sexta-feira, 14 de abril de 2023

A destruição da razão (Parte II), de György Lukács

Editora: Instituto Lukács

Opinião: ★★★★☆

Tradução: Bernard Herman Hess, Rainer Patriota, Ronaldo Vielmi Fortes

Páginas: 794

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Sinopse: Ver Parte I




“Apesar de tudo isso, a determinação social de que falamos tem uma relação mais profunda e íntima com a personalidade dos pensadores e a sua produção. Não é apenas a pressão social externa que produz tantas ambiguidades conscientes na filosofia, de Descartes a Hegel, tantos disfarces para o que realmente se pensa, principalmente nas questões decisivas da filosofia. Muito mais importante aqui é o fato de que as condições sociais dominam os pensadores em questão sem que eles se deem conta disso, até em suas convicções mais originais, até em sua maneira de pensar, em seu modo de colocar os problemas etc. Nesse sentido é que Marx se contrapõe aos hegelianos radicais que procuram explicar as ambiguidades de Hegel recorrendo ao argumento de uma adaptação puramente externa, querendo opor o Hegel “exotérico” que transige ao Hegel “esotérico” que assume um compromisso radical: “Não se pode falar de uma acomodação de Hegel diante da religião, do Estado etc., já que essa mentira é a mentira de seu progresso”.1

Os filósofos – conscientemente ou não, querendo ou não – sempre estão, também interiormente, envolvidos com sua sociedade e, nela, com uma determinada classe, com suas aspirações progressistas ou retrógradas. E justamente aquilo que em sua filosofia é realmente pessoal, realmente original, é nutrido, determinado, formado e guiado por esse terreno (e pelo seu destino histórico). Mesmo onde à primeira vista parece prevalecer um posicionamento individual que beira o isolamento em relação à própria classe, esse posicionamento está intimamente ligado à situação de classe, às flutuações da luta de classes. Sobre Ricardo, Marx demonstrou como sua ligação com a produção capitalista e com o desenvolvimento das forças produtivas sob o capitalismo determina o seu posicionamento. Ele diz: “Se a concepção de Ricardo em seu conjunto está afinada com o interesse da burguesia industrial, então isso se dá somente porque e na medida em que esse interesse coincide com o interesse da produção ou do desenvolvimento produtivo do trabalho humano. Mas quando esses interesses se contradizem, ele é tão implacável contra a burguesia como o é, no geral, contra o proletariado e contra a aristocracia”.1

Quanto mais autêntico e importante é um pensador, tanto mais ele é filho de seu tempo, de seu país, de sua classe, pois cada questionamento filosófico fecundo, real – por maior que seja o esforço para colocá-lo sub specie aeternitatis – é sempre concreto; isso quer dizer que ele é determinado em conteúdo e forma pelas angústias e aspirações sociais, científicas, artísticas, entre outras, e contém – sempre dentro das tendências concretas aqui operantes – em si mesmo uma tendência concreta para frente ou para trás, para o novo ou para o velho. E é um problema de importância secundária se, e em que medida, o filósofo em questão tem consciência dessas conexões.”

1 Marx-Engels. Historisch-Kritische Gesamtausgabe (MEGA), 1ª seção, t. III, p. 164. (ed. bras.: Manuscritos Econômico-Filosóficos. Tradução de Jesus Ranieri. São Paulo: Boitempo, 2004. p. 130, modif.).

 

 

“O irracionalismo, mesmo que se possa verificar a sua ocorrência, ou de algo muito parecido com ele nas mais diversas épocas de crises, pertencentes a formações sociais muito distintas, não pode possuir uma história unitária e coerente, como se poderia falar em relação à história do materialismo ou da dialética. Naturalmente, a “autonomia” dessas histórias é extremamente relativa, assim como ocorre com toda a História da Filosofia, que só pode ser compreendida e exposta de modo científico e racional se tomada como parte da história geral da sociedade, com base na história da vida econômico-social da humanidade. É claro que a seguinte afirmação de Marx, de A Ideologia Alemã, também se refere à História da Filosofia: “Não se pode esquecer que o direito, tal como a religião, não tem uma história própria.”1

Mas, no caso do irracionalismo, trata-se ainda de algo diverso, de algo que vai para além disso. É uma simples forma de reação ao desenvolvimento dialético da razão humana (reação aqui entendida no duplo sentido de secundária e de retrógrada). Portanto, sua história depende daquele desenvolvimento da ciência e da filosofia, a cujos questionamentos ela reage convertendo o próprio problema em solução, declarando que a pretensa impossibilidade de princípio de resolver o problema é a mais alta expressão de entendimento do mundo. Essa transformação artificiosa da suposta insolubilidade em solução e a pretensão de que nessa recusa do problema, nesse desviar-se dele, nessa fuga diante de uma resposta positiva, esteja contida a “verdadeira” apreensão da realidade é a marca decisiva do irracionalismo.”

1 Marx-Engels: Die deutsche Ideologie, Berlin 1953, p. 63. (ed. bras.: A Ideologia Alemã. Tradução de Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2007. p. 76).

 

 

“É algo evidente e universalmente conhecido que não pode haver ideologia burguesa na qual o egoísmo não desempenhe um papel importante.”

 

 

“É verdade que em Schopenhauer – e também aqui se manifesta a sua apologética indireta – o egoísmo burguês ordinário é apresentado como algo moralmente negativo, mas não como algo socialmente negativo, portanto, não como uma qualidade ou uma tendência que deveria ser modificada do ponto de vista social e moral; em Schopenhauer, o egoísmo burguês ordinário é simplesmente alçado a uma qualidade cósmica imutável “do” homem, mais ainda: a uma qualidade cósmica imutável de toda a existência. Da sua teoria do conhecimento e da sua visão de mundo, de cujos fundamentos nos ocuparemos mais adiante (do ponto de vista dos seus princípios teóricos), Schopenhauer deriva a necessidade cósmica do egoísmo implacável de tipo capitalista: “Eis por que cada um quer tudo para si, quer tudo possuir, ao menos dominar, e assim deseja aniquilar tudo aquilo que lhe opõe resistência. Acresce ao dito o fato de que, no ser cognoscente, o indivíduo é sustentáculo do sujeito que conhece e este é sustentáculo do mundo. Noutros termos, toda a natureza exterior ao indivíduo que conhece, portanto todos os demais indivíduos, existe apenas em sua representação: sempre está consciente deles apenas como sua representação, portanto, de maneira meramente mediata, como algo dependente de seu próprio ser e existência, pois, se sua consciência sucumbisse, o mundo também sucumbiria necessariamente, isto é, a existência ou inexistência dos demais indivíduos ser-lhe-iam indiferentes e indiscerníveis... A própria natureza, em toda parte sempre verdadeira, dá ao indivíduo, originária e independentemente de qualquer reflexão, esse conhecimento simples e imediatamente certo. Ora, a partir das suas mencionadas determinações necessárias, explana-se o fato de que cada indivíduo, que desaparece por completo e diminui ao nada em face do mundo sem limites, faz no entanto de si mesmo o centro do universo, antepondo a própria existência e o bem-estar a tudo o mais, sim, do ponto de vista natural está preparado para sacrificar qualquer coisa, até mesmo para aniquilar o mundo, simplesmente para conservar mais um pouco o próprio si-mesmo, esta gota no meio do oceano. Eis aí a mentalidade do Egoísmo, o qual é essencial a cada coisa da natureza”.1

A moral schopenhaueriana é aparentemente uma elevação acima desse egoísmo, aparentemente a sua negação. Mas o abandono desse egoísmo burguês habitual, inflado a dimensões cósmicas, cumpre-se, para ele, igualmente no indivíduo intelectualmente isolado da sociedade, significando até mesmo uma intensificação desse isolamento. Da fruição estética ao ascetismo do sagrado, na pretensa suplantação schopenhaueriana do egoísmo, é exaltado, de modo cada vez mais forte, o puro depender-de-si-mesmo do indivíduo como único modelo de conduta moral. Certamente esse egoísmo “sublime” tem de se mostrar em oposição brusca ao egoísmo ordinário, como uma repulsa da aparência, do “véu de Maia” (quer dizer, da vida social), ao qual o egoísmo ordinário fica preso; como compaixão por todas as criaturas, graças à compreensão de que a individuação é só uma aparência, e que atrás dessa aparência está escondida a unidade de toda a existência.

Essa oposição criada por Schopenhauer entre dois tipos de egoísmo é um dos traços mais refinados de sua apologética indireta. Em primeiro lugar, ele confere a essa conduta a consagração do aristocratismo dos homens lúcidos por oposição ao apego cego da plebe ao mundo das aparências. Em segundo, essa elevação acima do egoísmo ordinário, precisamente graças a sua universalidade “sublime”, cósmico-mística, não se vê a nada obrigada: ela difama as obrigações sociais e coloca em seu lugar efusões sentimentais vazias, sentimentalidades que, em certos casos, podem ser compatíveis com os maiores crimes sociais. No excelente filme soviético Tchapáiev, aparece um general contrarrevolucionário, bestialmente cruel, que cuida de um canário a que se sente ligado por uma simpatia cósmica – em sentido verdadeiramente schopenhaueriano – e toca, em suas horas de ócio, sonatas de Beethoven, cumprindo assim todos os preceitos “sublimes” da moral schopenhaueriana. E aqui cabe também o próprio comportamento de Schopenhauer, sobre o qual já falamos.

É verdade que o filósofo, de antemão, toma precauções contra qualquer censura que lhe possa ser dirigida nesse sentido. Também aqui ele se mostra como um grande renovador moderno da ética, na medida em que declara que o sistema moral que ele mesmo elaborou e fundamentou filosoficamente não é obrigatório para si próprio. “Em geral, é uma estranha exigência feita a um moralista a de que ele não deve recomendar outra virtude senão a possuída por ele mesmo”.2 Assim se garante à intelectualidade da burguesia decadente o máximo de conforto espiritual e moral: ela está de posse de uma moral que a libera de todos os deveres sociais, que a alça a uma altura sublime, bem acima da plebe cega e ignorante, uma moral que o próprio fundador se declara livre da obrigação de cumprir (sempre que os deveres se tornam difíceis ou simplesmente incômodos). Schopenhauer mesmo – e aqui perfeitamente coerente com sua doutrina – orientou toda a sua própria vida no sentido desse conforto.

Assim está traçado um importante protótipo, que servirá por muito tempo de modelo influente para a ética burguesa do período da decadência. Mas aquilo que é iniciado em Schopenhauer ainda nessa forma dualista e que a nada obriga, os seus sucessores, sobretudo Nietzsche, irão desenvolver até as últimas consequências: liberar, por via da ética, todos os instintos maus, antissociais, anti-humanos do homem, sancioná-los moralmente; apresentá-los, embora nem sempre como mandamento, mas pelo menos como “destino”, para “o” homem, quer dizer, para o burguês, para o intelectual burguês do período imperialista.

Aqui podem ser notados claramente os pontos de contato e as diferenças entre Schopenhauer e a filosofia irracionalista da época da Restauração. Ambos querem educar os seus seguidores para uma passividade social. Tal passividade exalta – como pertencente à vontade de Deus – o “crescimento orgânico” da sociedade, quer dizer, a única legitimidade da ordem feudal-absolutista, e estigmatiza como inorgânica, como simplesmente “feita”, como satânica, toda transformação revolucionária, enquanto que, em Schopenhauer, o irracionalismo da sociedade e da história aparece como pura e simples falta de sentido, e a aspiração a querer tomar parte da vida social ou até de transformar a sociedade revela-se com tamanha ignorância da essência do mundo, que chega a ser praticamente um tipo de crime. Schopenhauer, portanto, defende o existente com a mesma decisão com que faz o irracionalismo feudal ou semifeudal em relação à Restauração, mas com um método inteiramente antagônico, com um método burguês, o da apologia indireta. Os ideólogos da Restauração defenderam a ordem social feudal-absolutista concreta do seu tempo; a filosofia schopenhaueriana é uma defesa ideológica para toda ordem social vigente que está em condições de defender eficazmente a propriedade privada burguesa.

O espírito burguês de Schopenhauer expressa-se, portanto, precisamente no fato de que – desde que a propriedade privada esteja suficientemente protegida – é-lhe totalmente indiferente o caráter político do sistema de dominação.”

1 Schopenhauer, op. cit., t. I, p. 429 (ed. bras.: O Mundo como Vontade e Representação. Tradução de Jair Barboza. São Paulo: Ed. UNESP, 2005. p. 426-427, modif.).

2 Ibid., p. 492.

 

 

“Mesmo sem termos nos referido explicitamente aos problemas da dialética, ainda assim fomos obrigados a tangenciar, do ponto de vista do conteúdo, alguns dos mais importantes problemas dialéticos. Recordemos a relação de fenômeno e essência, de interno e externo, de teoria e prática. Qualquer um que tiver uma visão geral do desenvolvimento da dialética de Kant a Hegel pode imediatamente perceber o nítido contraste. Enquanto que, em Hegel, a relativização dialética de fenômeno e essência leva à solução acertada do problema da coisa-em-si, ao conhecimento da coisa pelo conhecimento de suas propriedades, à transformação consequente da coisa-em-si na coisa-para-nós no decorrer de uma infinita aproximação dialética dos objetos, em Schopenhauer, não existe entre aparência e essência, entre fenômeno e coisa-em-si nenhum tipo de mediação; trata-se de dois mundos radicalmente diferentes entre si. Enquanto em Hegel o interno e o externo se convertem continuamente um no outro, em Schopenhauer, eles se encontram separados por um abismo metafísico. (Trataremos detalhadamente do significado antidialético-irracionalista dessa questão em Kierkegaard.) Enquanto que, em Hegel, teoria e prática são colocadas – na medida em que isso é possível a uma filosofia idealista – numa íntima relação dialética de interdependência, de modo que problemas teóricos categoriais, como, por exemplo, aqueles da teleologia, explicam-se diretamente a partir de sua origem no trabalho humano, no uso de ferramentas,1 teoria e prática, em Schopenhauer, pelo contrário, encontram-se, uma em relação à outra, de modo tão hostil que, para a teoria, a relação com a prática chega a ser algo degradante, um importante sintoma de sua inferioridade, de sua falta de conexão com o essencial, haja vista que a verdadeira teoria, a verdadeira filosofia, só pode ser uma contemplação, bruscamente isolada de toda e qualquer prática.”

1 Cf. A respeito das Teses sobre Feuerbach, em Marx-Engels: Die deutsche Ideologie, 1953, op. cit., p. 593 s (ed. bras.: A Ideologia Alemã. Tradução de Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2007. p. 533), como também a obra filosófica póstuma de Lênin, particularmente, op. cit., p. 133. No meu livro sobre O Jovem Hegel, essa questão é tratada em um capítulo especial. Op. cit., p. 431 s. (ed. bras.: O Jovem Hegel. Tradução de Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo, 2018. p. 464 e s.).

 

 

É muito interessante contrapor a essa negação da interação as exposições de Hegel, que, por um lado, comprovam detalhadamente a realidade e efetividade objetiva da interação, mas, por outro, também enxergam nela apenas uma forma relativamente baixa do vínculo dialético geral de todos os objetos, à qual, portanto, a lógica dialética não deve se limitar. “Interação” diz Hegel, “é a verdade mais próxima da relação de causa e efeito, e está, por assim dizer, no limiar do conceito. No entanto, justamente por isso, não há que se contentar com o emprego dessa relação, quando se trata do conhecimento conceitual. Quando se fica na consideração de dado conteúdo simplesmente sob o ponto de vista da interação, isso é de fato um comportamento carente-de-conceito”.1 Como aqui se trata apenas de fazer ressaltar a oposição entre lógica dialética e lógica metafísico-irracionalista, não podemos adentrar nas especificidades interessantes desse complexo de questões. Deve bastar, a título de resumo, citar algumas observações de Lênin sobre dialética e causalidade em Hegel, e constatar que aquilo que ele diz sobre a causalidade nos neokantianos refere-se integralmente também a Schopenhauer. Diz Lênin: “Quando lemos em Hegel a propósito da causalidade, então achamos curioso, à primeira vista, que ele se detenha tão pouco no tema tão caro aos kantianos. Por quê? Porque para ele a causalidade é apenas uma das determinações da conexão universal que ele já havia concebido antes, em toda a sua exposição, de modo muito mais profundo e omnilateral, endossando sempre, desde o primeiro momento, essa conexão, as transições recíprocas etc. Seria muito instrutivo comparar as ‘dores do parto’ do neoempirismo (e respectivamente, do ‘idealismo físico’) com as soluções, ou, melhor, com o método dialético de Hegel”.2

E não menos cortante é o contraste na questão de espaço e tempo. Nisso, certamente, a consonância entre Kant e Schopenhauer é muito maior do que na questão das categorias de entendimento, pois em relação a essa questão, de fato, Kant é muito menos dialético do que foi em relação àquele outro, ao menos do ponto de vista das suas aspirações. Não só ele considera, do mesmo modo que Schopenhauer, espaço e tempo como pressupostos universais apriorísticos de toda objetividade, isto é, como princípios que devem ser filosoficamente considerados independentes de toda objetividade e que devem ser captados antes dela, mas também destaca a completa independência de uma em relação à outra. Schopenhauer acentua de modo ainda mais agudo esse dualismo metafísico de espaço e tempo: “Vemos, então, que as duas formas de representação empírica, embora tenham em comum, como se sabe, a infinita divisibilidade e a infinita extensão, são fundamentalmente diversas no fato de que, aquilo que para uma é essencial, para a outra não tem qualquer significado; a coexistência não tem qualquer significado no tempo, a sucessão, qualquer significado no espaço”.3 Se espaço e tempo aparecem unidos no conhecimento intelectivo prático, então o princípio de unificação, segundo Schopenhauer, reside não neles mesmos, mas exclusivamente no entendimento, na subjetividade.

Já o jovem Hegel se manifesta contra o dualismo metafísico de Kant quanto à questão de espaço e tempo, o que ocorre, por exemplo, em sua Lógica de Iena (de 1801 a 1802). Aqui, sobretudo, chama a atenção que Hegel trata espaço e tempo não na parte lógico-gnosiológica de sua obra, mas na parte dedicada à filosofia da natureza, e isso, no capítulo referente ao conceito de movimento, e aqui, ainda assim, não recebe tratamento gnosiológico, mas é tratado em relação ao problema do éter. No que se refere ao tratamento mesmo, é necessário destacar que, por um lado, espaço e tempo são apresentados como elementos de uma unidade concreta da natureza, por outro, e por consequência dialética disso, como elementos que se convertem um no outro. “O simples igual a si mesmo, ou seja, o espaço, como algo à parte, é um elemento; mas enquanto se realiza, enquanto é aquilo que é em si, ele é o oposto de si mesmo, ele é o tempo; e, inversamente, o infinito como elemento do tempo: se o tempo se realiza ou existe enquanto elemento, quer dizer, superando-se como aquilo que é, ele é o seu oposto, ou seja, espaço...”.4

No Hegel maduro, há nessa questão muitas mudanças, mas os princípios dialéticos permanecem os mesmos. Mesmo na Enciclopédia, espaço e tempo não são desenvolvidos na lógica, mas na filosofia da natureza; mas dessa vez como introdução à mecânica. Embora Hegel, como idealista, seja incapaz, mesmo aqui, de encontrar a verdadeira dialética do espaço e do tempo (faz-se necessária, para este fim, uma teoria dialética do reflexo da realidade objetiva), é evidente, para ele, a íntima conexão, a ininterrupta conversão recíproca entre espaço e tempo. Assim, ele diz, por exemplo, em determinado lugar (é impossível expormos aqui uma análise detalhada de suas concepções; temos de nos limitar a alguns exemplos particularmente característicos do método): “A verdade do espaço é o tempo, assim o espaço vem-a-ser tempo; nós não passamos tão subjetivamente para o tempo, mas o próprio espaço passa. Na representação estão espaço e tempo largamente um-fora-do-outro, temos espaço e depois também tempo; este, também, combate-o a filosofia”.5 Para o dialético Hegel, portanto, o dualismo de espaço e tempo em Kant (e também em Schopenhauer, que ele jamais leu), significa permanecer no nível da representação, não atingir o ponto de vista filosófico. Hegel também acentua continuamente a impossibilidade de se separar conceitualmente o espaço e o tempo da mobilidade real do mundo objetivo. Para ele, espaço e tempo jamais são recipientes vazios, meramente subjetivos, em cujos limites se desenvolvem a objetividade e a mobilidade; pelo contrário, eles mesmos são elementos do mundo da objetividade móvel, da dialética objetiva da realidade. Assim Hegel se refere ao tempo: “Mas não é que no tempo surja e pereça tudo, porém o próprio tempo é este vir-a-ser, surgir e perecer”.6

Essas questões só aparentemente têm um caráter gnosiológico abstrato; na realidade, o modo como se concebem o espaço e o tempo tem uma importância decisiva para a construção de qualquer filosofia. A esse propósito, só observamos, de passagem, que a brusca separação metafísica de espaço e tempo, que no próprio Schopenhauer ainda se define como uma justaposição mecânica, forma o pressuposto gnosiológico da contraposição do espaço e do tempo na filosofia irracionalista do período imperialista (Bergson, Spengler, Klages, Heidegger etc.). Até nisso, Schopenhauer revela-se um importante iniciador do desenvolvimento ulterior do irracionalismo. Mas também aqui apenas como precursor. Estava ainda fora do seu horizonte a inflexão que se tornaria tão característica dos pensadores posteriores, em que se contrapõe ao espaço “morto”, mecânico-fatalista, racional e “objetivo” o tempo subjetivo, vivo e irracionalista.

E isso se dá por razões histórico-sociais. Só as mais ásperas lutas de classes da fase imperialista impuseram à filosofia burguesa reacionária essa concepção de tempo, como base filosófica de uma pseudo-história mistificadora capaz de se opor ao avanço cada vez mais vitorioso do materialismo histórico.

Nietzsche, na véspera do período imperialista, também é, nesse sentido, uma figura de transição, ainda que sobre a base de lutas de classes bem mais aguçadas: seu mito já é uma pseudo-história, mas ainda sem uma teoria do tempo própria, no sentido indicado acima, enquanto que o mito schopenhaueriano consistia ainda em uma radical negação de qualquer historicidade.

Isso também se explica com base nas lutas de classes da época de Schopenhauer, e nas contradições ideológicas que derivam delas. Já observamos, em outro contexto, que, no período em que Schopenhauer entra em cena, as frentes ideológicas opõem-se como historicismo e pseudo-historicismo, como defesa histórica do progresso por parte da burguesia com base na experiência da Revolução Francesa e como doutrina semifeudal-legitimista de um desenvolvimento “orgânico”, que na verdade escondia, sob a máscara da historicidade, a aspiração de um retorno à situação anterior à Revolução, e que era assim a defesa ideológica da reação feudal-legitimista. Nesse dilema, o ponto de vista sustentado por Schopenhauer é, visto superficialmente, um tertium datur peculiar, isto é, a recusa da importância de qualquer tipo de historicidade para a essência da realidade. Vimos, porém, que isso se opõe à filosofia romântico-reacionária só na argumentação e em alguns elementos concretos; na verdade, Schopenhauer é igualmente um áspero adversário de todo e qualquer progresso social, ocorre somente que, para ele, que não estava tão intimamente ligado à monarquia absolutista e à nobreza que a sustentava, era indiferente que tipo de regime “forte” protegesse a propriedade burguesa contra as massas exploradas, desde que o fizesse de modo eficaz. (Essa também é uma razão para a popularidade de Schopenhauer no período do bonapartismo.)

Só a partir desses elementos é que fica claro o verdadeiro sentido filosófico dos problemas categoriais aqui tratados. A inflexão que a filosofia clássica alemã representa no pensamento humano consiste principalmente no fato de que, no idealismo objetivo, sobretudo no de Hegel, a dialética, depois de algumas importantes tentativas realizadas nos séculos XVII e XVIII, converteu-se no método histórico para o conhecimento da natureza e da história. (Naturalmente, com todos os limites do idealismo filosófico, insuperáveis nos pensadores dialéticos burgueses.) A concepção subjetivista de espaço, tempo e causalidade, a limitação da sua aplicabilidade ao mundo fenomênico, a hegemonia absoluta da causalidade como categoria de relações entre os objetos, a separação rigorosamente metafísica entre espaço e tempo: tudo isso serve, sobretudo, para negar radicalmente toda e qualquer historicidade da natureza e do mundo dos homens.

Schopenhauer esboça uma imagem do mundo, na qual nem o cosmos dos fenômenos nem o cosmos das coisas-em-si conhece um transformar-se, um desenvolvimento, uma história. É verdade que o primeiro consiste em uma mudança ininterrupta, em um aparente devir e perecer, e uma mudança que está submetida a uma necessidade fatalista. Mas esse devir e perecer é, pela sua essência, algo estático: um caleidoscópio no qual as combinações sempre cambiantes dos mesmos componentes produzem, para o observador imediato, desavisado, a ilusão de uma mudança permanente. E aquele que possui uma verdadeira consciência filosófica deve necessariamente perceber que, atrás desse véu colorido de fenômenos superficiais em permanente alternância, está oculto um mundo sem espaço, tempo e causalidade, em relação ao qual seria sem sentido falar de história, desenvolvimento ou até de progresso. Esse iniciado, diz Schopenhauer, “Não mais acreditará, como a maioria das pessoas, que o tempo cria algo efetivamente novo e significativo; que, através do tempo, ou nele, algo absolutamente real alcança a existência...”.7

Aqui estão as raízes objetivas do ódio inflamado que Schopenhauer nutria contra Hegel. Ele havia transformado a filosofia kantiana em um anti-historicismo radical e foi obrigado a assistir à vitória do robusto historicismo dialético de Hegel sobre o seu próprio sistema. Por isso ele formula, contra Hegel, muitas vezes em polêmicas injuriosas e furiosas, esta sua doutrina: “Por fim, no que concerne à tendência de conceber a história universal como uma totalidade determinada por um plano, tendência que se deve principalmente a essa pseudofilosofia hegeliana que, em toda parte, corrompe e embrutece os espíritos... ela se fundamenta, na verdade, sobre um realismo tosco e plano, que identifica o fenômeno com a essência-em-si do mundo, e acredita que tudo depende dele, de suas figuras e de seus processos...”.8

Dessa concepção segue-se necessariamente que Schopenhauer negue qualquer evolução na natureza. Contrariamente a Goethe, com o qual supostamente está de acordo em todas as questões, ele é no campo da ciência da natureza um admirador de Lineu e Cuvier e não toma conhecimento das tentativas por parte de seus grandes contemporâneos de descobrir na natureza um desenvolvimento histórico. Naturalmente, também não podiam lhe escapar os graus da natureza (natureza inorgânica e orgânica, seres vivos, gêneros etc.) Ele vê nelas, porém, formas eternas da objetivação da vontade, cujos “graus de objetivação da vontade, ia dizer, não são outra coisa senão as ideias de Platão”.9 Esses modelos eternos de toda forma fenomênica individual são, para ele, “constantes, sujeitos a nenhum tipo de mudança, sempre existentes, jamais formados”. Aqui também é possível notar com clareza como foram inconsistentes e falseadoras dos reais nexos aquelas concepções da historiografia burguesa que enxergavam em Schopenhauer um continuador das tradições goethianas. Em tudo aquilo que foi decisivo na filosofia (da natureza) de Goethe, em relação à sua oposição ao mecanicismo a-histórico de Lineu e Cuvier, Schopenhauer é um adversário de Goethe, não o seu continuador.

Portanto, não existe história em Schopenhauer. Diz ele: “pois somos da opinião de que está infinitamente distante do conhecimento filosófico do mundo quem imagina poder conceber a essência dele historicamente, por mais que faça uso de disfarces. Este é o caso, entretanto, assim que, numa visão da essência em si do mundo, encontre-se algum tipo de vir-a-ser, ou tendo-vindo-aser, ou vir-vir-a-ser, algo parecido a um antes e um depois que detém a última significação... Todas essas filosofias históricas, não importa seus ares, fazem de conta que Kant nunca existiu e tomam o Tempo por uma determinação da coisa-em-si, com o que permanecem naquilo denominado por Kant fenômeno, em oposição à coisa-em-si ... Trata-se aqui precisamente do conhecimento que pertence ao princípio do fundamento, com o qual jamais se atinge a essência íntima das coisas, mas somente se perseguem fenômenos ao infinito, num movimento sem fim e sem alvo...”.10 Por princípio, diz Schopenhauer, a história jamais pode ser objeto de uma ciência; ela é “mentirosa não só na execução, mas também em sua essência”.11 Por isso, para Schopenhauer, na história não existe nenhuma diferença entre importante e desimportante, entre grande e pequeno; real é apenas o indivíduo, o gênero humano é apenas uma abstração vazia.

Resta, portanto, apenas o indivíduo, isolado num mundo sem sentido, como produto fatal do princípio da individuação (espaço, tempo, causalidade). Trata-se, certamente, de um indivíduo que, em virtude da identidade – por nós já revelada – de microcosmo e macrocosmo no mundo das coisas-em-si, identifica-se com a essência do mundo. Mas essa essência, que se encontra para além da validade do espaço, do tempo e da causalidade, é, consequentemente, o nada. É por essa razão que a obra fundamental de Schopenhauer termina, coerentemente, com as seguintes palavras: “Antes, reconhecemos: para todos aqueles que ainda estão cheios de vontade, o que resta após a completa supressão da vontade é, de fato, o nada. Mas, inversamente, para aqueles nos quais a vontade virou e se negou, este nosso mundo tão real com todos os seus sóis e vias lácteas é – nada”.12

Agora que pudemos formar uma ideia de conjunto dos problemas fundamentais da filosofia de Schopenhauer, impõe-se novamente a questão: qual é a missão social que ela exerce? Ou, o que de outro ponto de vista significa a mesma coisa: qual é a função de sua vasta e duradoura influência? O pessimismo por si só não é capaz de apresentar uma resposta satisfatória; ele mesmo carece ainda de uma concretização maior que aquela que apresentamos antes. A filosofia de Schopenhauer recusa a vida de qualquer modo e lhe contrapõe, como perspectiva filosófica, o nada. Mas é possível viver semelhante vida? (Observemos aqui, de passagem, que Schopenhauer – como na questão do pecado original, também aqui, em conformidade com o cristianismo – rejeita o suicídio como solução para a ausência de sentido da existência.) Se observarmos a filosofia de Schopenhauer em seu conjunto, a resposta é sim, pois a ausência de sentido da vida significa, sobretudo, a libertação do indivíduo de todas as obrigações sociais, principalmente, da responsabilidade diante do desenvolvimento da humanidade, que, aos olhos de Schopenhauer, sequer existe. E o nada, como perspectiva do pessimismo, como horizonte de vida, de modo nenhum é capaz, segundo a já referida ética schopenhaueriana, de impedir o indivíduo, ou mesmo de inibi-lo, de conduzir a vida de maneira prazerosa e contemplativa. Pelo contrário. O abismo do nada, o fundo obscuro da ausência de sentido da existência, confere a esse gozo da vida apenas um fascínio picante. Esse fascínio cresce ainda mais na medida em que o aristocratismo fortemente incisivo da filosofia schopenhaueriana eleva os seus sequazes – em seu convencimento – muito acima daquele povo miserável, que se encontra um tanto obtuso para lutar e sofrer por melhores condições sociais. Assim, o sistema de Schopenhauer – construído com uma natureza arquitetônico-formal, de modo engenhoso e com senso de composição – erige-se como um elegante e moderno hotel, equipado com todo conforto, à beira do abismo, do nada, do absurdo. E a visão cotidiana do abismo, entre refeições ou criações artísticas confortavelmente saboreadas, só pode aumentar a alegria desse sofisticado conforto.

Com isso, o irracionalismo schopenhaueriano cumpre a sua tarefa: impedir que certo setor descontente da intelectualidade dirija concretamente o seu descontentamento com o “existente”, leia-se, com a ordem social vigente, contra o sistema capitalista dominante. Com isso o irracionalismo cumpre a sua meta central – e não importa até que ponto o próprio Schopenhauer tivesse consciência disso: fornecer uma apologia indireta da ordem social capitalista.”

1 Hegel, Enzyklopädie, § 156, Zusatz, op. cit., t. VI, p. 308. (ed. bras.: Enciclopédia das Ciências Filosóficas em Compêndio. Vol. I, A Ciência da Lógica. Tradução de Paulo Meneses e José Machado. São Paulo: Loyola, 1995. p. 286, modif.).

2 Lênin: Philosophischer Nachlaß, a. a. O, p. 82 s.

3 Schopenhauer, op. cit., t. III, p. 42.

4 Hegel, Jenenser Logik, Leipzig, 1923, p. 202.

5 Hegel, Enzyklopädie, § 257, Zusatz in op. cit., t. VII, parte I, p. 53. (ed. bras.: Enciclopédia das Ciências Filosóficas em Compêndio. Vol. II, A Filosofia da Natureza. Tradução de Pe. José Nogueira Machado e Paulo Meneses. São Paulo: Loyola, 1995. p. 54, modif.).

6 Ibid., § 258, p. 54 (ed. bras.: Ibid., p. 55, modif.).

7 Schopenhauer, op. cit., t. I, p. 249 (ed. bras.: op. cit., p. 251).

8 Ibid., t. II, p. 519.

9 Ibid., t. I, p. 186. (ed. bras.: op. cit., p. 191, modif.).

10 Ibid., p. 357 s. (ed. bras.: op. cit., p. 356, modif.).

11 Ibid., t. II, p. 521.

12 Ibid., t. I, p. 527. (ed. bras.: op. cit., p. 519, modif.).

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