Editora: Companhia das Letras
ISBN: 978-85-3591-962-2
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 464
“Noutras regiões o sangue indígena
prepondera. São em geral as de vida econômica pouco ativa, ou onde a
colonização não tomou pé muito acentuado; o índio sobrou assim em estado
bastante puro. Quase sempre trata-se de remanescentes de antigas missões. É o
caso particularmente do Ceará, Rio Grande do Norte, menos a Paraíba, litoral
sul da Bahia (comarca de Ilhéus e capitania de Porto Seguro), Espírito Santo.
Coisa semelhante, embora com alguma
diferença, se passa nos altos sertões do Nordeste. Aí o fundo da população
também é todo de sangue indígena. Das numerosas tribos que habitavam esses
sertões antes da vinda dos colonizadores, e de que as principais e mais
numerosas são as dos cariris, boa parte foi aniquilada. Outra se refugiou no
Maranhão ou na Amazônia, onde a floresta oferecia melhor proteção que a rala
caatinga do seu habitat de origem. As sobras foram submetidas e aldeadas, e se
mestiçaram aos poucos com as outras raças. É ali, aliás, que parece ter sido
mais numeroso o cruzamento do índio com o negro. O sertão constituiu sempre, de
fato, refúgio para negros e mestiços provindos do litoral: escapos da justiça,
que sobre eles pesava mais que sobre as outras categorias da população, ou
recalcados pelo regime de vida desfavorável que lhes proporcionam os centros
mais ativos e policiados da costa. O sertão oferece a liberdade, o afastamento
de uma autoridade incômoda e pesada. Aí a lei é a do mais forte, do mais capaz,
e não a de classes favorecidas. Representa por isso uma válvula de escapamento
para todos os elementos inadaptáveis ou inadaptados que procuram fugir à vida
organizada dos grandes centros de povoamento da colônia. E deles, os mais
numerosos são naturalmente os que suportam o maior ônus de tal organização, os
que trazem estampados na pele o estigma de uma raça bastarda e oprimida: os
negros e seus derivados mais escuros. No sertão, confundidos com a população de
origem indígena, num pé de igualdade que as circunstâncias do meio impõem,
cruzam-se em larga escala, dando este tipo, o sertanejo, de tão
singular definição psicológica e étnica. A infusão do sangue branco não
representa nesse complexo senão parcela mínima; e tão diluído que sua
contribuição quase desaparece.”
“Os elementos fundamentais e característicos
da organização econômica da colônia são em todos os setores a grande
unidade produtora, seja agrícola, mineradora ou extrativa. Esta última,
móvel no espaço e instável no tempo, constituindo-se para cada expedição
colhedora e desfazendo-se depois; mas, ainda assim, grande unidade naquilo em
que reúne — e é isto que mais interessa —, um número relativamente avultado de
trabalhadores subordinados sob as ordens e no interesse do empresário. É isso
que precisamos sobretudo considerar, porque é nesse sistema de organização do
trabalho e da propriedade que se origina a concentração extrema da riqueza que
caracteriza a economia colonial. Concentração de que a presença na população de
30% de escravos, e mais outra porcentagem ignorada, mas certamente avultada, de
indivíduos desprovidos inteiramente de quaisquer bens e vegetando num nível de
vida material ínfimo, constitui a consequência mais imediata, ao mesmo tempo
que um índice seguro daquela organização econômica do país. [Mas índice apenas,
e não o mal originário em si, o que é bom notar porque nem sempre foi lembrado,
como não o foi pelos idealistas da Abolição que, libertando o escravo, pensaram
realizar outra coisa mais que uma simples modificação do estatuto jurídico e
nominal do trabalhador. O que mantinha a massa da população brasileira naquele
grau ínfimo de existência material (e, em consequência, moral) que era o seu
não era somente a escravidão, mas antes a organização fundamental do país, de
que o trabalho escravo não é senão um dos aspectos que, abolido, se substitui
por outro que continuou, com pouca diferença, mantendo o trabalhador e,
portanto, a massa da população naquele nível ínfimo de existência.]
São estes, em suma, os característicos
fundamentais da economia colonial brasileira: de um lado, essa organização da
produção e do trabalho, e a concentração da riqueza que dela resulta; do outro,
a sua orientação, voltada para o exterior e simples fornecedora do comércio
internacional. Nessas bases se lançou a colonização brasileira, e nelas se
conservará até o momento que ora nos interessa. Não há na realidade
modificações substanciais do sistema colonial nos três primeiros séculos de
nossa história. Mais não se fez nesse período de tempo que prolongá-lo e o
repetir em novas áreas ainda não colonizadas. (...) Em substância, nas suas
linhas gerais e caracteres fundamentais de sua organização econômica, o Brasil
continuava, três séculos depois do início da colonização, aquela mesma colônia
visceralmente ligada (já não falo da sua subordinação política e
administrativa) à economia da Europa; simples fornecedora de mercadorias para o
seu comércio. Empresa de colonos brancos acionada pelo braço de raças
estranhas, dominadas mas ainda não fundidas na sociedade colonial.
Este é o fato fundamental da economia
brasileira; e é interessante notar que, na teoria econômica da época, isto já
era não só afirmado, mas elevado à categoria de um postulado, uma necessidade
absoluta e insubstituível. Entre outros, possuímos a este respeito um escrito
precioso (Roteiro do Maranhão – desconhece-se seu autor), datado
provavelmente do último quartel do século XVIII, e que contém, a meu ver, a
mais lúcida síntese da economia brasileira de fins daquele século. O que o
autor em suma procura expor e demonstrar é que as colônias existem e são
estabelecidas em benefício exclusivo da metrópole: este benefício se realiza
pela produção e exportação, para ela, de gêneros de que necessita, não só para
si própria, mas para comerciar com o supérfluo no estrangeiro; que, finalmente,
o povoamento e organização das colônias deve subordinar-se a tais objetivos, e
não lhes compete se ocuparem em atividades que não interessem o comércio
metropolitano. Admite no máximo, mas como exceção apenas, a produção de certos
gêneros estritamente necessários à subsistência da população e que seria
impraticável trazer de fora.
Essa citação é interessante naquilo em que
seu autor, afirmando uma norma de política econômica, não faz mais que
reconhecer um fato real. Tal era, efetivamente, o conteúdo essencial da
economia brasileira. Os pequenos desvios da regra, ele os discute adiante; e
atribuindo-lhes os males de que sofria a colônia, previne contra eles a
política metropolitana. Não eram aliás muitos nem muito graves.
O autor dirigia-se a um bom entendedor: nunca
o reino e sua política tiveram outro pensamento que utilizar sua colônia no
sentido por ele apontado. O Brasil existia para fornecer-lhe ouro e diamantes,
açúcar, tabaco e algodão. Assim entendia as coisas e assim praticava. Todos os
atos da administração portuguesa com relação à colônia têm por objeto favorecer
aquelas atividades que enriqueciam o seu comércio, e pelo contrário opor-se a
tudo mais. Bastava que os colonos projetassem outra coisa que ocupar-se em tais
atividades, e lá intervinha violentamente a metrópole a chamá-los à ordem: o
caso das manufaturas, da siderurgia, do sal, de tantos outros, é bastante
conhecido.
O resultado dessa política, reduzindo o
Brasil à simples situação de produtor de alguns gêneros destinados ao comércio
internacional, acabou por se identificar a tal ponto com a sua vida, que já não
se apoiava unicamente em nossa subordinação de colônia, já não derivava apenas
da administração do reino. Orientada em tal sentido desde o início da
colonização, determinada por fatores mais profundos que simplesmente a política
deliberada do reino e que vão condicionar a formação e toda a evolução da
economia brasileira, esta última assim se organiza e tal se tornara, no fim da
era colonial, a natureza íntima de sua estrutura. A responsabilidade da
metrópole estava já então apenas em contribuir com sua ação soberana para
manter uma situação que se tornara, mesmo apesar dela, efetiva; mais forte
aliás que seus propósitos, fossem eles em sentido contrário, o que não era o
caso.
Tanto não era apenas o regime de colônia que
artificialmente mantinha tal situação que, abolido ele com a Independência,
vemo-la perpetuar-se. O Brasil não sairia tão cedo, embora nação soberana, de
seu estatuto colonial a outros respeitos, e em que o “Sete de Setembro” não
tocou. A situação de fato, sob o regime colonial, correspondia efetivamente à
de direito. E isso se compreende: chegamos ao cabo de nossa história colonial
constituindo ainda, como desde o princípio, aquele agregado heterogêneo de uma
pequena minoria de colonos brancos ou quase brancos, verdadeiros empresários,
de parceria com a metrópole, da colonização do país; senhores da terra e de
toda sua riqueza; e doutro lado, a grande massa da população, a sua substância,
escrava ou pouco mais que isso: máquina de trabalho apenas, e sem outro papel
no sistema. Pela própria natureza de tal estrutura, não podíamos ser outra
coisa mais que o que fôramos até então: uma feitoria da Europa, um simples
fornecedor de produtos tropicais para seu comércio.”
“Da economia brasileira, em suma, e é o que
devemos levar daqui, o que se destaca e lhe serve de característica fundamental
é: de um lado, na sua estrutura, um organismo meramente produtor, e constituído
só para isto: um pequeno número de empresários e dirigentes que senhoreiam
tudo, e a grande massa da população que lhe serve de mão de obra. Doutro lado,
no funcionamento, um fornecedor do comércio internacional dos gêneros que este
reclama e de que ela dispõe. Finalmente, na sua evolução, e como consequência
daquelas feições, a exploração extensiva e simplesmente especuladora, instável
no tempo e no espaço, dos recursos naturais do país. É isso a economia
brasileira que vamos encontrar no momento em que ora abordamos sua história.”
“A agricultura é o nervo econômico da
colonização. Com ela se inicia — se excluirmos o insignificante ciclo extrativo
do pau-brasil — e a ela deve a melhor porção de sua riqueza. Numa palavra, é propriamente
na agricultura que assentou a ocupação e exploração da maior e melhor parte do
território brasileiro. A mineração não é mais que um parêntese; de curta
duração, aliás. (...)
De nível bastante superior eram a agricultura
e as indústrias anexas em outras colônias tropicais, contando embora com
idêntica mão de obra. A razão da diferença está, não pode haver outra, na
natureza do colono português, e sobretudo no regime político e administrativo
que a metrópole impôs à sua colônia. Este fora sempre, pelo menos no último
século, de isolar o Brasil, mantê-lo afastado do mundo, e impedindo portanto
que aqui chegasse outra coisa qualquer que o reflexo do já baixo nível
intelectual do reino. Doutro lado, não supria o isolamento em que vivia a
colônia o mais rudimentar sistema de educação e instrução que fosse. Não se
podem considerar sistema de ensino as magras cadeiras de primeiras letras,
latim e grego que havia nalguns dos maiores centros da colônia. Criados aliás
só depois de 1776, e que funcionavam ao deus-dará, com professores mal pagos,
alunos indisciplinados e aulas desorganizadas. O nível cultural da colônia era
da mais baixa e crassa ignorância. Os poucos expoentes que se destacavam pairam
num outro mundo, ignorados por um país que não os podia compreender. E sobre
tudo isso pesava uma administração mesquinha, ciosa unicamente dos rendimentos
do fisco e dos particulares dessa chusma de burocratas incapazes e pouco
escrupulosos que a metrópole nos remetia para este lado do Atlântico.
No lugar próprio ver-se-á que não exagero. E
o que fica disto já dá boa margem para explicar o nível rudimentar das
principais atividades econômicas da colônia.”
“Acresce ainda que qualquer sistema de
produção extensiva na agricultura exige inversões vultosas de capital e
trabalhos preliminares e paralelos consideráveis. Tudo isso faltou ou não foi
possível realizar nos trópicos quando se começaram a explorá-los. A produção
contou neles, unicamente, com os recursos naturais abundantes, com a
exuberância da vegetação e as reservas secularmente acumuladas num solo virgem.
Mas tudo isso estava fadado a se esgotar. Nos primeiros séculos da colonização
não foi percebido que se estava desbaratando um capital, e não apenas colhendo
seus frutos. Não se percebeu ou não havia inconvenientes imediatos: sobrava o
espaço. É só aos poucos que se foi enxergando o alcance do mal. No Brasil, em
fins do século XVIII e princípios do seguinte, já se começa a senti-lo; e havia
consciência do que se passava. Os autores que citei acima, e outros que ainda
virão à baila, se referem com mais ou menos conhecimento de causa ao assunto.
Naturalmente cegam-nos noções erradas, sem contar que estavam diante de um fato
inteiramente novo, desconhecido no passado, quando a explicação dos trópicos
ainda estava em seus primeiros passos. Faltavam-lhes conhecimentos científicos
que só muito mais tarde se vulgarizariam. Não compreendem por isso, muito bem,
o mal que estava roendo a substância da colônia. Percebem seus efeitos, e
instintivamente sentem que alguma coisa há a fazer. Mas não sabem ao certo o
quê. (...)
A baixa produtividade da agricultura
brasileira (à época), e que acabará numa esterilização quase completa de áreas
extensas — a não ser, provisoriamente, no caso especial e restrito do café, em
que se recorreram às últimas obras acessíveis e aproveitáveis de terras virgens
—, não é, em última análise, senão consequência do que acima ficou dito. E ela
já era bem sensível no momento que nos ocupa.
Mas o que nos cabe aqui concluir é que o
baixo nível técnico das nossas atividades agrárias, e as consequências que
teria, não se devem atribuir unicamente à incapacidade do colono. Em muitos
casos, nos mais importantes mesmo, ele não podia fazer melhor. Poderia, é
certo, acompanhar os seus concorrentes de outras colônias, atingir o seu padrão
bastante superior. Mas seria pouco ainda. O mal era mais profundo. Estava no
próprio sistema, um sistema de agricultura extensiva que desbaratava com mãos
pródigas uma riqueza que não podia repor. E, com essa consideração, se de um
lado desculpamos a colonização, doutro a carregamos muito mais. Porque o
problema se torna muito mais difícil. Se não é simples educar os colonos e a
população em geral para que pudessem aperfeiçoar os seus processos e melhorar
sua técnica, muito mais custoso será modificar um sistema, o que exigiria
reformas profundas, econômicas e quiçá sociais.”
“Daí a originalidade amazonense, que fará da
região um exemplo singular na colônia; um outro Brasil. Desde a formação
étnica. O aproveitamento do índio tornou-se aí possível, o que só foi o caso em
pequena escala noutros lugares. No vale amazônico, as formas de atividade se
reduzem praticamente a duas: penetrar a floresta ou os rios para colher os
produtos ou capturar o peixe; e conduzir as embarcações que fazem todo o
transporte e constituem o único meio de locomoção. Para ambas estava o indígena
admiravelmente preparado. A colheita, a caça, a pesca, já são seus recursos no
estado da natureza; como pescador sobretudo suas qualidades são notáveis, e os
colonos só tiveram neste terreno de aprender com ele. Remador, também ele é
exímio: ninguém como ele suporta os longos trajetos, do raiar ao pôr do sol,
sem uma pausa; ninguém espreita e percebe como ele os caprichos da correnteza,
tirando dela o melhor partido; ninguém compreende melhor o emaranhado dos
igarapés. Empregado assim em tarefas que lhe são familiares, ao contrário do
que se passa na agricultura e na mineração — nesta última aliás nunca foi
ensaiado —, o índio se amoldou com muito mais facilidade à colonização e
domínio do branco. Permeou-a com seus contingentes, que, mais ou menos fundidos
na vida colonial, acabam dominando-a e dando-lhe o tom. Em nenhum outro lugar o
branco sofre tanto a influência dos indígenas; nos modos de vida, na própria psicologia.”
“A lista poderia ser alongada, mas o que aí
está serve para dar uma ideia do caráter da indústria colonial em princípios do
século XIX. Destaquemos dois setores mais importantes: as manufaturas têxteis e
do ferro. Em ambas a colônia contava com matéria-prima abundante e um mercado
local de relativa importância. Já assinalei estas indústrias nos grandes
domínios, incluídas na sua organização e produzindo só para eles. Mas,
iniciadas aí, sua tendência era para se libertarem destes estreitos limites
domésticos, tornarem-se autônomas, verdadeiras manufaturas próprias e
comercialmente organizadas. Isto é particularmente o caso da indústria têxtil.
Sobretudo em Minas Gerais, e também na capital do Rio de Janeiro, aparecem na
segunda metade do século XVIII manufaturas autônomas e relativamente grandes.
Dá-nos notícias delas o marquês do Lavradio, vice-rei do Rio de Janeiro, no
Relatório com que entregou o governo ao sucessor em 1779. Mas, ao mesmo tempo,
adverte contra o perigo de tais atividades, que não só faziam concorrência ao
comércio do reino, como tornavam os povos da colônia por demais independentes.
Enumera também os casos em que teve de intervir, suprimindo fábricas que se iam
tornando por demais notórias, como a de Pamplona, em Minas Gerais, e outras.
O alarma do vice-rei não caiu em surdos
ouvidos. Poucos anos depois, o alvará de 5 de janeiro de 1785 mandava extinguir
todas as manufaturas têxteis da colônia, com exceção apenas das de panos
grossos de algodão que serviam para vestimenta dos escravos ou se empregavam em
sacaria. Era o golpe de morte na indústria da colônia; e isto apesar da exceção
que a lei incluíra, à sombra da qual se pôde manter um fio de vida precária e
incerta. Com a transladação da Corte para o Rio de Janeiro, sorriram dias
melhores para a manufatura têxtil brasileira: o alvará de 1º de abril de 1808
revogou a proibição de 1785. Mas já então tinha ela de lutar com fatores
adversos muito sérios, de que não foi o menor a concorrência tão bem
aparelhada, industrial e comercialmente, dos tecidos ingleses, favorecidos pelo
franqueamento do comércio externo da colônia, e pouco depois, pelas vantagens
apreciáveis que lhes concedeu o tratado de 1810.
Quanto à indústria de ferro, não ficou ela
atrás na perseguição que lhe moveu a administração colonial. Favorecia-a em
certas regiões de Minas Gerais não só a abundância de minérios muito ricos e
facilmente exploráveis, como o alto preço do ferro e das ferramentas, onerados
como estavam por direitos elevadíssimos de entrada no país e na capitania, bem
como pela dificuldade de transporte da mercadoria.
Todas estas circunstâncias muito estimulavam
a indústria, proporcionando-lhe bastantes perspectivas; o consumo de ferro na
mineração era avultado. E não fosse a tenaz oposição oficial, ela teria com
certeza tomado algum vulto. Mas esta foi tremenda; o simples fato de saber
fundir o metal era suficiente para tornar alguém suspeito de ideias extremadas
e subversivas, sujeitando a vítima a toda sorte de perseguições. Temia-se a
concorrência numa mercadoria, que embora não fosse natural do reino, dava
grandes lucros ao seu comércio; e também a sempre temida independência
econômica da colônia, prelúdio da política. (...)
Em suma, achava-se ainda a indústria
brasileira, em princípios do século XIX, em seus primeiros e mais modestos
passos. É mesmo só com esforço de assimilação das rudimentares atividades com o
que entendemos propriamente por “indústria”, que elas comportam a designação.
Vimos a parte de responsabilidade que cabe por isto à política metropolitana, e
que não é pequena. Mas seria um erro atribuí-la unicamente às leis e atos
oficiais que não constituem senão um aspecto, e dos menos profundos, do sistema
geral que presidiu à colonização do Brasil. Se a situação política e
administrativa do país, simples colônia de uma metrópole ciosa de seus
privilégios e de vistas muito pouco largas, constituiu óbice muito sério
imposto ao desenvolvimento industrial dele, muito mais contribuiu para isto o
seu regime econômico, matéria em que não teríamos aqui senão de repisar
considerações já feitas acima, e que mostram os estreitos horizontes desta
colônia de alguns gêneros tropicais. E tanto é assim que, libertado embora da
dominação portuguesa e de suas leis opressivas, mas não tendo reformado
sensivelmente as bases em que assentava sua estrutura, o Brasil continua neste
terreno a marcar passo. Se progressos houve, eles são tão particulares e de
pequena monta que se perdem no conjunto da vida nacional, dominada ainda
inteiramente por outras atividades... ou antes semiatividades. Anulam-se
sobretudo num momento em que o progresso industrial do mundo marcha a passos de
gigante, e a ciência põe a serviço dela, cada dia, mais um invento, uma
técnica, uma possibilidade. Se tomadas as devidas proporções, a nossa minúscula
indústria colonial não representaria para sua época mais que esses simulacros
de atividades manufatureiras que tivemos no século XIX.”
“Mais de um quarto pelo menos do comércio
importador da colônia era pois constituído de escravos. É mais uma
circunstância, digna de nota, que vem comprovar o caráter da economia colonial:
o escravo negro quer dizer sobretudo açúcar, algodão, ouro, gêneros que se
exportam.”
“Certo ou falso que “o caminho cria o tipo
social”, o fato é que no Brasil uma coisa é sem dúvida verdadeira: a influência
considerável que as comunicações e transportes exercem sobre a formação do
país. As distâncias enormes, os obstáculos opostos ao trânsito num território
como o nosso, de relevo acidentado, de coberturas florestais, nos pontos
estratégicos, de difícil penetração, com uma linha costeira tão parcamente
endentada e rios, com poucas exceções, de curso cheio de acidentes e traçado
infeliz para os rumos que a colonização tomou; de tudo isto vão resultar
comunicações difíceis e morosas que imprimem às relações da colônia um ritmo
lento e retardado; e que terá tido com toda segurança uma boa dose de
responsabilidade neste tom geral de vida frouxa que caracteriza o país.
O desenvolvimento do sistema de comunicações
da colônia acompanha naturalmente a progressão do povoamento. Este se instala
primeiro no litoral, e partindo daí, penetra o interior, ou progressivamente,
ou espalhando por ele núcleos mais ou menos afastados do mar. As vias de
comunicações têm esta mesma direção inicial; a elas corresponderá, mais tarde,
uma outra semelhante, mas em sentido oposto, que, partindo daqueles núcleos já
constituídos no interior, procura saída mais rápida ou mais cômoda para o
litoral.
Umas e outras destas vias penetradoras que
articulam e ligam o litoral com o interior, todas elas independentes entre si,
vão dar numa disposição fragmentária de comunicações em que cada qual, por si e
sem conexão direta com as demais, forma um pequeno sistema autônomo,
constituído de seus dois extremos, núcleos litorâneo e interior, ligados pela
via e levando uma vida mais ou menos à parte. Estes sistemas se sucedem de
norte a sul ao longo de toda costa brasileira, desde o mais setentrional,
instalado na bacia amazônica, até o último ao sul do Rio Grande. Eles se articulam
entre si a princípio unicamente pela via marítima, que é a que mantém a unidade
do todo. Mas à medida que a penetração se aprofunda, e com ela as vias que a
acompanham, estas, embora partindo de pontos do litoral às vezes muito
apartados um do outro, acabam convergindo no interior. Isso se deve a duas
circunstâncias geográficas particulares: em primeiro lugar, à configuração
geral do território brasileiro, limitado por uma linha costeira que muda
abruptamente de direção na altura de 50º Lat. S., passando de noroeste a
nordeste. O outro fator de convergência das linhas penetradoras é o curso dos
rios, e pois a orientação do relevo, que dirigiram a marcha do povoamento, e
que apresentam esta peculiaridade de se aproximarem nas cabeceiras das bacias respectivas.”
“Naturalmente, o que antes de mais nada, e
acima de tudo, caracteriza a sociedade brasileira de princípios do século XIX é
a escravidão. Em todo lugar onde encontramos tal instituição, aqui como
alhures, nenhuma outra levou-lhe a palma na influência que exerce, no papel que
representa em todos os setores da vida social. Organização econômica, padrões
materiais e morais, nada há que a presença do trabalho servil, quando alcança
as proporções de que fomos testemunhas, deixe de atingir; e de um modo
profundo, seja diretamente, seja por suas repercussões remotas. Não insistirei
aqui sobre a influência material e moral da escravidão no seu caráter geral, o
que a história e a sociologia já registraram tantas vezes, seja no tempo, seja
no espaço. A literatura sobre o assunto é ampla, e nada lhe poderíamos
acrescentar sem repisar matéria fartamente debatida e conhecida. Ficarei aqui
apenas no que é mais peculiar ao nosso caso. Porque a escravidão brasileira tem
característicos próprios; aliás, os mais salientes, tem-nos em comum com todas
as colônias dos trópicos americanos, nossas semelhantes; e são tais
característicos, talvez mais ainda que outros comuns à escravidão em geral, que
modelaram a sociedade brasileira.
A escravidão americana não se filia, no
sentido histórico, a nenhuma das formas de trabalho servil que vêm, na
civilização ocidental, do mundo antigo ou dos séculos que o seguem; ela deriva
de uma ordem de acontecimentos que se inaugura no século XV com os grandes
descobrimentos ultramarinos, e pertence inteiramente a ela. O trabalho servil,
tendo atingido no mundo antigo proporções consideráveis, declinara em seguida,
atenuando-se neste seu derivado que foi o servo da gleba, para afinal se
extinguir por completo em quase toda a civilização ocidental. Com o
descobrimento da América, ele renasce das cinzas com um vigor extraordinário.
Esta circunstância precisa ser particularmente notada. O fato de se tratar, no
caso da escravidão americana, do renascimento de uma instituição que parecia para
sempre abolida do Ocidente, tem uma importância capital. A ele se filia um
conjunto de consequências que farão do instituto servil, aqui na América, um
processo original e próprio, com repercussões que somente vistas de tal ângulo
se poderão avaliar.
Ressalta isso da comparação que podemos fazer
daqueles dois momentos históricos da escravidão: o do mundo antigo e o do
moderno. No primeiro, com o papel imenso que representa, o escravo não é senão
a resultante de um processo evolutivo natural cujas raízes se prendem a um
passado remoto; e ele se entrosa por isso perfeitamente na estrutura material e
na fisionomia moral da sociedade antiga. Figura nela de modo tão espontâneo,
aparece mesmo tão necessário e justificável como qualquer outro elemento
constituinte daquela sociedade. É neste sentido que se compreende a tão citada
e debatida posição escravista de um filósofo como Aristóteles, que, pondo-se
embora de parte a apreciação que dele se possa fazer como pensador, representa
no entanto, nos seus mais elevados padrões, o modo de sentir e de pensar de uma
época. A escravidão na Grécia ou em Roma seria como o salariado em nossos dias:
embora discutida e seriamente contestada na sua legitimidade por alguns,
aparece contudo aos olhos do conjunto como qualquer coisa de fatal, necessário
e insubstituível.
Coisa muito diferente se passará com a
escravidão moderna, que é a nossa. Ela nasce de chofre, não se liga a passado
ou tradição alguma. Restaura apenas uma instituição justamente quando ela já
perdera inteiramente sua razão de ser, e fora substituída por outras formas de
trabalho mais evoluídas. Surge assim como um corpo estranho que se insinua na
estrutura da civilização ocidental, em que já não cabia. E vem contrariar-lhe
todos os padrões morais e materiais estabelecidos. Traz uma revolução, mas nada
a prepara. Como se explica então? Nada mais particular, mesquinho, unilateral.
Em vez de brotar, como a escravidão do mundo antigo, de todo o conjunto da vida
social, material e moral, ela nada mais será que um recurso de oportunidade de
que lançarão mão os países da Europa a fim de explorar comercialmente os vastos
territórios e riquezas do Novo Mundo. É certo que a escravidão americana teve
na península seu precursor imediato no cativeiro dos mouros, e logo depois, dos
negros africanos, que as primeiras expedições ultramarinas dos portugueses
trouxeram para a metrópole como presas de guerra ou fruto de resgates. Mas não
foi isto mais que um primeiro passo, prelúdio e preparação do grande drama que
se passaria na outra margem do Atlântico. É aí que verdadeiramente renascerá,
em proporções que nem o mundo antigo conhecera, o instituto já condenado e
praticamente abolido.
Por este recurso de que gananciosamente
lançou mão, pagará a Europa um pesado tributo. Podemos repetir o conceito que
exprime a propósito John Kellis Ingram (em Slavery): “Não muito
depois do fim da servidão nas comunidades mais avançadas, vem à luz o moderno
sistema de escravidão colonial, que, em vez de ser o resultado espontâneo de
necessidades sociais, e servir a necessidades temporárias do desenvolvimento
humano, era política e moralmente uma aberração monstruosa”. Não é num terreno
de “moral absoluta” que precisamos ou devemos nos colocar para fazer o juízo da
escravidão moderna. Já sem falar na devastação que provocará, tanto das
populações indígenas da América como das do continente negro, o que de mais
grave determinará, entre os povos colonizadores e sobretudo em suas colônias do
Novo Mundo, é o fato de vir a nova escravidão desacompanhada, ao contrário do
que se passara no mundo antigo, de qualquer elemento construtivo, a não ser num
aspecto restrito, puramente material, da realização de uma empresa de comércio:
um negócio apenas, embora com bons proveitos para seus empreendedores. E por
isto, para objetivo tão unilateral, puseram os povos da Europa de lado todos os
princípios e normas essenciais em que se fundava a sua civilização e cultura. O
que isto representou para eles, no correr do tempo, de degradação e dissolução,
com repercussões que se vão afinal manifestar no próprio terreno do progresso e
da prosperidade material, não foi ainda bem apreciado e avaliado, nem cabe aqui
abordar o assunto. Mas terá sido este um dos fatores, e dos de primeiro plano,
do naufrágio da civilização ibérica, tanto de uma como de outra de suas duas
nações. Foram elas que mais se engajaram naquele caminho; serão elas também
suas principais vítimas (A Inglaterra também teve papel proeminente no
restabelecimento da escravidão; e sabe-se que durante séculos seus comerciantes
tiveram o quase monopólio do tráfico negreiro, pelo qual a nação chegou até a
tomar armas. Mas não sofreu tão fundamente os efeitos danosos da escravidão,
porque seu papel foi sobretudo este de intermediário. O trabalho servil nunca
assentou pé na Inglaterra propriamente).
Muito mais grave, contudo, foi a escravidão
para as nascentes colônias americanas. Elas se formam neste ambiente deletério
que ela determina; o trabalho servil será mesmo a trave mestra de sua
estrutura, o cimento com que se juntarão as peças que as constituem. Oferecerão
por isso um triste espetáculo humano; e o exemplo do Brasil, que vamos retraçar
aqui, se repete mais ou menos idêntico em todas elas.
Mas há outra circunstância que vem
caracterizar ainda mais desfavoravelmente a escravidão moderna: é o elemento de
que se teve de lançar mão para alimentá-la. Foram eles os indígenas da América
e o negro africano, povos de nível cultural ínfimo comparado ao de seus
dominadores (esta observação não seria tão exata com relação a certos indígenas
americanos, como os do México e do altiplano andino, se os conquistadores não
tivessem, de início e com ferocidade quase sem precedente, feito tábua rasa de
todos seus valores culturais). Aqui ainda, a comparação com o que ocorreu no
mundo antigo é ilustrativa. Neste último, a escravidão se forneceu de povos e raças
que muitas vezes se equiparam a seus conquistadores, se não os superam.
Contribuíram assim para estes com valores culturais de elevado teor. Roma não
teria sido o que foi se não contasse com o que lhe trouxeram seus escravos,
recrutados em todas as partes do mundo conhecido, e que nela concentram o que
então havia de melhor e culturalmente mais elevado. Muito lhes deveu e muito
deles aprendeu a civilização romana. O escravo não foi nela a simples máquina
de trabalho bruto e inconsciente que é o seu sucessor americano.
Na América, pelo contrário, a que assistimos?
Ao recrutamento de povos bárbaros e semibárbaros, arrancados do seu habitat natural
e incluídos, sem transição, numa civilização inteiramente estranha. E aí, que
os esperava? A escravidão no seu pior caráter, o homem reduzido à mais simples
expressão, pouco senão nada mais que o irracional: “instrumento vivo de
trabalho”, o chamará Perdigão Malheiro. Nada mais se queria dele, e nada mais
se pediu e obteve que a sua força bruta, material. Esforço muscular primário,
sob a direção e açoite do feitor. Da mulher, mais a passividade da fêmea na
cópula. Num e noutro caso, o ato físico apenas, com exclusão de qualquer outro
elemento ou concurso moral. A “animalidade” do homem, não a sua “humanidade”.
A contribuição do escravo preto ou índio para
a formação brasileira é, além daquela energia motriz, quase nula. Não que
deixasse de concorrer, e muito, para a nossa “cultura”, no sentido amplo em que
a antropologia emprega a expressão; mas é antes uma contribuição passiva,
resultante do simples fato da presença dele e da considerável difusão do seu
sangue, que uma intervenção ativa e construtora. O cabedal de cultura que traz
consigo da selva americana ou africana, e que não quero subestimar, é abafado,
e se não aniquilado, deturpa-se pelo estatuto social, material e moral a que se
vê reduzido seu portador. E aponta por isso apenas, muito timidamente, aqui e
acolá. Age mais como fermento corruptor da outra cultura, a do senhor branco
que se lhe sobrepõe. (Isto é, entre outros, particularmente o caso do
sincretismo religioso que resultou do amálgama de catolicismo e paganismo, em
doses várias, que formaria o fundo religioso de boa parte do Brasil. Religião
neoafricana, mais que qualquer outra coisa, e que se perdeu à grandeza e
elevação do cristianismo, também não conservou a espontaneidade e riqueza de
colorido das crenças negras em seu estado nativo.)
É a esta passividade aliás das culturas
negras e indígenas no Brasil que se deve o vigor com que a do branco se impôs e
predominou inconteste, embora fosse muito reduzida, relativamente à das outras
raças, a sua contribuição demográfica. O negro e o índio teriam tido certamente
outro papel na formação brasileira, e papel amplo e fecundo, se diverso tivesse
sido o rumo dado à colonização; se se tivesse procurado neles, ou aceitado uma
colaboração menos unilateral e mais larga que a do simples esforço físico. Mas
a colonização brasileira se processa num plano acanhado; outro objetivo não
houve que utilizar os recursos naturais do seu território para a produção
extensiva e precipitada de um pequeno número de gêneros altamente remunerados
no mercado internacional. Nunca se desviou de tal rumo, fixado desde o primeiro
momento da conquista; e parece que não havia tempo a perder, nem sobravam
atenções para empresas mais assentes, estáveis, ponderadas. Só se enxergava uma
perspectiva: a remuneração farta do capital que a Europa aqui empatara. A terra
era inexplorada, e seus recursos, acumulados durante séculos, jaziam à flor do
solo. O trabalho para tirá-los de lá não pedia grandes planos nem impunha
problemas complexos: bastava o mais simples esforço material. É o que se exigiu
de negro e de índio que se incumbiriam da tarefa.
Correndo parelhas com esta contribuição que
se impôs às raças dominadas, ocorre outra, este subproduto da escravidão
largamente aproveitado: as fáceis carícias da escrava para a satisfação das
necessidades sexuais do colono privado de mulheres de sua raça e categoria.
Ambas as funções se valem do ponto de vista moral e humano; e ambas excluem,
pela forma com que se praticaram, tudo que o negro ou o índio poderiam ter
trazido como valor positivo e construtor de cultura.
Uma última circunstância diferencia e
caracteriza a escravidão americana: é a diferença profunda de raças que separa
os escravos de seus senhores. Em algumas partes da América, tal diferença
constituiu, como se sabe, obstáculo intransponível à aproximação das classes e
dos indivíduos, e reforçou por isso consideravelmente a rigidez de uma estrutura
que o sistema social, em si, já tornava tão estanque internamente. Mas não me
ocuparei destas colônias, porque entre nós a aproximação se realizou e em
escala apreciável. Isto contudo dentro de limites que apesar de tudo não são
amplos, pelo menos até o momento histórico que nos interessa aqui. Existiu
sempre um forte preconceito discriminador das raças, que se era tolerante e
muitas vezes se deixava iludir, fechando os olhos a sinais embora bem sensíveis
da origem racial dos indivíduos mestiços, nem por isso deixou de se manter, e
de forma bem marcada, criando obstáculos muito sérios à integração da sociedade
colonial num conjunto se não racial, o que seria mais demorado, pelo menos
moralmente homogêneo. Não discutirei aqui o preconceito de raça e de cor, nem
sua origem; se ligado a certos caracteres psicológicos inatos de ordem estética
ou outra, ou se fruto apenas de situações e condições sociais particulares. O
fato incontestável, aceite-se qualquer daqueles pontos de vista, é que a
diferença de raça, sobretudo quando se manifesta em caracteres somáticos bem
salientes, como a cor, vem, se não provocar — o que é passível de dúvidas bem
fundamentadas, e a meu ver incontestáveis —, pelo menos agravar uma
discriminação já realizada no terreno social. E isto porque empresta uma marca
iniludível a esta diferença social. Rotula o indivíduo, e contribui assim para
elevar e reforçar as barreiras que separam as classes. A aproximação e fusão se
tornam mais difíceis; acentua-se o predomínio de uma sobre a outra.
Isto não exclui, e sabemos que não exclui
entre nós, uma circulação intrassocial apreciável, que permitiu aqui a elevação
a posições de destaque, e isto ainda na colônia, de indivíduos de indiscutível
origem negra. Índia também, esta claro; mas o caso é muito menos de se
destacar, porque o preconceito não foi aí excessivamente rigoroso, como no caso
do africano. Mas, aceitando aquela elevação, não se eliminava o preconceito.
Contornava-se com um sofisma que já lembrei acima, um “branqueamento” aceito e
reconhecido. Aceitava-se uma situação criada pela excepcional capacidade de
elevação de um mestiço particularmente bem-dotado; mas o preconceito era
respeitado. Aliás esta elevação social de indivíduos de origem negra só se
admitia nos de tez mais clara, os brancarrões, em que o sofisma do
branqueamento não fosse por demais grosseiro. O negro ou mulato escuro, este
não podia abrigar quaisquer esperanças, por melhores que fossem suas aptidões:
inscrevia-se nele, indelevelmente, o estigma de uma raça que, à força de se
manter nos ínfimos degraus da escala social, acabou confundindo-se com eles.
“Negro” ou “preto” são na colônia, e sê-lo-ão ainda por muito tempo, termos
pejorativos; empregam-se até como sinônimos de “escravo”. E o indivíduo daquela
cor, mesmo quando não o é, trata-se como tal. A este respeito, Luccock refere
um caso ilustrativo. Necessitando certa vez do auxílio de dois pretos livres
que se encontravam em companhia, forçou-os, diante de sua relutância e com
auxílio de outras pessoas, à ajuda pedida. Fê-lo, assim o afirma procurando
justificar-se, levado por contingências extremas, porém os seus escrúpulos não
foram partilhados pelos brasileiros que o ajudaram, e que agiram com a maior
naturalidade, como se estivessem no uso de um direito indiscutível.
O papel da simples cor na discriminação das
classes e no tratamento recíproco que elas se dispensam reflete-se até nos usos
e costumes legais. Observou Perdigão Malheiro que, nos leilões de escravos, se
os lances “a bem da liberdade” — que são os feitos sob promessa de alforria —
excluíam em regra qualquer outro, isto era, no caso de escravos claros, uma
norma absoluta. Acrescenta o mesmo autor que era notória a repugnância contra a
escravidão de gente de cor clara; e chega até ao exagero de concluir que, se
não fora a cor escura dos escravos, os costumes brasileiros não tolerariam mais
o cativeiro. É verdade que ele escrevia isto em 1867, quando a escravidão já
perdera muito de sua força moral; e que os conceitos citados partem de um
escritor notoriamente simpático à causa da liberdade — seu grande livro (A
escravidão no Brasil, que é clássico, e até hoje não foi igualada por
outro) não é aliás senão um libelo a favor da liberdade. O seu depoimento,
entretanto, conserva assim mesmo muito do seu valor, e comprova o quanto a
simples cor atua no sentido de rebaixar os indivíduos da raça dominada; faz
entrever também como seria mais dura e áspera a escravidão quando, como se dava
entre nós, à discriminação social se acrescenta este caráter marcado e iniludível.
Em suma, verifica-se por tudo que acabamos de
ver que na escravidão, tal como se estabelece na América, em particular no
Brasil, de que trato aqui, concorrem circunstâncias especiais que acentuam seus
caracteres negativos, agravando os fatores moralmente corruptores e deprimentes
que ela, por si só, já encerra. Incorporou à colônia, ainda em seus primeiros
instantes, e em proporções esmagadoras, um contingente estranho e heterogêneo
de raças que beiravam ainda o estado de barbárie, e que, no contato com a
cultura superior de seus dominadores, se abastardaram por completo. E o
incorporaram de chofre, sem nenhum estágio preparatório. No caso do indígena,
ainda houve a educação jesuítica e de outras ordens, que, com todos seus
defeitos, trouxe todavia um começo de preparação de certo alcance. Mesmo depois
da expulsão dos jesuítas, o que desfalcou notavelmente a obra missionária, pois
as demais ordens não souberam ou não puderam suprir a falta, o estatuto dos
índios, embora longe de corresponder ao que deveria ter sido em face da
legislação vigente, e cujas intenções eram justamente de amparar e educar este
selvagem que se queria integrar na colonização, ainda contribuiu para manter o
indígena afastado das formas mais deprimentes da escravidão; e se não lhe proporcionou
grandes vantagens e progressos materiais, concedeu-lhe um mínimo de proteção e
de estímulo. Mas para o negro africano, nada disto ocorreu. As ordens
religiosas, solícitas em defender o índio, foram as primeiras a aceitar, a
promover mesmo a escravidão africana, a fim de que os colonos, necessitados de
escravos, lhes deixassem livres os movimentos no setor indígena. O negro não
teve no Brasil a proteção de ninguém. Verdadeiro “pária” social, nenhum gesto
se esboçou em seu favor. E se é certo que os costumes e a própria legislação
foram com relação a ele mais benignos na sua brutalidade escravista que em
outras colônias americanas, tal não impediu contudo que o negro fosse aqui
tratado com o último dos descasos no que diz respeito à sua formação moral e
intelectual, e preparação para a sociedade em que à força o incluíram. Estas
não iam além do batismo e algumas rudimentares noções de religião católica,
mais decoradas que aprendidas, e que deram apenas para formar, com suas crenças
e superstições nativas, este amálgama pitoresco, mas profundamente corrompido,
incoerente e ínfimo como valor cultural, que, sob o nome de “catolicismo”, mas
que dele só tem o nome, constitui a verdadeira religião de milhões
de brasileiros; e que, nos seus caracteres extremos, Quirino, Nina Rodrigues e
mais recentemente Artur Ramos trouxeram à luz da sombra em que um hipócrita e
absurdo pudor a tinham mantido.
As raças escravizadas e assim incluídas na
sociedade colonial, mal preparadas e adaptadas, vão formar nela um corpo estranho
e incômodo. O processo de sua absorção se prolongará até nossos dias, e está
longe de terminado. Não se trata apenas da eliminação étnica que preocupa tanto
os “racistas” brasileiros, e que, se demorada, se fez e ainda se faz normal e
progressivamente sem maiores obstáculos. Não é este aliás o aspecto mais grave
do problema, aspecto mais de “fachada”, estético, se quiserem: em si, a mistura
de raças não tem para o país importância alguma, e de certa forma até poderá
ser considerada vantajosa. O que pesou muito mais na formação brasileira é o
baixo nível destas massas escravizadas que constituirão a imensa maioria da
população do país. No momento que nos ocupa, a situação era naturalmente muito
mais grave. O tráfico africano se mantinha, ganhava até em volume, despejando
ininterruptamente na colônia contingentes maciços de populações semibárbaras. O
que resultará daí não poderia deixar de ser este aglomerado incoerente e
desconexo, mal amalgamado e repousando em bases precárias que é a sociedade
colonial brasileira. Certas consequências serão mais salientes: assim o baixo
teor moral nela reinante, que se verifica entre outros sintomas na relaxação
geral de costumes, assinalada e deplorada por todos os observadores
contemporâneos, nacionais e estrangeiros. Bem como o baixo nível e ineficiência
do trabalho e da produção, entregues como estavam a pretos boçais e índios
apáticos. O ritmo retardado da economia colonial tem aí uma de suas principais
causas.
Assim no campo como na cidade, no negócio
como em casa, o escravo é onipresente. Torna-se muito restrito o terreno
reservado ao trabalho livre, tal o poder absorvente da escravidão. E a
utilização universal do escravo nos vários misteres da vida econômica e social
acaba reagindo sobre o conceito do trabalho, que se torna ocupação pejorativa e
desabonadora.
No campo é a mesma coisa; nenhum homem livre
pegaria da enxada sem desdouro, e por isso, dirá Vilhena, “havendo embora
terras abundantes, carecem de propriedade até mesmo aqueles que poderiam ser
proprietários, pois não tendo 150 mil réis para comprar cada um negro que
trabalhe, o mesmo é ser proprietário que o não ser”. Nessas condições, não é de
admirar que tão pequena margem de ocupações dignas se destine ao homem livre.
Se não é ou não pode ser proprietário ou fazendeiro, senhor de engenho ou
lavrador, não lhe sobrarão senão algumas raras ocupações rurais (na indústria
pastoril, em particular na dos sertões do Nordeste, vimos que o trabalho livre
é mais comum; mas trata-se de um setor de poucas ocupações, em que a mão de
obra é escassa. Além disto, pelas condições peculiares em que se realiza, está
mais ou menos reservada exclusivamente à população nativa local) — feitor,
mestre dos engenhos etc.; algum ofício mecânico que a escravidão não
monopolizou e que não se torna indigno dele pela brancura excessiva de sua
pele; as funções públicas, se, pelo contrário, for suficientemente branco; as
armas ou o comércio, negociante propriamente ou caixeiro. Nesta última
profissão, ainda esbarra com outra restrição: o comércio é privilégio dos
“reinóis”, os nascidos no reino. Os naturais da colônia encontram aí as portas
fechadas, não por determinações legais ou preconceitos de qualquer natureza,
mas por um uso estabelecido de longa data, e ciosamente guardado pelos primeiros
instalados, justamente os reinóis, que por convenção tácita, mas rigorosa,
conservam para si e seus patrícios um monopólio de fato. “Os vindos do Reino”,
escreverá o marquês do Lavradio, vice-rei do Rio de Janeiro, “não cuidam em
nenhuma outra cousa que em se fazerem senhores do comércio que aqui há e não
admitirem filho nenhum da terra a caixeiros por donde possam algum dia serem
negociantes; e daí abrangerem em si tudo que é comércio.” Situação muito séria
e prenhe das mais graves consequências. Sobram ainda, para os indivíduos livres
da colônia, as profissões liberais — advogados, cirurgiões etc. São
naturalmente ocupações por natureza de acesso restrito. Exigem aptidão
especial, preparos e estudos que não se podem fazer na colônia, e portanto recursos
de certa monta.
Restará a Igreja. Esta sim oferece
oportunidades mais amplas. Os estudos se podiam fazer em grande parte no
Brasil; e mesmo completar, sobretudo com relação aos seculares. Os seminários
foram cronologicamente os primeiros institutos de ensino superior da colônia.
Aliás, os candidatos ao estado eclesiástico que demonstrassem aptidões
encontravam sempre amparo, e não faltava quem lhes custeasse os estudos, aqui
ou na Europa. É certo que o preconceito de cor também tinha aí o seu lugar, e quem
não fosse de pura origem branca necessitava dispensa especial. Mais uma questão
de forma: o estudante com reais qualidades acabava sempre vencendo. Não foi
este o caso de Luís Antônio da Silva e Sousa, depois poeta e historiador de
algum nome, mestiço de origem humilíssima, e que, apesar de ver fechadas no
Brasil as portas da Igreja, acabou obtendo dispensa necessária em Roma, e com o
auxílio do próprio ministro português junto ao Vaticano. Aliás os mestiços são
numerosos no clero brasileiro. A Igreja sempre honrou no Brasil sua tradição
democrática, a maior força com que contou para a conquista espiritual do
Ocidente. O que ocorreu na Europa medieval se repetiria na colonização do
Brasil: a batina se tornaria o refúgio da inteligência e cultura; e isto porque
é sobretudo em tal base que se faria a seleção para o clero. Ele foi assim,
durante a nossa fase colonial, a carreira intelectual por excelência, e a única
de perspectivas amplas e gerais; e quando, realizada a Independência, se teve
de recorrer aos nacionais para preencher os cargos políticos do país, é
sobretudo nele que se recrutarão os candidatos. A Igreja tem assim na colônia
um papel importante como vazão para colocações.
Em suma, o que se verifica é que os meios de
vida, para os destituídos de recursos materiais, são na colônia escassos.
Abre-se assim um vácuo imenso entre os extremos da escala social: os senhores e
os escravos; a pequena minoria dos primeiros e a multidão dos últimos. Aqueles
dois grupos são os dos bem classificados da hierarquia e na estrutura social da
colônia: os primeiros serão os dirigentes da colonização nos seus vários
setores; os outros, a massa trabalhadora. Entre estas duas categorias
nitidamente definidas e entrosadas na obra da colonização comprime-se o número,
que vai avultando com o tempo, dos desclassificados, dos inúteis e inadaptados;
indivíduos de ocupações mais ou menos incertas e aleatórias ou sem ocupação
alguma. Aquele contingente vultoso em que Couty mais tarde veria o “povo
brasileiro”, e que pela sua inutilidade daria como inexistente, resumindo a
situação social do país com aquela sentença que ficaria famosa: “Le Brésil n’a
pas de peuple” (“O Brasil não tem povo”). (...)
Finalmente, a última parte, a mais degradada,
incômoda e nociva, é a dos desocupados permanentes, vagando de léu em léu à
cata do que se manter e que, apresentando-se a ocasião, enveredam francamente
pelo crime. É a casta numerosa dos “vadios”, que nas cidades e no campo é tão
numerosa, e de tal forma caracterizada por sua ociosidade e turbulência, que se
torna uma das preocupações constantes das autoridades e o leitmotiv de
seus relatórios; e não se ocupam menos dela outros observadores contemporâneos
da vida colonial. O vice-rei Luís de Vasconcelos se queixa deles amargamente, e
urge providências ao deixar o governo em 1789. Vilhena lhes consagra longas
páginas de suas cartas; o brigadeiro Cunha Matos considera-os um dos maiores
flagelos da capitania de Goiás; e o presidente da Mesa de Inspeção do Rio de
Janeiro, o desembargador Rocha Gameiro, dissertando sobre a agricultura da
colônia, indica os vadios como um dos obstáculos ao seu desenvolvimento. Os
vadios não escapam também à observação dos viajantes estrangeiros:
Saint-Hilaire e Martius referem-se a eles amiúde, e sentiram muito bem que não
se trata de casos esporádicos, mas de uma verdadeira endemia social.
É entre estes desclassificados que se
recrutam os bandos turbulentos que infestam os sertões, e ao abrigo de uma
autoridade pública distante ou fraca hostilizam e depredam as populações
sedentárias e pacatas; ou pondo-se a serviço de poderosos e mandões locais,
servem os seus caprichos e ambições nas lutas de campanário que eles entre si
sustentam; como estes Feitosas do Ceará, que durante anos levam o interior da
capitania a ferro e fogo, e só foram dominados e presos graças a um estratagema
do governador Oeynhausen. Mas apesar de casos extremos como este, o arrolamento
dos indivíduos sem eira nem beira nas milícias particulares dos grandes
proprietários e chefes locais ainda constitui um penhor de segurança e
tranquilidade, porque canaliza sua natural turbulência e lhes dá um mínimo de
organização e disciplina. Entregues a si mesmos, eles manteriam o sertão
despoliciado em constante polvorosa, e normalizariam o crime. E não se veria
nestas vastidões desamparadas pela lei o que Saint-Hilaire com surpresa
constatava: uma relativa segurança de que seu caso pessoal era exemplo
flagrante. Nenhuma vez, nos longos anos em que perambulou pelo interior do
Brasil, foi jamais incomodado.
Nas cidades, os vadios são mais perigosos e
nocivos, pois não encontram, como no campo, a larga hospitalidade que lá se
pratica, nem chefes sertanejos prontos a engajarem sua belicosidade. No Rio de
Janeiro era perigoso transitar só e desarmado em lugares ermos, até em pleno
dia. O primeiro intendente de polícia da cidade tomará medidas enérgicas contra
tais elementos. Mas o mal se perpetuará, e só na República, ninguém o ignora,
serão os famosos “capoeiras”, sucessores dos vadios da colônia, eliminados da
capital.
Como se vê, além da sua massa, a subcategoria
da população colonial de que nos ocupamos fazia muito bem sentir sua presença.
Ainda o fará mais nas agitações que precedem a Independência e vão até meados
do século, mantendo o país num estado pré-anárquico permanente. No torvelinho
das paixões e reivindicações então desencadeadas, pelo rompimento do equilíbrio
social e político que provoca a transição de colônia para império livre, aquela
massa deslocada, indefinida, mal enquadrada na ordem social, e na realidade
produto e vítima dela, se lançará na luta com toda a violência de instintos
longamente refreados, e com muitas tintas da barbárie ainda tão próxima que lhe
corria nas veias em grandes correntes. Não resta a menor dúvida que as
agitações anteriores e posteriores à Independência, as do tormentoso período da
minoridade e do primeiro decênio do Segundo Império, todas elas ainda tão mal
estudadas, são fruto em grande parte daquela situação que acabamos de analisar.
É naquele elemento desenraizado da população brasileira que se recrutará a
maior parte da força armada para a luta das facções políticas que se formam; e
ela servirá de aríete das reivindicações populares contra a estrutura maciça do
Império, que apesar da força do empuxo, resistirá aos seus golpes. Tem assim um
grande interesse histórico acentuar aí a nossa análise, porque é no momento que
precede imediatamente aqueles acontecimentos que encontramos uma situação,
embora madura, ainda não perturbada pela luta. Tanto mais fácil por isso é a
tarefa do observador.
Vimos as condições gerais em que se constitui
aquela massa popular — a expressão não é exagerada —, que vive mais ou menos à
margem da ordem social: a carência de ocupações normais e estáveis capazes de
absorver, fixar e dar uma base segura de vida à grande maioria da população
livre da colônia. Esta situação tem causas profundas, de que vimos a principal,
mais saliente e imediata: a escravidão, que desloca os indivíduos livres da
maior parte das atividades e os força para situações em que a ociosidade e o crime
se tornam imposições fatais. Mas alia-se, para o mesmo efeito, outro fator que
se associa aliás intimamente a ela: o sistema econômico da produção colonial.
No ambiente asfixiante da grande lavoura não sobra lugar para outras atividades
de vulto. O que não é produção em larga escala de alguns gêneros de grande
expressão comercial e destinados à exportação, é fatalmente relegado a um
segundo plano mesquinho e miserável. Não oferece, e não pode oferecer campo
para atividades remuneradoras e de nível elevado. E assim, todo aquele que se
conserva fora daquele estreito círculo traçado pela grande lavoura, e são quase
todos além do senhor e seu escravo, não encontra pela frente perspectiva
alguma.
Um último fator, finalmente, traz a sua
contribuição, e contribuição apreciável de resíduos sociais inaproveitáveis. É
a instabilidade que caracteriza a economia e a produção brasileira e não lhes
permite nunca assentarem-se sólida e permanentemente em bases seguras. Em
capítulo anterior já assinalei esta evolução por arrancos, por ciclos em que se
alternam, no tempo e no espaço, prosperidade e ruína, e que resume a história
econômica do Brasil colônia. As repercussões sociais de uma tal história foram
nefastas: em cada fase descendente, desfaz-se um pedaço da estrutura colonial,
desagrega-se a parte da sociedade atingida pela crise. Um número mais ou menos
avultado de indivíduos inutiliza-se, perde suas raízes e base vital de
subsistência. Passará então a vegetar à margem da ordem social. Em nenhuma
época e lugar isto se torna mais catastrófico e atinge mais profunda e
extensamente a colônia que no momento preciso em que abordamos a nossa
história, e nos distritos da mineração. Vamos encontrar aí um número
considerável destes indivíduos desamparados, evidentemente deslocados, para
quem não existe o dia de amanhã, sem ocupação normal fixa e descendente
remuneradora; ou desocupados inteiramente, alternando o recurso à caridade com
o crime. O vadio na sua expressão mais pura. Os distritos auríferos de Minas
Gerais, Goiás e Mato Grosso oferecem tal espetáculo em proporções alarmantes
que assustarão todos os contemporâneos. Uma boa parte da população destas
capitanias estava nestas condições, e o futuro não pressagiava nada de menos
sombrio.
São estas, em suma, as causas fundamentais
daquelas formas inorgânicas da sociedade colonial brasileira que passei em
revista.”
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