quinta-feira, 6 de outubro de 2016

A Bíblia sem mitos: uma introdução crítica (Parte II) – Eduardo Arens

Editora: Paulus
ISBN: 978-85-349-2770-3
Tradução: Celso Márcio Teixeira
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 416
Sinopse: Ver Parte I



“Quando São Paulo se referia às pessoas com suas realidades relacionais, costumava fazê-lo a partir da antropologia semítica. Assim, a carne é a culpável pelo pecado e opõe-se ao espírito. Por isso, a ressurreição será do corpo, não da carne (1Cor 15,35ss). Para Paulo, como para todo semita, a alma é a sede das funções de consciência e deixa de existir com a morte; não é a alma, mas o espírito que sobrevive. A alma, da mesma maneira que a carne, pertence a este mundo transitório e deixa de ser com a morte. Tudo isto nos parecerá estranho, pois pensamos como os gregos, não como os semitas. 
No mundo de ascendência grega, em contrapartida, devido à influência das filosofias aristotélica e platônica em particular, o ser humano era considerado como um composto de corpo e alma, como que com uma totalidade simples. O helenismo supervalorizava a alma, menosprezando frequentemente o corpo; a prática de virtudes era vista como o maior tesouro. O “espiritual”, as essências, era o primordial para o grego. A morte veio a ser entendida como a separação do corpo e da alma – não como a mudança de modo de existência com a permanência do “eu”, como o semita o entende –, e a salvação concerne somente à alma. Esta é a maneira de entender o ser humano que herdamos e que difere do pensamento da maioria dos escritos da Bíblia. Em outras palavras, o semita tem uma visão unitária do ser humano (é um todo, um “eu” em diversas manifestações); o grego tem uma ideia dualista que contrapõe “corpo e alma”.”


“A ideia que os povos têm de seus deuses está marcada por suas experiências com o cosmo, sendo os deuses os que estão “acima” do mundo e o manejam. Não estranha que os hebreus inicialmente tivessem semelhantes ideias sobre seu deus. O mais notório e, às vezes, chocante é a ideia de Deus em termos militares: é o “Senhor dos exércitos”, o que ordena massacres, que julga e fulmina. É um deus que, ao mesmo tempo em que tem compaixão, é vingativo e sem misericórdia com seus “inimigos” (confira Juízes, Sl 58, entre outros). Estas maneiras de entender e apresentar a Deus foram assimiladas de algumas religiões dos arredores, predominantemente cananeias, e só lentamente se foram purificando, embora em termos racistas: é o deus de Israel que age somente a favor deles. O cristianismo rompeu com esta compreensão exclusivista e excludente de Deus.
Por outro lado, com seu temperamento prático e seu sentido comunitário, o hebreu se pergunta: Quem é Deus em relação a nós? Assim, entendia a Deus em termos relacionais, como libertador, pai, criador, juiz, quer dizer, como um Deus para as pessoas. No mundo greco-romano, em contrapartida, inclinado à especulação e à contemplação, se perguntava: Quem é Deus em si mesmo? Qual é a sua essência? O grego entende a Deus em termos filosóficos, como onipotente, onisciente, espírito puro. Para o hebreu, a perfeição de Deus não é ontológica, mas relacional: “faz nascer o sol sobre maus e bons e manda a chuva sobre justos e injustos” (Mt 5,45). O hebreu escuta a Deus e lhe fala; o grego, em contrapartida, o olha e admira.
Como consequência dessa ideia de Deus, a relação com ele era pensada e vivida diferentemente. Para os semitas, era uma relação de confiança, de diálogo, pois é um deus que se preocupa por eles; para os de ascendência grega, era uma relação antes de adoração, de temor, a quem se deve manter satisfeito. Por extensão, a ética também era diferente.
No judaísmo (como no islamismo), vida e religião são inseparáveis: toda conduta está governada pela vontade de Deus; portanto, deve-se estar em graça com ele. No mundo de mentalidade grega, a conduta da pessoa está governada pelo ideal da perfeição pessoal e concentra-se na prática das virtudes. Para o judaísmo, a ética é essencialmente social, pois a religião é vivida comunitariamente. Israel tinha (e tem) forte consciência de ser um povo escolhido por Deus. No helenismo, ao contrário, a ética é predominantemente individual e, até certo ponto, familiar, marcada pela contraposição de vícios e virtudes (cf. Gl 5,19-23; Ef 5,21-6,9).
Nas origens (semíticas), ser cristão significava ser discípulo de Jesus e, como ele, o cristão devia expulsar demônios, curar enfermos, anunciar a proximidade do reino de Deus. Quando entrou a mentalidade grega, o acento foi sendo colocado na imitação pessoal de determinadas “virtudes”, e Jesus passou a ser uma espécie de modelo de homem perfeito. Do seguimento de Cristo se passou à imitação de suas virtudes. É assim que aparecem os catálogos de vícios e de virtudes como essenciais para a ética, por exemplo, em Rm 1,29s; Ef 5,3ss; Fl 4,8. Por conseguinte, enquanto que para uns o pecado tem uma dimensão eminentemente social, para os outros é essencialmente pessoal. Por isso mesmo, a perfeição se adquire, segundo o mundo grego, por meio da ascese, na prática de virtudes pessoais, enquanto que, na mentalidade semítica, é questão de uma práxis, quer dizer, de um comportamento que conduz à vida social harmoniosa, em shalom.
O grego prioriza o espiritual e o abstrato, o hebreu o material e sensível. Por isso mesmo, para o grego a salvação diz respeito à alma, que ele considera imortal e eterna, enquanto que o hebreu fala de ressurreição (inaceitável para o grego, que considera o corpo como o cárcere da alma; cf. At 17,32; ICor 15,12.35), de reavivamento pelo espírito (não pela alma), de vida para sempre (Jo).”


“Jesus empregou a parábola da ovelha perdida como um meio de pregação com o propósito de chamar à conversão os seus compatriotas (fariseus) que se sentiam demasiadamente seguros do favoritismo de Deus. Mateus, que se dirigia aos cristãos, não aos judeus, empregou esta parábola, adaptando-a a um contexto (vital) de instrução, e situou-a no cap. 18, dedicado a instruções para a vida em comunidade, de modo que lhe serviu de exemplo para ilustrar a conduta que os cristãos devem observar com relação ao irmão que facilmente se escandaliza (18,10-14): por isso, ele a situou nesse contexto. Lucas, ao contrário, escrevendo para uma comunidade composta majoritariamente por convertidos do paganismo, que precisamente por isso era criticada pelo ambiente judaico (contexto vital), empregou essa mesma parábola com uma finalidade apologética: defender sua comunidade, justificando a aceitação de pagãos convertidos. Para isso, Lucas construiu um contexto literário para a parábola da ovelha perdida, que é apologética: leia 15,1ss. No tempo de Lucas, essa introdução (contexto) traduzia o fato de que os judeus (= fariseus e escribas da introdução) criticavam (= murmuravam), porque as autoridades cristãs no tempo de Lucas (= Jesus) aceitavam na comunidade (= acolhiam) pagãos (= pecadores). Parte do contexto literário em Mt e em Lc não é somente o que precede a parábola, mas também a “lição moral” que se encontra em cada um no final: Mt 18,14 (“Da mesma maneira seu Pai que está nos céus não quer que se perca um só destes pequenos”), diferente de Lc 15,7 (“Igualmente, haverá mais alegria no céu por um só pecador que se converte do que por noventa e nove justos”).”


“O que foi exposto até aqui sobre a Bíblia nos ajuda a entender por que nela se diz que Deus ordenou massacres impiedosos como os que lemos nos livros de Josué e de Juízes. Igualmente, esclarece a impressão que se tem de que o deus do Antigo Testamento é iracundo e malvado, contrastado com o deus do Novo Testamento tido por misericordioso e amoroso – como já havia observado e objetado Marcião no séc. II d.C. De fato, quando se tomam os relatos bíblicos de massacres como reportagens jornalísticas, como ordens literalmente dadas por Deus, são escandalosos e inaceitáveis para nossa sensibilidade humana, e um deus dessa espécie é um tirano. Uma leitura fundamentalista deste tipo serviu de justificação para as matanças de negros na África do Sul (equiparados aos cananeus bíblicos) nas mãos dos imigrantes holandeses (que se imaginaram ser o povo de Deus), por exemplo. Mas, quando se conhece a origem da Bíblia, o assunto resulta diferente, e podemos compreender corretamente os relatos de massacres. Comecemos por ter presente que os relatos são posteriores aos próprios acontecimentos. Os acontecimentos que o povo de Israel viveu foram interpretados por ele como ordens divinas.
O grupo de semitas que saiu do Egito foi conquistando por sua astúcia e força muitos povos em seu ingresso nas terras de Canaã. Suas vitórias (e também suas derrotas), que provavelmente eles não esperavam, os levaram a interpretá-las como intervenções divinas. Como explicaram que pudessem tomar este ou aquele povoado, e depois outro, sendo eles um grupo amorfo? Como intervenção divina! E como interpretar suas derrotas? Como castigos divinos! Em outras palavras, séculos mais tarde, os hebreus viram sua história em termos de bênçãos e de maldições de Deus, de recompensa e de castigos (veja Dt 30,15-20). Fizeram o mesmo que muitos outros povos, que viam sua história nos mesmos termos, por isso buscavam aplacar a seus deuses. Eles interpretaram essa história como vontade ou desígnio divino e, ao relatá-la, o fizeram como se Deus tivesse ordenado os massacres. Mais ainda, para ressaltar a suposta intervenção divina, exageravam as descrições e as cifras: a cidade estava cercada por muralhas, os inimigos eram milhares etc. Não é que tenha sido assim na realidade (por exemplo, Jericó), mas sim que, mediante o exagero, o relato sublinhava a intervenção divina: sem sua ajuda não teriam tido os impressionantes êxitos, pensavam eles. Se por curiosidade computarmos os números de inimigos mortos, segundo os relatos bíblicos (bem como as cifras no curso do êxodo), ficamos surpresos, pois supõe uma população em Canaã muitas vezes superior à que essas terras tiveram. Mas a matança de um inimigo tinha a importância que teria ter matado a mil, como a vitória do minúsculo Davi (= Israel) sobre o gigante Golias (= Filisteia). É uma avaliação subjetiva.
Para sublinhar a importância da tomada de Jericó, ponto estratégico fundamental, ela foi pintada como grande cidade cercada de muralhas, com milhares de soldados que caem ao toque de trombetas etc. Igualmente, fizeram com relação à cidade de Hai (Js 6-8). Com isso, os narradores queriam produzir um impacto em seu auditório. Os trabalhos de arqueologia ajudaram a compreender isto. Ao se desenterrarem as supostas cidades gigantescas, descobriu-se que, na realidade, eram pequenas, que sua população era muito inferior à que a Bíblia menciona e que, além disso, no tempo da conquista nem Jericó nem Hai existiam como cidades povoadas, mas eram pequenos vilarejos junto às ruínas do que séculos antes tinham sido respeitáveis cidades, coisa que os cantores de gestas não supuseram séculos mais tarde. O que os relatos bíblicos põem em relevo não é a impiedade e a vingança de Deus, sua aparente sede de sangue, mas antes a convicção de que Iahweh foi guiando esse povo em sua conquista da terra de Canaã, que eles levaram a cabo “a sangue e fogo”. São épicas epopeias militares, com as típicas acentuações nacionalistas que colocam Deus como agente principal dessas “glórias”, porque assim legitimam sua posse de Canaã e afirmam sua identidade judaica como povo da “aliança” (conceito político), como o povo favorecido por Iahweh, seu Deus.”


“Os apócrifos dão a impressão de ser Escritura, tanto pela linguagem que eles empregam como pelos temas que tratam. Muitos se apresentam como obras de algum personagem importante: um patriarca, um profeta, um apóstolo. Apresentam-se como obras, cujas mensagens haviam sido escondidas por tratar-se de “revelações secretas”, reservadas a um círculo fechado de privilegiados e que, por isso, somente agora saem à luz. Na realidade, os apócrifos são, em sua maioria, composições tardias, muito distantes do tempo em que supostamente teriam sido escritas. Quanto ao seu conteúdo, alguns são dogmaticamente não-ortodoxos, quando não francamente heréticos, outros são simplesmente novelescos, fantasiosos. Costumam ser ampliações ou complementos mais ou menos piedosos ou filosóficos da informação ou da revelação que se encontra nos escritos canônicos, cuja existência eles conhecem e supõem.
Alguns apócrifos são coleções de lendas (por exemplo, a respeito da infância de Maria e de Jesus), outros são apocalípticos (muitos dos apócrifos judaicos) ou são obras que pretendiam justificar uma visão teológica diferente da tradicional e oficial, isto é, se propunham expressar a identidade de um grupo herético. Por exemplo, o famoso Evangelho de Tomé, remontando-se a um suposto testemunho desse apóstolo, serviu para justificar ou validar a posição de uma corrente gnóstica. Alguns apócrifos são produtos da ficção piedosa, outros de determinada corrente teológica ou de um interesse pedagógico edificante. (…)
Os apócrifos judaicos notáveis, segundo seu gênero literário, são: (1) Narrativos: Jubileus, carta de Aristéias, 2 Esdras, 3 Macabeus, Vida de Adão e Eva, Ascensão de Isaías, Testamento de Jó, José e Asenet, 4 Baruc, Vida dos Profetas. (2) Sapienciais: 4 Macabeus e Achicar. (3) Testamentos: Testamentos dos Doze Patriarcas, de Abraão, de Isaac, de Jacó, de Salomão, de Jó. (4) Apocalípticos: 1 e 2 Enoc, Oráculos Sibilinos, Apócrifo de Ezequiel, Apocalipse de Abraão, de Elias, de Sofonias, de Esdras, 2 e 3 Baruc, 4 Esdras. (5) Orações: Salmos de Salomão, Odes de Salomão, Oração de Manasses.
Os apócrifos cristãos são mais numerosos do que os escritos canônicos; são quase uma centena. Os mais antigos datam do séc. II, e os mais recentes datam da Idade Média. Entre os evangelhos apócrifos, destacam-se os de Tiago (sobre os pais de Jesus e seus primeiros anos) e de Pedro (com detalhes sobre a Paixão e a Ressurreição). Em sua maioria, esses evangelhos são novelescos, com o claro propósito de encher o “vazio histórico” deixado pelos canônicos. Outros são de franca tendência herética, dos quais o mais conhecido é o Evangelho gnóstico de Tomé (coleção de sentenças de Jesus), popularizado em novelas e no cinema. As cartas apócrifas mostram claro interesse em legitimar a fundação de alguma comunidade. Algumas se apresentam como cartas “perdidas”. Finalmente, entre os apocalípticos se destacam os de Pedro e o de Tomé.
Os apócrifos cristãos mais notáveis são: (1) Evangelhos de Tiago, de Pedro, de Matias, de Judas, de Bartolomeu, de Maria, de Nicodemos, de Gamaliel, dos Nazarenos, dos Egípcios, dos Ebionitas, dos Hebreus. A estes se devem acrescentar os Evangelhos gnósticos, entre eles o Evangelho de Tomé, de Filipe, da Perfeição, o da Verdade, a Pis-tis Sofia, o de João (gnóstico). (2) Atos de André, de João, de Paulo, de Tomé, de Pedro, de Pedro e dos Doze, de Pedro e de Paulo, Atos de Pilatos. (3) Cartas: 3 Coríntios, aos Laodicenses; Carta dos Apóstolos, de Paulo a Sêneca, Pregação de Pedro, os Kerigmata Petrou, e a gnóstica carta de Pedro a Filipe. (4) Apocalipses: de Pedro, de Tomé, de Paulo, da Virgem, de João, de Estêvão, e os gnósticos de Tiago e de Paulo. Muitos destes, os conhecemos somente por referências ou por alguns fragmentos.”


“Depois de tudo, o próprio Jesus havia relativizado, mudando, declarando nula ou radicalizando, a revelação anterior que se encontra atestada nos escritos judaicos, como pertencentes a um período “imperfeito” (cf. Mt 5,21-48).”


“É um fato que os cristãos geralmente não outorgam grande importância ao Antigo Testamento, até se sentem incomodados com ele, exceto por certas passagens. Consideram-no como algo superado e sem atualidade, totalmente superado pelo Novo Testamento. De fato, raras vezes se prega com base no Antigo Testamento. Costuma-se pensar que a importância que o Antigo Testamento possa ter é a de simples história que preparava o caminho para a vinda de Jesus. Ainda se ensina o Antigo Testamento como “história sagrada”, sem consideração de gêneros literários (mitos, lendas, sagas, anedotas, são tratados como história), e se omitem os livros proféticos e os didáticos e sapienciais. Quando se consideram os livros proféticos, estes costumam ser apresentados mediante seleções de textos que supostamente antecipavam ou prediziam diferentes facetas da vida de Jesus. No entanto, admitimos que todos foram inspirados e são Palavra de Deus, como de fato o cristianismo o reconheceu ao decidir sobre sua canonicidade.
A pouca aceitação que o Antigo Testamento costuma ter entre a maioria dos cristãos deve-se tanto ao fato de que não estão familiarizados com a natureza da própria Bíblia como ao fato de que ela é considerada quase exclusivamente em função do Novo Testamento ou, mais concretamente, em função de Jesus Cristo. No entanto, o Antigo Testamento tem valor em si mesmo.”


“Considerar o Antigo Testamento como testemunhos das promessas ou como preparação para a vinda do messias é só parcialmente correto. Esta maneira de ver o Antigo Testamento corre o risco de não levar a sério os momentos e as vivências exclusivamente históricas daqueles tempos. Mais ainda, considerar o Antigo Testamento exclusivamente como a preparação para a vinda do messias implica considerar o messianismo como o coração do Antigo Testamento, e isso não concorda com os próprios textos, pois a maioria não faz referência alguma a um messias. Em outras palavras, ver o Antigo Testamento em chave de preparação, de promessa ou de messianismo leva a ver os profetas como essencialmente anunciadores de acontecimentos futuros, distantes, e não como aquilo que foram, isto é, porta-vozes de Iahweh para seu povo em seu aqui e agora concretos. Esta ideia leva a ver a própria história de Israel como simples recordações que prefiguram ou preparam a hora do messias, e os escritos didáticos ou sapienciais como acessórios de pouca importância. No entanto, reconhecemos que todo o Antigo Testamento foi inspirado por Deus e é Palavra de Deus, e não somente os textos que, de alguma maneira, se relacionam com Jesus Cristo ou com o Novo Testamento. (…)
Do ponto de vista da história, os acontecimentos e as experiências vividas pelo povo de Israel não ocorreram para que servissem de prefiguração, com a finalidade de ser modelos ou mesmo como preparação para a vinda de Jesus de Nazaré. Deus não alimentou os hebreus no deserto com o maná, por exemplo, com a finalidade de prefigurar a eucaristia, mas simplesmente para salvar esse povo da fome. Da mesma maneira, Deus não inspirou a Moisés para guiar seu povo e dar-lhe um código de leis para que Jesus mais tarde tivesse um modelo, ou com o fim de que pudesse relativizar ou reinterpretar esse código de leis, mas para o bem do povo hebreu naquele tempo.”


“É um fato que o Antigo Testamento é parte do cânon cristão. E o é porque foi valorizado como Palavra de Deus e não como mudas recordações. Segundo os Evangelhos, o próprio Jesus se referiu em diversas ocasiões ao Antigo Testamento como Palavra de Deus (Mc 7,6-13; 10,2-9; 12,25s). Para ele, como para os primeiros cristãos, essa era sua “Bíblia”. Sua maneira particular de entender o Antigo Testamento como Palavra de Deus sempre atual, dinâmica, que expressa a vontade de Deus mesmo, levou Jesus, e depois a seus seguidores, a reinterpretar esses velhos textos, seja ab-rogando alguns ou corrigindo outros, seja aprofundando-os (veja Mt 5,21-47). A tudo isto se deve acrescentar que o Deus de Jesus foi o mesmo que o de Abraão, de Moisés e dos profetas, apesar da diferente maneira como cada um o entendeu. E tanto Jesus como seus discípulos empregaram a linguagem do Antigo Testamento: suas imagens, termos e alusões, símbolos e títulos honoríficos; eles se referiam à criação, a determinados momentos históricos, a promessas, bênçãos e pecados, a esperanças e anúncios expressos em textos do AT, além de citá-los expressamente em certas ocasiões.
A Igreja primitiva entendeu e valorizou o Antigo Testamento especialmente (mas não exclusivamente) como anúncio e promessa salvífica. Por isso, ela destaca as referências aos textos de caráter profético e messiânico do Antigo Testamento, tanto nos escritos do Novo Testamento como nos dos Padres da Igreja. Se o Antigo Testamento era venerado como a Palavra de Deus, e o acontecimento-Jesus Cristo era expressão viva e máxima da Palavra desse mesmo Deus, era natural que no seio do cristianismo se prestasse especial atenção à relação do Antigo Testamento – que era sua Bíblia e que se lia em suas reuniões – com o acontecimento-Jesus Cristo.”


“Sabemos que, quando se absolutizam certas passagens da Bíblia, podem-se justificar a escravidão, a poligamia, a vingança, o genocídio, o racismo etc. Em seus conflitos e discussões com autoridades religiosas de seu tempo, Jesus repetidas vezes relativizou certos aspectos da Lei, declarou nulos outros e ressaltou a maneira de entender a vontade de Deus, tomando como princípio fundamental o princípio do amor (veja Mt 5,21-47). Jesus não era fundamentalista em sua maneira de interpretar a Palavra de Deus, nem se limitava ao que estava escrito nas Escrituras, tampouco o eram os autores do Novo Testamento.”


“A autoridade da Bíblia tradicionalmente tem sido explicada com a afirmação de que foi inspirada por Deus. A preocupação com a inspiração divina surgiu durante o Renascimento e acentuou-se durante o Iluminismo, conforme os estudos da Bíblia e de seu mundo colocavam a descoberto suas origens humanas.
Segundo alguns, a menção de “inspiração” com relação à Bíblia lança um halo de sacralidade sobre o texto e, segundo outros, abre as portas para discussões. Por um lado, o tema da “inspiração”, que no passado foi uma consideração fundamental ao se falar da Bíblia, hoje em dia parece esquecido, a tal ponto que apenas é mencionado. Esse “esquecimento” não se deve a que já esteja resolvido de todo ou porque não se deseje continuar discutindo sobre ele, mas pela multiplicidade e complexidade dos fatores envolvidos, particularmente com relação à origem dos textos bíblicos e por seu grau de subjetividade – em última instância é uma afirmação de fé. Isto se observa também no documento vaticano, intitulado A interpretação da Bíblia na Igreja (1993). Mas o tema da inspiração foi relegado ou, mais corretamente, “deslocado”, também devido à intensidade com a qual os estudos bíblicos se têm aproximado aos aspectos literários e filosóficos (hermenêuticos), em particular. Isso não significa que se negue sua origem em Deus. Mas significa, sim, que não é fácil explicá-lo. Por isso, a autoridade da Bíblia já não se afirma em razão de uma inspiração divina, e menos ainda em razão de uma suposta inerrância, mas em razão de sua capacidade inspiradora, razão pela qual se constituiu em cânon.”


“Exceto no caso da composição de certas cartas e de alguns poemas, considerar como “autor” único a pessoa responsável da redação final de um escrito bíblico, como é tradicional fazer, é incorreto. Sob o termo “autor” é necessário incluir todos os que contribuíram na formação do texto bíblico: o que formulou a tradição pela primeira vez, os que a transmitiram, reformulando-a, o que a colocou por escrito mais tarde, e também o que lhe deu o toque final (que temos). O “autor” do livro de Isaías, por exemplo, não é somente o profeta, mas também seus discípulos que preservaram e transmitiram suas profecias (orais) e os que eventualmente as colocaram por escrito. Sem a voz do profeta não se teria começado, e sem a tradição e os escritores (que foram vários) não teríamos aquilo que está incluído no livro de Isaías. Em outras palavras, a inspiração não se reduz ao privilégio de uma só pessoa. Portanto, o modelo profético como explicação da inspiração bíblica é insuficiente.
É fácil falar da inspiração, utilizando como modelo o profeta, sempre que se trata da inspiração de sentenças, de pronunciamentos, de discursos. Mas quando se fala da inspiração bíblica, é necessário e indispensável incluir os escritos onde se trata de relatos, de narrações de acontecimentos, de diálogos, todos eles fazendo parte da Bíblia. O modelo profético não serve para explicar a inspiração dos relatos. Será que Deus inspirou da mesma maneira os discursos do profeta e o narrador dos acontecimentos relatados na Bíblia, quer dizer, cada palavra do relato? Existe um problema adicional com o modelo profético: tomou-se literalmente a expressão “Deus disse a...”, interpretando-a como se Deus literalmente tivesse pronunciado as palavras em questão, como se afirma quando se trata de um “ditado” por parte de Deus. Caso tivesse sido assim, como veremos, Deus se teria equivocado muitas vezes: seria responsável pelos erros que estão na Bíblia, começando pelos erros linguísticos. Mas a expressão “Deus disse a” ou qualquer uma de suas variantes, deve ser entendida em sentido figurado, não literal, empregada para sublinhar a autoridade de Deus no que seu porta-voz diz; Deus não falou como falamos nós, humanos. “O que o profeta disse” é o que vem de Deus, a mensagem, e não as palavras como tais – o conteúdo, não a forma. Por isso mesmo, podemos acrescentar que Deus também “falou” através de diversos acontecimentos e vivências e, muitas vezes, mais claramente. E por isso, para maior clareza, deveríamos dizer que os textos são “Palavra de Deus em palavras de homens”.”


“A maioria dos Salmos, o livro de Jó, as epístolas, os apocalipses são criações de compositores. Em contrapartida, o Pentateuco, os livros históricos, Provérbios, os Evangelhos, entre outros, são obras de redatores: são coleções de tradições orais de outros “compositores” (obras daqueles que pela primeira vez as narraram e que continuaram sendo transmitidas até que o redator as escreveu). Cada um daqueles que transmitiram oralmente o texto em questão foi também “autor”, pois interpretou e adaptou o que ele por sua vez transmitia. O último redator é também o último “autor”. A que vem tudo isto? Simplesmente pelo fato de que, quando se diz que o “autor” foi inspirado por Deus, deve-se cuidar de não limitá-lo exclusivamente ao redator, quando se trata de obras que tiveram um percurso mais ou menos longo de tradição oral, ou quando o texto atual é resultado de mais de uma redação profusa. Se falarmos do “autor” do quarto Evangelho (João), deveremos perguntar-nos se nos referimos àquele que fez o primeiro esboço escrito do Evangelho (o apóstolo), ou ao que realizou a composição mais extensa ou talvez ao redator final (que incluiu o cap. 21, por exemplo).
Costuma-se afirmar, sem mais nem menos, que “Deus é o autor da Bíblia”. Esta inocente afirmação, tomada literalmente, passa por cima da comunidade onde se viveu o escrito na Bíblia, não faz menção alguma de um autor humano – e menos ainda do papel que desempenharam a tradição oral ou as fontes escritas que foram usadas – e emprega para Deus um termo “autor” no mesmo sentido em que se emprega correntemente para os seres humanos. Deixa-se a impressão de estar afirmando que Deus, e somente ele, é responsável por todo o texto bíblico, com o qual ele é responsabilizado pelos erros na Bíblia! Seria correto somente se “autor” significasse “a origem” do que está comunicado na Bíblia. Deus não pegou a caneta nem ditou os textos! E quando se afirma, como é válido fazê-lo, que “Deus inspirou o autor humano”, a quem realmente se refere? Somente ao redator e – no caso de vários – ao último? (...)
Consciente dos aspectos humanos na redação dos textos bíblicos, como vimos, a teologia escolástica, quando falava de Deus, o fazia figuradamente, não no mesmo sentido que quando se fala de humanos. Aplicado a Deus, o termo “autor” emprega-se para dizer que ele é o inspirador, o que está na origem da escritura, e não que ele é o escritor ou que ditou as palavras. Deus é o autor intelectual, não material, diríamos hoje.
A teologia escolástica fala de dois autores, Deus e o homem. A referência a Deus como “o autor principal” revela uma concepção simplista da inspiração, pois dá ao autor humano somente um pequeno lugar na responsabilidade pelo texto, quase instrumental, “secundário”. Ao se falar de Deus como “autor principal”, se lhe atribui implicitamente a responsabilidade pelos erros e incongruências que encontramos na Bíblia; além disso, ou se dá uma imagem distorcida de Deus (inconsistente consigo mesmo, ignorante etc), ou se descarta a liberdade e a participação plenamente humana na formação da Bíblia.
Para compreender de que maneira Deus “está na origem da Escritura”, deve-se ter presente que os escritos da Bíblia são testemunhos de vivências ou de experiências da presença ativa do espírito de Deus, e não meras reportagens ou ditados. Somente assim se pode legitimamente aplicar o termo inspiração aos escritos históricos, didáticos e poéticos, e não somente aos proféticos. Se não for assim, como se poderia falar de inspiração, referindo-se a relatos de acontecimentos e de experiências humanas? Como se poderia aplicar o termo inspiração aos Salmos, nos quais são as pessoas que se dirigem a Deus, e não ao contrário? Valha a redundância: deve-se evitar reduzir o conceito de inspiração ao modelo do profeta e limitá-lo aos discursos, deixando de lado os relatos.
Sintetizando tudo o que até agora foi dito, a inspiração é essencialmente presença e comunicação divina, e esta se dá a pessoas, não a escritos. Os escritos podem qualificar-se como inspirados, somente na medida em que seus autores o estiveram.”

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