Editora: Instituto Lukács
Opinião: ★★★★☆
Tradução: Bernard Herman Hess, Rainer Patriota,
Ronaldo Vielmi Fortes
Páginas: 794
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Sinopse: Ver Parte I
“Em
todas as teorias biológico-reacionárias da sociedade (não deve ser por um acaso
que esses dois aspectos costumam se apresentar juntos), a “lei biológica” – o
elemento “orgânico” na filosofia da restauração, a “luta pela existência” no
darwinismo social – sempre aparece como aquele fundamento do qual são deduzidas
as consequências reacionárias mais diversas no terreno da sociedade, da moral
etc.
Na realidade, porém, a coisa dá-se de modo oposto. Foi
a necessidade da Restauração de encontrar um conceito de sociedade que
excluísse a priori – dos pontos de vista lógico e ontológico – todo tipo
de revolução que fez surgir aquela concepção de “orgânico”, que essa filosofia
depois converteu em seu fundamento, sem quebrar muito a cabeça sobre a
possibilidade e a fundamentação científica de tal analogia.”
“Na
realidade, surge, porém, uma escolástica acadêmica; as grandes lutas de
tendências entre as várias visões de mundo deram lugar a querelas mesquinhas de
professores sobre detalhes sem qualquer importância.”
“É claro que o caráter defensivo da filosofia
burguesa do período da decadência, assim determinado e delimitado, não exclui
os mais violentos ataques contra os seus adversários nem a defesa apaixonada
dos interesses de classe da burguesia etc. Estas ações se tornam até mais
agudas com o início do período imperialista, em que, precisamente, a
“necessidade de uma visão de mundo”, sentida de maneira cada vez mais intensa,
caracteriza a diferença da época descrita por Engels. Mas as “visões de mundo”
que assim surgem se distinguem qualitativamente daquelas ideologias do período
ascensional. Naqueles tempos, a visão de mundo – embora se manifestasse sob uma
forma mais ou menos idealisticamente deformada – ainda era esboçada como
reflexo da essência da realidade objetiva. Agora, pelo contrário, toda “visão
de mundo” é baseada numa teoria do conhecimento agnóstica, na recusa de que a
realidade objetiva seja cognoscível; por isso ela não pode ser outra coisa
senão um mito: algo inventado subjetivamente, mas com pretensões de constituir
uma objetividade – insustentável do ponto de vista da teoria do conhecimento –,
uma objetividade que só pode se apoiar em fundamentos extremamente
subjetivistas, na intuição etc., e que, por isso, só pode ser uma
pseudo-objetividade. Sob a forma dessa necessidade crescente – cada vez mais
acrítica – por um mito, expressa-se claramente o período de decadência da burguesia;
no lugar do desenvolvimento real, tem-se agora, sob a forma pseudo-objetiva do
mito, um sonho burguês abstrato projetado sobre a realidade, enquanto que os
sistemas filosóficos do período da ascensão buscavam, exatamente, diante das
lendas feudais, apelar para as tendências reais do desenvolvimento da natureza
e da história.”
“Em A Genealogia da Moral, Nietzsche assinala expressamente que o seu ponto de partida tem
caráter etimológico: da percepção de que o moralmente positivo coincide com o
socialmente superior, e o negativo com o socialmente subordinado.1
Porém, esse estado “natural” se perde ao longo da história, em decorrência da
luta implacável entre os senhores e a horda, cujas consequências ideológicas e
morais etc., e cujas perspectivas para Nietzsche já descrevemos
pormenorizadamente em outros contextos. O valor de verdade de todas as
categorias é determinado pela função que adquirem nessa luta. Dito de maneira
mais precisa, esse valor de verdade se define pela utilidade que as categorias
podem trazer para a raça dos senhores na consecução e consolidação do seu
domínio definitivo. Para não repetir aqui algo que já foi exposto, mas apenas
para recordá-lo brevemente, gostaríamos de citar a seguinte frase, tomada
também de Genealogia da Moral: “O egoísmo e uma espécie de segunda
inocência caminham juntos.”2
Uma
vez atingido esse estado de coisas – a “consciência boa” diante do egoísmo mais
extremo dos homens senhoriais, de toda a sorte de crueldade e barbarismo, quer
dizer, “a inocência do devir” –, então, e só então, esse conceito está
definitivamente estabelecido, e recebe do Eterno Retorno uma última confirmação
e libertação mítica. Naturalmente, é para os “senhores da terra” e apenas para
eles que Nietzsche quer dar uma visão de mundo combativa. Por isso ele afirma
sobre o Eterno Retorno: “Eis o grande pensamento disciplinador: as raças que
não o suportam estão condenadas; aquelas que o percebem como benefício máximo
são as eleitas para dominarem.”3 E a isso corresponde completamente
à ideia segundo a qual o Eterno Retorno deve necessariamente ser um veneno
mortal para a horda. Já vimos que Nietzsche, ao determinar a “imanência”
gnosiológica, dirige um violento ataque contra todo tipo de “transcendência” e
identifica a crença cristã num além com as perspectivas de futuro
revolucionárias do socialismo. O Eterno Retorno, como o concebe Nietzsche,
destrói toda transcendência e, com ela, o fundamento de toda e qualquer moral
cristã (socialista). Assim, lemos em Vontade de Poder:
“A moral protege os derrotados pelo nihilismo, na medida em que conferiu
a todos um valor infinito, um valor metafísico, e os colocou em uma
ordem que não está de acordo com o poder e com a hierarquia mundial: ela
ensinou renúncia, humildade etc. Posto que a crença nesse tipo de moral esteja
morrendo, então os derrotados não teriam mais o seu consolo – e pereceriam.”4
Os
“senhores da terra” são, naturalmente, os parasitas decadentes do imperialismo.
Essa determinação dos decadentes como figura central do desenvolvimento futuro,
da decadência como trampolim para a situação futura almejada, também distingue
Nietzsche dos demais filósofos reacionários. Estes querem salvar a sociedade
capitalista a partir do homem “normal” (burguês e pequeno-burguês), porém, com
o tempo, esbarram cada vez mais na realidade capitalista, na sua crescente e
sempre mais completa distorção do homem. Nietzsche parte resolutamente dessa
distorção, que, em seu tempo, traduz-se em cansaço de viver, pessimismo,
nihilismo, autodestruição, descrença em si mesmo, falta de perspectivas etc.
Ele reconhece a si mesmo nesse tipo decadente, irmanando-se a ele. E sabe que é
justamente essa decadência que fornece o material certo para os novos senhores
da terra. Como já vimos, Nietzsche considera-se um decadente e, ao mesmo tempo,
seu oposto. Essa confissão não é mais que uma síntese epigramática da parte
final do “Zaratustra”: aqui, reúnem-se os homens “superiores” em volta de
Zaratustra – uma galeria de diversos tipos da decadência, descritos com a
psicologia de um conhecedor – e é para eles que vale a proclamação profética do
super-homem, do Eterno Retorno. A meta que Nietzsche se coloca não é uma
suplantação ou autossuplantação da decadência. Quando ele exalta as vantagens
ideológicas de seu conceito do Eterno Retorno, o que vem em primeiro plano é o
seu caráter niilista, relativista, desprovido de perspectivas. “Se desdobrarmos
esse pensamento em sua forma mais terrível, veremos a existência assim como ela
é, sem sentido e sem finalidade, mas retornando inexoravelmente, sem um final
no nada: ‘o eterno retorno’. Essa é a forma extrema do nihilismo. O nada
(‘o que não tem sentido’) eterno!”5 O nihilismo decadente não deve, portanto, ser superado, mas sim confirmado por meio desse novo
conhecimento. O que Nietzsche deseja é, sobre esse fundamento, operar uma
mudança de direção, uma inversão, sem uma alteração da essência: a
transformação de todas as propriedades da decadência em instrumentos para uma
defesa militante do capitalismo, a transformação dos tipos decadentes em
ativistas do imperialismo bárbaro e agressivo tanto interna quanto
externamente.”
1 T.
VII, p. 306 s.
2 Ibid.,
p. 388. Na edição da
Companhia das Letras (2003), lê-se: “O ateísmo e uma espécie de segunda
inocência são inseparáveis –”.
3
T. XVI, p. 393.
4
T. XV, p. 184.
5
T. XV, p. 182.
“Acreditamos
não ser mais necessário entrar em outros detalhes da teoria do conhecimento de
Nietzsche e de suas aplicações para ver que ele criou, aqui, um “modelo”
metodológico da apologética indireta do capitalismo para todo o período
imperialista, apontou o caminho para que, partindo-se de uma teoria do
conhecimento extremamente agnóstica, de uma teoria do nihilismo extremo,
possa-se desenvolver um reino fascinante e resplandecente dos símbolos do mito
imperialista. E propositalmente não nos ativemos às contradições gritantes das
suas estruturas míticas. Se observássemos essas teses de Nietzsche de um ponto
de vista lógico-filosófico, depararíamos com um caos desolador, repleto de
afirmações arbitrárias, claramente contrastantes e excludentes entre si. Ainda
assim não acreditamos que essa constatação esteja em contraste com a tese que
desenvolvemos de início, isto é, de que haja um sistema coerente em Nietzsche.
O nexo essencial e o aspecto sistemático residem precisamente no conteúdo
social de seu pensamento: na luta contra o socialismo. Se observarmos, desse
ponto de vista, os mitos reluzentes mutuamente contraditórios de Nietzsche
revelam a sua unidade ideal, a sua conexão objetiva: são mitos da burguesia
imperialista para a mobilização de todas as forças contra o seu adversário
principal. Que a luta entre os senhores e as hordas, entre nobres e escravos
seja, aqui, uma contraimagem mítico-caricatural para a luta de classes, não é
algo difícil de decifrar. Já mostramos que a luta de Nietzsche contra Darwin
não passa de um mito surgido do temor justificado de que o curso normal da
história levaria necessariamente ao socialismo. Da mesma forma, está claro que
por trás do Eterno Retorno esconde-se um decreto místico, consolador, de que o
desenvolvimento não pode produzir nada de fundamentalmente
novo (portanto, nenhum tipo de socialismo). E também não é difícil reconhecer
que o super-homem surgiu no intuito de encaminhar a nostalgia espontaneamente
criada pela problemática da sociedade capitalista – pela deformação e mutilação
dos homens engendradas por ela – para os trilhos do capitalismo etc., etc. E a
parte “positiva” dos mitos nietzschianos não é nada mais do que a mobilização
de todos os instintos decadentes e bárbaros no homem corrompido pelo
capitalismo para a violenta salvação desse paraíso do parasitismo; mesmo aqui a
filosofia nietzschiana não é mais do que o mito imperialista que se opõe ao
humanismo socialista.
Aqui
fica ainda mais claro aquilo que dissemos anteriormente a esse respeito, isto
é, que a ideologia da decadência burguesa se viu encurralada, assumindo uma
posição defensiva. É inerente à essência do pensamento burguês não poder viver
sem ilusões. Porém, se desde a Renascença até a Revolução Francesa projetou-se
uma imagem ricamente ilusória da polis grega como meta a ser realizada,
isso se deve ao fato de que eram correntes de um desenvolvimento real,
tendências reais de desenvolvimento da sociedade burguesa nascente, logo,
elementos do próprio ser social, perspectivas do próprio futuro real, que
constituíam o núcleo dessa imagem ideal. Em Nietzsche, pelo contrário, todo
conteúdo brota do temor – refugiando-se no mito – diante da decadência da
própria classe; brota da impotência de colocar-se realmente no nível
intelectual do adversário: são todos eles conteúdos tomados do “campo inimigo”,
problemas e questionamentos impostos pelo adversário de classe, e que, em
última instância, determinam o conteúdo de sua filosofia. E a agressividade de
tom e a atitude ofensiva em cada caso concreto só podem encobrir
superficialmente essa estrutura fundamental do pensamento de Nietzsche. O apelo
gnosiológico ao irracionalismo extremo, à completa negação de toda e qualquer
cognoscibilidade do mundo, de toda razão, o apelo moral a todos os instintos
bárbaros e bestiais é uma confissão – inconsciente – dessa situação. O talento
de Nietzsche, bastante incomum, mostra-se no fato de que, nos umbrais do
período imperialista, ele pôde projetar um antimito dessa natureza, capaz de
exercer sua influência por décadas. Seu estilo aforístico de expressão se
manifesta, assim, como o modo adequado a essa situação histórico-social: um
sistema inteiro em decomposição interior, oco e falacioso, travestido nesses
farrapos de pensamentos, que cintilam em mil cores, atentando contra todo tipo
de coesão.”
“Cada
época se volta para o passado, para determinadas quadras históricas do
desenvolvimento precedente, na medida em que investiga e encontra nelas
analogias para suas necessidades presentes.”
“A
problemática diltheyiana, que, como vimos, expressa uma demanda ideológica da
intelectualidade burguesa do período imperialista, leva necessariamente a essa
colocação metodologicamente central da intuição. E, como sempre na História da
Filosofia, quando se busca desesperadamente sair de uma situação inescapável e
se julga havê-la encontrado por meio de um salto mortal, deixa-se de investigar
os reais pressupostos gnosiológicos e metodológicos de semelhante “solução” e
acaba-se caindo em enormes quid pro quo metodológicos, pois a
necessidade de uma “solução” se impõe a tal ponto que qualquer reflexão
ponderada se torna inviável.
Essa
nova “objetividade” pressupõe um novo órgão do conhecimento. Uma questão
central da filosofia imperialista é contrapor essa nova atitude perante o
conhecimento, esse novo órgão do conhecimento, ou seja, a intuição, ao
pensamento racional e conceitual. Na realidade, o fato é que a intuição
constitui um fator psicológico de todo método científico de trabalho. A uma
consideração superficial pode parecer que a intuição seja mais concreta e
produtiva do que o pensamento discursivo abstrato baseado em conceitos. No
entanto, isso é apenas uma aparência, pois em termos psicológicos a intuição
nada mais é do que a súbita passagem à consciência de um processo intelectual
até então conduzido de modo parcialmente inconsciente. Objetivamente, ela nunca
pode ser dissociada do processo do trabalho consciente, o qual, em sua maior
parte, é consciente. E para o pensamento científico consciencioso é uma tarefa
fundamental, em relação às conquistas da intuição, em primeiro lugar, averiguar
tanto a sua consistência em termos de conteúdo teórico e, em segundo,
enquadrá-las no sistema dos conceitos racionais, de modo que, depois, eles não
possam mais ser diferenciados daqueles conceitos que foram obtidos por meio da
faculdade dedutiva (consciente) e daquilo que fora obtido com a ajuda da
intuição (no limiar da consciência, numa etapa anterior ao processo tornado
consciente). Portanto, na realidade, a intuição, em seu devido lugar, como
momento psicológico do processo de trabalho, é, por um lado, o
resultado complementar do pensamento conceitual e não seu oposto; por outro, os
achados intuitivos de uma conexão não constituem nunca um critério de verdade.
Em
uma observação psicológica superficial do processo de trabalho científico surge
a ilusão de que a intuição seria um órgão independente do pensamento abstrato
que responde pela apreensão das conexões superiores. Essa ilusão, a saber, a
confusão entre o método de trabalho subjetivo e o método objetivo da ciência,
que tem como fundamento o subjetivismo em geral da filosofia do imperialismo,
constitui a base da moderna teoria da intuição. Essa ilusão é agravada ainda
mais pela relação do processo que aqui tem lugar com o conhecimento dialético:
a partir de uma perspectiva subjetivista parece fácil concluir que a
contradição dialética consiste no caminho racional, ao passo que sua solução,
sua síntese, sua resolução numa unidade superior, é obra da intuição. Isso é
naturalmente uma ilusão, pois a dialética real expressa toda síntese por via
conceitual, ao mesmo tempo que não reconhece nenhuma síntese como algo
definitivamente dado. O autêntico pensamento dialético científico, justamente
por ser um reflexo correto dos objetos do mundo real, sempre contém a conexão
conceitual, a análise conceitual dos pensamentos. Por isso, a intuição não é um
órgão do conhecimento, um elemento do método científico. Tudo isso, como já
vimos, já foi elucidado por Hegel contra Schelling na Introdução à Fenomenologia do Espírito.
Na
filosofia do período imperialista, ao contrário, a intuição ocupa o lugar do
método objetivo. Essa demanda surge diretamente do fato de os pensadores darem
as costas ao formalismo gnosiológico do período anterior. Isso tinha de ser
feito; pois a busca por uma visão de mundo significa já por si mesma uma
problemática de conteúdo. A teoria do conhecimento do
idealismo subjetivo é, porém, e necessariamente, uma análise meramente formal e
nada dialética, não se trata, pois, da formulação intelectual do conteúdo dos
conceitos. Quando o pensamento procura ir além desses limites, quando pretende
conhecer filosoficamente conteúdos reais, ele necessariamente, por um lado, tem
de tomar como base a teoria materialista do reflexo, por outro, na conexão
dialética dos fenômenos do mundo, de fato, numa conexão de objetividades e
estruturas que não pode ser concebida como estática, mas como a conexão
dinâmica do desenvolvimento (do movimento adiante) e com isso da história racional.
Para a filosofia do imperialismo, a intuição é um recurso para se escapar do
formalismo da teoria do conhecimento e com isso dar as costas (aparentemente)
ao idealismo subjetivo e ao agnosticismo, no entanto, sem abalar em nada seus
fundamentos.
Essa
filosofia sempre irá se colocar com a justificativa de que todo conteúdo a que
aspire, toda realidade que pretenda alcançar em termos de visão de mundo,
precisa ser valorada como uma realidade qualitativamente distinta e superior em
relação à realidade que se apreende mediante conceitos. E, nesse contexto, os
fatos da intuição interpretados de modo subjetivista despertam a aparência de
serem sinais de uma iluminação na apreensão desse mundo superior. Para essa
nova filosofia, torna-se uma questão vital refutar qualquer crítica que chegue
pela via da análise conceitual. Essa tomada de posição a favor da intuição não
é algo novo na linha aristocrática do conhecimento, já presente em filósofos do
passado (e em certos misticismos religiosos antigos). Seu ponto de partida: não
é dada a qualquer um a apreensão intuitiva de realidades superiores. Nesse
sentido, quem busca critérios conceituais para a contemplação intuitiva apenas
mostra ser desprovido da faculdade que responde pela apreensão intuitiva da
realidade superior. Trata-se de uma crítica que apenas revelaria a
inferioridade de um tipo de cognição que se assemelha àquele homem do conto de
Andersen que era “inadmissivelmente tolo” porque não conseguia enxergar no rei
nu as suas novas e belas vestes. Essa teoria do conhecimento baseada na
intuição também é necessária porque, segundo a natureza da coisa, toda
“realidade” assim apreendida é arbitrária, incontrolável. A intuição, como
órgão do conhecimento superior, é ao mesmo tempo uma justificativa dessa arbitrariedade.”
“Scheler permaneceu a vida inteira um seguidor fiel e grato do método de
Husserl, sempre adotando o modo de trabalho da fenomenologia, que, segundo a
patente de Husserl, “coloca entre parênteses” todo objeto que trata de
“contemplar”, isto é, prescinde de sua realidade para obter com isso uma
contemplação das “entidades puras” objetivas independente da questão da
dadidade da realidade, e poder declarar apoditicamente tais entidades sob uma
forma supostamente objetiva.
Nesse
método se mostram muito claramente ambos os lados do desenvolvimento filosófico
geral do período imperialista, a saber, a estreita conexão do irracionalismo
intuitivista com a pseudo-objetividade. Que o método se baseie
na intuição é algo sabido, e, como temos visto, Scheler não procura ocultá-lo
em nenhum momento. Já o caráter irracionalista fundamental dessa filosofia só
havia ficado oculto porque Husserl e seus primeiros discípulos estavam
preocupados predominantemente com os problemas da lógica formal, com análises de
significado; daí advém a ilusão de Husserl de que, com a fenomenologia, ele
havia descoberto um método para tratar a filosofia como uma “ciência rigorosa”.
Mas já a esse respeito é preciso observar que o lugar decisivo da lógica formal
na sua metodologia não exclui de modo algum o irracionalismo. Pelo contrário:
lógica formal e irracionalismo são de fato antinômicos do ponto de vista
filosófico, mas, porém, na sua oposição, constituem modos polares coordenados
da relação com a realidade. O nascimento do irracionalismo está intimamente
relacionado com os limites da apreensão lógico-formal do mundo. Fatos que aqui
são invocados como ponto de partida, como prova e evidência do caráter
irracionalista da realidade, são superados pelas categorias da razão no tratamento
dialético da contraditoriedade, das formas do entendimento, das determinações
de reflexão. E é justamente característico das formas de transição ao
irracionalismo extremo que essa oposição, que no passado se manifestava como
oposição entre correntes distintas e antagônicas, desempenhe agora um papel
decisivo na estrutura interna dessa filosofia. Assim, também em Scheler a
hierarquia ética, mesmo obtendo da intuição sua real fundamentação, constrói-se
e diferencia-se em seus tipos com a ajuda de considerações extremamente lógicas
e formais. Esse papel da lógica formal, qual seja, o de revestimento conceitual
da intuição e do irracionalismo, é algo que se pode notar em todos os filósofos
provenientes da escola de Husserl, incluindo Heidegger. Mas, em todos eles,
esse papel é apenas auxiliar. O conteúdo essencial dessa escola é de fundo cada
vez mais irracionalista, e irracionalistas são também os princípios estruturais
que estão na base mesma do edifício.
A
tendência à pseudo-objetividade existe na fenomenologia desde o começo. Também
em Husserl, a fenomenologia parece ser, a princípio, apenas uma renovação da
tradição fundada por Bolzano e Brentano. A questão da objetividade efetiva só
emerge plenamente depois que a fenomenologia abandona o terreno da lógica pura
e passa a tomar os fenômenos da vida social como objeto de sua “intuição das
essências”. O desenvolvimento posterior da fenomenologia emerge de modo cada
vez mais decisivo com a pretensão de fundar uma ciência da realidade, uma ontologia. Mas nesse ponto seria preciso – mesmo dentro do
quadro da fenomenologia – colocar a questão de quando e sob quais condições é
possível eliminar os “parênteses” dentro dos quais se colocam as “essências”
fenomenologicamente contempladas, o problema, portanto, de se a “intuição da
essência” é capaz de apreender a realidade independente da consciência. Mas o
“pôr-entre-parênteses” exclui essa questão radicalmente; a “essência” pode ter
lugar igualmente por um nexo de significados, mas também por uma imagem
puramente fantasmagórica, assim como por um reflexo (verdadeiro ou falso) da
realidade. A essência do “pôr-entre-parênteses” consiste precisamente em que
essas formas de pensamento, tão radicalmente distintas em sua relação com a
realidade, ficam reduzidas, na investigação fenomenológica, a um mesmo
denominador comum, o que significa dizer que são consideradas pela investigação
como tendo caráter igual.
Está
claro que a questão da realidade em geral, a questão de se o objeto, após a
dissolução dos parênteses, é um simples construto da consciência ou imagem de
um ente independente da consciência. E é bastante interessante que essa grande
inflexão da pesquisa da consciência à ciência do ser, da fenomenologia à
ontologia – traduzido no lema “de volta às coisas mesmas” – haja ocorrido quase
inadvertidamente. Tratou-se na verdade de declarar os objetos fenomenológicos
simplesmente de objetos da ontologia e de transformar inadvertidamente a
“intuição da essência” numa renovação da “intuição intelectual”. Esse
desenvolvimento é característico do recrudescimento, geralmente imperceptível,
mas gradual e irresistível, do pensamento orientado ao mito, que teve lugar no
decorrer do imperialismo do pós-guerra. Deixa-se para trás a teoria do
conhecimento neokantiana do pré-guerra (mas sem abdicar de seu subjetivismo e
agnosticismo), ao mesmo tempo que se confere à “realidade” irracional, dada
apenas à apreensibilidade intuitiva, de sua evidência óbvia do ser.
Até
agora, a fim de destacar a vacuidade e a falta de base gnosiológica do método
fenomenológico, bem como de seus métodos ontológicos, temos evitado
intencionalmente qualquer crítica aos pressupostos sobre os quais a
fenomenologia repousa. Mas uma crítica efetiva já teria de começar questionando
o princípio do “pôr-entre- parênteses”, pois, no final das contas, o que esse
famoso método tem a dizer é que entre uma representação do homem e outra do
diabo não há nenhuma diferença, já que ambas são igualmente representações. Mas
de tal identificação puramente formal não é possível extrair – sem o expediente
de artimanhas lógicas – nenhuma consequência em termos de
conteúdo. E esta é justamente a pretensão da “intuição da essência”. Se os
fenomenólogos parassem para analisar esse ponto central de seu método, eles
teriam de se dar conta de que, sem apelar à realidade objetiva, é impossível
investigar o conteúdo de uma representação, seja por via intuitiva seja por via
discursiva. O conteúdo de uma representação só pode ser obtido quando se
comparam seus traços singulares, suas conexões etc. com a realidade objetiva,
de modo que a representação originária então é enriquecida, complementada,
retificada etc. Assim, quando Scheler, para voltar ao seu exemplo do amor,
lança sua “intuição da essência” sobre esse sentimento, ele deveria reunir,
resumir e comparar aqueles momentos das imagens ideais da realidade objetiva
que constituem o fenômeno do amor, excluindo o que não faz parte desse
universo, como a mera simpatia, a amizade etc.; apenas assim ele estaria em
condições de levar a cabo sua “intuição da essência”. Não se trata, portanto,
de pôr a realidade “entre parênteses”, mas sim de apelar ininterruptamente a
ela. O “pôr-entre-parênteses” como método específico da fenomenologia
significa, desde o começo, uma arbitrariedade irracionalista, idealista-subjetiva,
um codinome que falseia a objetividade: não apenas gnosiologicamente, mas
também do ponto de vista do conteúdo e concretamente, rompe-se a relação das
representações com a realidade objetiva, criando-se um “método” que confunde e
até nega a diferença entre o verdadeiro e o falso, o necessário e o arbitrário,
o real e o meramente pensado. Quando o homem e o diabo são igualmente
“colocados entre parênteses” com base no fato de que ambos – em termos
imediatamente psicológicos – não passam de representações, então elimina-se a
diferença sobre o fato de que, no primeiro caso – que consiste numa
determinação de conteúdo concreto –, recorremos à realidade, ao passo que, no
segundo, ficamos limitados às representações. Daí por que a ontologia fenomenológica
não indagar sobre a necessidade de também “abrir os parênteses”, pois esses
parênteses servem apenas para colocar no mesmo nível verdade e ficção,
realidade e mito, de modo a criar uma atmosfera nebulosa, uma
pseudo-objetividade mítica. O método que Husserl apresenta como “ciência
rigorosa” não passa do postulado idealista-subjetivo segundo o qual minhas
representações determinam a essência da realidade. A proximidade gnosiológica
de Husserl com Mach não é nenhum acaso. Eles diferem apenas na medida em que
Mach e os kantianos procuram deduções, ao passo que Husserl se contenta em
proclamar a certeza intuitiva. Scheler, que certamente faz
parte do início desse desenvolvimento, possui a pretensão, como todos os demais
representantes da escola fenomenológica, de ter suplantado o formalismo e o
subjetivismo dos filósofos kantianos. Mas já mostramos o quanto esse método
repousa sobre uma arbitrariedade subjetivista, ultrapassando nisso até o
neokantismo; para deixar isso mais claro, podemos aduzir aqui um pequeno
exemplo, retirado da ambiciosa obra de juventude de Scheler sobre filosofia
moral. Ele escreve: “A instituição da escravidão não era, pois, uma
instituição que permitia a escravidão de pessoas, pelo contrário: havia
o direito de poder matar o escravo, vendê-lo etc. na medida em que o escravo se
representava a si mesmo não como pessoa, mas apenas, por exemplo, como
homem, eu, sujeito psíquico, etc. (e nesse sentido ainda como uma ‘coisa’)”.2
Ou seja, a consciência do escravo não surge da instituição econômico-social (e
é muito duvidoso que essa consciência, como a de Spartacus, por exemplo, seja
sempre idêntica com aquilo que a “intuição da essência” scheleriana “contempla”
nela), antes é a consciência do escravo que cria socialmente a escravidão.
Pode-se ver claramente aqui que, com essa suposta “intuição da essência”
objetiva, é possível “contemplar” tudo o que se queira.3
Vê-se
assim o quão podres, o quão corroídos pela arbitrariedade subjetivista são os
fundamentos sobre os quais Scheler pretende edificar a pirâmide de sua
hierarquia objetiva e eterna dos valores. À mera vivência acrescenta-se aqui
uma lógica formal extremamente pobre, por exemplo, quando ele argumenta que a
existência de valores positivos é algo positivo e sua não existência é algo
negativo etc. Semelhante lógica formal pode quando muito fornecer um quadro
abstrato. O essencial, o que é relevante em termos de conteúdo, é a
arbitrariedade subjetiva característica da “contemplação”.”
1 Scheler, Schriften aus dem Nachlass, p. 266 s.
2 Scheler, Der Formalismus in der Ethik und die materiale Wertethik,
Jahrbuch für Philosophie und phänomenologische Forschung, t. I-II, Halle, 1913,
1916, t. II, p. 353.
3 Idem,
t. I, p. 483.
“Via
de regra, situações sociais relativamente parecidas produzem ideias e
sentimentos relativamente parecidos. Nas vésperas da revolução de 1848, que foi
um acontecimento europeu internacional, o individualismo romântico sofre sua
desintegração definitiva. Na época, o dinamarquês Søren Kierkegaard, o pensador
mais importante desse período de crise e desmoronamento, formulou a filosofia
mais original da ressaca romântico-individualista. Não espanta, pois, que anos
antes do estalar da nova crise, ao impor-se um estado de ânimo depressivo sob a
forma de um pressentimento dos acontecimentos sombrios que se avizinhavam, os
mentores da nova etapa, o husserliano Heidegger e o outrora psiquiatra Karl
Jaspers, proclamassem o renascimento da filosofia de Kierkegaard. É claro que
era preciso fazer modificações no sentido de adaptá-la aos novos tempos. A
religiosidade ortodoxa protestante de Kierkegaard, com sua rigorosa fé luterana
na Bíblia, não tinha nenhuma serventia para as necessidades do presente. Em contrapartida, eram de uma atualidade extraordinária
sua crítica à filosofia hegeliana – uma crítica dirigida a toda aspiração à
objetividade e universalidade do pensamento racional, bem como a toda concepção
de progresso histórico – e sua fundação de uma “filosofia existencial”,
nascida do profundo desespero de um subjetivismo extremo e autodilacerante, que
buscava justificação precisamente no pathos desse desespero, na
pretensão de denunciar como mera e vã fatuidade intelectual todo ideal de vida
histórico-social em oposição à única realidade existente: o sujeito. A nova
situação histórica exigia mudanças profundas. Ora, a filosofia
de Kierkegaard estava voltada contra a ideia burguesa de progresso, contra a
dialética idealista de Hegel, ao passo que a renovação da filosofia
existencialista tinha como inimigo maior o marxismo, ainda que raramente isso
se revelasse de forma aberta e direta em seus escritos; às vezes, nesse
combate, os filósofos tentavam se aproveitar do lado reacionário da filosofia hegeliana.
É verdade que já em Kierkegaard a filosofia existencial não era outra coisa
senão a ideologia de um filisteísmo tristonho, a ideologia da angústia, do
temor e da inquietação; no entanto, isso não impediu que, na véspera da tomada
do poder por Hitler, e do período niilista que então principiava sob a rubrica
de “realismo heroico”, ela conquistasse amplas camadas da intelectualidade
alemã.”
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