Editora: Companhia das Letras
ISBN: 978-85-3591-962-2
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 464
Sinopse: Em Formação
do Brasil contemporâneo, Caio Prado Jr. volta ao passado colonial da
sociedade brasileira para entender os impasses do presente, e acaba por
concluir que aquele permanecia vivo em alguns de seus traços fundamentais. A
formação da nação é interpretada como parte do sistema colonial, modo de
pertencimento ao capitalismo mercantil que teria conferido unidade, ainda que
problemática, à vida social que veio se formando desde a colônia.
O autor afirma que o processo de colonização acabou por
permitir que se esboçasse no Brasil uma nacionalidade diferente daquela de
modelo europeu, e até relativamente nova em termos sociais e culturais, sem que
isso significasse autonomia para a sociedade nascente, mesmo depois da
independência política.
Apresentando nossa formação em longa duração e como parte
de um todo maior, a abordagem historiográfica inovadora de Formação do
Brasil contemporâneo conferiu ao livro o posto de um dos poucos clássicos
incontestes da historiografia brasileira no século XX.
“Em suma e no essencial, todos os grandes
acontecimentos desta era, que se convencionou com razão chamar dos
“descobrimentos”, articulam-se num conjunto que não é senão um capítulo da
história do comércio europeu. Tudo que se passa são incidentes da imensa
empresa comercial a que se dedicam os países da Europa a partir do século XV, e
que lhes alargará o horizonte pelo oceano afora. Não têm outro caráter a
exploração da costa africana e o descobrimento e colonização das ilhas pelos
portugueses, o roteiro das Índias, o descobrimento da América, a exploração e
ocupação de seus vários setores. É esse último o capítulo que mais nos
interessa aqui; mas não será, em sua essência, diferente dos outros. É sempre
como traficantes que os vários povos da Europa abordarão cada uma daquelas
empresas que lhes proporcionarão sua iniciativa, seus esforços, o acaso e as
circunstâncias do momento em que se achavam. Os portugueses traficarão na costa
africana com marfim, ouro, escravos; na Índia irão buscar especiarias. Para concorrer
com eles, os espanhóis, seguidos de perto pelos ingleses, franceses e demais,
procurarão outro caminho para o Oriente; a América, com que toparam nessa
pesquisa, não foi para eles, a princípio, senão um obstáculo oposto à
realização de seus planos e que devia ser contornado. Todos os esforços se
orientam então no sentido de encontrar uma passagem, cuja existência se
admitiu a priori.
Tudo isso lança muita luz sobre o espírito
com que os povos da Europa abordam a América. A ideia de povoar não ocorre
inicialmente a nenhum. É o comércio que os interessa, e daí o relativo desprezo
por este território primitivo e vazio que é a América; e inversamente, o
prestígio do Oriente, onde não faltava objeto para atividades mercantis. A
ideia de ocupar, não como se fizera até então em terras estranhas, apenas como
agentes comerciais, funcionários e militares para a defesa, organizados em
simples feitorias destinadas a mercadejar com os nativos e servir de
articulação entre as rotas marítimas e os territórios ocupados; mas ocupar com
povoamento efetivo, isso só surgiu como contingência, necessidade imposta por
circunstâncias novas e imprevistas. Aliás, nenhum povo da Europa estava em
condições naquele momento de suportar sangrias na sua população, que no século
XVI ainda não se refizera de todo das tremendas devastações da peste que
assolou o continente nos dois séculos precedentes. Na falta de censos precisos,
as melhores probabilidades indicam que em 1500 a população da Europa ocidental
não ultrapassava a do milênio anterior.
Nessas condições, “colonização” ainda era
entendida como aquilo que dantes se praticava; fala-se em colonização, mas o
que o termo envolve não é mais que o estabelecimento de feitorias comerciais,
como os italianos vinham de longa data praticando no Mediterrâneo, a Liga
Hanseática no Báltico, mais recentemente os ingleses, holandeses e outros no
extremo Norte da Europa e no Levante; como os portugueses fizeram na África e
na Índia. Na América a situação se apresenta de forma inteiramente diversa: um
território primitivo habitado por rala população indígena incapaz de fornecer
qualquer coisa de realmente aproveitável. Para os fins mercantis que se tinham
em vista, a ocupação não se podia fazer como nas simples feitorias, com um
reduzido pessoal incumbido apenas do negócio, sua administração e defesa
armada; era preciso ampliar essas bases, criar um povoamento capaz de abastecer
e manter as feitorias que se fundassem e organizar a produção dos gêneros que
interessassem ao seu comércio. A ideia de povoar surge daí, e só daí.”
“É a situação interna da Europa, em
particular da Inglaterra, as suas lutas político-religiosas, que desviam para a
América as atenções de populações que não se sentem à vontade e vão procurar
ali abrigo e paz para suas convicções. Isso durará muito tempo; pode-se mesmo
assimilar o fato, idêntico no fundo, a um processo que se prolongará, embora
com intensidade variável, até os tempos modernos, o século passado. Virão para
a América puritanos e quacres da
Inglaterra, huguenotes da França, mais tarde morávios, schwenkfelders,
inspiracionalistas e menonitas da Alemanha
meridional e Suíça. Durante mais de dois séculos despejar-se-á na América todo
resíduo das lutas político-religiosas da Europa. É certo que se espalhará por
todas as colônias; até no Brasil, tão afastado e por isso tanto mais ignorado,
procurarão refugiar-se huguenotes franceses (França Antártica,
no Rio de Janeiro). Mas se concentrará quase inteiramente nas da zona
temperada, de condições naturais mais afins às da Europa, e por isso preferida
para quem não buscava “fazer a América”, mas unicamente abrigar-se dos
vendavais políticos que varriam a Europa, e reconstruir um lar desfeito ou
ameaçado.
São assim circunstâncias especiais, que não
têm relação direta com ambições de traficantes ou aventureiros, que promoverão
a ocupação intensiva e o povoamento em larga escala da zona temperada da
América. Circunstâncias, aliás, que surgem posteriormente ao descobrimento do
novo continente, e que não se filiam à ordem geral e primitiva de
acontecimentos que impelem os povos da Europa para o ultramar. Daí derivará um
novo tipo de colonização — será o único em que os portugueses não serão os
pioneiros —, que tomará um caráter inteiramente apartado dos objetivos
comerciais até então dominantes neste gênero de empresas. O que os colonos
dessa categoria têm em vista é construir um novo mundo, uma sociedade que lhes
ofereça garantias que no continente de origem já não lhes são mais dadas. Seja
por motivos religiosos ou meramente econômicos (esses impulsos, aliás, se
entrelaçam e sobrepõem), a sua subsistência se tornara lá impossível ou muito
difícil. Procuram então uma terra ao abrigo das agitações e transformações da
Europa, de que são vítimas, para refazerem nela sua existência ameaçada. O que
resultará desse povoamento, realizado com tal espírito e num meio físico muito
aproximado do da Europa, será naturalmente uma sociedade que, embora com
caracteres próprios, terá semelhança pronunciada à do continente de onde se
origina. Será pouco mais que simples prolongamento dele.
Muito diversa é a história da área tropical e
subtropical da América. Aqui a ocupação e o povoamento tomarão outro rumo. Em
primeiro lugar, as condições naturais, tão diferentes do habitat de
origem dos povos colonizadores, repelem o colono que vem como simples povoador,
da categoria daquele que procura a zona temperada. (...) São trópicos brutos e
indevassados que se apresentam, uma natureza hostil e amesquinhadora do homem,
semeada de obstáculos imprevisíveis sem conta para que o colono europeu não
estava preparado e contra que não contava com nenhuma defesa. Aliás, a
dificuldade do estabelecimento de europeus civilizados nestas terras
americanas, entregues ainda ao livre jogo da natureza, é comum também à zona
temperada. (...)
A diversidade de condições naturais, em
comparação com a Europa, que acabamos de ver como um empecilho ao povoamento,
se revelaria por outro lado um forte estímulo. É que tais condições
proporcionarão aos países da Europa a possibilidade da obtenção de gêneros que
lá fazem falta. E gêneros de particular atrativo. Coloquemo-nos naquela Europa
anterior ao século XVI, isolada dos trópicos, só indireta e longinquamente
acessíveis, e imaginemo-la, como de fato estava, privada quase inteiramente de
produtos que, se hoje, pela sua banalidade, parecem secundários, eram então
prezados como requintes de luxo. Tome-se o caso do açúcar, que embora se
cultivasse em pequena escala na Sicília era artigo de grande raridade e muita
procura; até nos enxovais de rainhas ele chegou a figurar como dote precioso e
altamente prezado. A pimenta, importada do Oriente, constituiu durante séculos
o principal ramo do comércio das repúblicas mercadoras italianas, e a grande e
árdua rota das Índias não serviu muito tempo para outra coisa mais que
abastecer dela a Europa. O tabaco, originário da América e por isso ignorado
antes do descobrimento, não teria, depois de conhecido, menor importância. E
não será este também, mais tarde, o caso do anil, do arroz, do algodão e de
tantos outros gêneros tropicais?
Isso nos dá a medida do que representariam os
trópicos como atrativo para a fria Europa, situada tão longe deles. A América
lhe poria à disposição, em tratos imensos, territórios que só esperavam a
iniciativa e o esforço do homem. É isso que estimulará a ocupação dos trópicos
americanos. Mas trazendo esse agudo interesse, o colono europeu não traria com
ele a disposição de pôr-lhe a serviço, neste meio tão difícil e estranho, a
energia do seu trabalho físico. Viria como dirigente da produção de gêneros de
grande valor comercial, como empresário de um negócio rendoso; mas só a
contragosto como trabalhador. Outros trabalhariam para ele.”
“Nas demais colônias tropicais, inclusive o
Brasil, não se chegou nem a ensaiar o trabalhador branco. Isso porque nem na
Espanha, nem em Portugal, a que pertencia a maioria delas, havia, como na
Inglaterra, braços disponíveis, e dispostos a emigrar a qualquer preço. Em
Portugal, a população era tão insuficiente que a maior parte do território se
achava ainda, em meados do século XVI, inculta e abandonada; faltavam braços
por toda parte, e empregava-se em escala crescente mão de obra escrava,
primeiro dos mouros, tanto dos que tinham sobrado da antiga dominação árabe
como dos aprisionados nas guerras que Portugal levou desde princípios do século
XV para seus domínios do norte da África; como depois, de negros africanos, que
começam a afluir para o reino desde meados daquele século. Lá por volta de
1550, cerca de 10% da população de Lisboa era constituída de escravos negros.
Nada havia portanto que provocasse no reino um êxodo da população; e é sabido
como as expedições do Oriente depauperaram o país, datando de então, e
atribuível em grande parte a essa causa, a precoce decadência lusitana.”
“Como se vê, as colônias tropicais tomaram um
rumo inteiramente diverso do de suas irmãs da zona temperada. Enquanto nestas
se constituirão colônias propriamente de povoamento (o nome ficou consagrado
depois do trabalho clássico de Leroy-Beaulieu, De la colonisation chez
les peuples modernes), escoadouro para excessos demográficos da Europa que
reconstituem no Novo Mundo uma organização e uma sociedade à semelhança do seu
modelo e origem europeus, nos trópicos, pelo contrário, surgirá um tipo de
sociedade inteiramente original. Não será a simples feitoria comercial, que já
vimos irrealizável na América. Mas conservará no entanto um acentuado caráter mercantil;
será a empresa do colono branco, que reúne à natureza, pródiga em recursos
aproveitáveis para a produção de gêneros de grande valor comercial, o trabalho
recrutado entre raças inferiores que domina: indígenas ou negros africanos
importados. Há um ajustamento entre os tradicionais objetivos mercantis que
assinalam o início da expansão ultramarina da Europa, e que são conservados, e
as novas condições em que se realizará a empresa. Aqueles objetivos, que vemos
passar para o segundo plano nas colônias temperadas, se manterão aqui, e
marcarão profundamente a feição das colônias do nosso tipo, ditando-lhes o
destino. No seu conjunto, e vista no plano mundial e internacional, a
colonização dos trópicos toma o aspecto de uma vasta empresa comercial, mais completa
que a antiga feitoria, mas sempre com o mesmo caráter que ela, destinada a
explorar os recursos naturais de um território virgem em proveito do comércio
europeu. É esse o verdadeiro sentido da colonização tropical,
de que o Brasil é uma das resultantes; e ele explicará os elementos
fundamentais, tanto no econômico como no social, da formação e evolução
históricas dos trópicos americanos. (...)
Mas um tal caráter mais estável, permanente,
orgânico, de uma sociedade própria e definida, só se revelará aos poucos,
dominado e abafado que é pelo que o precede, e que continuará mantendo a
primazia e ditando os traços essenciais da nossa evolução colonial. Se vamos à
essência da nossa formação, veremos que na realidade nos constituímos para
fornecer açúcar, tabaco, alguns outros gêneros; mais tarde ouro e diamantes;
depois, algodão, e em seguida café, para o comércio europeu. Nada mais que
isso. É com tal objetivo, objetivo exterior, voltado para fora do país e sem
atenção a considerações que não fossem o interesse daquele comércio, que se
organizarão a sociedade e a economia brasileiras. Tudo se disporá naquele
sentido: a estrutura, bem como as atividades do país. Virá o branco europeu
para especular, realizar um negócio; inverterá seus cabedais e recrutará a mão
de obra de que precisa: indígenas ou negros importados. Com tais elementos,
articulados numa organização puramente produtora, industrial, se constituirá a
colônia brasileira. Esse início, cujo caráter se manterá dominante através dos
três séculos que vão até o momento em que ora abordamos a história brasileira,
se gravará profunda e totalmente nas feições e na vida do país. Haverá
resultantes secundárias que tendem para algo de mais elevado; mas elas ainda
mal se fazem notar. O sentido da evolução brasileira, que é o que estamos aqui
indagando, ainda se afirma por aquele caráter inicial da colonização.”
“Vários fatores determinaram a dispersão do
povoamento (no território brasileiro). O primeiro é a extensão da costa que
coube a Portugal na partilha de Tordesilhas, o que obrigou, para uma ocupação e
defesa eficientes, encetar a colonização simultaneamente em vários pontos dela.
Foi tal o objetivo da divisão do território em capitanias, o que de fato,
apesar do fracasso do sistema, permitiu garantir à Coroa portuguesa a posse
efetiva do longo litoral.
Concorrem em seguida, para a expansão
interior, dois fatores essenciais: o bandeirismo preador de índios e prospector
de metais e pedras preciosas, que abriu caminho, explorou a terra e repeliu as
vanguardas da colonização espanhola concorrente; mais tarde, a exploração das
minas, descobertas sucessivamente a partir dos últimos anos do século XVII, e
que fixou núcleos estáveis e definitivos no coração do continente (Minas
Gerais, Goiás, Mato Grosso). No extremo Norte, na bacia amazônica, intervém
outro fator, de caráter local: são as missões católicas catequizadoras do
gentio, sobretudo os padres da Companhia de Jesus; seguidas de perto pela
colonização leiga, provocada e animada pela política da metrópole, tão ativa
neste setor, e sustentada pela exploração dos produtos naturais da floresta
amazônica: o cacau, a salsaparrilha e outros.
Um outro fator, também local, atua no sertão
do Nordeste, nesta hinterlândia dos maiores centros agrícolas do litoral da
colônia, Bahia e Pernambuco, consumidores de carne que viria dos rebanhos que
avançam por aquele sertão e o vão ocupando.
Todos esses fatores são condicionados, em
grande parte, por outro negativo, que é a inércia castelhana. Fixaram-se os
espanhóis, sobretudo, nos altiplanos andinos, onde a presença dos metais
preciosos, mola mestra da sua colonização, bem como de populações indígenas
densas, sedentárias e aptas para o fornecimento de mão de obra abundante e fácil
— circunstâncias essas que não ocorreram no litoral do Atlântico, ocupado pelos
portugueses —, escusaram aventuras exploradoras e internação pelo coração do
continente. Os obstáculos físicos também não são de desprezar: o interior do
continente sul-americano abre-se para o Atlântico; não para o Pacífico, de que
o separam o grande acidente dos Andes e a densa floresta intransponível que
reveste as fraldas orientais da cordilheira. A colonização portuguesa não
encontrou por isso pela frente, de castelhano, senão os inermes jesuítas e suas
reduções indígenas. Os padres, que procuravam outra coisa que riquezas
minerais, tinham-se adiantado a seus compatriotas espanhóis; deixando aos
colonos as minas do planalto andino e sua densa população indígena, a matéria-prima
e o trabalho que aqueles queriam, foram se estabelecer lá onde não chegava a
cobiça do conquistador e onde esperavam não ser perturbados na sua conquista
espiritual, prelúdio do domínio temporal a que aspiravam; e vão se fixar na
vertente oriental e baixada subjacente dos Andes. Daí essa linha ininterrupta
de missões jesuíticas espanholas, estabelecidas no correr dos séculos XVI e
XVII, e que se traça de sul a norte, do Prata ao Amazonas, pelo interior do
continente: missões do Uruguai, do Paraguai; a efêmera Guaíra; dos Chiquitos e
dos Moxos, na Bolívia; missões do padre Samuel Fritz no Alto Amazonas.
Não contavam os jesuítas com este outro
adversário que lhes viria pelo oriente: os portugueses. E fracamente apoiados
pelo seu rei, abandonados às suas próprias forças no mais das vezes, achando
mesmo no soberano de sua pátria terrena um adversário que faz causa comum com
seus inimigos — como se deu na execução do tratado de 1750, em que as forças
castelhanas se unem às portuguesas para arrancar-lhes os Sete Povos do Uruguai
—, os missionários são repelidos e fracassa o seu plano grandioso. Não seria
deles o interior do continente sul-americano, como quiseram num belo sonho que
durou dois séculos; mas não seria também, na sua maior parte, de seus legítimos
senhores, os espanhóis. Caberia aos conquistadores e ocupantes efetivos dele,
os portugueses e seus sucessores brasileiros, tão avantajados pela geografia.
Fixou-se assim, e, como vimos, desde meados
do século XVIII, o território que constituiria o Brasil.”
“Saint-Hilaire, viajando pelo Brasil em
princípio do século passado, notará, com a acuidade da sua visão, a extrema
mobilidade da população brasileira. A preocupação dominante das zonas novas já
existia então: emigrava-se às vezes por nada, e com simples e vagas esperanças
de outras perspectivas. Todo mundo imaginava sempre que havia um ponto qualquer
em que se estaria melhor que no presente. Pensamento arraigado e universal que
nada destruía, nem experiências e fracassos sucessivos. Isso que impressionava
o viajante francês, habituado a um continente em que havia séculos o povoamento
se estabilizara, é a feição natural de todo território semivirgem da presença
humana, onde a maior parte da área ainda está por ocupar e onde as formas de
atividade mais convenientes para o homem ainda não foram encontradas; onde,
numa palavra, o indivíduo não se ajustou bem a seu meio, compreendendo-o e o
dominando. Os deslocamentos correspondem aí a ensaios, tentativas, novas
experiências, a procura incansável do melhor sistema de vida. No Brasil, esse
fato é particularmente sensível pelo caráter que tomara a colonização,
aproveitamento aleatório em cada um de seus momentos, como veremos ao analisar
a nossa economia, de uma conjuntura passageiramente favorável. Cultiva-se a
cana como se extrai o ouro, como mais tarde se plantará algodão ou café:
simples oportunidade do momento, com vistas para um mercado exterior e
longínquo, um comércio instável e precário sempre. A colonização não se orienta
no sentido de constituir uma base econômica sólida e orgânica, isto é, a
exploração racional e coerente dos recursos do território para a satisfação das
necessidades materiais da população que nela habita. Daí a sua instabilidade,
com seus reflexos no povoamento, determinando nele uma mobilidade superior
ainda à normal dos países novos.”
“O índio foi o problema mais complexo que a
colonização teve de enfrentar. Tornou-se tal — e é nisso que se distingue do
caso norte-americano tão citado em paralelo com o nosso — pelo objetivo que se
teve em vista: aproveitar o indígena na obra da colonização. Nos atuais Estados
Unidos, como no Canadá, a situação é outra. Lá nunca se pensou em incorporar o
índio, fosse a que título, na obra colonizadora do branco; as tentativas de
aproveitamento do trabalho indígena não passaram aí de ensaios logo
abandonados. E afora o comércio de peles, fornecidas por eles em troca de
mercadorias europeias, para nada mais utilizaram-nos os colonos. Ou antes, eles
tiveram um papel, mas de aliados de um ou outro partido, nas lutas que
franceses e ingleses sustentaram entre si durante dois séculos nas colônias
setentrionais da América. Daí o empenho em atrair as simpatias dos nativos, os
processos em princípio amigáveis de que tanto franceses como ingleses lançaram
mão no seu trato. Processos que chegaram a despertar a atenção da administração
portuguesa, que, sem atender à diferença de situações, os recomendava como
exemplo aos seus delegados no Brasil. Mas aquelas relações entre colonos e
índios nunca foram além de uma simples aliança de igual para igual; não se
tratava em absoluto de incorporar os indígenas na colonização. Tanto que mais
tarde, quando eliminados os franceses, os ingleses ou seus sucessores
norte-americanos ficaram sós em campo, o problema do índio ficou reduzido
simplesmente ao da expulsão deles de territórios necessários à expansão
colonizadora (note-se que até hoje, como sempre foi no passado, as relações com
os índios são nos Estados Unidos de poder soberano para poder soberano, e são
fixadas em tratados. Daí aliás a competência do governo federal para tratar de
assuntos relativos aos índios, com exclusão dos Estados, como tem sido
invariavelmente decidido pela Suprema Corte. Os índios localizados em
determinados territórios não são americanos, mas juridicamente constituem uma
forma de nação autônoma).
O caso da colonização lusitana foi outro.
Aqui no Brasil tratou-se desde o início de aproveitar o índio, não apenas para
obtenção dele, pelo tráfico mercantil, de produtos nativos, ou simplesmente
como aliado, mas sim como elemento participante da colonização. Os
colonos viam nele um trabalhador aproveitável; a metrópole,
um povoador para a área imensa que tinha de ocupar, muito além
de sua capacidade demográfica. Um terceiro fator entrará em jogo e vem complicar
os dados do problema: as missões religiosas. Estas, e particularmente as dos
jesuítas, que tanto pelo vulto que tomaram, como pela consciência e tenacidade
que demonstraram na luta por seus objetivos, se destacam nitidamente nesta
questão, as missões religiosas não intervêm como simples instrumentos da
colonização, procurando abrir e preparar caminho para esta no seio da população
indígena. Elas têm objetivos próprios: a propagação da fé, os interesses da
Igreja ou das ordens respectivas, não importa; mas objetivos que, pelo menos
nos métodos adotados pelos padres, forçados a isso pelas circunstâncias ou não,
se afastam e até muitas vezes contradizem os objetivos da colonização leiga.
Não indaguemos dos motivos que teve a Companhia de Jesus (fiquemos nela que
mais interessa) ao adotar tais normas de conduta. Essa indagação nos levaria
longe, e sobretudo nos embrenharia numa disputa que não caberia suscitar aqui.
Mas o fato é que nas suas atividades, na ação que desenvolveu junto ao índio,
no regime e educação a que o submeteu, o jesuíta agia muitas vezes em
contradição manifesta não só com os interesses particulares e imediatos dos
colonos, o que é matéria pacífica, mas com os da própria metrópole e de sua
política colonial. O que Portugal podia pretender, e de fato pretendeu como
nação colonizadora de um território imenso para o que não lhe sobrava população
suficiente, era utilizar todos os elementos disponíveis; e o índio não podia
ser desprezado na consecução de tal fim. Tratava-se portanto de incorporá-lo à
comunhão luso-brasileira, arrancá-lo das selvas para fazer dele um participante
integrado na vida colonial; um colono como os demais. Esse
objetivo da colonização portuguesa no Brasil — e não podia ser outro — aparece
bem claro ao longo de toda nossa história colonial. Mais ou menos acentuado
pelas leis e outros atos oficiais que se sucedem por três séculos de evolução,
revelando-se às vezes numa ação firme e persistente, resvalando mais
frequentemente para hesitações e dubiedades, fruto do choque de interesses
poderosos em jogo, a política lusitana com relação ao índio dirige-se no
entanto para aquele fim.
As atividades da Companhia de Jesus vão
evidentemente, consideradas em conjunto e não apenas neste ou naquele ato
particular, contra tais objetivos. O regime adotado nas “reduções” (é como se
denominavam as aglomerações indígenas sob a autoridade dos padres) e o sistema
de organização delas não eram evidentemente os mais indicados para fazer dos
índios elementos ativos e integrados na ordem colonial. A segregação em que
viviam nas aldeias jesuíticas, e que ia até a ignorância do português que não
lhes era ensinado para evitar contatos com os colonos brancos; o regime
disciplinar, quase de caserna, a que eram submetidos, e que fazia deles verdadeiros
autômatos impelidos pela voz incontrastável, e o que é mais grave,
insubstituível de seus mestres e chefes, os padres, coisa que os integrava de
tal forma na vida e rotina das reduções que fora delas o índio se tornava
incapaz de aproveitar os ensinamentos da civilização que lhe tinham sido
ministrados; tudo isso não era de molde a formar membros da comunhão colonial,
mas sim coletividades enquistadas nela e visceralmente dependentes de seus
organizadores. Se nem sempre os jesuítas realizaram plenamente esse sistema,
foi porque não lhes deram tempo e liberdade suficiente de movimentos. Mas lá
onde contaram com tais fatores, o resultado foi flagrante: assim na Amazônia, e
ainda mais nitidamente nas famosas missões do Uruguai. E isso para não sairmos
do Brasil; porque o problema foi semelhante em toda a América, e poderíamos
citar ainda, entre outras, as missões da Califórnia, do Orenoco, dos Moxos e
Chiquitos da Bolívia, do Paraguai. Sem discutir aqui se a efetivação de sua
obra teria sido mais favorável aos índios; admitindo mesmo, para ser debatida,
a hipótese de realizações quiçá mais elevadas, moral e materialmente, que as
atingidas pela colonização luso-espanhola; resultados superiores, no plano da
civilização e cultura humanas, que as coletividades ibero-americanas que saíram
daquela colonização; sem irmos tão longe, o fato é que no terreno mais restrito
e modesto em que aqui nos colocamos, a obra dos jesuítas não estava
contribuindo, nos seus fins últimos e essenciais, para a colonização portuguesa aqui,
ou espanhola nas demais colônias; e do sucesso de sua empresa
teria certamente resultado uma organização, nação, civilização, ou deem-lhe o
nome que quiserem, muito diversa daquilo que Portugal ou a Espanha pretendiam
realizar e realizaram nas suas possessões.
Daí o conflito, o choque, cujas peripécias
não vêm ao caso analisar aqui, mas que têm esta grande consequência que precisa
ser lembrada, e que foi de colocar o problema indígena no terreno das
discussões e lutas intermináveis e apaixonadas. Tornou-se assim, desde logo,
difícil, se não impossível, uma solução satisfatória. À escravidão sumária e
exploração brutal do índio pelo colono o jesuíta opôs a segregação, o
isolamento dele. E na luta que se acendeu em torno desses extremos
inconciliáveis, ambos contrários aos interesses gerais e superiores da
colonização, e que cada vez mais se afirmavam nos seus excessos, fruto natural
das paixões desencadeadas, não sobrou margem para outras soluções intermédias
que teriam possivelmente resolvido o caso.
A metrópole, envolvida nesta luta que se
desenrolava sob suas vistas, não soube, ela também, colocar-se fora dos debates
e traçar com independência sua linha de conduta. Prendeu-se aos extremos em
luta, oscilando ora num, ora noutro sentido, incapaz de se livrar ao mesmo
tempo de ambos e marchar decididamente para os objetivos fundamentais de sua
verdadeira política, de que tinha, se não plena consciência, pelo menos uma
intuição que faz honra ao bom senso português, e que, no desastre geral que
constitui a norma da administração lusitana no Brasil, foi muitas vezes o que a
livrou de maiores e funestos acidentes.
Isso durou dois séculos. Chegou afinal o
tardio momento em que Portugal enfrenta definitivamente a situação, e
desembaraçado dos partidos em choque, impõe a “sua” política, o interesse geral
da colonização portuguesa no Brasil acima dos interesses particulares em
oposição. Foi essa a obra de Pombal.
A legislação pombalina relativamente aos
índios é uma síntese daquelas tendências opostas referidas. Aceitou a tese
jesuítica da liberdade dos índios, da necessidade de educá-los e os preparar
para a vida civilizada, e não fazer deles simplesmente instrumentos de trabalho
nas mãos ávidas e brutais dos colonos, de que já resultara o extermínio de boa
parte da população indígena do país. Adotou mesmo as linhas mestras da
organização jesuítica: concentração dos índios em povoações sujeitas a um
administrador que devia zelar pela sua educação e pelos seus interesses; bem
como medidas de resguardo contra os colonos. Mas doutro lado, não os separou da
comunhão colonial, e não só impunha o emprego da língua portuguesa e permitia a
utilização do índio como trabalhador assalariado (tese dos colonos), mas ainda
permitia e fomentava mesmo o maior intercâmbio possível entre as duas
categorias da população. Procurava-se assim preparar o índio para a vida
civilizada. Completavam-se essas medidas com outras que tinham por fim
multiplicar os casamentos mistos. Era a solução pelo cruzamento das raças, que
aliás presidiu sempre, mesmo sem o auxílio de disposições legais, a todo o
grande e complexo problema da interassimilação das três etnias que concorreram
para a formação brasileira.
A suspensão do poder temporal dos
eclesiásticos sobre os índios, o grande pomo de discórdia que seria uma das
causas mediatas da expulsão dos jesuítas, não é senão um corolário daquelas
medidas. Não era possível conservar aquele poder sem comprometer todos os fins
que se tinham em vista. Não seria isso harmonizar e resolver a pendência
secular entre colonos e padres, mas sim resolvê-la em benefício de uma das
partes. O mínimo que um poder soberano como a Coroa portuguesa podia exigir era
naturalmente estender normalmente a sua soberania sobre todos os seus súditos.
Os índios estavam no número destes; era pelo menos o que se queria, e a
autoridade e prestígio dos padres formavam uma parede estanque além da qual se
anulava o poder real. Não podia por isso deixar de ser demolida. É impossível
assimilar os eclesiásticos, sobretudo quando de uma organização com visos de
soberania política, como é o caso dos jesuítas, a simples administradores
sujeitos ao poder régio. A função deles não devia e não podia ir além das
clericais que propriamente lhes competiam. Conceder-lhes o poder temporal, a
experiência o demonstrara, era dar-lhes um poder político soberano (Note-se que
é somente o poder temporal que se aboliu. De acordo aliás com os estatutos da
Igreja. Os padres, fossem carmelitas, capuchos, mercenários ou jesuítas,
continuariam nas suas aldeias, como seus diretores espirituais. E foi aliás o
que se deu. É só em 1759, quatro anos depois do alvará de 7 de junho de 1755,
que os jesuítas são expulsos de Portugal e seus domínios, abandonando as
aldeias do Brasil. Até então, permaneceram nelas, não sem uma sabotagem sistemática
da nova legislação. E terá sido esta uma das causas de sua expulsão. Quanto às
demais ordens, elas se conservaram nos seus lugares, e continuaram como dantes
a obra missionária. — A legislação pombalina relativa aos índios é a seguinte:
o alvará de 14 de abril de 1755, que fomenta os casamentos mistos, equipara os
índios e seus descendentes aos demais colonos quanto a empregos e honradas, e
proíbe que sejam tratados pejorativamente; a lei de 6 de junho do mesmo ano
decreta a liberdade absoluta e sem exceção dos índios, dá várias providências
sobre as relações deles com os colonos e dispõe sobre a organização de
povoações (vilas e lugares) em que se deveriam reunir; o alvará de 7 de junho,
ainda do mesmo ano, suprime o poder temporal dos eclesiásticos sobre os índios,
cujas aldeias seriam administradas por seus principais (esta lei, bem como a
anterior, aplicava-se só ao Pará e ao Maranhão; o alvará de 8 de maio de 1758
estendeu a sua aplicação para todo o Brasil). Além destas leis, há o Diretório dos
índios do Grão-Pará e Maranhão, de 3 de maio de 1757, regulamento organizado
pelo governador daquelas capitanias, Francisco Xavier de Mendonça Furtado,
irmão de Pombal, que longa e minuciosamente regimenta a legislação vigente
sobre os índios. Este Diretório foi aprovado pelo alvará de 17 de agosto de
1758, que estendeu sua aplicação para todo o Brasil).
A legislação pombalina pôs termo a uma
disputa que durava desde o início da colonização, e regularizou definitivamente
o problema indígena. Os seus resultados práticos poderão ser interpretados
diversamente, e assim o foram; mas não quero abordar aqui uma discussão ampla
do assunto, o que exigiria tratamento especial. O certo é que, com todos os
defeitos e algumas consequências lamentáveis, ela encaminhou a solução do
problema índio, preparando, dentro das possibilidades existentes, que dados os
caracteres étnicos e psicológicos do índio, eram evidentemente limitadas, a
absorção da massa indígena pela colonização. Desaparece com ela a escravização
do índio, embora reapareça, mas já atenuada — efeito de meio século de
liberdade —, em princípios do século XIX, quando aliás o Diretório já fora
abolido (Carta Régia de 12 de maio de 1798), e se voltara, com a lei de 13 de
maio de 1808 e outras subsequentes, ao velho sistema de guerras ofensivas
contra os índios e do cativeiro dos prisioneiros. Acabaram-se também com as
expedições de resgate de índios prisioneiros de outras tribos, os bárbaros
“descimentos” de cativos. Também estes se reencetam em princípios do século
XIX, particularmente na Amazônia. O incremento do tráfico africano, que é
fomentado depois das leis pombalinas, particularmente para as capitanias cuja
mão de obra fora até então constituída quase exclusivamente de índios (Pará e
Maranhão), torna os colonos menos dependentes destes últimos. Terão assim mais
tranquilidade.
Com tudo isso, porém, não se pode
evidentemente sobrestimar a sorte dos índios sob o novo regime. Continuaram,
apesar das leis que procuravam equipará-los aos demais colonos, uma raça
bastarda; e como tal, alvo do descaso e prepotência da raça dominadora. A
proteção que lhes outorgava a lei na pessoa dos diretores de suas aldeias,
apontados para zelar pelos interesses deles e os conduzir, não raro se frustrou
pelo mau e mesmo inescrupuloso desempenho dessas funções. Responsável por isso
em grande parte, e talvez a falha maior do sistema adotado pelo Diretório, foi
o meio escolhido para a remuneração dos administradores dos índios; fixou-se na
sexta parte da produção de seus administrados e a ser deduzida dela. Isso fazia
do funcionário encarregado de zelar pela sorte deles um beneficiário direto do
seu trabalho, induzindo-o portanto a ver neles não o que deviam ser, tutelados
sob sua guarda, mas uma fonte de proveitos (No Maranhão substitui-se quase
inteiramente o trabalho do índio pelo do negro).
Com todos os seus defeitos, é certo que a
legislação pombalina contribuiu muito para os objetivos essenciais que tinha em
vista, e que representam sem dúvida os interesses fundamentais da colonização,
isto é, a incorporação do índio na massa geral da população. Que isto se deu,
pelo menos com os indígenas já aldeados — para os selvagens as leis de Pombal
nada preveem —, basta para comprová-lo observar o que se passou no Pará e no
Maranhão, onde seu número era considerável e representa a grande maioria dos
índios catequizados da colônia. Constituindo-se a maior parte da sua população
de índios, com um reduzidíssimo número de colonos brancos, entre os quais
sobressaíam os missionários, verdadeiros dirigentes aí da colonização,
conservam aquelas capitanias, até a data das leis de Pombal, caracteres
próprios que não as diferenciavam nítida e profundamente do resto da colônia,
mas as isolavam dele. Não se tratava do mesmo país. E a diferença se aprofundava
cada vez mais. Salvo nos centros mais importantes e num raio insignificante, a
administração oficial não tinha quase voz ativa; os colonos, em pequeno número,
necessitados de braços, tinham de ir solicitá-los quase sempre aos padres;
obtinham-nos, embora nem sempre, e com restrições consideráveis. Os índios, o
que quer dizer a quase totalidade da população, viviam segregados dos colonos e
sob a jurisdição exclusiva das missões. E é evidente que o que se formava
naquelas capitanias não tinha relação alguma com o resto do país. Alguns
sintomas bem aparentes indicavam a diferenciação que se estava realizando. É
assim o caso da linguagem empregada: salvo nas relações oficiais e no círculo
reduzido dos colonos brancos, não se falava o português, que era desconhecido.
A verdadeira língua era o tupi, universal e exclusivamente utilizada. Era de se
esperar que, sem a providência das leis pombalinas, aquele setor do Brasil se
integrasse no corpo da colônia? Parece mais provável que evoluiria numa direção
inteiramente diversa, e não chegaria nunca a fazer parte do país.
É a isso que a legislação pombalina obviou.
Por efeito dela e do contato mais íntimo que estabelece entre a massa indígena
e o elemento branco, aquela massa vai aos poucos, embora através de crises dolorosas,
integrando-se na população geral, e confundindo-se com ela. Não atribuamos isso
exclusivamente às medidas decretadas por Pombal; mas concedamo-lhes a devida
parte que lhes cabe nessa obra de absorção do índio na colonização e mais tarde
na nação brasileira.
Porém, mais que qualquer lei ou sistema de
civilização, contribuiu para a absorção da população indígena que habitava o
território brasileiro antes da vinda do colono branco, ou pelo menos de parte
dela que não foi pequena, o cruzamento das raças. E também, mais que qualquer
providência oficial, agiu para esse fim, como no caso paralelo e análogo do
negro, o impulso fisiológico dos indivíduos de uma raça de instinto sexual tão
aguçado como a portuguesa. A licença de costumes, que sempre foi a norma do
Brasil colônia, e que é assinalada e deplorada por todos quantos nos legaram
suas observações, fossem autoridades, missionários, cronistas ou simples
observadores ocasionais de dentro ou estrangeiros que nos visitaram, teve ao
menos essa contribuição positiva para a formação da nacionalidade brasileira: é
graças a ela que foi possível amalgamar e unificar raças tão profundamente
diversas, tanto nos seus caracteres étnicos como na posição relativa que
ocupavam na organização social da colônia.
A mestiçagem, que é o signo sob o qual se
forma a nação brasileira, e que constitui sem dúvida o seu traço característico
mais profundo e notável, foi a verdadeira solução encontrada pela colonização
portuguesa para o problema indígena.
Este contingente índio, bastante numeroso (o
barão do Rio Branco lhe atribui, em 1817, 259.400 indivíduos; não cita contudo
a fonte em que se informou. Henry Hill, cônsul inglês na Bahia, avaliando a
população brasileira em fins do século XVIII, lhe concede 100 mil, o que parece
pouco), se pode considerar definitivamente incorporado à população da
colônia. Fora este o resultado principal das leis de Pombal. Ele participa da
mesma vida, e embora sofrendo as contingências da sua raça bastarda e as
dificuldades de adaptação a um meio estranho, vai-se integrando nela
paulatinamente. Em grande parte pelo cruzamento que já não encontra os
obstáculos que lhes opunham os antigos diretores eclesiásticos. Mas além dos
cruzamentos que vão diluindo o seu sangue, o índio é aos poucos eliminado por
outras causas. As moléstias contribuem para isso grandemente, as bexigas em
particular, e também as moléstias venéreas. Elas produzem verdadeiras
hecatombes nessas populações ainda não imunizadas. Depauperam-nos os vícios que
a civilização lhes traz: a embriaguez é o mais ativo deles. A aguardente se
revelara o melhor estímulo para levar o índio ao trabalho: a colonização se
aproveitará largamente dela (Sabe-se que algumas nações indígenas, no seu
estado nativo, empregam bebidas alcoólicas e se embriagam. Mas isto é
excepcional, só por ocasião das festas e cerimônias. É quase um rito que se
repete de largo em largo. A colonização tornou a embriaguez do índio um estado
permanente). A isso acrescem os maus-tratos, um regime de vida estranho... A
população indígena, em contato com os brancos, vai sendo progressivamente
eliminada e repetindo mais uma vez um fato que sempre ocorreu em todos os
lugares e em todos os tempos em que se verificou a presença, uma ao lado da
outra, de raças de níveis culturais muito apartados: a inferior é dominada
desaparece. E não fosse o cruzamento, praticado em larga escala entre nós e que
permitiu a perpetuação do sangue indígena, este estaria fatalmente condenado à
extinção total.”
“O caráter mais saliente da formação étnica
do Brasil é a mestiçagem profunda das três raças (brancos, negros e índios) que
entram na sua composição. Juntas e mesclando-se sem limite, numa orgia de
sexualismo desenfreado que faria da população brasileira um dos mais variegados
conjuntos étnicos que a humanidade jamais conheceu.
A mestiçagem, signo sob o qual se formou a
etnia brasileira, resulta da excepcional capacidade do português em se cruzar
com outras raças. É a uma tal aptidão que o Brasil deveu a sua unidade, a sua
própria existência com os característicos que são os seus. Graças a ela, o
número relativamente pequeno de colonos brancos que veio povoar o território
pôde absorver as massas consideráveis de negros e índios que para ele afluíram
ou nele já se encontravam; pôde impor seus padrões e cultura à colônia, que
mais tarde, embora separada da mãe pátria, conservará os caracteres essenciais
da sua civilização.
Teria contribuído para aquela aptidão o trato
imemorial que as populações ocupantes do território lusitano tiveram com raças
de compleição mais escura. Essa extremidade da Europa foi sempre, desde os
tempos pré-históricos, um ponto de contato entre as raças brancas desse
continente e aquelas outras cujo centro de gravidade estava na África. A
invasão árabe mais tarde, senhoreando o território lusitano durante séculos; a
expansão colonial do século XV que prolongou o contato dos portugueses com os
mouros, e os estabelece com as populações negras da África; tudo isso veio
naturalmente favorecer a plasticidade do português em presença de raças
exóticas.
É provável que tal predisposição tivesse
contribuído a preparar o português para esse novo horizonte de contatos raciais
que se lhe deparou na América. Muito mais importante contudo, entre os fatores
da mestiçagem brasileira, foi o modo com que se processou a emigração
portuguesa para a colônia. O colono português emigra para o Brasil, em regra,
individualmente. A emigração para cá, sobretudo na fase mais ativa dela em que
responde ao apelo das minas, tem um caráter aventuroso em que — é a regra geral
em casos desta natureza — o homem emigra só. Daí a falta de mulheres brancas.
Mesmo quando o colono pretende trazer família, ele deixa isso para mais tarde,
para quando pisar em terreno firme e já puder prover com segurança à
subsistência dela. Na incerteza do desconhecido, ele começa partindo só.
A falta de mulheres brancas sempre foi um
problema de toda colonização europeia em territórios ultramarinos, mesmo
naqueles em que ela se processou em moldes mais regulares e menos aventurosos
que entre nós. Nos atuais Estados Unidos, onde por circunstâncias particulares
que não ocorrem no Brasil, a imigração por grupos familiares é numerosa, e em
certos momentos e áreas até a regra geral, recorreu-se muitas vezes ao
transporte de grandes levas de mulheres recrutadas na Inglaterra entre órfãs ou
raparigas sem dote, até entre criminosas e prostitutas, que partiram em levas
para as colônias do Novo Mundo a fim de satisfazer os apelos que de lá vinham.
Os franceses, no Canadá e na Luisiana, agiram da mesma forma; e, mais
recentemente, seguiu-se o exemplo na colonização da Austrália e da Nova
Zelândia.
Tal providência faltou no Brasil. E daí
verem-se os colonos destituídos de mulheres brancas. Isso, e mais a facilidade
dos cruzamentos com mulheres de outras raças, de posição social inferior e
portanto submissas, estimulou fortemente e mesmo forçou o colono a ir procurar
aí a satisfação de suas necessidades sexuais. Aliás, particularmente no caso da
índia, é notória a facilidade com que se entregava, e a indiferença e
passividade com que se submetia ao ato sexual. A impetuosidade característica
do português e a ausência total de freios morais completam o quadro: as uniões
mistas se tornaram a regra. E embora quase sempre à margem do casamento —
contra as uniões legais com pretas ou índias, sobretudo com as primeiras, havia
fortes preconceitos —, tais uniões irregulares, de tão frequentes que eram,
passaram à categoria de situações perfeitamente admitidas e aprovadas sem
restrições pela moral dominante. E os rebentos ilegítimos que delas resultassem
não sofriam com essa origem nenhuma diminuição.
Não é de admirar portanto o vulto que tivesse
tomado a mestiçagem brasileira. Escusado procurar dados estatísticos: mesmo
quando existem, o que é excepcional, eles são por natureza inteiramente falhos,
e não se prestam nem a serem tomados em consideração. Se assim ainda é hoje, o
que não seria num tempo em que os preconceitos são muito mais rigorosos e
arraigados? “Uma gota de sangue branco faz do brasileiro um branco, ao
contrário do americano, em que uma gota de sangue negro faz dele um negro”,
boutade que tem seu fundo de verdade. A classificação étnica do indivíduo se
faz no Brasil muito mais pela sua posição social; e a raça, pelo menos nas
classes superiores, é mais função daquela posição que dos caracteres somáticos.
É conhecida a anedota de Koster, que chamando a atenção de um seu empregado,
aliás, mulato, para a cor carregada e mais que suspeita de um capitão-mor,
obteve a singular resposta: “Era (mulato), porém já não o é”. E ao espanto do
inglês, acrescentava o empregado: “Pois, senhor, capitão-mor pode lá ser
mulato?”.
É graças a essa espécie de convenção tácita
que se harmonizava o preconceito de cor, paradoxalmente forte nesse país de
mestiçagem generalizada, com o fato, etnicamente incontestável, da presença de
sangue negro ou índio nas pessoas melhor qualificadas da colônia.
Mas na falta de dados quantitativos, podemos
contudo fazer certas apreciações gerais bastante seguras. Das três combinações
possíveis de sangue — branco-negro, branco-índio, negro-índio —, é a primeira
que prepondera. E já notei acima que para isso contribui tanto o maior volume
de negros como sua maior resistência e contato mais íntimo com o branco. A
terceira variante, que dá os cafuzos, é relativamente escassa. Não é difícil
explicá-lo. A mestiçagem brasileira é antes de tudo uma resultante do problema
sexual da raça dominante, e por centro o colono branco. Nesse cenário em que
três raças, uma dominadora e duas dominadas, estão em contato, tudo
naturalmente se dispõe ao sabor da primeira, no terreno econômico e no social,
e, em consequência, no das relações sexuais também. Não há na colônia, nem na
distribuição geográfica, nem sobretudo na disposição social das três raças, um
terreno comum em que as dominadas entrassem entre si em contato íntimo e
duradouro. O negro nas senzalas ou nos serviços domésticos do branco; o índio,
que se aproxima da colonização quase unicamente nas suas relações de trabalho
ou para satisfazer de outra forma o colono branco; aquele, concentrado nas
regiões economicamente mais prósperas, donde o outro é excluído: eis a posição
relativa das duas raças. Resulta que muito pequena foi a mistura delas entre
si; e isso apesar da atração, muitas vezes notada, que sobre a índia exerce o
negro.
Na mestiçagem do branco, muito mais numerosa,
repito, com o negro, podemos observar um fato que conduz a uma regra bastante
geral. Difundida por toda a população, ela se atenua à medida que ascendemos a
escala social. Passamos nessa ascensão, desde os primeiros degraus, onde
encontramos o negro escravo e o índio de posição social muito semelhante,
apesar das leis, à daquele, por um alvejamento sucessivo que nas classes
superiores se torna quase completo. Mesmo contudo nas camadas mais altas, o
sangue mestiço não falta, e apesar de todas as precauções aí adotadas para
ocultá-lo, observa Martius que a pureza de raças, embora muito apregoada,
“dificilmente poderá ser admitida pelo julgamento imparcial do estrangeiro”. O
contingente branco verdadeiramente puro compõe-se em regra quase exclusivamente
da imigração portuguesa mais recente, da que não tivera tempo ainda de se
mesclar com os naturais da colônia. Entre esses últimos, poucos, muito poucos
seriam os rigorosamente puros; o que aliás, em particular nas classes
superiores, não tinha importância social, porque a pequena dosagem do seu
sangue mestiço e a posição que ocupavam na sociedade eram o suficiente para
fazer esquecer ou desprezar a sua origem. Para todos os efeitos eram brancos
puros, como aquele capitão-mor de Koster.
O paralelismo das escalas cromáticas e social
faz do branco e da pureza de raça um ideal que exerce importante função na
evolução étnica brasileira; ao lado das circunstâncias assinaladas mais acima,
ele tem um grande papel na orientação dos cruzamentos, reforçando a posição
preponderante e o prestígio de procriador do branco. Dirige assim a seleção
sexual no sentido do branqueamento. Um fato bem sintomático de um tal estado de
coisas é a preocupação generalizada de “limpar o sangue”, como se chamava
aquela acentuação do influxo branco. Martius refere que muitos aventureiros
europeus passavam no Brasil uma vida descuidada de cidadãos abonados graças aos
casamentos realizados em famílias que estavam procurando apurar o seu sangue.
Até um empregado do naturalista recebeu propostas nesse sentido no alto sertão
do Piauí. Koster faz a mesma observação e refere fatos semelhantes. E mais
tarde, Hércules Florence, o relator da expedição Langsdorff, notará a mesma coisa
em Mato Grosso.
Podemos resumir aqui o panorama étnico do
Brasil em princípios do século passado: um fundo preponderante de mestiços,
mais ou menos carregados conforme o nível social a que pertencem os indivíduos,
e em que domina em geral o cruzamento branco-preto. Sobre esse fundo dispõem-se
grupos puros das três raças, alimentados continuamente pelo influxo de novos
contingentes. Esses são pequenos no caso dos índios, e por isso o seu grupo se
reduz e vai desaparecendo; consideráveis no do negro, sobretudo a partir do
momento que ora nos ocupa. A afluência de brancos se avoluma depois da abertura
dos portos em 1808, quando, a par dos portugueses, começam a chegar também
outras nacionalidades. Mas ficará, até a extinção do tráfico africano em 1850, sempre
muito aquém da de negros. Compensa-se a deficiência, em parte, com a
multiplicação mais rápida do elemento branco, graças às condições de sua
imigração, mais regular do ponto de vista da organização familiar, e em que as
mulheres são proporcionalmente mais numerosas.
Esses novos contingentes, brancos, pretos ou
índios, não contribuem porém para transformar fundamentalmente a feição étnica
predominante. Modificarão as dosagens, que penderão para o negro, o maior
contribuinte. Mas não alterarão o aspecto mestiçado do conjunto. Os elementos
puros vão sendo rapidamente eliminados pelo cruzamento. Também não alterarão o
paralelismo cromático e social que constitui o outro caráter essencial da etnia
brasileira. Isso porque os novos contingentes se distribuem na sociedade
respeitando a situação existente. O preto e o índio afluirão para as camadas
inferiores; o branco, para as mais elevadas; se não sempre de início, quando
chegam desprovidos de recursos, pelo menos mais tarde. A tendência para subir é
contudo geral; o que não se verifica no caso do negro ou do índio.
Reforça-se assim continuamente o aspecto
étnico da sociedade brasileira referido acima. Só muito mais tarde, e em áreas
restritas do país, começará o imigrante branco a afluir em grandes levas para
as camadas inferiores da população e nelas permanecer.”
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