Editora: Paulus
ISBN: 978-85-349-2770-3
Tradução: Celso Márcio Teixeira
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 416
Sinopse: A Bíblia
como documento fundacional da comunidade cristã (e, antes dela, da comunidade
hebraica), a Palavra de Deus como manifestação do Espírito a partir do
fundamento do texto, o problemático texto, antigo, de centenas de anos, a
mensagem nova pra cada pessoa e para cada dia; esses são os aspectos sobre os
quais esta obra centra sua atenção. A abordagem dos problemas de contexto
cultural e religioso dos textos bíblicos, com senso crítico e apoio das
ciências históricas, permite respeitá-los e valorizá-los com aquilo que são:
testemunhos de vida e de fé que procedem de numerosas comunidades de crentes,
capazes de alimentar hoje nossa própria vivência.
“A Bíblia
é um livro vivo, e o estudo de suas origens não pretende fixar sua estrutura
fundamental, assim como as origens de uma pessoa não podem determinar toda a
sua história, embora a condicionem.”
(Horacio Simian-Yofre)
“Afirmar a origem divina da Bíblia
em forma estrita e absoluta, como se tivesse caído do céu ou como se Deus mesmo
a tivesse escrito, utilizando certas pessoas como instrumentos seus, e assim
negar a dimensão humana, é um indício da incompreensão da natureza da Bíblia.
Por outra parte, reconhecer e afirmar a humanidade dos escritos bíblicos não é
negar seu caráter divino, mas antes situá-los cabalmente dentro das coordenadas
de onde surgiram: a história dos homens.”
“O termo “testamento é uma tradução equívoca
do original hebraico berit, que significa “aliança”, “pacto”. Não
se referia à última vontade, mas ao conceito de aliança, aquela aliança feita
com Moisés, que é o coração do Antigo Testamento e, depois, aquela que foi
selada com a morte de Jesus (Lc
22,20; 2Cor
11,25). Traduzido este vocábulo para o grego (diatheke), começou-se
a entender em sua acepção de última vontade, de testamento, e assim se traduziu
para o latim (testamentum).”
“Há algo mais que nunca devemos esquecer: os
compositores dos diversos escritos da Bíblia escreveram para um grupo de
pessoas concretas, para seu povo ou sua comunidade de
então, daquele tempo. Isto significa que não escreveram pensando em nós.
Quando Isaías falou e escreveu, o fez para os judeus do séc. VIII a.C., e
quando Paulo
escreveu sua carta aos Romanos, foi para os cristãos de Roma da década de
50, respondendo a seus problemas e necessidades de esclarecimento que nem
sempre são os nossos. Hoje em dia, falariam e escreveriam de outra maneira e a
respeito de outros problemas. Mas o que escreveram é em certa medida aplicável
ainda hoje, a mensagem central continua válida, pois o ser humano é basicamente
o mesmo: suas perguntas, atitudes, angústias, alegrias, esperanças continuam
acontecendo hoje.”
“O normativo ou autorizado, obviamente, não é
a linguagem empregada, mas o que por meio dela se quer comunicar: a mensagem. A
própria mensagem pode ser comunicada com diferentes linguagens, e cada cultura
o faz em sua linguagem. Frequentemente se confunde o meio (linguagem) com o fim
(mensagem), e a linguagem se torna mais importante do que a mensagem, tomando-a
ao pé da letra (literalismo). Por exemplo, quando se quis afirmar que Deus é o
criador do homem, o povo de Israel usou a imagem do oleiro, e
assim em Gn
2,7 lemos que “Deus modelou o homem da argila da terra, soprou em seu nariz
alento de vida, e o homem tornou-se um ser vivente”. O importante não é como Deus
fez o homem (o que leio em uma linguagem de imagens empregadas), mas o fato de
que Deus é seu criador (a mensagem). Por isso, em Gn 1,26s, onde também se fala
da criação do homem (e da mulher!), Deus não se apresenta como oleiro, mas
simplesmente se afirma que “Deus fez o homem à sua imagem; à imagem de Deus o
fez, homem e mulher”. Consequentemente, é ingênua e fora de lugar toda discussão
sobre a maneira como Deus teria feito os seres humanos, baseando-se em Gênesis:
não era essa sua mensagem, mas o fato de que é Deus, e nenhum
outro, que está no “ponto inicial”. Explicar-nos o como se deu
é uma questão que compete aos cientistas; não é assunto de fé teológica.
Os fundamentalistas tomam ao pé da letra a
linguagem, consideram-na sagrada e não levam a sério o fato de que é somente um
meio e que, portanto, não deve ser absolutizada. Tampouco levam a sério o fato
de que a linguagem empregada na Bíblia é de uma cultura e de um tempo
distantes. Repito: o importante é compreender o que é que mediante essa
linguagem se queria comunicar. Por isso, é necessário ter um mínimo de
familiaridade com a maneira de pensar, com as imagens, com o vocabulário e com
a maneira que os autores dos escritos bíblicos tinham de entender o homem e o
mundo. (...)
Os escritos da Bíblia comunicam experiências
e acontecimentos, não simples informação histórica ou outra (o que se passou);
são produtos de reflexões sobre algo vivido ou acontecido (o que significa o
que se passou). O que se comunica nos escritos bíblicos não é somente o que
talvez se passou, mas a importância ou significação daquilo
que se comunica; não tanto o “dado”, mas sua interpretação. Precisamente por
isso se comunica, porque é significativo para o emissor. É importante recordar
isto, porque se tende a pensar mais na informação como tal do que se passou, e
se esquece que o que se queria comunicar era o seu significado.
Assim, por exemplo, a recorrente pergunta “por que não se relatou nos
Evangelhos algo a respeito dos anos de juventude de Jesus”? deve-se à
incompreensão do que acabo de sublinhar. Não se relatou, porque não se
considerou importante ou significativo, pois os evangelistas não pretenderam
escrever uma biografia de Jesus (e menos ainda em sentido moderno), mas antes
destacar a significação de sua pessoa e da missão que cumpriu – sua
atenção era teológica, não cronística.”
“No transcurso de sua transmissão, algumas
tradições se mesclaram com outras semelhantes ou relacionadas. Um claro exemplo
é o relato do “sacrifício de Isaac”, em Gênesis
22: é o resultado da fusão de duas tradições e uma ulterior
reinterpretação. Originalmente, existia uma tradição que explicava a origem do
nome de certo monte que era o centro de sacrifícios religiosos, lugar
chamado Iahweh-yreh (“Deus proverá”: v. 8 e 14). Outra
tradição (diferente) explicava por que em Israel não se sacrificam os primeiros
nascidos (e as pessoas humanas em geral), como em outros povos, mas se
substituem pelo sacrifício de algum animal (cf. v. 13). Ambas as tradições se
fundiram em algum momento com base em um denominador comum: o sacrifício a Deus
de uma vítima – de Isaac substituído por um carneiro no monte de culto Iahweh-yreh (veja
v. 2 e 14). Posteriormente, pela natureza mesma do relato, foi acrescentado o
tema da fé de Abraão, o pai do povo, e por conseguinte ele foi convertido em
fundamento e modelo para Israel: projetou-se sobre a pessoa de
Abraão a fé de todo um povo (do qual é pai). “Atualizou-se” o relato, centrado
agora em Abraão, não em Isaac. Para isso, foram introduzidos os vv. 1-11s e
15ss (note-se como o anjo fala como se fosse Deus mesmo), e se retocou o
relato. Isto aconteceu provavelmente no tempo do exílio babilônico: por falta
de uma fé como a de Abraão, sofreram as perdas das promessas feitas por Deus a
ele; se agora têm uma fé como a sua, serão merecedores outra vez dessas
promessas: veja v. 15-18 (cf. Gn 12,1 3; 17,4-8).”
“Como se pode observar, as tradições não
foram consideradas como uma espécie de verdades eternas, mas como expressões de
vida e sobreviviam à medida que foram significativas para a vida. O interesse
não estava tanto no passado, mas no presente, não tanto na recordação, mas
naquilo que o narrado tem de relevante para o hoje daquele que fala ou escreve
ao seu auditório, e esse “hoje” pode mudar. A tradição sobre o êxodo do Egito
foi retomada e reinterpretada à luz da experiência da deportação para a
Babilônia no séc. VI por Isaías (43,14-21; 48). A Babilônia tomou o lugar do
Egito, país de escravidão para o povo de Deus. No séc. IV, o autor de Crônicas
reinterpretará a história de Israel a partir do ponto de vista da importância
que agora tinham o culto e a Lei: Crônicas é uma reflexão piedosa da história
narrada nos livros de Samuel e Reis. Os Evangelhos segundo Mateus
e Lucas
são reinterpretações e adaptações do Evangelho segundo Marcos,
que lhes serviu como fonte principal.”
“Mais ainda, enquanto um grupo pequeno não está
firmemente estabelecido e não toma consciência de sua “identidade”, não se
interessará em escrever seu passado, sua história e experiências: vive mormente
ocupado com o presente. Enquanto o grupo não se projeta para um futuro mais
distante do que o de seus filhos, tampouco se interessará em escrever sua
história. Assim sendo as coisas, as tradições que se encontram em Gênesis,
aquela sobre Moisés, as gestas heroicas dos Juízes, de Josué e de outros
personagens, as atividades de Jesus de Nazaré, foram relatadas primeiro
oralmente em pequenos grupos, e começaram a ser escritas somente quando o grupo
tomou consciência de sua identidade própria, e com isso se interessou por sua
história pretérita como fundamento de seu presente e de sua projeção para o
futuro. Enquanto os cristãos eram poucos e dispersos e sua identidade estava
bastante clara, e não se projetavam para um futuro distante (pois esperavam o
pronto retorno de Jesus e com isso “o fim do mundo”), não se escreveram os
Evangelhos – o mais antigo é o Evangelho
segundo Marcos, escrito por volta do ano 70.
Somente quando um grupo humano cresceu, está firmemente
assentado e se projeta para o futuro, então começa a ser importante para ele a
questão de sua identidade. Isto é mais certo, quando este grupo trata de
distinguir-se de outros, para o que destaca aquilo que o caracteriza seja como
povo ou raça, seja como cultura ou religião. Consciência de identidade própria
e história são aspectos inseparáveis: a identidade, aquilo que o distingue de
outros, deve-se à própria história do grupo em questão. Portanto, não se deve
estranhar que a história de Israel – baseada em suas tradições e nas
recordações mais próximas – começa a ser escrita somente quando o povo está firmemente
estabelecido na Palestina e já é um reino, sentindo a necessidade de destacar
sua identidade em contraste com os povos e reinos que o rodeavam. Esta
necessidade tomou especial força quando os Assírios destruíram e dispersaram os
habitantes do reino de Israel (Norte) – foi então que se colocaram por escrito
oráculos de profetas como Amos, Oséias, Miquéias e Isaías (cap. 1-39) –, e
muito mais ainda quando, século e meio mais tarde, o caos foi completo devido à
aniquilação do reino de Judá (Sul) sob os Babilônios, com o que se havia
perdido o total domínio sobre a terra prometida. A capital e o Templo foram
destruídos, dois símbolos de identidade. Muitos foram deportados, e outros mais
se dispersaram, de modo que se perdeu a unidade como povo. O povo entendeu a
deportação para a Babilônia como um exílio, não como deportação, trazendo à
memória e revivendo espiritualmente a situação de antigamente no Egito. É assim
que os elementos mais estáveis, como a escritura, códigos firmes de conduta e
formalização de instituições e estruturas sociais (sinagoga?), e graças ao fato
de que os deportados eram a elite intelectual e culta, incluídos profetas, afirmaram
sua identidade como povo escolhido de Deus. Eram o povo “de Judá” em exílio e
serão conhecidos como “judeus”. Sentiram imperativo afirmar e assegurar sua
identidade agora quando muitos viviam dispersos em terras estrangeiras. De
fato, a partir do exílio no séc. VI a. C., começaram a ser escritas as grandes
obras do Antigo Testamento: a história (Samuel,
Reis), que fazem remontar às origens do mundo (Gn
1-11), passando pelos pais do povo (Gn
12-50), para deter-se em uma recordação do êxodo e das leis fundamentais (Êxodo-Juízes).
Ao mesmo tempo, foram colocados por escrito oráculos e discursos dos profetas
importantes (especialmente Isaías,
Jeremias, Ezequiel), assim como textos que ajudassem a manter viva a
religião como tal (Salmos).
Em Jeremias 36, lemos que o profeta chamou Baruc para que aja como secretário
de um extenso texto que lhe vai ditar, texto que se leu no Templo; depois de
ser queimado o rolo por ordem do rei, Jeremias voltou a ditar o texto.”
“Como vemos, não somente foram alteradas as
tradições orais, mas também as fontes escritas. De fato, quando um texto
escrito é usado por outra pessoa, toma-se da mesma maneira que o material
herdado em forma oral, quer dizer, volta de certo modo à sua oralidade. De
fato, os textos bíblicos foram escritos para ser escutados, não
para ser lidos em particular. Em poucas palavras, o redator é emissor de uma
mensagem para sua comunidade em seu tempo.
(...)
Não nos esqueçamos de que cada livro foi
composto independentemente dos outros: os autores não escreveram
com o propósito de que suas obras fizessem parte de uma coleção (que se fez
somente muito mais tarde). Cada livro era uma unidade completa e autônoma.
Quando Jesus foi à sinagoga em Nazaré, lhe passaram somente o rolo de Isaías (Lc
4,17), que existia como obra independente das demais, e não toda uma
biblioteca. Quando Paulo escreveu suas cartas, ele não tinha ideia de que mais
tarde elas seriam juntadas e que nós as iríamos ler, dois mil anos mais tarde,
como parte da Bíblia. (...)
A fixação escrita de tradições orais, embora
se tenha convertido em uma comodidade para a liturgia, para o transporte e para
o estudo pessoal, entre outros, foi também uma perda para muitas tradições
orais. A transmissão viva, a partir do coração e da mente do comunicador, que
mantém vivas as tradições em um perene “hoje”, o do emissor do texto, viu-se
recortada ao ser fixada por escrito. A forma escrita permitia referir-se ao
texto com caráter de norma, o que o rodeava de uma sacralidade que a forma oral
não tinha; por isso, o texto era lido nas assembleias e estudado. No entanto, a
comunicação oral manteve a primazia durante muito tempo. De fato, os textos que
foram fixados por escrito deviam ser lidos em voz alta, o mais possível diante
da comunidade, e comentados, quer dizer, atualizados. Jesus nem escreveu nem
mandou escrever, e fica por demonstrar-se que os apóstolos tivessem feito
diferentemente: a pregação e as memórias eram transmitidas oralmente. E a
fixação escrita, como vimos, não significava de maneira alguma para eles o fim
da oralidade. Como São Paulo com suas cartas, a escritura era uma maneira de
comunicar-se pela impossibilidade da presença física e pela comunicação oral
direta (cf. 1Cor
11,34; 2Cor 13,10; Gl 4,20). Os rabinos mantinham o caráter oral da maioria
de suas tradições, e quando as fixaram por escrito foi em forma abreviada, para
obrigar seu retorno à comunicação viva oral e provocar a interação com a
mensagem à luz do momento atual, e em sintonia com outras tradições. Por isso,
o rabinismo não se restringe ao texto bíblico, mas o faz “avançar” com as
tradições orais vivas.”
“Eu interpreto a Bíblia desde o momento em
que a leio. E ela também me interpreta! Mas a Bíblia mesma já vem interpretada,
pois o texto que leio é produto de um autor que interpretou o que recebeu como
tradição ou, pelo menos, os acontecimentos ou circunstâncias sobre as quais
escreveu. Quando os hebreus pensavam que Deus era como um rei ou como um chefe
de um clã, falavam dele nesses termos. E com esse modelo, quando estavam em
guerra, falavam de Deus como se fosse um líder vingador, até sanguinário, tal
como se lê em Juízes e em Josué. Por sua parte, Jesus tinha uma ideia diferente
de Deus; falava dele predominantemente como pai. São Paulo interpretou o que
acontecia em Corinto segundo a informação que lhe trouxeram os de Cloé (1Cor
1,11s) e, com base nisso, escreveu sua carta. Lucas interpretou Marcos
quando escreveu, anos depois deste, sua própria versão do Evangelho, usando-o
como uma de suas fontes de informação. Já antes, a pessoa de Jesus e o que ele
fazia e dizia era interpretado de diferentes maneiras por seus discípulos
(favoravelmente), por seus adversários (negativamente) e pelas multidões, cada
um segundo suas ideias, preconceitos e interesses inconscientes. (...)
A execução de Jesus, por exemplo, pode ser
interpretada como produto de inveja (Mc
15,10), como resultado da “segurança do Estado” diante de um revolucionário
(Jo
11,48ss; 18,30), como vontade de Deus (At
2,23; 4,28) ou por causa de nossos pecados (Rm
4,25). Sua morte pode ser interpretada como absurda, como trágica, como
salvífica, como redentora, como expiatória, como sacrifical. As diferenças
devem-se ao prejulgamento daquele que interpreta, à sua ideologia, ao seu nível
cultural, às suas experiências de vida, à sua teologia etc. Um enfermo, por
exemplo, pode interpretar seu sofrimento como um castigo de Deus, mas o médico
o interpretará como resultado de algum mau funcionamento, ou de uma
deficiência, ou de um agente externo. Um mesmo acontecimento ou discurso é
interpretado diferentemente segundo os modelos políticos, sociológicos,
filosóficos, religiosos ou outros que os intérpretes possam ter.”
“As interpretações que se oferecem na Bíblia
sobre os diversos acontecimentos estão diretamente relacionadas ao
nível de conhecimento e ao grau de cultura dos diversos intérpretes.
Enfermidades mentais e neurológicas eram interpretadas como resultado de
possessões demoníacas. Em Mc
9,14-29, narra-se a cura de um jovem que, segundo seu pai, “está possuído
de um espírito mudo e, quando se apodera dele, o lança por terra, e o menino
lança espuma e range os dentes e fica rígido” (v. 17s). Quando vê Jesus, “o
espírito imediatamente agitou o jovem com violentas convulsões, o qual, caindo
por terra, se revolvia lançando espumas” (v. 20). Trata-se do que agora
conhecemos como epilepsia. Qualquer tipo de deficiência visual era qualificado
como “cegueira”, e o que chamamos de “lepra” não era outra coisa que alguma
enfermidade cutânea contagiosa (varicela, varíola, sarampo, sarna). Por isso
mesmo, as diferentes leis que se encontram, por exemplo, no Pentateuco provêm
do nível cultural de um povo nômade, das experiências acumuladas ou da
influência de diversas culturas. Não causa estranheza, então, que bom número de
leis se assemelhem, por exemplo, ao famoso código de Hamurabi. Mas não somente
as enfermidades eram interpretadas segundo o grau de cultura e de
conhecimentos, mas também a vida mesma em sua relação com Deus se entendia
segundo sua ideia de Deus, suas experiências religiosas, sua antropologia.
Por isso, a visão do “reino de Deus” que Jesus pregava chocava com a ideia de
Deus que especialmente os fariseus tinham. E, não por último, a apreciação
(interpretação) de Jesus por parte de Marcos é diferente da que teve o autor do
Evangelho segundo João – e continua reverberando a pergunta de Jesus: “Quem
dizem vocês que eu sou?” (Mc
8,29).
Tudo isto implica que nem tudo o que se
encontra na Bíblia deve ser absolutizado e considerado indefectivelmente
correto e válido para todos os tempos. A interpretação é relativa à medida que
depende do nível cultural e cognitivo, tanto do emissor como do receptor.
Por isso mesmo, a interpretação das passagens
da Bíblia está orientada pela ideia que se tem dela mesma, de sua origem, de
sua natureza, de seus alcances e limites, além da ideia que se tem a respeito
de Deus, do mundo, do homem e da relação entre estes. Distinta será nossa
interpretação de narrações, se as entendermos como reportagens históricas
imparciais ao invés de entendê-las como interpretações religiosas por parte de
seus narradores. Igualmente acontece com as partes de corte legal: se
entendermos as leis, mandatos e preceitos que estão na Bíblia como ordens de
origem diretamente divina, as interpretaremos e aplicaremos como leis eternas,
mas se os entendermos como ordens surgidas de determinados momentos culturais e
históricos, compreenderemos seus alcances, sua atualidade e suas eventuais
limitações (até sua vigência), como fez Jesus com relação à lei de Moisés e as
tradições.”
“De fato, um dos graves problemas do
fundamentalismo e da leitura literalista é que simples e redondamente ignora o
que isso implica, ou reduz os gêneros literários existentes na Bíblia a uns
poucos, especialmente considera qualquer narração como sendo do gênero
literário histórico, de modo que tomam tudo ao pé da letra, confundindo os
gêneros literários lenda, mito, epopeia e história e reduzindo-os a história;
profecia e apocalipse são reduzidos a vaticínios sobre o futuro, preceitos e
exortações são tomados como sendo do gênero jurídico etc. Leem a Bíblia como
leem as notícias e informações dos jornais.
Sabemos diferenciar os gêneros literários que
são correntes em nosso meio e, por isso, sabemos também qual é
seu propósito. Sabemos distinguir uma fatura de uma receita, uma novela de uma
biografia, e sabemos qual é o propósito típico de cada um destes gêneros
literários. Mas, quando nos encontramos com gêneros literários que não
conhecemos bem, como acontece com certa frequência quando lemos a Bíblia,
instintivamente tendemos a pensar que esse gênero deve ser
semelhante a algum que conhecemos, pensamos que é daqueles
correntemente usados hoje. Por conseguinte, pensamos que a mensagem (e
propósito) do autor bíblico deve ser esta ou aquela, quando na realidade é
outra. Assim, por exemplo, o fato de não conhecer o gênero apocalíptico (pois
não é dos empregados hoje) conduz a pensar que se trata do gênero de vaticínios
ou anúncios futuristas que conhecemos pelo gênero moderno de
ciência-ficção e, consequentemente, se pensa que o propósito do Apocalipse é o
de informar a respeito dos acontecimentos que sucederão antes do fim do mundo.
No entanto, este gênero literário era comum quando seu autor o empregou e teria
por finalidade animar os perseguidos por sua fé a permanecer fiéis a Deus até o
final, porque, embora pareça que Deus os abandonou, no final os premiará; não
triunfarão as forças do mal, mas Deus e os seus. Para comunicar esta mensagem,
os autores do livro de Daniel (caps. 7-12) e do Apocalipse empregaram um gênero
literário muito conhecido em seu tempo, mas em desuso hoje. O
mesmo acontece com o livro de Jonas, o qual costuma ser tomado como história,
quando, na realidade, é um grandioso relato pedagógico. Outro tanto ocorre com
os escritos dos profetas: o gênero profético, apesar de sua aparência de
vaticínios, não se propõe revelar o que sucederá em um futuro distante (para
seus autores), mas antes para advertir que, se não se converterem a Deus, ele
os castigará – seu fim é exortar à conversão, não vaticinar.”
“A confusão de gêneros literários observa-se
claramente na maneira como muitos interpretam o relato da tentação de Eva no
paraíso, em Gn
3. Trata-se de um mito, mas costuma ser tratado como se fosse
história – como fazem com os dois relatos da criação. Nele, se relata em
linguagem de imagens a origem da tendência dos seres humanos a erigir-se em
divindade e em juiz único de suas ações (árvore do conhecimento do bem e do
mal), quer dizer, querer ser “como Deus” (v. 5). Mas tudo isso foi
frequentemente interpretado como se fosse história, como se se tratasse de duas
pessoas reais que cometeram um pecado em um tempo e em um lugar igualmente
reais, e que a partir deles todos estamos condenados a sofrer, a trabalhar, a
morrer e tudo por culpa alheia, por culpa de Adão e de Eva. São Paulo, como
todo judeu de seu tempo, acreditava assim: Rm
5,12ss. No entanto, a realidade é que não se trata de história (quem o
teria relatado? Desde quando uma serpente fala? Etc.), mas de uma explicação
dessa atitude de soberba dos homens que se explicita nos mitos que seguintes de
Caim e Abel, de Noé e da torre de Babel.”
“O que hoje se explica em termos de leis da
natureza antigamente explicava-se como intervenções divinas. O que em uma época
parecia extraordinário hoje não o é, e tem uma explicação natural. A epilepsia
antigamente era considerada produto de possessão demoníaca; hoje sabemos que é
uma desordem neurológica.
Para os hebreus (e isso inclui os cristãos),
Deus é o criador, o Senhor do universo, e tudo está em suas mãos. Portanto, a
Providência rege o curso da natureza. Deus pode intervir quando desejar, e isso
nada tem em si de sobrenatural. O admirável é o momento preciso e o efeito de
sua intervenção. Por isso, não falavam de milagres, mas de sinais e de
portentos. Sinais, porque evidenciam a presença salvífica de Deus; portento,
porque são expressões impressionantes do poder divino. E isso é questão de fé;
não é demonstrável objetivamente. Milagres não se demonstram: acredita-se
neles. É o crente que vê “milagres”. Portanto, não são “provas”, mas sinais
(para o que crê) da presença divina. É assim que Jesus entendia a história de
Jonas: como um “sinal” (Lc
1,29). E é assim que João apresenta e designa em seu Evangelho os
“milagres” de Jesus: como sinais (semeia; cf. 2,11.24; 4,54).
Nós perguntamos: “O que é isto?”. Na
antiguidade, perguntavam antes: “O que significa isto?”. Nós cotejamos o fato
com a ciência; na Antiguidade era com a mensagem. Quer dizer, nós colocamos em
primeiro plano o sobrenatural do fato, enquanto antigamente a atenção estava
fixada na experiência da presença ou proximidade divina que, por ser mais
intensa e explícita, produz admiração. O milagre era entendido como sinal dessa
presença divina.”
“O gênero profético com
frequência é mal-entendido, pois ingenuamente costuma-se definir em termos de
vaticínios sobre algo que acontecerá. Para compreender este gênero, deve-se
entender qual era o papel dos profetas, em cuja boca aparecem as profecias. O
profeta falava em nome de Deus, como seu porta-voz, e também fazia as vezes da
consciência de Israel. Os profetas falavam com base em suas observações de
determinadas situações que seu povo vivia, e as interpretavam a
partir de sua fé e das exigências da aliança com Deus. Por isso, com frequência
referiam-se às injustiças que se cometiam, às idolatrias, às alianças feitas
com povos pagãos, quer dizer, às infidelidades para com a aliança com Deus. Ao
deduzir as consequências fatais que a conduta infiel a Deus traria,
os profetas chamavam a atenção desesperadamente à conversão. Esse era seu tema
constante: conversão, fidelidade absoluta a Deus. Os profetas falavam a partir
do presente e para o presente de seu auditório, não para além
de vinte séculos adiante. Quando se referiam ao futuro, anunciando catástrofes,
não era para predizer o que de qualquer maneira haveria de acontecer, mas para
pressionar a uma conversão: era o método da intimidação, que não
tinha outra finalidade que a de alcançar a conversão agora, já, como um pai
faria com seu filho desobediente: “Se não fizeres isto (se não te
converteres)... então cairás”. Isso não quer dizer que de qualquer maneira
cairá sobre ele o castigo – por isso muitos “vaticínios” não se
cumpriram – ou que, por ser desobediente, não lhe fale outra vez, em lugar de
castigá-lo (por isso, se repetem as advertências e as ameaças). Em outras
palavras, os profetas não eram anunciadores ou vaticinadores do que
irremediavelmente aconteceria por predeterminação divina e, menos ainda, muitos
séculos adiante (a quem interessa o que acontecerá muitos séculos mais tarde?).
O propósito de grande proporção dos pronunciamentos proféticos era denunciar os
males existentes e exortar à conversão a Deus; para isso ameaçavam com algum
castigo divino possível ou prometiam a salvação. Certamente, também encontramos
expressões de paz e de libertação, de reconstrução e de esperança, mas sempre
se referiam a um futuro imediato, não distante.”
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