sexta-feira, 14 de abril de 2023

A destruição da razão (Parte IV), de György Lukács

Editora: Instituto Lukács

Opinião: ★★★★☆

Tradução: Bernard Herman Hess, Rainer Patriota, Ronaldo Vielmi Fortes

Páginas: 794

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Sinopse: Ver Parte I




“Em todas as teorias biológico-reacionárias da sociedade (não deve ser por um acaso que esses dois aspectos costumam se apresentar juntos), a “lei biológica” – o elemento “orgânico” na filosofia da restauração, a “luta pela existência” no darwinismo social – sempre aparece como aquele fundamento do qual são deduzidas as consequências reacionárias mais diversas no terreno da sociedade, da moral etc.

Na realidade, porém, a coisa dá-se de modo oposto. Foi a necessidade da Restauração de encontrar um conceito de sociedade que excluísse a priori – dos pontos de vista lógico e ontológico – todo tipo de revolução que fez surgir aquela concepção de “orgânico”, que essa filosofia depois converteu em seu fundamento, sem quebrar muito a cabeça sobre a possibilidade e a fundamentação científica de tal analogia.”

 

 

“Na realidade, surge, porém, uma escolástica acadêmica; as grandes lutas de tendências entre as várias visões de mundo deram lugar a querelas mesquinhas de professores sobre detalhes sem qualquer importância.”

 

 

“É claro que o caráter defensivo da filosofia burguesa do período da decadência, assim determinado e delimitado, não exclui os mais violentos ataques contra os seus adversários nem a defesa apaixonada dos interesses de classe da burguesia etc. Estas ações se tornam até mais agudas com o início do período imperialista, em que, precisamente, a “necessidade de uma visão de mundo”, sentida de maneira cada vez mais intensa, caracteriza a diferença da época descrita por Engels. Mas as “visões de mundo” que assim surgem se distinguem qualitativamente daquelas ideologias do período ascensional. Naqueles tempos, a visão de mundo – embora se manifestasse sob uma forma mais ou menos idealisticamente deformada – ainda era esboçada como reflexo da essência da realidade objetiva. Agora, pelo contrário, toda “visão de mundo” é baseada numa teoria do conhecimento agnóstica, na recusa de que a realidade objetiva seja cognoscível; por isso ela não pode ser outra coisa senão um mito: algo inventado subjetivamente, mas com pretensões de constituir uma objetividade – insustentável do ponto de vista da teoria do conhecimento –, uma objetividade que só pode se apoiar em fundamentos extremamente subjetivistas, na intuição etc., e que, por isso, só pode ser uma pseudo-objetividade. Sob a forma dessa necessidade crescente – cada vez mais acrítica – por um mito, expressa-se claramente o período de decadência da burguesia; no lugar do desenvolvimento real, tem-se agora, sob a forma pseudo-objetiva do mito, um sonho burguês abstrato projetado sobre a realidade, enquanto que os sistemas filosóficos do período da ascensão buscavam, exatamente, diante das lendas feudais, apelar para as tendências reais do desenvolvimento da natureza e da história.”

 

 

Em A Genealogia da Moral, Nietzsche assinala expressamente que o seu ponto de partida tem caráter etimológico: da percepção de que o moralmente positivo coincide com o socialmente superior, e o negativo com o socialmente subordinado.1 Porém, esse estado “natural” se perde ao longo da história, em decorrência da luta implacável entre os senhores e a horda, cujas consequências ideológicas e morais etc., e cujas perspectivas para Nietzsche já descrevemos pormenorizadamente em outros contextos. O valor de verdade de todas as categorias é determinado pela função que adquirem nessa luta. Dito de maneira mais precisa, esse valor de verdade se define pela utilidade que as categorias podem trazer para a raça dos senhores na consecução e consolidação do seu domínio definitivo. Para não repetir aqui algo que já foi exposto, mas apenas para recordá-lo brevemente, gostaríamos de citar a seguinte frase, tomada também de Genealogia da Moral: “O egoísmo e uma espécie de segunda inocência caminham juntos.”2

Uma vez atingido esse estado de coisas – a “consciência boa” diante do egoísmo mais extremo dos homens senhoriais, de toda a sorte de crueldade e barbarismo, quer dizer, “a inocência do devir” –, então, e só então, esse conceito está definitivamente estabelecido, e recebe do Eterno Retorno uma última confirmação e libertação mítica. Naturalmente, é para os “senhores da terra” e apenas para eles que Nietzsche quer dar uma visão de mundo combativa. Por isso ele afirma sobre o Eterno Retorno: “Eis o grande pensamento disciplinador: as raças que não o suportam estão condenadas; aquelas que o percebem como benefício máximo são as eleitas para dominarem.”3 E a isso corresponde completamente à ideia segundo a qual o Eterno Retorno deve necessariamente ser um veneno mortal para a horda. Já vimos que Nietzsche, ao determinar a “imanência” gnosiológica, dirige um violento ataque contra todo tipo de “transcendência” e identifica a crença cristã num além com as perspectivas de futuro revolucionárias do socialismo. O Eterno Retorno, como o concebe Nietzsche, destrói toda transcendência e, com ela, o fundamento de toda e qualquer moral cristã (socialista). Assim, lemos em Vontade de Poder: “A moral protege os derrotados pelo nihilismo, na medida em que conferiu a todos um valor infinito, um valor metafísico, e os colocou em uma ordem que não está de acordo com o poder e com a hierarquia mundial: ela ensinou renúncia, humildade etc. Posto que a crença nesse tipo de moral esteja morrendo, então os derrotados não teriam mais o seu consolo – e pereceriam.”4

Os “senhores da terra” são, naturalmente, os parasitas decadentes do imperialismo. Essa determinação dos decadentes como figura central do desenvolvimento futuro, da decadência como trampolim para a situação futura almejada, também distingue Nietzsche dos demais filósofos reacionários. Estes querem salvar a sociedade capitalista a partir do homem “normal” (burguês e pequeno-burguês), porém, com o tempo, esbarram cada vez mais na realidade capitalista, na sua crescente e sempre mais completa distorção do homem. Nietzsche parte resolutamente dessa distorção, que, em seu tempo, traduz-se em cansaço de viver, pessimismo, nihilismo, autodestruição, descrença em si mesmo, falta de perspectivas etc. Ele reconhece a si mesmo nesse tipo decadente, irmanando-se a ele. E sabe que é justamente essa decadência que fornece o material certo para os novos senhores da terra. Como já vimos, Nietzsche considera-se um decadente e, ao mesmo tempo, seu oposto. Essa confissão não é mais que uma síntese epigramática da parte final do “Zaratustra”: aqui, reúnem-se os homens “superiores” em volta de Zaratustra – uma galeria de diversos tipos da decadência, descritos com a psicologia de um conhecedor – e é para eles que vale a proclamação profética do super-homem, do Eterno Retorno. A meta que Nietzsche se coloca não é uma suplantação ou autossuplantação da decadência. Quando ele exalta as vantagens ideológicas de seu conceito do Eterno Retorno, o que vem em primeiro plano é o seu caráter niilista, relativista, desprovido de perspectivas. “Se desdobrarmos esse pensamento em sua forma mais terrível, veremos a existência assim como ela é, sem sentido e sem finalidade, mas retornando inexoravelmente, sem um final no nada: ‘o eterno retorno’. Essa é a forma extrema do nihilismo. O nada (‘o que não tem sentido’) eterno!”5 O nihilismo decadente não deve, portanto, ser superado, mas sim confirmado por meio desse novo conhecimento. O que Nietzsche deseja é, sobre esse fundamento, operar uma mudança de direção, uma inversão, sem uma alteração da essência: a transformação de todas as propriedades da decadência em instrumentos para uma defesa militante do capitalismo, a transformação dos tipos decadentes em ativistas do imperialismo bárbaro e agressivo tanto interna quanto externamente.”

1 T. VII, p. 306 s.

2 Ibid., p. 388. Na edição da Companhia das Letras (2003), lê-se: “O ateísmo e uma espécie de segunda inocência são inseparáveis –”.

3 T. XVI, p. 393.

4 T. XV, p. 184.

5 T. XV, p. 182.

 

 

“Acreditamos não ser mais necessário entrar em outros detalhes da teoria do conhecimento de Nietzsche e de suas aplicações para ver que ele criou, aqui, um “modelo” metodológico da apologética indireta do capitalismo para todo o período imperialista, apontou o caminho para que, partindo-se de uma teoria do conhecimento extremamente agnóstica, de uma teoria do nihilismo extremo, possa-se desenvolver um reino fascinante e resplandecente dos símbolos do mito imperialista. E propositalmente não nos ativemos às contradições gritantes das suas estruturas míticas. Se observássemos essas teses de Nietzsche de um ponto de vista lógico-filosófico, depararíamos com um caos desolador, repleto de afirmações arbitrárias, claramente contrastantes e excludentes entre si. Ainda assim não acreditamos que essa constatação esteja em contraste com a tese que desenvolvemos de início, isto é, de que haja um sistema coerente em Nietzsche. O nexo essencial e o aspecto sistemático residem precisamente no conteúdo social de seu pensamento: na luta contra o socialismo. Se observarmos, desse ponto de vista, os mitos reluzentes mutuamente contraditórios de Nietzsche revelam a sua unidade ideal, a sua conexão objetiva: são mitos da burguesia imperialista para a mobilização de todas as forças contra o seu adversário principal. Que a luta entre os senhores e as hordas, entre nobres e escravos seja, aqui, uma contraimagem mítico-caricatural para a luta de classes, não é algo difícil de decifrar. Já mostramos que a luta de Nietzsche contra Darwin não passa de um mito surgido do temor justificado de que o curso normal da história levaria necessariamente ao socialismo. Da mesma forma, está claro que por trás do Eterno Retorno esconde-se um decreto místico, consolador, de que o desenvolvimento não pode produzir nada de fundamentalmente novo (portanto, nenhum tipo de socialismo). E também não é difícil reconhecer que o super-homem surgiu no intuito de encaminhar a nostalgia espontaneamente criada pela problemática da sociedade capitalista – pela deformação e mutilação dos homens engendradas por ela – para os trilhos do capitalismo etc., etc. E a parte “positiva” dos mitos nietzschianos não é nada mais do que a mobilização de todos os instintos decadentes e bárbaros no homem corrompido pelo capitalismo para a violenta salvação desse paraíso do parasitismo; mesmo aqui a filosofia nietzschiana não é mais do que o mito imperialista que se opõe ao humanismo socialista.

Aqui fica ainda mais claro aquilo que dissemos anteriormente a esse respeito, isto é, que a ideologia da decadência burguesa se viu encurralada, assumindo uma posição defensiva. É inerente à essência do pensamento burguês não poder viver sem ilusões. Porém, se desde a Renascença até a Revolução Francesa projetou-se uma imagem ricamente ilusória da polis grega como meta a ser realizada, isso se deve ao fato de que eram correntes de um desenvolvimento real, tendências reais de desenvolvimento da sociedade burguesa nascente, logo, elementos do próprio ser social, perspectivas do próprio futuro real, que constituíam o núcleo dessa imagem ideal. Em Nietzsche, pelo contrário, todo conteúdo brota do temor – refugiando-se no mito – diante da decadência da própria classe; brota da impotência de colocar-se realmente no nível intelectual do adversário: são todos eles conteúdos tomados do “campo inimigo”, problemas e questionamentos impostos pelo adversário de classe, e que, em última instância, determinam o conteúdo de sua filosofia. E a agressividade de tom e a atitude ofensiva em cada caso concreto só podem encobrir superficialmente essa estrutura fundamental do pensamento de Nietzsche. O apelo gnosiológico ao irracionalismo extremo, à completa negação de toda e qualquer cognoscibilidade do mundo, de toda razão, o apelo moral a todos os instintos bárbaros e bestiais é uma confissão – inconsciente – dessa situação. O talento de Nietzsche, bastante incomum, mostra-se no fato de que, nos umbrais do período imperialista, ele pôde projetar um antimito dessa natureza, capaz de exercer sua influência por décadas. Seu estilo aforístico de expressão se manifesta, assim, como o modo adequado a essa situação histórico-social: um sistema inteiro em decomposição interior, oco e falacioso, travestido nesses farrapos de pensamentos, que cintilam em mil cores, atentando contra todo tipo de coesão.”

 

 

“Cada época se volta para o passado, para determinadas quadras históricas do desenvolvimento precedente, na medida em que investiga e encontra nelas analogias para suas necessidades presentes.”

 

 

“A problemática diltheyiana, que, como vimos, expressa uma demanda ideológica da intelectualidade burguesa do período imperialista, leva necessariamente a essa colocação metodologicamente central da intuição. E, como sempre na História da Filosofia, quando se busca desesperadamente sair de uma situação inescapável e se julga havê-la encontrado por meio de um salto mortal, deixa-se de investigar os reais pressupostos gnosiológicos e metodológicos de semelhante “solução” e acaba-se caindo em enormes quid pro quo metodológicos, pois a necessidade de uma “solução” se impõe a tal ponto que qualquer reflexão ponderada se torna inviável.

Essa nova “objetividade” pressupõe um novo órgão do conhecimento. Uma questão central da filosofia imperialista é contrapor essa nova atitude perante o conhecimento, esse novo órgão do conhecimento, ou seja, a intuição, ao pensamento racional e conceitual. Na realidade, o fato é que a intuição constitui um fator psicológico de todo método científico de trabalho. A uma consideração superficial pode parecer que a intuição seja mais concreta e produtiva do que o pensamento discursivo abstrato baseado em conceitos. No entanto, isso é apenas uma aparência, pois em termos psicológicos a intuição nada mais é do que a súbita passagem à consciência de um processo intelectual até então conduzido de modo parcialmente inconsciente. Objetivamente, ela nunca pode ser dissociada do processo do trabalho consciente, o qual, em sua maior parte, é consciente. E para o pensamento científico consciencioso é uma tarefa fundamental, em relação às conquistas da intuição, em primeiro lugar, averiguar tanto a sua consistência em termos de conteúdo teórico e, em segundo, enquadrá-las no sistema dos conceitos racionais, de modo que, depois, eles não possam mais ser diferenciados daqueles conceitos que foram obtidos por meio da faculdade dedutiva (consciente) e daquilo que fora obtido com a ajuda da intuição (no limiar da consciência, numa etapa anterior ao processo tornado consciente). Portanto, na realidade, a intuição, em seu devido lugar, como momento psicológico do processo de trabalho, é, por um lado, o resultado complementar do pensamento conceitual e não seu oposto; por outro, os achados intuitivos de uma conexão não constituem nunca um critério de verdade.

Em uma observação psicológica superficial do processo de trabalho científico surge a ilusão de que a intuição seria um órgão independente do pensamento abstrato que responde pela apreensão das conexões superiores. Essa ilusão, a saber, a confusão entre o método de trabalho subjetivo e o método objetivo da ciência, que tem como fundamento o subjetivismo em geral da filosofia do imperialismo, constitui a base da moderna teoria da intuição. Essa ilusão é agravada ainda mais pela relação do processo que aqui tem lugar com o conhecimento dialético: a partir de uma perspectiva subjetivista parece fácil concluir que a contradição dialética consiste no caminho racional, ao passo que sua solução, sua síntese, sua resolução numa unidade superior, é obra da intuição. Isso é naturalmente uma ilusão, pois a dialética real expressa toda síntese por via conceitual, ao mesmo tempo que não reconhece nenhuma síntese como algo definitivamente dado. O autêntico pensamento dialético científico, justamente por ser um reflexo correto dos objetos do mundo real, sempre contém a conexão conceitual, a análise conceitual dos pensamentos. Por isso, a intuição não é um órgão do conhecimento, um elemento do método científico. Tudo isso, como já vimos, já foi elucidado por Hegel contra Schelling na Introdução à Fenomenologia do Espírito.

Na filosofia do período imperialista, ao contrário, a intuição ocupa o lugar do método objetivo. Essa demanda surge diretamente do fato de os pensadores darem as costas ao formalismo gnosiológico do período anterior. Isso tinha de ser feito; pois a busca por uma visão de mundo significa já por si mesma uma problemática de conteúdo. A teoria do conhecimento do idealismo subjetivo é, porém, e necessariamente, uma análise meramente formal e nada dialética, não se trata, pois, da formulação intelectual do conteúdo dos conceitos. Quando o pensamento procura ir além desses limites, quando pretende conhecer filosoficamente conteúdos reais, ele necessariamente, por um lado, tem de tomar como base a teoria materialista do reflexo, por outro, na conexão dialética dos fenômenos do mundo, de fato, numa conexão de objetividades e estruturas que não pode ser concebida como estática, mas como a conexão dinâmica do desenvolvimento (do movimento adiante) e com isso da história racional. Para a filosofia do imperialismo, a intuição é um recurso para se escapar do formalismo da teoria do conhecimento e com isso dar as costas (aparentemente) ao idealismo subjetivo e ao agnosticismo, no entanto, sem abalar em nada seus fundamentos.

Essa filosofia sempre irá se colocar com a justificativa de que todo conteúdo a que aspire, toda realidade que pretenda alcançar em termos de visão de mundo, precisa ser valorada como uma realidade qualitativamente distinta e superior em relação à realidade que se apreende mediante conceitos. E, nesse contexto, os fatos da intuição interpretados de modo subjetivista despertam a aparência de serem sinais de uma iluminação na apreensão desse mundo superior. Para essa nova filosofia, torna-se uma questão vital refutar qualquer crítica que chegue pela via da análise conceitual. Essa tomada de posição a favor da intuição não é algo novo na linha aristocrática do conhecimento, já presente em filósofos do passado (e em certos misticismos religiosos antigos). Seu ponto de partida: não é dada a qualquer um a apreensão intuitiva de realidades superiores. Nesse sentido, quem busca critérios conceituais para a contemplação intuitiva apenas mostra ser desprovido da faculdade que responde pela apreensão intuitiva da realidade superior. Trata-se de uma crítica que apenas revelaria a inferioridade de um tipo de cognição que se assemelha àquele homem do conto de Andersen que era “inadmissivelmente tolo” porque não conseguia enxergar no rei nu as suas novas e belas vestes. Essa teoria do conhecimento baseada na intuição também é necessária porque, segundo a natureza da coisa, toda “realidade” assim apreendida é arbitrária, incontrolável. A intuição, como órgão do conhecimento superior, é ao mesmo tempo uma justificativa dessa arbitrariedade.”

 

 

Scheler permaneceu a vida inteira um seguidor fiel e grato do método de Husserl, sempre adotando o modo de trabalho da fenomenologia, que, segundo a patente de Husserl, “coloca entre parênteses” todo objeto que trata de “contemplar”, isto é, prescinde de sua realidade para obter com isso uma contemplação das “entidades puras” objetivas independente da questão da dadidade da realidade, e poder declarar apoditicamente tais entidades sob uma forma supostamente objetiva.

Nesse método se mostram muito claramente ambos os lados do desenvolvimento filosófico geral do período imperialista, a saber, a estreita conexão do irracionalismo intuitivista com a pseudo-objetividade. Que o método se baseie na intuição é algo sabido, e, como temos visto, Scheler não procura ocultá-lo em nenhum momento. Já o caráter irracionalista fundamental dessa filosofia só havia ficado oculto porque Husserl e seus primeiros discípulos estavam preocupados predominantemente com os problemas da lógica formal, com análises de significado; daí advém a ilusão de Husserl de que, com a fenomenologia, ele havia descoberto um método para tratar a filosofia como uma “ciência rigorosa”. Mas já a esse respeito é preciso observar que o lugar decisivo da lógica formal na sua metodologia não exclui de modo algum o irracionalismo. Pelo contrário: lógica formal e irracionalismo são de fato antinômicos do ponto de vista filosófico, mas, porém, na sua oposição, constituem modos polares coordenados da relação com a realidade. O nascimento do irracionalismo está intimamente relacionado com os limites da apreensão lógico-formal do mundo. Fatos que aqui são invocados como ponto de partida, como prova e evidência do caráter irracionalista da realidade, são superados pelas categorias da razão no tratamento dialético da contraditoriedade, das formas do entendimento, das determinações de reflexão. E é justamente característico das formas de transição ao irracionalismo extremo que essa oposição, que no passado se manifestava como oposição entre correntes distintas e antagônicas, desempenhe agora um papel decisivo na estrutura interna dessa filosofia. Assim, também em Scheler a hierarquia ética, mesmo obtendo da intuição sua real fundamentação, constrói-se e diferencia-se em seus tipos com a ajuda de considerações extremamente lógicas e formais. Esse papel da lógica formal, qual seja, o de revestimento conceitual da intuição e do irracionalismo, é algo que se pode notar em todos os filósofos provenientes da escola de Husserl, incluindo Heidegger. Mas, em todos eles, esse papel é apenas auxiliar. O conteúdo essencial dessa escola é de fundo cada vez mais irracionalista, e irracionalistas são também os princípios estruturais que estão na base mesma do edifício.

A tendência à pseudo-objetividade existe na fenomenologia desde o começo. Também em Husserl, a fenomenologia parece ser, a princípio, apenas uma renovação da tradição fundada por Bolzano e Brentano. A questão da objetividade efetiva só emerge plenamente depois que a fenomenologia abandona o terreno da lógica pura e passa a tomar os fenômenos da vida social como objeto de sua “intuição das essências”. O desenvolvimento posterior da fenomenologia emerge de modo cada vez mais decisivo com a pretensão de fundar uma ciência da realidade, uma ontologia. Mas nesse ponto seria preciso – mesmo dentro do quadro da fenomenologia – colocar a questão de quando e sob quais condições é possível eliminar os “parênteses” dentro dos quais se colocam as “essências” fenomenologicamente contempladas, o problema, portanto, de se a “intuição da essência” é capaz de apreender a realidade independente da consciência. Mas o “pôr-entre-parênteses” exclui essa questão radicalmente; a “essência” pode ter lugar igualmente por um nexo de significados, mas também por uma imagem puramente fantasmagórica, assim como por um reflexo (verdadeiro ou falso) da realidade. A essência do “pôr-entre-parênteses” consiste precisamente em que essas formas de pensamento, tão radicalmente distintas em sua relação com a realidade, ficam reduzidas, na investigação fenomenológica, a um mesmo denominador comum, o que significa dizer que são consideradas pela investigação como tendo caráter igual.

Está claro que a questão da realidade em geral, a questão de se o objeto, após a dissolução dos parênteses, é um simples construto da consciência ou imagem de um ente independente da consciência. E é bastante interessante que essa grande inflexão da pesquisa da consciência à ciência do ser, da fenomenologia à ontologia – traduzido no lema “de volta às coisas mesmas” – haja ocorrido quase inadvertidamente. Tratou-se na verdade de declarar os objetos fenomenológicos simplesmente de objetos da ontologia e de transformar inadvertidamente a “intuição da essência” numa renovação da “intuição intelectual”. Esse desenvolvimento é característico do recrudescimento, geralmente imperceptível, mas gradual e irresistível, do pensamento orientado ao mito, que teve lugar no decorrer do imperialismo do pós-guerra. Deixa-se para trás a teoria do conhecimento neokantiana do pré-guerra (mas sem abdicar de seu subjetivismo e agnosticismo), ao mesmo tempo que se confere à “realidade” irracional, dada apenas à apreensibilidade intuitiva, de sua evidência óbvia do ser.

Até agora, a fim de destacar a vacuidade e a falta de base gnosiológica do método fenomenológico, bem como de seus métodos ontológicos, temos evitado intencionalmente qualquer crítica aos pressupostos sobre os quais a fenomenologia repousa. Mas uma crítica efetiva já teria de começar questionando o princípio do “pôr-entre- parênteses”, pois, no final das contas, o que esse famoso método tem a dizer é que entre uma representação do homem e outra do diabo não há nenhuma diferença, já que ambas são igualmente representações. Mas de tal identificação puramente formal não é possível extrair – sem o expediente de artimanhas lógicas – nenhuma consequência em termos de conteúdo. E esta é justamente a pretensão da “intuição da essência”. Se os fenomenólogos parassem para analisar esse ponto central de seu método, eles teriam de se dar conta de que, sem apelar à realidade objetiva, é impossível investigar o conteúdo de uma representação, seja por via intuitiva seja por via discursiva. O conteúdo de uma representação só pode ser obtido quando se comparam seus traços singulares, suas conexões etc. com a realidade objetiva, de modo que a representação originária então é enriquecida, complementada, retificada etc. Assim, quando Scheler, para voltar ao seu exemplo do amor, lança sua “intuição da essência” sobre esse sentimento, ele deveria reunir, resumir e comparar aqueles momentos das imagens ideais da realidade objetiva que constituem o fenômeno do amor, excluindo o que não faz parte desse universo, como a mera simpatia, a amizade etc.; apenas assim ele estaria em condições de levar a cabo sua “intuição da essência”. Não se trata, portanto, de pôr a realidade “entre parênteses”, mas sim de apelar ininterruptamente a ela. O “pôr-entre-parênteses” como método específico da fenomenologia significa, desde o começo, uma arbitrariedade irracionalista, idealista-subjetiva, um codinome que falseia a objetividade: não apenas gnosiologicamente, mas também do ponto de vista do conteúdo e concretamente, rompe-se a relação das representações com a realidade objetiva, criando-se um “método” que confunde e até nega a diferença entre o verdadeiro e o falso, o necessário e o arbitrário, o real e o meramente pensado. Quando o homem e o diabo são igualmente “colocados entre parênteses” com base no fato de que ambos – em termos imediatamente psicológicos – não passam de representações, então elimina-se a diferença sobre o fato de que, no primeiro caso – que consiste numa determinação de conteúdo concreto –, recorremos à realidade, ao passo que, no segundo, ficamos limitados às representações. Daí por que a ontologia fenomenológica não indagar sobre a necessidade de também “abrir os parênteses”, pois esses parênteses servem apenas para colocar no mesmo nível verdade e ficção, realidade e mito, de modo a criar uma atmosfera nebulosa, uma pseudo-objetividade mítica. O método que Husserl apresenta como “ciência rigorosa” não passa do postulado idealista-subjetivo segundo o qual minhas representações determinam a essência da realidade. A proximidade gnosiológica de Husserl com Mach não é nenhum acaso. Eles diferem apenas na medida em que Mach e os kantianos procuram deduções, ao passo que Husserl se contenta em proclamar a certeza intuitiva. Scheler, que certamente faz parte do início desse desenvolvimento, possui a pretensão, como todos os demais representantes da escola fenomenológica, de ter suplantado o formalismo e o subjetivismo dos filósofos kantianos. Mas já mostramos o quanto esse método repousa sobre uma arbitrariedade subjetivista, ultrapassando nisso até o neokantismo; para deixar isso mais claro, podemos aduzir aqui um pequeno exemplo, retirado da ambiciosa obra de juventude de Scheler sobre filosofia moral. Ele escreve: “A instituição da escravidão não era, pois, uma instituição que permitia a escravidão de pessoas, pelo contrário: havia o direito de poder matar o escravo, vendê-lo etc. na medida em que o escravo se representava a si mesmo não como pessoa, mas apenas, por exemplo, como homem, eu, sujeito psíquico, etc. (e nesse sentido ainda como uma ‘coisa’)”.2 Ou seja, a consciência do escravo não surge da instituição econômico-social (e é muito duvidoso que essa consciência, como a de Spartacus, por exemplo, seja sempre idêntica com aquilo que a “intuição da essência” scheleriana “contempla” nela), antes é a consciência do escravo que cria socialmente a escravidão. Pode-se ver claramente aqui que, com essa suposta “intuição da essência” objetiva, é possível “contemplar” tudo o que se queira.3

Vê-se assim o quão podres, o quão corroídos pela arbitrariedade subjetivista são os fundamentos sobre os quais Scheler pretende edificar a pirâmide de sua hierarquia objetiva e eterna dos valores. À mera vivência acrescenta-se aqui uma lógica formal extremamente pobre, por exemplo, quando ele argumenta que a existência de valores positivos é algo positivo e sua não existência é algo negativo etc. Semelhante lógica formal pode quando muito fornecer um quadro abstrato. O essencial, o que é relevante em termos de conteúdo, é a arbitrariedade subjetiva característica da “contemplação”.”

1 Scheler, Schriften aus dem Nachlass, p. 266 s.

2 Scheler, Der Formalismus in der Ethik und die materiale Wertethik, Jahrbuch für Philosophie und phänomenologische Forschung, t. I-II, Halle, 1913, 1916, t. II, p. 353.

3 Idem, t. I, p. 483.

 

 

“Via de regra, situações sociais relativamente parecidas produzem ideias e sentimentos relativamente parecidos. Nas vésperas da revolução de 1848, que foi um acontecimento europeu internacional, o individualismo romântico sofre sua desintegração definitiva. Na época, o dinamarquês Søren Kierkegaard, o pensador mais importante desse período de crise e desmoronamento, formulou a filosofia mais original da ressaca romântico-individualista. Não espanta, pois, que anos antes do estalar da nova crise, ao impor-se um estado de ânimo depressivo sob a forma de um pressentimento dos acontecimentos sombrios que se avizinhavam, os mentores da nova etapa, o husserliano Heidegger e o outrora psiquiatra Karl Jaspers, proclamassem o renascimento da filosofia de Kierkegaard. É claro que era preciso fazer modificações no sentido de adaptá-la aos novos tempos. A religiosidade ortodoxa protestante de Kierkegaard, com sua rigorosa fé luterana na Bíblia, não tinha nenhuma serventia para as necessidades do presente. Em contrapartida, eram de uma atualidade extraordinária sua crítica à filosofia hegeliana – uma crítica dirigida a toda aspiração à objetividade e universalidade do pensamento racional, bem como a toda concepção de progresso histórico – e sua fundação de uma “filosofia existencial”, nascida do profundo desespero de um subjetivismo extremo e autodilacerante, que buscava justificação precisamente no pathos desse desespero, na pretensão de denunciar como mera e vã fatuidade intelectual todo ideal de vida histórico-social em oposição à única realidade existente: o sujeito. A nova situação histórica exigia mudanças profundas. Ora, a filosofia de Kierkegaard estava voltada contra a ideia burguesa de progresso, contra a dialética idealista de Hegel, ao passo que a renovação da filosofia existencialista tinha como inimigo maior o marxismo, ainda que raramente isso se revelasse de forma aberta e direta em seus escritos; às vezes, nesse combate, os filósofos tentavam se aproveitar do lado reacionário da filosofia hegeliana. É verdade que já em Kierkegaard a filosofia existencial não era outra coisa senão a ideologia de um filisteísmo tristonho, a ideologia da angústia, do temor e da inquietação; no entanto, isso não impediu que, na véspera da tomada do poder por Hitler, e do período niilista que então principiava sob a rubrica de “realismo heroico”, ela conquistasse amplas camadas da intelectualidade alemã.”

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