Editora: Paulinas
ISBN: 978-85-3561-401-5
Opinião: ★★☆☆☆
Páginas: 162
Sinopse: A interpretação dos textos bíblicos continua a suscitar em nossos dias
um vivo interesse e provoca importantes discussões; elas adquiriram dimensões novas
nestes últimos anos; dada a importância fundamental da Bíblia para a fé cristã,
para a vida da Igreja e para as relações dos cristãos com os fiéis das outras religiões,
a Pontifícia Comissão Bíblica foi solicitada a se pronunciar a esse respeito.
“A Bíblia não é simplesmente enunciação de verdades.
É uma mensagem dotada de uma função de comunicação em um certo contexto, uma mensagem
que comporta um dinamismo de argumentação e uma estratégia retórica.”
“A Bíblia é a Palavra sobre o real, que Deus pronunciou
em uma história e que ele nos dirige hoje por intermédio de autores humanos.”
“As tradições judaicas antigas permitem particularmente
conhecer melhor a Bíblia judaica dos Setenta, que em seguida tornou-se a primeira
parte da Bíblia cristã durante pelo menos os quatro primeiros séculos da Igreja,
e no Oriente até nossos dias. A literatura judaica extra-canônica, chamada apócrifa
ou intertestamentária, abundante e diversificada, é uma fonte importante para a
interpretação do Novo Testamento. Os procedimentos variados de exegese praticados
pelo judaísmo das diferentes tendências reencontram-se no próprio Antigo Testamento,
por exemplo nas Crônicas em relação aos Livros dos Reis, e no Novo Testamento, por
exemplo, em certos raciocínios escriturísticos de são Paulo. A diversidade das formas
(parábolas, alegorias, antologia e florilégios, releituras, pesher, comparações
entre textos distantes, salmos e hinos, visões, revelações e sonhos, composições
sapienciais) é comum ao Antigo e ao Novo Testamento assim como à literatura de todos
os ambientes judaicos antes e após o tempo de Jesus. Os Targumim e os Midrashim
representam a homilética e a interpretação bíblica de grandes setores do judaísmo
dos primeiros séculos.
Além disso, numerosos exegetas do Antigo Testamento
pedem aos comentadores, gramáticos e lexicógrafos judeus medievais e mais recentes,
luzes para a inteligência de passagens obscuras ou de palavras raras e únicas. Mais
frequentes que antigamente, aparecem hoje referências a essas obras judaicas na
discussão exegética.
A riqueza da erudição judaica colocada a serviço
da Bíblia, desde suas origens na antiguidade até nossos dias, é uma ajuda muito
valiosa para o exegeta dos dois Testamentos, à condição, no entanto, de empregá-la
com conhecimento de causa. O judaísmo antigo era de uma grande diversidade. A forma
farisaica, que prevaleceu em seguida no rabinismo, não era a única. Os textos judeus
antigos se escalonam por vários séculos; é importante situá-los cronologicamente
antes de fazer comparações. Sobretudo, o quadro geral das comunidades judaicas e
cristãs é fundamentalmente diferente: do lado judeu, segundo formas muito variadas,
trata-se de uma religião que define um povo e uma prática de vida a partir de um
escrito revelado e de uma tradição oral, enquanto que do lado cristão é a fé ao
Senhor Jesus, morto, ressuscitado e doravante vivo, Messias e Filho de Deus, que
reúne uma comunidade. Esses dois pontos de partida criam, para a interpretação das
Escrituras, dois contextos que, apesar de muitos contatos e semelhanças, são radicalmente
diferentes.”
“O conhecimento dos dados sociológicos que contribuem
a fazer compreender o funcionamento econômico, cultural e religioso do mundo bíblico
é indispensável à crítica histórica. A tarefa da exegese, de bem compreender o testemunho
de fé da Igreja apostólica, não pode ser levada a termo de maneira rigorosa sem
uma pesquisa científica que estude os estreitos relacionamentos dos textos do Novo
Testamento com a vivência social da Igreja primitiva.”
“A religião, sabe-se, é sempre em uma situação
de debate com o inconsciente. Ela participa, em uma larga medida, à correta orientação
das pulsões humanas.”
“O Deus da Bíblia não é projeção de uma mentalidade
patriarcal. Ele é Pai, mas ele é também Deus de ternura e de amor maternais.”
“A leitura fundamentalista parte do princípio
de que a Bíblia, sendo Palavra de Deus inspirada e isenta de erro, deve ser lida
e interpretada literalmente em todos os seus detalhes. Mas por “interpretação literal”
ela entende uma interpretação primária, literalista, isto é, excluindo todo esforço
de compreensão da Bíblia que leve em conta seu crescimento histórico e seu desenvolvimento.
Ela se opõe assim à utilização do método histórico-crítico, como de qualquer outro
método científico, para a interpretação da Escritura.
Se bem que o fundamentalismo tenha razão em insistir
sobre a inspiração divina da Bíblia, a inerrância da Palavra de Deus e as outras
verdades bíblicas inclusas nos cinco pontos fundamentais (a inerrância verbal da
Escritura, a divindade de Cristo, seu nascimento virginal, a doutrina da expiação
vicária e a ressurreição corporal quando da segunda vinda de Cristo), sua maneira
de apresentar essas verdades esta enraizada em uma ideologia que não é bíblica,
apesar do que dizem seus representantes. Ela exige uma forte adesão a atitudes doutrinárias
rígidas e impõe, como fonte única de ensinamento a respeito da vida cristã e da
salvação, uma leitura da Bíblia que recusa todo questionamento e toda pesquisa crítica.
O problema de base dessa leitura fundamentalista
é que recusando de levar em consideração o caráter histórico da revelação bíblica,
ela se torna incapaz de aceitar plenamente a verdade da própria Encarnação. O fundamentalismo
foge da estreita relação do divino e do humano no relacionamento com Deus. Ele se
recusa em admitir que a Palavra de Deus inspirada foi expressa em linguagem humana
e que ela foi redigida, sob a inspiração divina, por autores humanos cujas capacidades
e recursos eram limitados. Por esta razão, ele tende a tratar o texto bíblico como
se ele tivesse sido ditado palavra por palavra pelo Espírito e não chega a reconhecer
que a Palavra de Deus foi formulada em uma linguagem e uma fraseologia condicionadas
por uma ou outra época. Ele não dá nenhuma atenção às formas literárias e às maneiras
humanas de pensar presentes nos textos bíblicos, muitos dos quais são fruto de uma
elaboração que se estendeu por longos períodos de tempo e leva a marca de situações
históricas muito diversas.
O fundamentalismo insiste também de uma maneira
indevida sobre a inerrância dos detalhes nos textos bíblicos, especialmente em matéria
de fatos históricos ou de pretensas verdades científicas. Muitas vezes ele torna
histórico aquilo que não tinha a pretensão de historicidade, pois ele considera
como histórico tudo aquilo que é reportado ou contado com os verbos em um tempo
passado, sem a necessária atenção à possibilidade de um sentido simbólico ou figurativo.
O fundamentalismo tem muitas vezes tendência a
ignorar ou a negar os problemas que o texto bíblico comporta na sua formulação hebraica,
aramaica ou grega. Ele é muitas vezes estreitamente ligado a uma tradição determinada,
antiga ou moderna. Ele se omite igualmente de considerar as “releituras” de certas
passagens no interior da própria Bíblia.
No que concerne os Evangelhos, o fundamentalismo
não leva em consideração o crescimento da tradição evangélica, mas confunde ingenuamente
o estágio final desta tradição (o que os evangelistas escreveram) com o estágio
inicial (as ações e as palavras do Jesus da história). Ele negligencia assim um
dado importante: a maneira com a qual as próprias primeiras comunidades cristãs
compreenderam o impacto produzido por Jesus de Nazaré e sua mensagem. Ora, aqui
está um testemunho da origem apostólica da fé cristã e sua expressão direta. O fundamentalismo
desnatura assim o apelo lançado pelo próprio Evangelho.
O fundamentalismo tem igualmente tendência a uma
grande estreiteza de visão, pois ele considera conforme à realidade uma antiga cosmologia
já ultrapassada, só porque encontra-se expressa na Bíblia; isso impede o diálogo
com uma concepção mais ampla das relações entre a cultura e a fé. Ele se apoia sobre
uma leitura não-crítica de certos textos da Bíblia para confirmar ideias políticas
e atitudes sociais marcadas por preconceitos, racistas, por exemplo, simplesmente
contrários ao Evangelho cristão.
Enfim, em sua adesão ao princípio do “sola Scriptura”,
o fundamentalismo separa a interpretação da Bíblia da Tradição guiada pelo Espírito,
que se desenvolve autenticamente em ligação com a Escritura no seio da comunidade
de fé. Falta-lhe entender que o Novo Testamento tomou forma no interior da Igreja
cristã e que ele é Escritura Santa desta Igreja, cuja existência precedeu a composição
de seus textos. Assim, o fundamentalismo é muitas vezes anti-eclesial; ele considera
negligenciáveis os credos, os dogmas e as práticas litúrgicas que se tornam parte
da tradição eclesiástica, como também a função de ensinamento da própria Igreja.
Ele se apresenta como uma forma de interpretação privada, que não reconhece que
a Igreja é fundada sobre a Bíblia e tira sua vida e sua inspiração das Escrituras.
A abordagem fundamentalista é perigosa, pois ela
é atraente para as pessoas que procuram respostas bíblicas para seus problemas da
vida. Ela pode enganá-las oferecendo-lhes interpretações piedosas mas ilusórias,
ao invés de lhes dizer que a Bíblia não contém necessariamente uma resposta imediata
a cada um desses problemas. O fundamentalismo convida, sem dizê-lo, a uma forma
de suicídio do pensamento. Ele coloca na vida uma falsa certeza, pois ele confunde
inconscientemente as limitações humanas da mensagem bíblica com a substancia divina
dessa mensagem.”
“Na tradição eclesial, os primeiros intérpretes
da Escritura, os Padres da Igreja, consideravam que a exegese que faziam dos textos
só era completa quando eles evidenciavam o sentido para os cristãos do tempo deles
e na situação em que viviam. Só se é fiel à intencionalidade dos textos bíblicos
na medida que se tenta reencontrar no coração de sua formulação a realidade de fé
que eles exprimem, e se esta se liga à experiência dos fiéis do nosso mundo.”
“A contribuição moderna das hermenêuticas filosóficas
e os desenvolvimentos recentes do estudo científico das literaturas, permitem à
exegese bíblica de aprofundar a compreensão de sua tarefa, cuja complexidade tornou-se
mais evidente. A exegese antiga, que evidentemente não podia levar em consideração
as exigências científicas modernas, atribuía a todo texto da Escritura sentidos
de vários níveis. A distinção mais corrente se fazia entre sentido literal e sentido
espiritual. A exegese medieval distinguiu no sentido espiritual três aspectos diferentes
que se relacionam, respectivamente, à verdade revelada, à conduta a ser mantida
e à realização final. Daí o célebre dístico de Agostinho da Dinamarca (século XIII):
“Littera gesta docet, quid credas allegoria, moralis quid agas, quid speres anagogia”.
Como reação a esta multiplicidade de sentidos,
a exegese histórico-crítica adotou, mais ou menos abertamente, a tese da unicidade
de sentidos, segundo a qual um texto não pode ter simultaneamente vários significados.
Todo esforço da exegese histórico-crítica é de definir “o” sentido preciso de um
ou outro texto bíblico nas circunstâncias de sua produção. Mas esta tese choca-se
agora com as conclusões das ciências da linguagem e das hermenêuticas filosóficas,
que afirmam a polissemia dos textos escritos. O problema não é simples e ele não
se apresenta da mesma maneira para todos os gêneros de textos: relatos históricos,
parábolas, oráculos, leis, provérbios, orações, hinos, etc. Pode-se, entretanto,
dar alguns princípios gerais, levando-se em conta a diversidade das opiniões.”
“Não se deve concluir que se possa atribuir a
um texto bíblico qualquer sentido, interpretando-o de maneira subjetiva. É preciso,
ao contrário, rejeitar como inautêntica toda interpretação que seja heterogênea
ao sentido expresso pelos autores humanos e no texto escrito por eles. Admitir sentidos
heterogêneos equivaleria a cortar a mensagem bíblica de sua raiz, que é a Palavra
de Deus comunicada historicamente, e a abrir a porta a um subjetivismo incontrolável.”
“Em definitivo, poder-se-ia considerar o “sentido
pleno” como uma outra maneira de designar o sentido espiritual de um texto bíblico,
no caso onde o sentido espiritual se distingue do sentido literal. Seu fundamento
é o fato de que o Espírito Santo, autor principal da Bíblia, pode guiar o autor
humano na escolha de suas expressões de tal forma que estas últimas expressem uma
verdade da qual ele não percebe toda a profundidade. Esta é revelada mais completamente
no decorrer do tempo, graças, de um lado, a realizações divinas ulteriores que manifestem
melhor o alcance dos textos e graças também, de outro lado, à inserção dos textos
no Cânon das Escrituras. Assim é constituído um novo contexto, que faz aparecer
potencialidades de sentido que o contexto primitivo deixava na obscuridade.”
“A exegese católica não procura se diferenciar
por um método científico particular. Ela reconhece que um dos aspectos dos textos
bíblicos é o de ser a obra de autores humanos, que se serviram de suas próprias
capacidades de expressão e meios que a época e o ambiente deles colocavam-lhes à
disposição. Consequentemente, ela utiliza sem subentendidos todos os métodos e abordagens
científicos que permitem melhor apreender o sentido dos textos no contexto linguístico,
literário, sociocultural, religioso e histórico deles, iluminando-os também pelo
estudo de suas fontes e levando em conta a personalidade de cada autor (cf Divino afflante Spiritu, E. B., 557). Ela contribui ativamente ao desenvolvimento dos métodos e
ao progresso da pesquisa.
O que a caracteriza é que ela se situa conscientemente
na tradição viva da Igreja, cuja primeira preocupação é a fidelidade à revelação
atestada pela Bíblia. As hermenêuticas modernas colocaram em destaque, lembremo-nos,
a impossibilidade de interpretar um texto sem partir de uma “pré-compreensão” de
um gênero ou de um outro. A exegese católica aborda os escritos bíblicos com uma
pré-compreensão que une estreitamente a cultura moderna científica e a tradição
religiosa proveniente de Israel e da comunidade cristã primitiva. Sua interpretação
encontra-se, assim, em continuidade com o dinamismo de interpretação que se manifesta
no interior da própria Bíblia e que se prolonga em seguida na vida da Igreja. Ela
corresponde à exigência de afinidade vital entre o intérprete e seu objeto, afinidade
que constitui uma das condições de possibilidade do trabalho exegético.
Toda pré-compreensão comporta, entretanto, seus
perigos. No caso da exegese católica o risco existe de atribuir a textos bíblicos
um sentido que eles não exprimem, mas que é o fruto de um desenvolvimento ulterior
da tradição. A exegese deve evitar este perigo.”
“Dado que os textos da Santa Escritura têm algumas
vezes relações de tensão entre eles, a interpretação deve necessariamente ser múltipla.
Nenhuma interpretação particular pode esgotar o sentido do conjunto, que é uma sinfonia
a várias vozes. A interpretação de um texto particular deve assim evitar de ser
exclusivista.”
“Os Padres praticam de maneira mais ou menos frequente
o método alegórico afim de dissipar o escândalo que poderia ser provocado em certos
cristãos e nos adversários pagãos do cristianismo diante de uma ou outra passagem
da Bíblia. Mas a literalidade e a historicidade dos textos são muito raramente esvaziadas.
Em suas explicações da Bíblia, os Padres misturam
e entrelaçam as interpretações tipológicas e alegóricas de uma maneira mais ou menos
inextricável, sempre com finalidade pastoral e pedagógica. Tudo o que esta escrito
o foi para nossa instrução (cf 1 Co 10,11).
Persuadidos de que se trata do livro de Deus,
portanto inesgotável, os Padres creem poder interpretar uma passagem segundo um
determinado esquema alegórico, mas eles estimam que cada um permanece livre para
propor outra coisa, contanto que respeite a analogia da fé.”
“Os exegetas devem explicar também a relação que
existe entre a Bíblia e a Igreja. A Bíblia veio à luz em comunidades de fiéis. Ela
exprime a fé de Israel e aquela das comunidades cristãs primitivas. Unida à Tradição
viva que a precedeu, a acompanha e da qual se alimenta (cf Dei Verbum, 21), ela é o meio privilegiado do qual Deus se serve para guiar, ainda
hoje, a construção e o crescimento da Igreja enquanto Povo de Deus. Inseparável
da dimensão eclesial esta a abertura ecumênica.
Pelo fato de que a Bíblia exprime uma oferta de
salvação apresentada por Deus a todos os homens, a tarefa dos exegetas comporta
uma dimensão universal, que requer uma atenção às outras religiões e aos anseios
do mundo atual.”
“A exegese suscita particularmente uma consciência
mais viva e mais precisa do caráter histórico da inspiração bíblica. Ela mostra
que o processo da inspiração é histórico não apenas porque ele teve seu lugar no
decorrer da história de Israel e da Igreja primitiva, mas também porque ele se realizou
através da mediação de pessoas humanas marcadas cada uma pela sua época e que, sob
a guia do Espírito, tiveram um papel ativo na vida do povo de Deus.
Aliás, a afirmação teológica da relação estreita
entre Escritura inspirada e Tradição da Igreja viu-se confirmada e precisada graças
ao desenvolvimento dos estudos exegéticos, que levou os exegetas a dar uma atenção
maior à influência que teve sobre os textos o ambiente vital onde eles se formaram.”
“Os exegetas podem ajudar os dogmáticos a evitar
dois extremos: de um lado o dualismo, que separa completamente uma verdade doutrinal
de sua expressão linguística, considerada como sem importância; de outro lado o
fundamentalismo que, confundindo o humano e o divino, considera como verdade revelada
mesmo os aspectos contingentes das expressões humanas.
Para evitar esses dois extremos é preciso distinguir
sem separar, e assim aceitar uma tensão persistente. A Palavra de Deus exprimiu-se
na obra de autores humanos. Pensamento e palavras são ao mesmo tempo de Deus e do
homem, de maneira que tudo na Bíblia vem ao mesmo tempo de Deus e do autor inspirado.
Não se conclui, no entanto, que Deus tenha dado um valor absoluto ao condicionamento
histórico de sua mensagem. Esta é suscetível de ser interpretada e atualizada, isto
é, de ser separada, pelo menos parcialmente, de seu condicionamento histórico passado
para ser transplantada no condicionamento histórico presente. O exegeta estabelece
as bases desta operação que o dogmático continua, levando em consideração os outros
loci theologici que contribuem ao desenvolvimento do dogma.”
“Muitas vezes os textos bíblicos não se preocupam
em distinguir preceitos morais universais, prescrições de pureza ritual e ordens
jurídicas particulares. Tudo é posto junto. De outro lado, a Bíblia reflete uma
evolução moral considerável, que encontra sua perfeição no Novo Testamento. Não
é suficiente que uma certa posição em matéria de moral seja atestada no Antigo Testamento
(por exemplo, a prática da escravidão ou do divórcio, ou aquela das exterminações
em caso de guerra), para que esta posição continue a ser válida. Um discernimento
deve ser feito, levando em conta o necessário progresso da consciência moral. Os
escritos do Antigo Testamento contêm elementos “imperfeitos e caducos” (Dei Verbum, 15), que a pedagogia divina não podia eliminar de uma só vez. O Novo Testamento
mesmo não é fácil de interpretar no domínio da moral, pois muitas vezes ele se exprime
através de imagem, ou de maneira paradoxal, ou mesmo provocadora, e a relação dos
cristãos com a Lei judaica é objeto aqui de ásperas controvérsias.”
“Os pontos de vista, efetivamente, são diferentes
e devem sê-lo. A primeira tarefa da exegese é discernir com precisão o sentido dos
textos bíblicos no próprio contexto deles, isto é, primeiramente no contexto literário
e histórico particular desses mesmos textos e em seguida no contexto do Cânon das
Escrituras. Realizando esta tarefa, o exegeta coloca em evidência o sentido teológico
dos textos, desde que eles tenham um alcance dessa natureza. Uma relação de continuidade
é, assim, feita possível entre a exegese e a reflexão teológica ulterior. Mas o
ponto de vista não é o mesmo, pois a tarefa da exegese é fundamentalmente histórica
e descritiva e limita-se à interpretação da Bíblia.”
“Textos mais antigos foram relidos à luz de circunstâncias
novas e aplicados à situação presente do Povo de Deus. Esta atualização é possível,
pois a plenitude do sentido do texto bíblico dá-lhe valor para todas as épocas e
todas as culturas (cf Is 40,8; 66,18-21; Mt 28,19-20). A mensagem
bíblica pode ao mesmo tempo tornar relativos e fecundar os sistemas de valores e
as normas de comportamento de cada geração.
A atualização é necessária, pois, se bem que a
mensagem dos textos da Bíblia tenha um valor durável, estes foram redigidos em função
de circunstâncias passadas e em uma linguagem condicionada por diversas épocas.
Para manifestar o alcance que eles têm para os homens e as mulheres de hoje, é necessário
aplicar a mensagem desses textos às circunstâncias presentes e exprimi-la em uma
linguagem adaptada à época atual. Isso pressupõe um esforço hermenêutico que visa
discernir através do condicionamento histórico os pontos essenciais da mensagem.
A atualização deve constantemente levar em consideração
as relações complexas que existem na Bíblia cristã entre o Novo Testamento e o Antigo,
pelo fato de que o Novo se apresenta ao mesmo tempo como realização e ultrapassagem
do Antigo. A atualização efetua-se em conformidade com a unidade dinâmica assim
constituída.
A atualização realiza-se graças ao dinamismo da
tradição viva da comunidade de fé. Esta situa-se explicitamente no prolongamento
das comunidades onde a Escritura nasceu e foi conservada e transmitida. Na atualização,
a tradição tem um papel duplo: ela procura, de um lado uma proteção contra as interpretações
aberrantes; ela assegura de outro lado a transmissão do dinamismo original.
Atualização não significa assim a manipulação
dos textos. Não se trata de projetar sobre os escritos bíblicos opiniões ou ideologias
novas, mas de procurar sinceramente a luz que eles contêm para o tempo presente.
O texto da Bíblia tem autoridade em todos os tempos sobre a Igreja cristã e, se
bem que passaram-se séculos desde os tempos de sua composição, ele conserva seu
papel de guia privilegiado que não se pode manipular. O Magistério da Igreja “não
esta acima da Palavra de Deus, mas ele a serve, ensinando somente aquilo que foi
transmitido; por mandato de Deus, com a assistência do Espírito Santo, ele a escuta
com amor, conserva-a santamente e explica-a com fidelidade” (Dei Verbum , 10). (...)
Graças à atualização, a Bíblia vem iluminar inúmeros
problemas atuais, por exemplo: a questão dos ministérios, a dimensão comunitária
da Igreja, a opção preferencial pelos pobres, a teologia da libertação, a condição
da mulher. A atualização pode também estar atenta a valores cada vez mais reconhecidos
pela consciência moderna como os direitos da pessoa, a proteção da vida humana,
a preservação da natureza, a aspiração à paz universal.”
“Uma importante contribuição é trazida por associações
e movimentos eclesiais, que colocam em primeiro plano a leitura da Bíblia em uma
perspectiva de fé e de engajamento cristão. Numerosas “comunidades de base” centralizam
suas reuniões sobre a Bíblia e se propõem um triplo objetivo: conhecer a Bíblia,
construir a comunidade e servir o povo. Aqui também a ajuda de exegetas é útil para
evitar atualizações mal fundadas. Mas deve-se alegrar em ver a Bíblia tomada por
mãos de gente humilde, dos pobres, que podem trazer à sua interpretação e à sua
atualização uma luz mais penetrante do ponto de vista espiritual e existencial do
que aquela que vem de uma ciência segura dela mesma (cf Mt 11,25).”
“Se o ecumenismo, enquanto movimento específico
e organizado, é relativamente recente, a idéia de unidade do povo de Deus, que esse
movimento se propõe de restaurar, é profundamente enraizado na Escritura. Tal objetivo
era a preocupação constante do Senhor (Jo 10,16; 17,11.20-23). Ele supõe
a união dos cristãos na fé, na esperança e na caridade (Ef4,2-5), no respeito
mútuo (Fil 2,1-5) e a solidariedade (1 Co 12,14-27; Rm 12,4-5)
mas também e sobretudo a união orgânica ao Cristo, à maneira dos sarmentos e da
vinha (Jo 15,4-5), dos membros e da cabeça (Ef 1,22-23; 4,12-16).
Esta união deve ser perfeita, à imagem daquela do Pai e do Filho (Jo 17,11.22);
a Escritura define seu fundamento teológico (Ef 4,4-6; Gal 3,27-28).
A primeira comunidade apostólica é um modelo concreto e vivo dessa união (At
2,44; 4,32).
A maior parte dos problemas que enfrenta o diálogo
ecumênico tem relação com a interpretação de textos bíblicos. Alguns desses problemas
são de ordem teológica: a escatologia, a estrutura da Igreja, o primado e a colegialidade,
o casamento e o divórcio, a atribuição do sacerdócio ministerial às mulheres, etc.
Outros são de ordem canônica e jurisdicional; eles concernem à administração da
Igreja universal e das Igrejas locais. Outros, enfim, são de ordem estritamente
bíblica: a lista dos livros canônicos, algumas questões hermenêuticas, etc.
Se bem que ela não possa ter a pretensão de resolver
sozinha todos esses problemas, a exegese bíblica é chamada a trazer ao ecumenismo
uma importante contribuição. Progressos notáveis já foram realizados. Graças à adoção
dos mesmos métodos e de metas hermenêuticas análogas, os exegetas de diversas confissões
cristãs chegaram a uma grande convergência na interpretação das Escrituras, como
o mostram o texto e as notas de diversas traduções ecumênicas da Bíblia, assim como
em outras publicações.
Deve-se reconhecer, aliás, que em pontos particulares
as divergências na interpretação das Escrituras são muitas vezes estimulantes e
podem se revelar complementares e enriquecedoras. É o caso quando elas exprimem
os valores das tradições particulares de diversas comunidades cristãs e traduzem
assim os múltiplos aspectos do Mistério de Cristo.
Como a Bíblia é a base comum da regra de fé, o
imperativo ecumênico comporta para todos os cristãos um apelo premente a reler os
textos inspirados na docilidade ao Espírito Santo, na caridade, na sinceridade,
na humildade, a meditar esses textos e a vivê-los de maneira a chegar à conversão
do coração e à santidade de vida, as quais, unidas à oração para a unidade dos cristãos,
são a alma de todo o movimento ecumênico (cf. Unitatis redintegratio, 8). Seria preciso para isso tornar acessível ao maior número possível de
cristãos a aquisição da Bíblia, encorajar as traduções ecumênicas — pois um texto
comum ajuda uma leitura e uma compreensão comuns — promover grupos de oração ecumênicos
afim de contribuir com um testemunho autêntico e vivo à realização da unidade na
diversidade (cf Rm 12,4-5).”
“A exegese bíblica preenche, na Igreja e no mundo,
uma tarefa indispensável. Querer se dispensar dela para compreender a Bíblia
seria ilusão e manifestaria urna falta de respeito para com a Escritura inspirada.
Pretendendo reduzir os exegetas ao papel de tradutores
(ou ignorando que traduzir a Bíblia já é fazer obra de exegese) e recusando de segui-los
em seus estudos, os fundamentalistas não se dão conta de que, por um louvável cuidado
de inteira fidelidade à Palavra de Deus, em realidade eles entram em caminhos que
os afastam do sentido exato dos textos bíblicos assim como da plena aceitação das
consequências da Encarnação. A Palavra eterna encarnou-se em uma época precisa da
história, em um ambiente social e cultural bem determinado. Quem deseja entendê-la
deve humildemente procurá-la lá onde ela se tornou perceptível, aceitando a ajuda
necessária do saber humano. Para falar aos homens e às mulheres, desde a época do
Antigo Testamento, Deus explorou todas as possibilidades da linguagem humana, mas
ao mesmo tempo ele teve também que submeter sua palavra a todos os condicionamentos
dessa linguagem. O verdadeiro respeito pela Escritura inspirada exige que sejam
realizados todos os esforços necessários para que se possa compreender bem seu sentido.
Seguramente não é possível que cada cristão faça pessoalmente as pesquisas de todos
os gêneros que permitam compreender melhor os textos bíblicos. Esta tarefa é confiada
aos exegetas, responsáveis nesse setor pelo bem de todos. (...)
A natureza mesma dos textos bíblicos exige que
para interpretá-los, continue-se o emprego do método histórico-crítico, ao
menos em suas operações principais. A Bíblia, efetivamente, não se apresenta como
uma revelação direta de verdades atemporais, mas como a atestação escrita de uma
série de intervenções pelas quais Deus se revela na história humana. A diferença
de doutrinas sagradas de outras religiões, a mensagem bíblica é solidamente enraizada
na história. Conclui-se que os escritos bíblicos não podem ser corretamente compreendidos
sem um exame de seu condicionamento histórico.”
Um comentário:
Texto com aspecto mais científico.
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