Editora: Paulus
ISBN: 978-85-349-2770-3
Tradução: Celso Márcio Teixeira
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 416
Sinopse: Ver Parte
I
“Quando São Paulo se referia às pessoas com
suas realidades relacionais, costumava fazê-lo a partir da antropologia
semítica. Assim, a carne é a culpável pelo pecado e opõe-se ao espírito. Por
isso, a ressurreição será do corpo, não da carne (1Cor
15,35ss). Para Paulo, como para todo semita, a alma é a sede das funções de
consciência e deixa de existir com a morte; não é a alma, mas o espírito que
sobrevive. A alma, da mesma maneira que a carne, pertence a este mundo
transitório e deixa de ser com a morte. Tudo isto nos parecerá estranho, pois
pensamos como os gregos, não como os semitas.
No mundo de ascendência grega, em
contrapartida, devido à influência das filosofias aristotélica e platônica em
particular, o ser humano era considerado como um composto de corpo e alma, como
que com uma totalidade simples. O helenismo supervalorizava a alma,
menosprezando frequentemente o corpo; a prática de virtudes era vista como o
maior tesouro. O “espiritual”, as essências, era o primordial para o grego. A
morte veio a ser entendida como a separação do corpo e da alma – não como a
mudança de modo de existência com a permanência do “eu”, como o semita o
entende –, e a salvação concerne somente à alma. Esta é a maneira de entender o
ser humano que herdamos e que difere do pensamento da maioria dos escritos da
Bíblia. Em outras palavras, o semita tem uma visão unitária do
ser humano (é um todo, um “eu” em diversas manifestações); o grego tem uma
ideia dualista que contrapõe “corpo e alma”.”
“A ideia que os povos têm de seus deuses está
marcada por suas experiências com o cosmo, sendo os deuses os que estão “acima”
do mundo e o manejam. Não estranha que os hebreus inicialmente tivessem
semelhantes ideias sobre seu deus. O mais notório e, às vezes, chocante é a
ideia de Deus em termos militares: é o “Senhor dos exércitos”, o que ordena
massacres, que julga e fulmina. É um deus que, ao mesmo tempo em que tem
compaixão, é vingativo e sem misericórdia com seus “inimigos” (confira Juízes,
Sl
58, entre outros). Estas maneiras de entender e apresentar a Deus foram
assimiladas de algumas religiões dos arredores, predominantemente cananeias, e
só lentamente se foram purificando, embora em termos racistas: é o deus de
Israel que age somente a favor deles. O cristianismo rompeu com esta
compreensão exclusivista e excludente de Deus.
Por outro lado, com seu temperamento prático
e seu sentido comunitário, o hebreu se pergunta: Quem é Deus em relação a
nós? Assim, entendia a Deus em termos relacionais, como libertador, pai,
criador, juiz, quer dizer, como um Deus para as pessoas. No mundo greco-romano,
em contrapartida, inclinado à especulação e à contemplação, se perguntava: Quem
é Deus em si mesmo? Qual é a sua essência? O grego entende a Deus
em termos filosóficos, como onipotente, onisciente, espírito puro. Para o
hebreu, a perfeição de Deus não é ontológica, mas relacional: “faz nascer o sol
sobre maus e bons e manda a chuva sobre justos e injustos” (Mt
5,45). O hebreu escuta a Deus e lhe fala; o grego, em contrapartida, o olha
e admira.
Como consequência dessa ideia de Deus, a
relação com ele era pensada e vivida diferentemente. Para os semitas, era uma
relação de confiança, de diálogo, pois é um deus que se preocupa por eles; para
os de ascendência grega, era uma relação antes de adoração, de temor, a quem se
deve manter satisfeito. Por extensão, a ética também era diferente.
No judaísmo (como no islamismo), vida e
religião são inseparáveis: toda conduta está governada pela vontade de Deus;
portanto, deve-se estar em graça com ele. No mundo de mentalidade grega, a
conduta da pessoa está governada pelo ideal da perfeição pessoal e concentra-se
na prática das virtudes. Para o judaísmo, a ética é essencialmente social, pois
a religião é vivida comunitariamente. Israel tinha (e tem) forte consciência de
ser um povo escolhido por Deus. No helenismo, ao contrário, a ética é
predominantemente individual e, até certo ponto, familiar, marcada pela
contraposição de vícios e virtudes (cf. Gl
5,19-23; Ef 5,21-6,9).
Nas origens (semíticas), ser cristão
significava ser discípulo de Jesus e, como ele, o cristão devia expulsar
demônios, curar enfermos, anunciar a proximidade do reino de Deus. Quando
entrou a mentalidade grega, o acento foi sendo colocado na imitação pessoal
de determinadas “virtudes”, e Jesus passou a ser uma espécie de modelo de homem
perfeito. Do seguimento de Cristo se passou à imitação de suas virtudes. É
assim que aparecem os catálogos de vícios e de virtudes como essenciais para a
ética, por exemplo, em Rm
1,29s; Ef 5,3ss; Fl 4,8. Por conseguinte, enquanto que para uns o pecado
tem uma dimensão eminentemente social, para os outros é essencialmente pessoal.
Por isso mesmo, a perfeição se adquire, segundo o mundo grego, por meio
da ascese, na prática de virtudes pessoais, enquanto que, na
mentalidade semítica, é questão de uma práxis, quer dizer, de um comportamento
que conduz à vida social harmoniosa, em shalom.
O grego prioriza o espiritual e o abstrato, o
hebreu o material e sensível. Por isso mesmo, para o grego a salvação diz
respeito à alma, que ele considera imortal e eterna, enquanto que o hebreu fala
de ressurreição (inaceitável para o grego, que considera o corpo como o cárcere
da alma; cf. At
17,32; ICor
15,12.35), de reavivamento pelo espírito (não pela alma), de vida para
sempre (Jo).”
“Jesus empregou a parábola da ovelha perdida
como um meio de pregação com o propósito de chamar à conversão
os seus compatriotas (fariseus) que se sentiam demasiadamente seguros do
favoritismo de Deus. Mateus,
que se dirigia aos cristãos, não aos judeus, empregou esta parábola,
adaptando-a a um contexto (vital) de instrução, e situou-a no cap. 18, dedicado
a instruções para a vida em comunidade, de modo que lhe serviu de exemplo para
ilustrar a conduta que os cristãos devem observar com relação ao irmão que
facilmente se escandaliza (18,10-14): por isso, ele a situou nesse
contexto. Lucas,
ao contrário, escrevendo para uma comunidade composta majoritariamente por
convertidos do paganismo, que precisamente por isso era criticada pelo ambiente
judaico (contexto vital), empregou essa mesma parábola com uma finalidade apologética:
defender sua comunidade, justificando a aceitação de pagãos convertidos. Para
isso, Lucas construiu um contexto literário para a parábola da
ovelha perdida, que é apologética: leia 15,1ss. No tempo de Lucas, essa
introdução (contexto) traduzia o fato de que os judeus (= fariseus e escribas
da introdução) criticavam (= murmuravam), porque as autoridades cristãs no
tempo de Lucas (= Jesus) aceitavam na comunidade (= acolhiam) pagãos (=
pecadores). Parte do contexto literário em Mt e em Lc não é somente o que
precede a parábola, mas também a “lição moral” que se encontra em cada um no
final: Mt 18,14 (“Da mesma maneira seu Pai que está nos céus não quer que se
perca um só destes pequenos”), diferente de Lc 15,7 (“Igualmente,
haverá mais alegria no céu por um só pecador que se converte do
que por noventa e nove justos”).”
“O que foi exposto até aqui sobre a Bíblia
nos ajuda a entender por que nela se diz que Deus ordenou massacres impiedosos
como os que lemos nos livros de Josué e de Juízes. Igualmente, esclarece a
impressão que se tem de que o deus do Antigo Testamento é iracundo e malvado,
contrastado com o deus do Novo Testamento tido por misericordioso e amoroso –
como já havia observado e objetado Marcião no séc. II d.C. De fato, quando se
tomam os relatos bíblicos de massacres como reportagens jornalísticas, como ordens
literalmente dadas por Deus, são escandalosos e inaceitáveis para nossa
sensibilidade humana, e um deus dessa espécie é um tirano. Uma leitura
fundamentalista deste tipo serviu de justificação para as matanças de negros na
África do Sul (equiparados aos cananeus bíblicos) nas mãos dos imigrantes
holandeses (que se imaginaram ser o povo de Deus), por exemplo. Mas, quando se
conhece a origem da Bíblia, o assunto resulta diferente, e podemos compreender
corretamente os relatos de massacres. Comecemos por ter presente que os relatos
são posteriores aos próprios acontecimentos. Os acontecimentos que o povo de
Israel viveu foram interpretados por ele como ordens divinas.
O grupo de semitas que saiu do Egito foi
conquistando por sua astúcia e força muitos povos em seu ingresso nas terras de
Canaã. Suas vitórias (e também suas derrotas), que provavelmente eles não
esperavam, os levaram a interpretá-las como intervenções
divinas. Como explicaram que pudessem tomar este ou aquele povoado, e depois
outro, sendo eles um grupo amorfo? Como intervenção divina! E como interpretar
suas derrotas? Como castigos divinos! Em outras palavras, séculos mais tarde,
os hebreus viram sua história em termos de bênçãos e de maldições de Deus, de
recompensa e de castigos (veja Dt
30,15-20). Fizeram o mesmo que muitos outros povos, que viam sua história
nos mesmos termos, por isso buscavam aplacar a seus deuses. Eles interpretaram essa
história como vontade ou desígnio divino e, ao relatá-la, o fizeram como se
Deus tivesse ordenado os massacres. Mais ainda, para ressaltar a suposta
intervenção divina, exageravam as descrições e as cifras: a cidade estava
cercada por muralhas, os inimigos eram milhares etc. Não é que tenha sido assim
na realidade (por exemplo, Jericó), mas sim que, mediante o
exagero, o relato sublinhava a intervenção divina: sem sua
ajuda não teriam tido os impressionantes êxitos, pensavam eles. Se por
curiosidade computarmos os números de inimigos mortos, segundo os relatos
bíblicos (bem como as cifras no curso do êxodo), ficamos surpresos, pois supõe
uma população em Canaã muitas vezes superior à que essas terras tiveram. Mas a
matança de um inimigo tinha a importância que teria ter matado a mil, como a
vitória do minúsculo Davi (= Israel) sobre o gigante Golias (= Filisteia). É
uma avaliação subjetiva.
Para sublinhar a importância da tomada de
Jericó, ponto estratégico fundamental, ela foi pintada como grande cidade
cercada de muralhas, com milhares de soldados que caem ao toque de trombetas
etc. Igualmente, fizeram com relação à cidade de Hai (Js
6-8). Com isso, os narradores queriam produzir um impacto em seu auditório.
Os trabalhos de arqueologia ajudaram a compreender isto. Ao se desenterrarem as
supostas cidades gigantescas, descobriu-se que, na realidade, eram pequenas,
que sua população era muito inferior à que a Bíblia menciona e que, além disso,
no tempo da conquista nem Jericó nem Hai existiam como cidades povoadas, mas
eram pequenos vilarejos junto às ruínas do que séculos antes tinham
sido respeitáveis cidades, coisa que os cantores de gestas não supuseram
séculos mais tarde. O que os relatos bíblicos põem em relevo não é a impiedade
e a vingança de Deus, sua aparente sede de sangue, mas antes a convicção de que
Iahweh foi guiando esse povo em sua conquista da terra de Canaã, que eles
levaram a cabo “a sangue e fogo”. São épicas epopeias militares, com as típicas
acentuações nacionalistas que colocam Deus como agente principal dessas
“glórias”, porque assim legitimam sua posse de Canaã e afirmam sua identidade
judaica como povo da “aliança” (conceito político), como o povo favorecido por
Iahweh, seu Deus.”
“Os apócrifos dão a impressão de ser
Escritura, tanto pela linguagem que eles empregam como pelos temas que tratam.
Muitos se apresentam como obras de algum personagem importante: um patriarca,
um profeta, um apóstolo. Apresentam-se como obras, cujas mensagens haviam sido
escondidas por tratar-se de “revelações secretas”, reservadas a um círculo
fechado de privilegiados e que, por isso, somente agora saem à luz. Na
realidade, os apócrifos são, em sua maioria, composições tardias, muito
distantes do tempo em que supostamente teriam sido escritas. Quanto ao seu
conteúdo, alguns são dogmaticamente não-ortodoxos, quando não francamente
heréticos, outros são simplesmente novelescos, fantasiosos. Costumam ser
ampliações ou complementos mais ou menos piedosos ou filosóficos da informação
ou da revelação que se encontra nos escritos canônicos, cuja existência eles
conhecem e supõem.
Alguns apócrifos são coleções de lendas (por
exemplo, a respeito da infância de Maria e de Jesus), outros são apocalípticos
(muitos dos apócrifos judaicos) ou são obras que pretendiam justificar uma
visão teológica diferente da tradicional e oficial, isto é, se propunham
expressar a identidade de um grupo herético. Por exemplo, o famoso Evangelho de
Tomé, remontando-se a um suposto testemunho desse apóstolo, serviu para
justificar ou validar a posição de uma corrente gnóstica. Alguns apócrifos são
produtos da ficção piedosa, outros de determinada corrente teológica ou de um
interesse pedagógico edificante. (…)
Os apócrifos judaicos notáveis, segundo seu
gênero literário, são: (1) Narrativos: Jubileus, carta de
Aristéias, 2 Esdras, 3 Macabeus, Vida de Adão e Eva, Ascensão de Isaías,
Testamento de Jó, José e Asenet, 4 Baruc, Vida dos Profetas. (2) Sapienciais:
4 Macabeus e Achicar. (3) Testamentos: Testamentos dos Doze
Patriarcas, de Abraão, de Isaac, de Jacó, de Salomão, de Jó. (4) Apocalípticos:
1 e 2 Enoc, Oráculos Sibilinos, Apócrifo de Ezequiel, Apocalipse de Abraão, de
Elias, de Sofonias, de Esdras, 2 e 3 Baruc, 4 Esdras. (5) Orações:
Salmos de Salomão, Odes de Salomão, Oração de Manasses.
Os apócrifos cristãos são
mais numerosos do que os escritos canônicos; são quase uma centena. Os mais
antigos datam do séc. II, e os mais recentes datam da Idade Média. Entre os
evangelhos apócrifos, destacam-se os de Tiago (sobre os pais de Jesus e seus
primeiros anos) e de Pedro (com detalhes sobre a Paixão e a Ressurreição). Em
sua maioria, esses evangelhos são novelescos, com o claro propósito de encher o
“vazio histórico” deixado pelos canônicos. Outros são de franca tendência
herética, dos quais o mais conhecido é o Evangelho gnóstico de Tomé (coleção de
sentenças de Jesus), popularizado em novelas e no cinema. As cartas apócrifas
mostram claro interesse em legitimar a fundação de alguma comunidade. Algumas
se apresentam como cartas “perdidas”. Finalmente, entre os apocalípticos se
destacam os de Pedro e o de Tomé.
Os apócrifos cristãos mais
notáveis são: (1) Evangelhos de Tiago, de Pedro, de
Matias, de Judas, de Bartolomeu, de Maria, de Nicodemos, de Gamaliel, dos
Nazarenos, dos Egípcios, dos Ebionitas, dos Hebreus. A estes se devem
acrescentar os Evangelhos gnósticos, entre eles o Evangelho de Tomé, de Filipe,
da Perfeição, o da Verdade, a Pis-tis Sofia, o de João (gnóstico). (2) Atos de
André, de João, de Paulo, de Tomé, de Pedro, de Pedro e dos Doze, de Pedro e de
Paulo, Atos de Pilatos. (3) Cartas: 3 Coríntios, aos
Laodicenses; Carta dos Apóstolos, de Paulo a Sêneca, Pregação de Pedro,
os Kerigmata Petrou, e a gnóstica carta de Pedro a Filipe. (4) Apocalipses:
de Pedro, de Tomé, de Paulo, da Virgem, de João, de Estêvão, e os gnósticos de
Tiago e de Paulo. Muitos destes, os conhecemos somente por referências ou por
alguns fragmentos.”
“Depois de tudo, o próprio Jesus havia
relativizado, mudando, declarando nula ou radicalizando, a revelação anterior
que se encontra atestada nos escritos judaicos, como pertencentes a um período
“imperfeito” (cf. Mt
5,21-48).”
“É um fato que os cristãos geralmente não
outorgam grande importância ao Antigo Testamento, até se sentem incomodados com
ele, exceto por certas passagens. Consideram-no como algo superado e sem
atualidade, totalmente superado pelo Novo Testamento. De fato, raras vezes se
prega com base no Antigo Testamento. Costuma-se pensar que a importância que o
Antigo Testamento possa ter é a de simples história que preparava o caminho
para a vinda de Jesus. Ainda se ensina o Antigo Testamento como “história sagrada”,
sem consideração de gêneros literários (mitos, lendas, sagas, anedotas, são
tratados como história), e se omitem os livros proféticos e os didáticos e
sapienciais. Quando se consideram os livros proféticos, estes costumam ser
apresentados mediante seleções de textos que supostamente antecipavam ou
prediziam diferentes facetas da vida de Jesus. No entanto, admitimos que todos
foram inspirados e são Palavra de Deus, como de fato o cristianismo o reconheceu
ao decidir sobre sua canonicidade.
A pouca aceitação que o Antigo Testamento
costuma ter entre a maioria dos cristãos deve-se tanto ao fato de que não estão
familiarizados com a natureza da própria Bíblia como ao fato de que ela é
considerada quase exclusivamente em função do Novo Testamento ou, mais
concretamente, em função de Jesus Cristo. No entanto, o Antigo Testamento tem
valor em si mesmo.”
“Considerar o Antigo Testamento como
testemunhos das promessas ou como preparação para a vinda do messias é só
parcialmente correto. Esta maneira de ver o Antigo Testamento corre o risco de
não levar a sério os momentos e as vivências exclusivamente históricas daqueles
tempos. Mais ainda, considerar o Antigo Testamento exclusivamente como a
preparação para a vinda do messias implica considerar o messianismo como o
coração do Antigo Testamento, e isso não concorda com os próprios textos, pois
a maioria não faz referência alguma a um messias. Em outras palavras, ver o
Antigo Testamento em chave de preparação, de promessa ou de messianismo leva a
ver os profetas como essencialmente anunciadores de acontecimentos futuros,
distantes, e não como aquilo que foram, isto é, porta-vozes de Iahweh para seu
povo em seu aqui e agora concretos. Esta ideia leva a ver a própria história de
Israel como simples recordações que prefiguram ou preparam a hora do messias, e
os escritos didáticos ou sapienciais como acessórios de pouca importância. No
entanto, reconhecemos que todo o Antigo Testamento foi
inspirado por Deus e é Palavra de Deus, e não somente os textos que, de alguma
maneira, se relacionam com Jesus Cristo ou com o Novo Testamento. (…)
Do ponto de vista da história, os
acontecimentos e as experiências vividas pelo povo de Israel não
ocorreram para que servissem de prefiguração, com a finalidade de
ser modelos ou mesmo como preparação para a vinda de Jesus de Nazaré. Deus não
alimentou os hebreus no deserto com o maná, por exemplo, com a finalidade de
prefigurar a eucaristia, mas simplesmente para salvar esse povo da fome. Da
mesma maneira, Deus não inspirou a Moisés para guiar seu povo e dar-lhe um
código de leis para que Jesus mais tarde tivesse um modelo, ou
com o fim de que pudesse relativizar ou reinterpretar esse código de leis, mas
para o bem do povo hebreu naquele tempo.”
“É um fato que o Antigo Testamento é parte do
cânon cristão. E o é porque foi valorizado como Palavra de Deus e não como
mudas recordações. Segundo os Evangelhos, o próprio Jesus se referiu em
diversas ocasiões ao Antigo Testamento como Palavra de Deus (Mc
7,6-13; 10,2-9; 12,25s). Para ele, como para os primeiros cristãos, essa
era sua “Bíblia”. Sua maneira particular de entender o Antigo Testamento como
Palavra de Deus sempre atual, dinâmica, que expressa a vontade de
Deus mesmo, levou Jesus, e depois a seus seguidores, a reinterpretar esses
velhos textos, seja ab-rogando alguns ou corrigindo outros, seja
aprofundando-os (veja Mt
5,21-47). A tudo isto se deve acrescentar que o Deus de Jesus foi o mesmo
que o de Abraão, de Moisés e dos profetas, apesar da diferente maneira como
cada um o entendeu. E tanto Jesus como seus discípulos empregaram a linguagem
do Antigo Testamento: suas imagens, termos e alusões, símbolos e títulos
honoríficos; eles se referiam à criação, a determinados momentos históricos, a
promessas, bênçãos e pecados, a esperanças e anúncios expressos em textos do
AT, além de citá-los expressamente em certas ocasiões.
A Igreja primitiva entendeu e valorizou o
Antigo Testamento especialmente (mas não exclusivamente) como anúncio e
promessa salvífica. Por isso, ela destaca as referências aos textos de caráter
profético e messiânico do Antigo Testamento, tanto nos escritos do Novo
Testamento como nos dos Padres da Igreja. Se o Antigo Testamento era venerado
como a Palavra de Deus, e o acontecimento-Jesus Cristo era expressão viva e
máxima da Palavra desse mesmo Deus, era natural que no seio do cristianismo se
prestasse especial atenção à relação do Antigo Testamento – que era sua Bíblia
e que se lia em suas reuniões – com o acontecimento-Jesus Cristo.”
“Sabemos que, quando se absolutizam certas
passagens da Bíblia, podem-se justificar a escravidão, a poligamia, a vingança,
o genocídio, o racismo etc. Em seus conflitos e discussões com autoridades
religiosas de seu tempo, Jesus repetidas vezes relativizou certos aspectos da
Lei, declarou nulos outros e ressaltou a maneira de entender a vontade de Deus,
tomando como princípio fundamental o princípio do amor (veja Mt
5,21-47). Jesus não era fundamentalista em sua maneira de interpretar a
Palavra de Deus, nem se limitava ao que estava escrito nas Escrituras, tampouco
o eram os autores do Novo Testamento.”
“A autoridade da Bíblia tradicionalmente tem
sido explicada com a afirmação de que foi inspirada por Deus. A preocupação com
a inspiração divina surgiu durante o Renascimento e acentuou-se durante o
Iluminismo, conforme os estudos da Bíblia e de seu mundo colocavam a descoberto
suas origens humanas.
Segundo alguns, a menção de “inspiração” com
relação à Bíblia lança um halo de sacralidade sobre o texto e, segundo outros,
abre as portas para discussões. Por um lado, o tema da “inspiração”, que no
passado foi uma consideração fundamental ao se falar da Bíblia, hoje em dia
parece esquecido, a tal ponto que apenas é mencionado. Esse “esquecimento” não
se deve a que já esteja resolvido de todo ou porque não se deseje continuar
discutindo sobre ele, mas pela multiplicidade e complexidade dos fatores
envolvidos, particularmente com relação à origem dos textos bíblicos e por seu
grau de subjetividade – em última instância é uma afirmação de fé. Isto se
observa também no documento vaticano, intitulado A
interpretação da Bíblia na Igreja (1993).
Mas o tema da inspiração foi relegado ou, mais corretamente, “deslocado”,
também devido à intensidade com a qual os estudos bíblicos se têm aproximado
aos aspectos literários e filosóficos (hermenêuticos), em particular. Isso não
significa que se negue sua origem em Deus. Mas significa, sim, que não é fácil
explicá-lo. Por isso, a autoridade da Bíblia já não se afirma em razão de uma
inspiração divina, e menos ainda em razão de uma suposta inerrância, mas em
razão de sua capacidade inspiradora, razão pela qual se constituiu em cânon.”
“Exceto no caso da composição de certas
cartas e de alguns poemas, considerar como “autor” único a pessoa responsável
da redação final de um escrito bíblico, como é tradicional
fazer, é incorreto. Sob o termo “autor” é necessário incluir todos os que
contribuíram na formação do texto bíblico: o que formulou a tradição pela
primeira vez, os que a transmitiram, reformulando-a, o que a colocou por
escrito mais tarde, e também o que lhe deu o toque final (que temos). O “autor”
do livro de Isaías, por exemplo, não é somente o profeta, mas também seus
discípulos que preservaram e transmitiram suas profecias (orais) e os que
eventualmente as colocaram por escrito. Sem a voz do profeta não se teria
começado, e sem a tradição e os escritores (que foram vários) não teríamos
aquilo que está incluído no livro de Isaías. Em outras palavras, a inspiração
não se reduz ao privilégio de uma só pessoa. Portanto, o modelo profético como
explicação da inspiração bíblica é insuficiente.
É fácil falar da inspiração, utilizando como
modelo o profeta, sempre que se trata da inspiração de sentenças, de
pronunciamentos, de discursos. Mas quando se fala da inspiração bíblica, é
necessário e indispensável incluir os escritos onde se trata de relatos,
de narrações de acontecimentos, de diálogos, todos eles fazendo parte da
Bíblia. O modelo profético não serve para explicar a inspiração dos relatos.
Será que Deus inspirou da mesma maneira os discursos do profeta e o narrador
dos acontecimentos relatados na Bíblia, quer dizer, cada palavra do relato?
Existe um problema adicional com o modelo profético: tomou-se literalmente a
expressão “Deus disse a...”, interpretando-a como se Deus
literalmente tivesse pronunciado as palavras em questão, como se afirma quando
se trata de um “ditado” por parte de Deus. Caso tivesse sido assim, como
veremos, Deus se teria equivocado muitas vezes: seria responsável pelos erros
que estão na Bíblia, começando pelos erros linguísticos. Mas a expressão “Deus
disse a” ou qualquer uma de suas variantes, deve ser entendida em sentido
figurado, não literal, empregada para sublinhar a autoridade de Deus no que seu
porta-voz diz; Deus não falou como falamos nós, humanos. “O que o profeta
disse” é o que vem de Deus, a mensagem, e não as palavras como tais – o
conteúdo, não a forma. Por isso mesmo, podemos acrescentar que Deus também
“falou” através de diversos acontecimentos e vivências e, muitas vezes, mais
claramente. E por isso, para maior clareza, deveríamos dizer que os textos são
“Palavra de Deus em palavras de homens”.”
“A maioria dos Salmos,
o livro
de Jó, as epístolas,
os apocalipses
são criações de compositores. Em contrapartida, o Pentateuco,
os livros
históricos, Provérbios,
os Evangelhos,
entre outros, são obras de redatores: são coleções de tradições
orais de outros “compositores” (obras daqueles que pela primeira vez as
narraram e que continuaram sendo transmitidas até que o redator as escreveu).
Cada um daqueles que transmitiram oralmente o texto em questão foi também
“autor”, pois interpretou e adaptou o que ele por sua vez transmitia. O último
redator é também o último “autor”. A que vem tudo isto? Simplesmente pelo fato
de que, quando se diz que o “autor” foi inspirado por Deus, deve-se cuidar de
não limitá-lo exclusivamente ao redator, quando se trata de
obras que tiveram um percurso mais ou menos longo de tradição oral, ou quando o
texto atual é resultado de mais de uma redação profusa. Se falarmos do “autor”
do quarto Evangelho (João),
deveremos perguntar-nos se nos referimos àquele que fez o primeiro esboço
escrito do Evangelho (o apóstolo), ou ao que realizou a composição mais extensa
ou talvez ao redator final (que incluiu o cap. 21, por exemplo).
Costuma-se afirmar, sem mais nem menos, que
“Deus é o autor da Bíblia”. Esta inocente afirmação, tomada
literalmente, passa por cima da comunidade onde se viveu o escrito na Bíblia,
não faz menção alguma de um autor humano – e menos ainda do
papel que desempenharam a tradição oral ou as fontes escritas que foram usadas
– e emprega para Deus um termo “autor” no mesmo sentido em que se
emprega correntemente para os seres humanos. Deixa-se a impressão de estar
afirmando que Deus, e somente ele, é responsável por todo o texto bíblico, com
o qual ele é responsabilizado pelos erros na Bíblia! Seria correto somente se
“autor” significasse “a origem” do que está comunicado na Bíblia.
Deus não pegou a caneta nem ditou os textos! E quando se afirma, como é válido
fazê-lo, que “Deus inspirou o autor humano”, a quem realmente se refere?
Somente ao redator e – no caso de vários – ao último? (...)
Consciente dos aspectos humanos na redação
dos textos bíblicos, como vimos, a teologia escolástica, quando falava de Deus,
o fazia figuradamente, não no mesmo sentido que quando se fala de humanos.
Aplicado a Deus, o termo “autor” emprega-se para dizer que ele é o inspirador,
o que está na origem da escritura, e não que ele é o escritor ou que ditou as
palavras. Deus é o autor intelectual, não material, diríamos hoje.
A teologia escolástica fala de dois autores,
Deus e o homem. A referência a Deus como “o autor principal” revela
uma concepção simplista da inspiração, pois dá ao autor humano somente um
pequeno lugar na responsabilidade pelo texto, quase instrumental, “secundário”.
Ao se falar de Deus como “autor principal”, se lhe atribui implicitamente a
responsabilidade pelos erros e incongruências que encontramos na Bíblia; além
disso, ou se dá uma imagem distorcida de Deus (inconsistente consigo mesmo,
ignorante etc), ou se descarta a liberdade e a participação plenamente humana
na formação da Bíblia.
Para compreender de que maneira Deus “está na
origem da Escritura”, deve-se ter presente que os escritos da Bíblia são testemunhos
de vivências ou de experiências da presença ativa do espírito de Deus,
e não meras reportagens ou ditados. Somente assim se pode legitimamente aplicar
o termo inspiração aos escritos históricos, didáticos e poéticos, e não somente
aos proféticos. Se não for assim, como se poderia falar de inspiração,
referindo-se a relatos de acontecimentos e de experiências humanas?
Como se poderia aplicar o termo inspiração aos Salmos, nos quais são as pessoas
que se dirigem a Deus, e não ao contrário? Valha a redundância: deve-se evitar
reduzir o conceito de inspiração ao modelo do profeta e limitá-lo aos
discursos, deixando de lado os relatos.
Sintetizando tudo o que até agora foi dito, a
inspiração é essencialmente presença e comunicação divina, e esta se dá a
pessoas, não a escritos. Os escritos podem qualificar-se como inspirados,
somente na medida em que seus autores o estiveram.”
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