irregulares e desbragadas, a indisciplina que nela reina, mal disfarçada por
uma hipócrita submissão, puramente formal, ao pai e chefe, tudo isso faz a
casa-grande antes uma escola de vício e desregramento, apanhando a criança
desde o berço, que de formação moral. A família perde aí inteiramente, ou
quase, as suas virtudes; e em vez de ser o que lhe concede razão moral básica
de existência e que é de disciplinadora da vida sexual dos indivíduos,
torna-se, pelo contrário, campo aberto e amplo para o mais desenfreado
sexualismo. Advirta-se que não é no terreno dos sentimentos que me coloco aqui;
não são as reações emotivas e afetivas nas relações recíprocas de homem para
mulher, ou de pais para filhos, que procuro negar, ou mesmo subestimar. Até
pelo contrário, destas só se poderiam recriminar os excessos, derramando-se em
condescendências e tolerâncias sem limite, que não foram pouco responsáveis
pela má educação que receberam as gerações coloniais. Mas não é por este lado
somente que devemos analisar a família; o seu conteúdo é mais amplo que o da
simples esfera sentimental e afetiva. E se neste pecou a família brasileira
pelo excesso, nos demais falhou lamentavelmente.
Reduzido assim, extensiva e intensivamente, o
papel da família na vida colonial, ficou aberta larga margem à indisciplina
sexual. Não podemos aqui limitar nossas observações ao fato da maior ou menor
frequência do casamento, pois este não só não é, por si apenas, uma garantia de
regularidade e disciplina sexuais, como esta regularidade, entendida em termos
sociológicos, não é exclusiva das relações legalmente sancionadas. Precisamos
por isso dirigir nossas atenções sobretudo para o grau de estabilidade que
apresentam as relações sexuais, sejam ou não sancionadas legalmente pelo
casamento. E isto é em nosso caso, e para os fins que temos aqui em vista,
particularmente importante, porque segundo o que se colige dos depoimentos
contemporâneos, quase se pode afirmar que, fora o caso das classes superiores,
o casamento constitui uma situação excepcional. Mas é preciso reconhecer que
muitas das situações legalmente irregulares se explicam por outros motivos que
a simples indisciplina sexual. Assim, em muitos casos, a dificuldade da
realização do casamento pela distância em que fica o sacerdote celebrante
nestas paróquias imensas, onde um padre só, e quase sempre pouco diligente, tem
de atender populações esparsas por dezenas de léguas de raio. Maior obstáculo à
realização do casamento, e mais frequente, é o seu custo; a este respeito, as
queixas contemporâneas abundam, e se está sempre às voltas com a questão. Ainda
há o preconceito de cor e de classe que impedia a regularização de muitas
situações extramatrimoniais; preconceito tão forte que pode levar até a
desenlaces extremos, como este caso trágico de um ex-governador de duas
capitanias, Fernando Delgado de Castilho, que, apaixonado por uma mulher de
condição humilde, de quem tivera vários filhos, preferiu suicidar-se a levá-la,
casada com ele, para o reino, de onde o chamavam.
Como se vê, seriam frequentes os casos da
vida em comum extraconjugal que não se poderiam só por isso, e para o efeito
que temos em vista, considerar como exemplos de indisciplina sexual. Aliás, de
tão frequentes que eram, acabam nem se notando, e a opinião pública os admitia
sem o menor constrangimento. Mesmo contudo sem formar nosso juízo sobre os
costumes sexuais da colônia com essa irregularidade aparente e tão
generalizada, temos outros elementos seguros para nos fixar sobre eles. “Os
brasileiros”, escreverá Hércules Florence em 1828, relatando a expedição
Langsdorff que acompanhou na qualidade de desenhista, “cujas amáveis qualidades
são tão características, encontram, inclinados como são aos prazeres, nas
mulheres do país facilidade de costumes, e em geral não pensam em se deixar
prender nos laços do matrimônio.” E acrescenta mais adiante que “as moças
filhas de pais pobres nem sequer pensam em casamento; não lhes passa pela
cabeça a possibilidade de arranjarem um marido sem o engodo do dote, e como
ignoram os meios de uma mulher poder viver do trabalho honesto e perseverante,
são facilmente arrastadas à vida licenciosa”. Florence repete quase
textualmente o que o marquês do Lavradio escrevia meio século antes: “As
mulheres, por se não empregarem e por falta de meios para se sustentarem, se
prostituem”.
Tocamos aqui um ponto que é o mais alarmante
sintoma da geral indisciplina de costumes que reina na sociedade colonial: a
larga disseminação da prostituição. Não há recanto da colônia em que não
houvesse penetrado, e em larga escala. Não falemos naturalmente das grandes e
médias aglomerações, onde o fato é mais natural, e sempre se encontrou em toda
parte. Observemos os pequenos, os mais insignificantes arraiais: quase toda a
sua população fixa é constituída, além dos vadios, de prostitutas. É um
depoimento este geral: “Nos mais humildes povoados”, testemunhará
Saint-Hilaire, “a mais vergonhosa libidinagem se mostra com uma imprudência que
não se encontraria nas cidades mais corrompidas da Europa”. Circunstância aliás
que explica o destino da parte feminina deste numeroso contingente da
população, cuja masculina já vimos noutro capítulo: os desocupados e vadios,
vivendo de expedientes, com um pé na ociosidade e outro no crime.
Formava a religião, para tamanha corrupção,
dique de alguma eficácia? Que a crença religiosa tem na vida colonial papel
considerável, já o notei em outro lugar. Esta aparece literalmente entranhada
por atos e cerimônias do culto. Folheando as Atas da Câmara de São
Paulo, por exemplo, não se virará página quase em que não se encontre algum
“termo de ajuntamento” para o fim de comparecer a Câmara incorporada a missas
importantes ou de ação de graças por isto ou aquilo, te-deuns,
procissões — “saimentos”, como se dizia. Mas daí para um verdadeiro espírito
religioso vai distância considerável. As festas religiosas indignavam o piedoso
Saint-Hilaire, que as chama de “irreverentes cerimônias, em que ridículas
palhaçadas se misturam àquilo que a religião católica apresenta de mais
respeitável”. Sobre o espírito religioso da colônia, o mesmo autor endossa a
opinião que ouviu do vigário de São João Del Rei, e que “os brasileiros eram
naturalmente religiosos, mas que sua religião não ia além dos sentidos; e
quanto aos pastores, estes parecem considerar a ofensa e o perdão como simples
funções maquinais”.
Não é assim de esperar dos mandamentos
religiosos um freio sério à corrupção de costumes. O culto fica nos ritos
externos, estes sim rigorosamente observados. Quanto à moral, era-se de uma
tolerância infinita. Coisa que não é para admirar: afora as causas gerais e
mais profundas que numa sociedade como a nossa da colônia, e cuja feição já
ficou bastante caracterizada nas páginas acima, tornam inviável uma compreensão
elevada da religião e do seu culto, cabe nisto ao clero, aliás, vítima também
das mesmas circunstâncias, uma boa dose de responsabilidades. Não cogitou ele
nunca, em conjunto, de levar a sério a instrução religiosa: o seu desleixo
neste terreno é lamentável, e parece que os sacerdotes não têm outra função na
colônia que presidir ou praticar os atos exteriores do culto e recolher os
tributos eclesiásticos. “Em muitos lugares”, afirma Saint-Hilaire, “a religião
se conserva só por tradição, pois os fiéis, afastados de centros povoados
importantes, passavam a vida num completo isolamento e sem o menor socorro
espiritual.” Nos outros lugares, embora presentes, os padres se ocupavam muito
mais em atividades privadas e com seus negócios, já o vimos anteriormente. E a
este abandono em que deixa a população, acrescenta o clero o exemplo tão
frequente de uma vida escandalosa e desregrada. O resultado de tudo isto não é
de admirar, portanto, que tenha sido aquela religião reduzida a um esqueleto de
práticas exteriores e maquinais vazio de qualquer sentimento elevado, e que é
ao que se reduziu o catolicismo na colônia.
Numa palavra, e para sintetizar o panorama da
sociedade colonial: incoerência e instabilidade no povoamento; pobreza e
miséria na economia; dissolução nos costumes; inércia e corrupção nos
dirigentes leigos e eclesiásticos.”
“Note-se que emprego esta expressão, “sistema
colonial”, não no sentido restrito do regime de colônia, de subordinação
política e administrativa à metrópole; mas no de conjunto de caracteres e elementos
econômicos, sociais e políticos que constituem a obra aqui realizada pela
colonização, e que deram no Brasil.”
“Podemos concluir relativamente ao conteúdo
da política lusitana, em particular no que diz respeito ao Brasil. Ela é antes
de tudo um “negócio” do rei, e todos os assuntos que se referem à administração
pública são vistos deste ângulo particular. Assim os problemas políticos e
administrativos que suscita a colônia americana são sempre abordados de um
ponto de vista estritamente financeiro. Para a política portuguesa,
não havia aqui uma sociedade ou uma economia de que se ocupar, fosse embora em
função dos interesses portugueses, mas tão somente “finanças” a cuidar.
Lendo-se a maior e mais importante parte da correspondência oficial e da legislação
relativa ao Brasil, percebe-se isto imediatamente. Aliás nunca se procurou
escondê-lo, e o Real Erário é o personagem que representa em nossa história
colonial, e sem nenhum disfarce, o maior papel.
Será esta a razão fundamental da incapacidade
da política portuguesa em realizar reformas substanciais que atingissem o seu
“sistema colonial”. Porque este sistema não podia ser outra coisa para ela
senão o que era: um simples setor, embora o essencial, daquela grande empresa
comercial que é a monarquia portuguesa, com o seu rei no balcão. Esta
organização que começa com o tráfico de escravos, marfim e ouro na costa da
África, continua com o da pimenta e das especiarias na Índia, e se encerra com
o do açúcar, ouro, diamantes e algodão no Brasil, que permitiria ao reino
ocupar dois continentes e povoar um terceiro, tornara-se obsoleta. Já não
funcionava normalmente, e os sacrifícios que se faziam para mantê-la apesar de
tudo recaíam inteiramente no último retalho que ainda lhe sobrava: a colônia
americana. Como reformá-la portanto, se isto destruiria a última base da
organização? Só com a substituição desta por outra qualquer. Mas isto não
ocorreria, e não podia ocorrer aos dirigentes de Portugal, porque seria a sua
autodestruição. Não ocorreria, pouco mais tarde, nem àqueles que derrubariam o
poder absoluto do rei, procurando, aliás, inutilmente, substituir-se a ele.
Verifica-se assim que o sistema colonial não
é uma criação arbitrária, reformável a seu talante. Suas raízes vão longe e
mergulham no mais profundo da monarquia portuguesa de que a colônia faz parte.
A sorte de uma estava ligada à outra. Como pois reformá-la senão pela separação
da colônia? Mas esta separação, se se tornava assim a primeira providência para
a reforma que se impunha — pelo menos hoje podemos afirmá-lo, porque estamos na
posição cômoda de quem vê tudo que se passou, antes e depois; mas naquele
tempo, e para os contemporâneos, a coisa não era tão simples e clara —, nem por
isso a “ideia” daquela separação surgiu assim espontaneamente, lampejo ex-nihilo de
um cérebro privilegiado e angustiado por um problema que pedia solução; e que,
partindo daí, se propagou como uma epidemia ou o incêndio de uma floresta, até
reunir um número suficiente de adeptos decididos e suficientemente valorosos
para se transformar, num passe de mágica, em ação.”
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