Editora: Paulus
ISBN: 978-85-349-2770-3
Tradução: Celso Márcio Teixeira
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 416
Sinopse: Ver Parte
I
“Há importância em conhecer o que o autor
quis dizer, ou basta o que o texto nos diz, independentemente do que o autor
pretendeu dizer, como afirmam filósofos como Hans-Georg Gadamer e Paul Ricoeur?
A resposta está implícita em toda a discussão que até aqui expus e pode
resumir-se em uma frase: Deus não inspirou nem inspira textos, mas pessoas. Os
textos são produtos de pessoas; as interpretações são as pessoas que as fazem.
Por outro lado, a fidelidade ao sentido literal (à mensagem básica originária)
plasmado pelo escritor inspirado, cujo texto foi canonizado, coloca em jogo
nossa própria fidelidade à mensagem que qualificamos como “Palavra de Deus”. É
questão de identidade e de continuidade. Daqui a importância da exegese e da
hermenêutica: saber o mais precisamente possível o que se quis dizer no momento
de sua redação, e o que o texto diz nos contextos e nas conjunturas atuais.
Ignorar o que o escritor bíblico quis comunicar arrisca desembocar na leitura
fundamentalista da Bíblia.”
“Não posso sublinhar suficientemente a
importância que têm os escritos bíblicos como testemunhas da
revelação histórica, mediante a qual Deus se deu a conhecer e
expressou sua vontade salvífica para os homens. Evidentemente, nós não temos
sido testemunhas dessa revelação histórica (por exemplo, do êxodo, da
conquista, das vozes proféticas, até da vida histórica de Jesus). É somente
mediante os testemunhos bíblicos que temos acesso a essa revelação, cuja
importância radica não somente no fato de ser revelação divina, mas também no
fato de ser fundacional: tanto a fé judaica como a cristã se
fundamenta nessa revelação histórica dos tempos bíblicos.”
“Mas pontualmente, o que é próprio da
inspiração bíblica? É a capacidade de reconhecer, compreender e
interpretar a Revelação como tal e de transmiti-la fielmente. Dito em
outras palavras, Deus guiou algumas pessoas, das que viveram as experiências às
quais a Bíblia se refere, a reconhecê-las, compreendê-las e interpretá-las como
manifestações da presença orientadora de Deus, e a transmiti-las como tais. É
assim que Deus inspirou, quer dizer, iluminou e guiou as capacidades
mentais de determinadas pessoas para que reconhecessem que
o êxodo do Egito revelava que Iahweh é um Deus libertador e da liberdade, e não
simplesmente que era resultado da astúcia desse grupo de hebreus ou da fraqueza
dos egípcios. Inspirou a certos profetas a falar em seu nome, de modo que
orientassem seu povo pelo caminho da Aliança. Inspirou a outros para que se
dirigissem a ele por meio de Salmos. Igualmente, o Espírito inspirou algumas
pessoas em particular para que colocassem por escrito essas
tradições, guiando-as em sua tarefa redacional. O mesmo espírito, além disso,
guiou seu povo a reconhecer a normatividade dos escritos que constituem a
Bíblia, e eventualmente a tomar a decisão a respeito do cânon. Se não fosse
assim, como poderemos estar seguros de que o relato do Êxodo,
escrito vários séculos mais tarde, preservou seu verdadeiro significado
revelador? Igualmente, como podemos estar seguros de que a decisão sobre o
cânon bíblico foi correta, de que não excluíram escritos que deveriam ter sido
incluídos, e vice-versa? São perguntas medulares. A única resposta que podemos
dar nos vem da fé: “Deus os inspirou”, estava com eles, guiando-os de um modo
especial.
Em poucas palavras, a inspiração bíblica é
(1) um carisma ou dom de Deus aos “autores” (desde a tradição oral até a
fixação da Bíblia), (2) que os guiava de tal modo que reconhecessem, compreendessem
e interpretassem determinados acontecimentos e vivências, bem como determinadas
comunicações, em sua dimensão reveladora (a respeito de Deus e de sua vontade),
e (3) os transmitissem correta e adequadamente a seu auditório, (4) para sua
edificação e orientação na fé ao longo do tempo, pelo caminho que conduz à
salvação.
Todo carisma é um dom gratuito de Deus a
certas pessoas para a edificação de sua comunidade (veja ICor
12 e 14). O carisma da inspiração é, além disso, para a orientação
futura dessa comunidade: para guiá-la pelo caminho que conduz à salvação, à
qual Deus chama as pessoas de todos os tempos. Não se limita, então, à
comunidade imediata, já que os testemunhos bíblicos, ao ser postos pós-escrito,
adquirem uma objetividade que se projeta além da comunidade do momento de sua
composição escrita: atraem outras pessoas alheias a ela e às gerações futuras:
“falam” a todas as pessoas de boa vontade. Intuíram isto as gerações que
atualizaram as tradições antes de ser fixadas por escrito, da mesma maneira que
aquelas que continuaram atualizando essa Palavra de Deus depois de sua
escritura. A inspiração bíblica, que é uma forma excepcional do carisma geral
da inspiração, fez com que a mensagem que o texto encerra se estendesse além da
intenção imediata do autor. Deus previu que servisse de guia para o
futuro. Isso não significa que expressamente respondesse a todos os problemas
de todos os tempos, ou que as intuições ali expressas fossem perfeitas. Deus,
que inspirou a determinadas pessoas nos tempos bíblicos, concedeu esse carisma
com o fim de guiar outros para ele. Por isso, a inspiração bíblica desembocou
na fixação por escrito da Revelação que, historicamente, Deus concedeu a seu
povo até sua máxima expressão que foi o acontecimento-Jesus Cristo. Recordemos
que a Bíblia é, entre outros, um conjunto de testemunhos de vivências reveladoras,
e não a Revelação mesma. Deus não se revelou em livros, mas em acontecimentos.
E a inspiração bíblica inclui a decisão sobre o cânon, pois
apenas com essa decisão se teve a “Bíblia”.”
“Destaquei que Deus deu-se a conhecer em
acontecimentos que foram vividos por indivíduos, acontecimentos que (por
inspiração divina) foram compreendidos e interpretados como manifestações de
Deus e de seus desígnios para os homens. Deus não se deu a conhecer nos
relatos, mas nos acontecimentos, quer dizer, na história vivida. Na Bíblia
temos os testemunhos de vivências reveladoras fundamentais e
fundantes, mas não a Revelação mesma, que é anterior à composição dos diversos
relatos e discursos que encontramos nos escritos bíblicos.
De que falamos?
Não se deve confundir Revelação e inspiração.
Revelação é a manifestação da presença de Deus na
história humana, mediante a qual ele se dá a conhecer e concede às
pessoas reconhecer a ele e seu desígnio. Não houve uma, mas muitas revelações
ao longo da história – que para simplificar chamamos de “Revelação”. A
Revelação mais clara e explícita aconteceu mediante a vinda histórica de Jesus
Cristo. A inspiração, ao contrário, é o dom (carisma) divino que guia as
pessoas a reconhecer, compreender, interpretar e transmitir corretamente as
manifestações reveladoras de Deus na história. A inspiração bíblica manifestou-se
eminentemente na formação da Bíblia. A Bíblia aponta para a revelação divina, e
definitivamente para o próprio Deus. Se a Revelação não fosse reconhecida e
compreendida como tal, seria estéril. E se os testemunhos sobre a Revelação não
houvessem chegado até nós (Bíblia), não saberíamos dela. Em outras palavras,
Revelação e inspiração se complementam.”
“Nós, cristãos, confessamos que, quanto à
identidade e à vontade de Deus, todo o essencial foi dito nos tempos bíblicos,
cuja culminância foi a vinda de Jesus de Nazaré. Desse ponto de vista, do
conteúdo essencial para a salvação, não haverá nada novo que
Deus já não tenha revelado. Deus deu a conhecer tudo o que é necessário para
que as pessoas possam chegar até ele. O que resta é ir compreendendo e aprofundando
o significado e as implicações do que (conteúdo) Deus revelou e se
encontra na Bíblia. No entanto, isso não significa que Deus já não fale à
humanidade, que se tenha ausentado. Dito de outra maneira, enquanto novidade,
informação, não haverá nada de novo até nosso encontro com Deus. Quanto à sua
presença, esta não cessou, mas continua renovando-se: “Eu estou convosco todos
os dias até o final dos tempos” (Mt
28,20). E seu espírito inspira as pessoas a continuarem comunicando-se com
ele, a continuarem aprofundando e adaptando sua mensagem, a escutá-lo, a
responder-lhe, tanto por meio dos testemunhos bíblicos como por meio dos
acontecimentos e encontros que vivemos.”
“O coração da Revelação é a mensagem, que foi
reconhecida graças ao dom da inspiração divina. Por isso, o esquema clássico
“Deus -> Revelação - > Escritura” deve ser modificado para: “Deus ->
acontecimento -> compreensão e interpretação -> tradição ->
Escritura”.”
“Ao ler a Bíblia, especialmente seguindo a
ordem cronológica da composição de seus escritos, se tem a impressão de que
Deus foi-se dando a conhecer pouco a pouco. No entanto, o fato de que a
Revelação foi acontecendo em acontecimentos e vivências que os homens deviam
compreender, assim como a observação de que um mesmo acontecimento
ocasionalmente se encontre interpretado na Bíblia em
diferentes níveis de profundidade ou adaptado a diferentes circunstâncias,
leva-nos a tomar consciência de que os homens foram
lentamente compreendendo a Revelação e sua significação, segundo suas
capacidades e seus condicionamentos. Em outras palavras, não é Deus que se
tem revelado lenta e paulatinamente – Deus revela-se sempre como uma
totalidade, como o próprio Deus –, mas os homens foram
compreendendo e descobrindo lentamente o significado dos acontecimentos e as
experiências reveladoras. E esse processo não terminou.
Não foi Deus que deu a conhecer aos homens,
primeiramente, que é um Deus entre outros deuses (veja Gn
28,13; 35,1ss; Ex 3,6.15; 4,16; Jz 11,24, onde se reconhece a existência de
outros deuses como tais), depois que é o Deus supremo (veja Ex
15,11; 20,2ss) e finalmente que é o único Deus (Is
43,10ss; 44,6 etc), mas antes foram os homens que foram descobrindo quem
realmente é Deus. Igualmente, observamos nos textos mais antigos um
desconhecimento de uma vida depois da morte (veja Is
38,18; Jó
14,13-22; Eclo
14,16ss; 17,22ss; assim como os Salmos),
em textos mais tardios se fala já de um castigo depois da morte para,
finalmente, tomar consciência de uma ressurreição. Dificilmente se poderá
explicar por que Deus teria deixado a humanidade, durante séculos, na ignorância
de algo tão importante como o destino depois da morte – algo sobre o qual os
egípcios já tinham ideias claras muitos séculos antes! Não é que Deus se tenha
revelado aos homens pouco a pouco, mas os homens o foram compreendendo
lentamente. E a Bíblia contém a história da compreensão da Revelação por parte
dos homens crentes em um processo de diálogo com seu Deus. E este processo de
compreensão e aprofundamento não terminou.”
“Resumindo, Deus dá-se a conhecer de muitas
maneiras, muitas das quais estão atestadas na Bíblia. De fato, embora se possa
conhecer a Deus indiretamente em sua criação e nos acontecimentos da vida, ele
é conhecido de forma mais direta na Bíblia, que fala explicitamente dele (Rm
1,18ss). A Bíblia permanece, então, como meio de Revelação
(não como a Revelação mesma), porquanto constantemente apresenta a Deus e no-lo
dá a conhecer: a Revelação é linguagem, e a Bíblia fala essa linguagem. Por
isso, a qualificamos como “Palavra de Deus”. (...)
A Bíblia atesta a Revelação acontecida,
remete a ela. Por isso, podemos dizer que é Revelação testemunhada,
mas não a Revelação mesma. Portanto, não é correto dizer que a Bíblia é a
Revelação. Mas é reveladora: aponta para Deus. É um meio de encontro com Deus,
com o Deus da história. Daqui se pode dizer que tem caráter sacramentai.
A Dei Verbum afirma que “a Igreja sempre venerou a sagrada
Escritura como ao corpo do Senhor..., sobretudo na liturgia” (n. 21). O ponto
de encontro é a interpretação. Sua capacidade reveladora significativa se
atualiza, quando é entendida e apropriada como manifestação de Deus, como
Revelação.”
“Na Bíblia fala-se das experiências e
vivências históricas das pessoas em determinados tempos, muitos séculos atrás.
Mas estas correspondem, em boa medida, às experiências dos homens através de
todos os tempos; são semelhantes. A realidade do leitor e a situação da qual
procede o texto bíblico são paralelas ou análogas. A condição humana como tal
não muda ao longo dos milênios; confrontamo-nos com as mesmas perguntas e com
os mesmos problemas humanos. De fato, as inquietudes, as interrogações, os
problemas, as atitudes básicas dos homens são os mesmos ontem e hoje. Dito de
outro modo, apesar das diferenças históricas e culturais entre os tempos
bíblicos e os nossos, as experiências humanas e a relação dos homens com Deus
(sejam ateus ou crentes) são basicamente as mesmas. Deus é o mesmo ontem e
hoje; continua dando-se a conhecer aos homens e continua convidando-os a
confiar nele. A Bíblia é eminentemente existencial: dirige-se à vida. Por trás
das diferentes cenas, personagens e reflexões que encontramos nos escritos da
Bíblia, podemos reconhecer-nos a nós mesmos. E a Bíblia é o meio privilegiado
mediante o qual Deus “nos fala”; ali estão os testemunhos de suas múltiplas
manifestações, as orientações fundamentais para o caminho que conduz à
salvação. Podemos concluir que, embora a Bíblia não seja idêntica com a Palavra
de Deus no sentido forte do termo, no entanto contém sua palavra (mediada pelo
escritor) e “fala” a toda pessoa que tenha os ouvidos abertos. Por isso, é
importante tomar consciência de que a Bíblia não se reduz a um conjunto de
recordações do passado e convites para homens a que confiem em Deus e sigam seu
caminho, que são apresentados mediante esses velhos textos, mas testemunhos
cheios de frescor.
Repetidas vezes mencionei que a Bíblia
é mediação entre Deus e nós. Convém esclarecer que não é uma
mediação a mais, entre tantas outras, mas o é de forma singular: são
testemunhos da revelação histórica de Deus, desse mesmo Deus em quem cremos
hoje. Esses testemunhos são insubstituíveis, pois são fundamento de nossa fé –
mesmo em suas variações históricas e literárias. Por exemplo, podemos crer na
ressurreição de Jesus somente através do testemunho que encontramos no Novo Testamento.
A Bíblia é o conjunto de mediações que nos fala expressamente desse
Deus nosso que se revela historicamente, até chegar à sua manifestação mais
objetiva: o acontecimento-Jesus Cristo. E a Bíblia remete-nos a isso, para
falar-nos a partir daí.”
“A interpretação não é para contemplar o
passado ou admirá-lo, mas para que sirva de orientação para o futuro.”
“O termo “mito” e o qualificativo “mítico”
para referir-se a esta linguagem são infelizes, porque para a maioria são
sinônimos de fantasioso, de ficção, de conto, do que foi criado pela
imaginação. É necessário esclarecer que o termo “mito” se emprega no campo
religioso, filosófico, antropológico e sociológico, para referir-se à maneira
pré-científica de compreender e de falar a respeito do mundo, que se
caracteriza por ser explicações em chave religiosa: intervêm forças
“espirituais”, divindades, demônios.
Não se trata somente de maneira de falar, mas
também de um modo de compreender, de conceitos. Na base está uma visão do mundo
e da vida. Para comunicar os conceitos que se têm, emprega-se uma linguagem que
permita compreendê-los. A linguagem é o meio de comunicar os
conceitos. Pois bem, os mitos baseiam-se em conceitos pré-científicos, até
pré-filosóficos. Seus autores – nos tempos bíblicos e também em muitos povos
primitivos hoje – estavam convencidos de que certas “realidades” e fenômenos
que se experimentavam e se observavam eram produtos da atividade de Deus ou de
demônios. As origens de certas situações ou fenômenos do homem mesmo, de seu
destino e de sua relação com “o espiritual”, enfim, tudo o que era importante e
não tinha uma explicação natural dentro dos limites da experiência sensível,
eles o explicavam em termos míticos. Fenômenos como raios e trovões, que hoje
conhecemos pela ciência, naquele tempo eram considerados como produtos do
“além”. Quer dizer, havia uma espécie de intercâmbio entre o mundo do “além” e
o do “aquém”, e também falavam “Deus” como se fosse um homem, raios e trovões
como se viessem de Deus. Basta ver os relatos de Gênesis 1-11, que é uma
coleção de mitos, cheios de vivacidade e de colorido, nos quais o próprio do
“além”, o mundo transcendente, se entretece com o do mundo da experiência
humana. (…)
Os autores bíblicos não eram filósofos, mas
gente simples, de mentalidade prática; porém, além disso, com uma visão
pré-científica do mundo. Seus conceitos eram expressos por meio de imagens (que
passam a ser símbolos) tomadas do mundo de suas experiências. É a linguagem que
as crianças empregam, e é a que melhor se presta para a compreensão entre as
pessoas simples. Para a mentalidade pré-científica, o pensamento mítico é o
único caminho de que dispõe a mente para abordar certos problemas que caem
precisamente fora do âmbito da experiência sensível.
Mito costuma ser associado com falsidade,
mentira, como se a única narração veraz fosse a história, e para muitos como se
a única verdade fosse a demonstrável (científica). Esse juízo obedece à ideia
que não corresponde à dignidade de Deus e da Bíblia outro tipo de narração que
não seja a história. O fato, no entanto, é que o mito busca expressar uma
verdade. É uma maneira de dar expressão compreensível a uma realidade não
sensível. Sua verdade é do tipo da poesia, que não é o mesmo tipo de um relato
histórico – poesia não representa história, no entanto, tem “sua verdade”, e
uma verdade frequentemente mais profunda do que a de um relato histórico.”
“É mítico dizer que Deus nos castiga por
nossas culpas. O castigo é a retribuição que damos por uma ofensa, mas a Deus
não podemos ofender (definição comum de pecado). Falar assim é projetar sobre
Deus (que não é de nosso mundo) um conceito próprio de nossa existência humana.
Deus não pode ser ofendido, pois, se fosse, teríamos poder
sobre ele, já que poderíamos ofendê-lo ou não ofendê-lo como nos aprouvesse, e
estaria sujeito ao que nós fizéssemos.”
“Por um lado, os mitos tinham origens nas
experiências humanas e nas reflexões sobre elas. Por outro lado, as perguntas
profundas às quais se buscava responder são próprias de toda pessoa que medita
sobre sua existência e sobre sua relação com o mundo, com seu destino e com o
divino. Por isso, por trás do mito e da linguagem mítica que encontramos na
Bíblia, devemos descobrir a experiência-base e as interrogações para as quais
buscavam dar uma resposta, quer dizer, a verdade profunda que expressam. Muitos
mitos do passado podem ser expressos em outros termos, a linguagem das imagens
própria de uma época pode ser substituída por outra mais adaptada, mas a
verdade à qual remetem não deve ser descartada automaticamente. A imagem do
diabo é substituível, mas a verdade à qual remete essa imagem é a existência de
“forças misteriosas” do mal. As imagens que constituem o quadro mítico do juízo
final em Mt
25,31ss são discutíveis, quando são tomadas literalmente, mas a realidade à
qual o quadro remete não o é: haverá um encontro definitivo com Deus em outro
nível que o humano, e passaremos a um modo de existência irreversível que está
estreitamente relacionado com nosso comportamento durante nossa vida terrena. O
que sempre deve ocupar o centro da atenção é a verdade à qual o mito aponta,
verdade que foi a razão pela qual ele foi composto e relatado. O mito e sua
linguagem expressam realidades que tocam o homem mais profunda e existencialmente
do que aquelas captadas pelas ciências e pela lógica. Por isso, sua verdade é
existencial, não científica ou estritamente histórica.”
“É necessário ter presente que a Bíblia é
produto de reflexões comunitárias. Os escritos bíblicos foram compostos em uma
comunidade e para ela, foram aceitos como normativos por ela e é, por
conseguinte, somente dentro do seio da fé de uma comunidade que está em
comunhão com a dos tempos bíblicos que a Bíblia poderá ser compreendida
corretamente. A Bíblia é um conjunto de testemunhos de vivências
comunitárias: “Onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, ali
estarei eu entre eles” (Mt
18,20). Seus escritos não foram compostos para uso exclusivo de indivíduos
isolados, não foram escritos para ser lidos, meditados ou estudados de modo
particular, mas para ser escutados e assimilados em comunidade. O
fato de que depois existissem textos impressos, de modo que cada um possa ter
uma cópia pessoal, é uma vantagem adicional, mas não anula o fato de que os
escritos bíblicos foram compostos para ser lidos, comentados e meditados em
comunidade.
Somente quem tem experiência de vida
comunitária e vive sua fé em uma comunidade poderá compreender os escritos que
refletem vivências comunitárias e são produtos delas. Os escritos bíblicos têm
como um de seus fins primordiais a vida de fé comunitária, não a pessoal e
isolada.”
“Muito mais seriamente, à luz de tudo o que
foi exposto, a ideia de perfeição que alguns têm da Bíblia e sua interpretação
literal de tudo leva-os a fazer uma caricatura de Deus. Um Deus responsável por
todo tipo de erros, incluindo as múltiplas ignorâncias, um Deus que não conhece
bem sua criação, que é caprichoso, que se encoleriza e é ciumento, que muda de
opinião... Em outras palavras, os que tomam a Bíblia como autoridade máxima,
suprema, perfeita e absoluta, assumem e pressupõem demasiadas coisas
gratuitamente, baseados em preconceitos que não vêm da Bíblia, mas de dogmas
implícitos que para eles são inquestionáveis – mas não têm outra sustentação
que certas passagens soltas da Bíblia, o que constitui um círculo vicioso: usa-se
para prova o que se quer provar. (…)
Em síntese, a Bíblia é o ponto de
partida crítico indispensável, mas não é o ponto final de
nossas reflexões e decisões. É ponto de partida, porque inclui as tradições dos
testemunhos fundacionais, sobre os quais nos apoiamos. Mas não é ponto final,
porque os textos bíblicos não são a apreciação nem a expressão mais perfeita da
Revelação histórica. Os escritos bíblicos não contêm a máxima, a mais perfeita,
completa e inalterável expressão do que se possa compreender a respeito da
Revelação de Deus. São interpretações da Revelação histórica
acontecida. Nem todos os conceitos e ideias, nem todas as leis e mandamentos
são absolutamente perfeitos na Bíblia, prova disso são as incoerências e as
variedades de apreciações e de mandamentos, e as evoluções conceituais na
própria Bíblia. A Bíblia é, portanto, uma autoridade limitada, não absoluta.”
“O propósito dos redatores dos escritos
bíblicos, com algumas exceções, não foi simplesmente informar nem guardar
memórias ou recordações, mas o de comunicar uma mensagem existencial, para a
vida. Sua finalidade não era a de contar algo que aconteceu, mas em primeiro
lugar dizer algo aos seus leitores através daquilo que aconteceu. Não
respondiam à curiosidade, mas a necessidades vitais.”
“O fundamentalismo é a corrente mais extensa
e nefasta na atualidade, associado especialmente a certas seitas. Trata-se da
atitude mental que sustenta e propaga os “fundamentos” de determinada crença,
seja política, social, religiosa ou outra, que pertencem a um passado já não em
vigência, e o faz de maneira agressivamente fanática, proselitista, não-crítica
e fechada a todo diálogo. Seus “fundamentos” são categóricos e dogmáticos, e
são tidos simples e singelamente por inquestionáveis. Não se trata, então,
necessariamente de uma seita ou de uma religião, mas de uma atitude mental e
emotiva. (…)
O fundamentalista não progride: fica
estático, mentalmente paralisado. Sua concepção do mundo, do homem e de Deus é
para ele absolutamente segura, inquestionável, verdadeira – assim pensa e assim
a propaga. Mas é uma concepção pré-crítica! O fundamentalista teme as mudanças,
teme o pluralismo, teme o novo, teme a liberdade, teme o amadurecimento adulto.
Não causa estranheza que, quando essa visão é questionada, ele se refugie no
passado e que ataque virulentamente tudo o que ameace mudá-la.
O fundamentalismo é expressão de profunda
insegurança psicológica. É a resposta não-crítica, simplista, à ânsia de
segurança, de estabilidade, de certeza. O fundamentalista compra a segurança a
preço da liberdade. Por isso mesmo, é intolerante diante de tudo o que tenha
sabor de instabilidade, de ecumenismo, de “relativismo”.”
Um comentário:
Livro muito interessante.
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