sexta-feira, 14 de abril de 2023

A destruição da razão (Parte III), de György Lukács

Editora: Instituto Lukács

Opinião: ★★★★☆

Tradução: Bernard Herman Hess, Rainer Patriota, Ronaldo Vielmi Fortes

Páginas: 794

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Sinopse: Ver Parte I




“Uma das grandes conquistas da dialética hegeliana foi a de ter procurado fundamentar cientificamente a interação concreta entre os elementos absolutos e os elementos relativos do conhecimento. A teoria do caráter aproximativo de nosso conhecimento é a consequência necessária dessas tentativas: a aproximação significa, nesse contexto, que a existência ineliminável do elemento relativo não nega o caráter objetivo, absoluto de um conhecimento correto, mas indica apenas o grau atingido pelo nosso conhecimento em determinado estágio do processo da aproximação progressiva. O fundamento objetivo da aproximação está no fato de o objeto ser o concreto, aparente, sempre mais rico e pleno de conteúdo do que aquelas leis com a ajuda das quais procuramos conhecê-lo. Por isso, não existe, na concepção hegeliana da aproximação, derivada desses pressupostos, qualquer tipo de relativismo, sobretudo em seu desenvolvimento materialista, com Marx, Engels e Lênin, no qual o reflexo da realidade objetiva garante o caráter absoluto do conhecimento.”

 

 

“Durante o período da influência de Nietzsche, o declínio de classe e a decadência chegam a tal ponto que também a sua valoração subjetiva no âmbito da classe burguesa passa por uma transformação importante: enquanto que, por um longo período, só os críticos progressistas de oposição haviam descoberto e denunciado os sintomas da decadência, a maior parte da intelectualidade burguesa mantinha a ilusão de viver no “melhor dos mundos”, defendendo a “sanidade” e o caráter progressista da própria ideologia, agora a percepção da decadência, a consciência de ser decadente, começa a ocupar cada vez mais o centro do autoconhecimento dessa intelectualidade. Essa mudança se expressa, sobretudo, num relativismo, pessimismo, nihilismo etc. autocomplacente, narcisista e frívolo, mas que muitas vezes se converte – em intelectuais honestos – em um sincero estado de desespero e, como consequência, numa atmosfera de rebeldia (messianismo etc.).

Nietzsche é agora, como psicólogo da cultura, como esteta e moralista, talvez o mais genial e completo expoente desse autoconhecimento da decadência. Mas a sua importância vai ainda muito além disso: reconhecendo a decadência como fenômeno fundamental do desenvolvimento burguês de seu tempo, ele assume a tarefa de apontar o caminho de sua autossuplantação, pois entre os mais vivazes e atentos intelectuais que se encontram sob a influência da visão decadente de mundo surge, necessariamente, também o desejo de sua suplantação. Esse desejo torna extremamente atraentes, para a melhor parte desses intelectuais, as lutas da nova classe em ascensão, do proletariado: eles percebem aqui, sobretudo no modo de conduzir a vida e na moral, sinais de uma possível recuperação da sociedade e, em relação com isso – o que, naturalmente, está em primeiro plano –, uma recuperação de si mesmos. A maior parte desses intelectuais não tem a menor ideia do alcance econômico e social de uma real transformação socialista, considerando esta de um modo puramente ideológico e, por isso, não têm uma clara representação de até que ponto e quão profundamente uma decisão nessa direção implicaria uma ruptura radical com a própria classe, e como essa ruptura, necessariamente, repercutiria sobre a sua própria vida. Por mais confuso que seja esse movimento, ele abraça vastos círculos da intelectualidade burguesa progressista e se manifesta, naturalmente, de modo veemente, sobretudo em períodos de crise. (Basta pensar no caso da Lei contra os socialistas, no destino do naturalismo, na Primeira Guerra Mundial e no movimento expressionista na Alemanha, no boulangerismo e na campanha em torno do caso Dreyfus, na França etc.)

A “missão social” que compete à filosofia de Nietzsche consiste em “salvar” esse tipo de intelectual burguês, em “redimi-lo”, indicando-lhe um caminho que torna desnecessária toda e qualquer ruptura, e até mesmo toda e qualquer tensão maior com a burguesia; um caminho no qual o agradável sentimento moral de ser um rebelde pode continuar existindo, tornando-se até mais acentuado, na medida em que se contrapõe, sedutoramente, a uma revolução “mais profunda”, “cósmico-biológica” à “superficial” e “exterior” revolução social. Ou seja, uma “revolução” que conserva inteiramente os privilégios da burguesia, que, sobretudo, defende apaixonadamente o modo privilegiado de viver da intelectualidade burguesa, imperialista e parasitária; uma “revolução” que se dirige contra as massas, que confere ao medo que os privilegiados têm de perderem seus privilégios econômicos e culturais uma expressão patético-agressiva, que disfarça o caráter egoísta desse medo. O caminho traçado por Nietzsche jamais abandona a tendência decadente que se encontra profundamente imbricada com a vida sentimental e intelectual dessa camada, tendência que, mediante o novo autoconhecimento, é colocada sob uma nova luz: é exatamente na decadência na qual residem os germes autênticos destinados a produzir uma efetiva e profunda renovação da humanidade. Essa “missão social” se encontra, por assim dizer, numa harmonia preestabelecida com o talento, com as mais íntimas disposições do pensamento e com a sabedoria de Nietzsche. Como os setores sociais para os quais a sua obra é dirigida, o próprio Nietzsche ocupa-se, sobretudo, dos problemas da cultura e, entre estes, principalmente, da arte e da ética individual. A política manifesta-se sempre como horizonte abstrato e mítico, e, em matéria de economia, a ignorância de Nietzsche é comparável àquela de um intelectual mediano de seu tempo.”

 

 

“Quando se lê a interpretação nietzschiana de Voltaire, é possível ver que também aqui se trata da mesma luta que definimos como a mais essencial de sua vida, embora, é verdade, com a diferença, muito característica para essa época, que Nietzsche agora considera que a evolução, da qual ele celebra Voltaire como representante, é o meio mais seguro para evitar a revolução (o socialismo). É nesse sentido que ele vê um paralelo entre Voltaire e Rousseau (o aforismo traz o título, significativo para o pensamento de Nietzsche naquele momento: “Uma ilusão na doutrina da subversão”: “Não foi a natureza moderada de Voltaire, com seu pendor a ordenar, purificar e modificar, mas sim as apaixonadas tolices e meias verdades de Rousseau que despertam o espírito otimista da Revolução, contra o qual eu grito: “Écrasez l’infame! Graças a ele o espírito do Iluminismo e do desenvolvimento progressivo foi por muito tempo afugentado”.1 É nessa concepção de Voltaire que Nietzsche irá se apegar, mesmo depois de ter há muito superado as ilusões de Humano, Demasiadamente Humano. Sim, de acordo com o seu radicalismo tardio, ele vê agora a importância de Voltaire na história universal exclusivamente por esta tomada de posição contra Rousseau e a Revolução. Assim, em Vontade de Poder, afirma-se: “Só a partir disso é que Voltaire se torna o homem do seu século, o filósofo, o representante da tolerância e da descrença (até aqui foi apenas um bel esprit).”1 (...)

Pelas passagens citadas mais acima a respeito de Voltaire e Rousseau, o leitor já é capaz de perceber o valor científico de semelhantes tentativas. Voltaire, cuja obra foi, em sua época, um grande centro de mobilização de todas as forças progressistas, torna-se em Nietzsche o mentor da luta contra toda revolução. E é extraordinariamente característico para esse suposto elo de Nietzsche com o Iluminismo o fato de que ele – ao procurar essa analogia na conduta de vida de Voltaire – tenha-na encontrado precisamente na vida de Schopenhauer; este foi, segundo Nietzsche, “puro como nenhum outro filósofo alemão até então, de modo que viveu e morreu ‘como um voltairiano”’.2 Voltaire, portanto, que empregou a sua fama universal para combater com eficácia o absolutismo feudal apodrecido de seu tempo, que arriscou a sua vida para salvar as vítimas inocentes da reação clerical-absolutista (ou pelo menos a sua memória), teria vivido uma vida semelhante à de Schopenhauer, cujo único engajamento foi uma briga familiar em torno da sua herança, o mesmo que em 1848 ofereceu aos oficiais contrarrevolucionários o seu binóculo de teatro para que eles pudessem atirar com mais segurança contra os combatentes das barricadas, que deixou aos inválidos da contrarrevolução parte da sua fortuna etc. Acreditamos que não valha a pena determo-nos – o que seria demasiadamente fácil – em apresentar provas semelhantes contra todas as pretensas ligações de Nietzsche com as tradições progressistas. Basta que citemos, para concluir, a explicação do próprio Nietzsche sobre a relação existente entre o seu, assim chamado, “novo Iluminismo” e o “velho”, pois Nietzsche expressou as suas concepções – em contraposição aos seus dissimulados expositores imperialistas – com uma franqueza que não deixa nada a desejar. Diz ele: “O novo Iluminismo – o velho existiu no sentido da horda democrática, da igualação de todos. O novo Iluminismo quer indicar o caminho às naturezas dominantes; em que medida a estas (como ao Estado) tudo é permitido, o que não se encontra livre aos seres da horda.”3

1 Nietzsche, Werke, T. II, p. 341 (ed. bras., Companhia das Letras: p. 141).

2 T. XV, p. 215 (ed. bras.: A Vontade de Poder. Tradução de Marcos Sinésio Pereira Fernandes e Francisco José Dias de Moraes. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008. p. 75).

3 T. XIV, p. 321.

 

 

O ponto de contato entre a ética de Nietzsche e a do Iluminismo, dos moralistas franceses etc. consiste no fato de todos enxergarem o egoísmo do indivíduo “capitalista” como fenômeno fundamental da vida social. O desenvolvimento histórico da luta de classes produz, nos diversos períodos em que atuam esses pensadores, diferenças qualitativas de conteúdo, e até mesmo oposições de orientação e de valoração. Os iluministas, enquanto ideólogos progressistas do período de preparação da revolução democrático-burguesa, idealizavam a sociedade burguesa, e, dentro desta, em primeiro lugar, as funções sociais do egoísmo. Sem conhecer, em grande parte, a economia clássica da Inglaterra, e até mesmo antes de seu aparecimento, eles expressavam, na ética, o princípio econômico fundamental de Adam Smith, ou seja, que a ação econômica egoísta do indivíduo é o principal fator de desenvolvimento das forças produtivas e que acaba, por fim, conduzindo necessariamente a uma harmonia dos interesses globais da sociedade. (Não podemos assinalar aqui, nem mesmo de modo esquemático, as contradições complexas a que a “teoria da utilidade”, a moral do “egoísmo racional”, conduz os grandes representantes do Iluminismo.) Mas é claro que depois de a teoria smithiana da harmonia desmoronar por si só diante dos fatos trazidos pela realidade capitalista, só foi possível a sua manutenção, na economia, como economia vulgar (a partir de Say) e, na ética e na sociologia, como apologética direta do capitalismo (a partir de Bentham). A falta de espírito, o ecletismo dos positivistas, manifesta-se, entre outras coisas, também no fato de não se encontrarem em condições de tomar uma posição unívoca em relação à questão do egoísmo. A sua posição é um eterno “por um lado..., por outro lado”, que tudo confunde. Se Nietzsche, como representante da apologética indireta, retomou o problema da afirmação do egoísmo – e podemos ver que essa tendência desempenhou um papel importante já em sua juventude com a atualização mitificadora do “agon”, da “boa Eris” –, trata-se então, no seu caso, não mais de uma idealização da sociedade burguesa revolucionária em formação, ainda progressista, mas, pelo contrário, da idealização daquelas tendências egoístas da burguesia decadente, que se desdobram na época de sua atuação e que exerceram a sua difusão geral e efetiva no período imperialista: portanto, trata-se do egoísmo de uma classe condenada ao declínio pela história, que, na luta desesperada contra o seu coveiro, o proletariado, mobiliza todos os instintos bárbaros no homem e, sobre eles, funda a sua própria ética.”

 

 

Na maturidade, Nietzsche dedica-se, portanto, a uma tarefa central: edificar a ética (a psicologia e – como acredita Nietzsche – também a fisiologia) desse novo egoísmo. Nas suas anotações para uma continuação do Zaratustra, ele estabelece talvez o programa mais franco para esse trabalho, tomando como ponto de partida, muito significativamente, de sua definição, por nós já referida, do “novo Iluminismo”: “‘Nada é verdade, tudo é permitido’. Zaratustra: ‘Eximo-vos de tudo, a divindade, o dever – mas tens de dar a mais alta prova de uma ação nobre, pois aqui se abre o caminho para os malvados – repareis!’ – A luta pela dominação, na qual, por fim, a horda será mais horda e o tirano mais tirano que nunca. – Nenhuma liga secreta! As consequências de vossa doutrina devem causar terríveis estragos: inúmeros homens, porém, deverão perecer. – Façamos uma tentativa com a verdade! Talvez a humanidade pereça nesse processo! Que assim seja!”1

(...) Por isso, o reconhecimento do tipo delinquente é tão importante para Nietzsche. Também aqui se constata uma afinidade aparente com determinadas tendências da literatura do passado, do período de ascensão da burguesia (Os Bandoleiros, no jovem Schiller, o personagem Michael Kohlhaas, em Kleist, o personagem Dubrovski de Puschkin e Vautrin de Balzac etc.), mas também aqui o conteúdo é completamente oposto. No período de ascensão da burguesia, as injustiças da sociedade feudal-absolutista levaram ao delito homens de grande valor moral; a análise de tais criminosos representava uma investida contra aquela sociedade. É certo que tal investida também existe em Nietzsche. Mas aqui a ênfase é que um determinado tipo humano deve ser deformado e transformado em outro tipo, no tipo criminoso. E o que importa para Nietzsche é dar a esse criminoso uma consciência tranquila e, com isso, superar a sua deformação, convertendo-o em um membro da nova elite. Em Crepúsculo dos Ídolos, Nietzsche afirma: “O tipo criminoso é o tipo do ser humano forte sob condições desfavoráveis, um homem forte que tornaram doente. Falta-lhe a selva, uma natureza e forma de existência mais livre e mais perigosa, em que tudo o que é arma e armadura, no instinto do homem forte, tem direito a existir. Suas virtudes foram proscritas pela sociedade; os impulsos mais vivos de que é dotado logo se misturam com afetos deprimentes, com a suspeita, o medo, a infâmia.”2 A afinidade necessária e orgânica, no sentido concebido por Nietzsche, entre grandeza e delinquência (quer dizer, pertencimento ao tipo criminoso) é expressa claramente em Vontade de Poder: “Em nosso mundo civilizado, quase só conhecemos aquele criminoso degenerado, oprimido pela maldição e pelo desprezo da sociedade, desconfiado de si mesmo, muitas vezes diminuindo e caluniando a sua própria ação, um tipo de criminoso malsucedido; e resistimos à representação de que todos os grandes homens foram criminosos (só que em grande estilo, não de maneira miserável), que a delinquência faz parte da grandeza...”3

Aqui o problema da “saúde” e da “doença” – que ocupa uma posição tão central na filosofia do Nietzsche maduro – já está colocado e respondido com toda a clareza. E se acrescentarmos a essas afirmações ainda uma outra, tomada dos trabalhos preparatórios às suas obras finais, não o fazemos simplesmente para completar a nossa exposição – tais citações poderiam ser feitas ainda por muitas páginas –, mas porque muitos intérpretes de Nietzsche, justamente nos tempos mais recentes, esforçam-se vivamente por abrandar ou mesmo eliminar todas aquelas tendências que em Nietzsche apontam para um renascimento da barbárie, para uma exaltação do terror branco, para a aprovação moral da crueldade e da bestialidade; mediante esses intérpretes, temos a impressão de que a “besta loira”, por exemplo, seria apenas uma metáfora inocente no âmbito de uma crítica refinada da cultura. Ante essas deformações, devemos recorrer sempre novamente ao próprio Nietzsche, que em todas essas questões – e nesse sentido era um pensador honesto, não um hipócrita ou charlatão – manifestou-se com uma franqueza quase cínica. Assim, na passagem a que nos referimos, ele diz: “Os animais predadores e a selva provam que a maldade pode ser muito sadia e desenvolve o corpo de modo esplêndido. Se a natureza dos animais predadores fosse afetada por tormentos de consciência, há muito tempo eles teriam definhado e degenerado. O cão (que tanto se lamenta e geme) é um predador degenerado; e também o gato. Uma infinidade de pessoas bondosas e deprimidas prova que a boa índole está ligada a uma degeneração das forças: as sensações de angústia prevalecem e determinam o organismo.”4 Também a linguagem biológica está, como veremos, em perfeita consonância com as tendências filosóficas fundamentais do Nietzsche maduro, mas essa linguagem só serve ao mito, pois a “maldade” do predador é, obviamente, um mito da exaltação imperialista dos instintos ruins. (...)

A dificuldade que surge aqui para os admiradores do Nietzsche “refinado” – como essa afirmação da barbárie se combina com a sua crítica da cultura frequentemente sutil e refinada – não é difícil de ser eliminada. Em primeiro lugar, essa unificação de refinamento e brutalidade não é de modo algum uma peculiaridade pessoal de Nietzsche que precisaria ser explicada psicologicamente, mas é uma característica geral, psíquica e moral, da decadência imperialista. O autor das presentes considerações demonstrou, em outro contexto, a relação íntima dessas determinações opostas no ainda muito mais refinado Rilke.5 Em segundo lugar, Nietzsche faz, em Genealogia da Moral, uma descrição excelente do seu tipo preferido, que não só revela a psicologia e a moral, como nas passagens até aqui citadas, mas que lança, ao mesmo tempo, uma luz clara sobre a base classista dessa contrastante dualidade e unidade. Nesta descrição, Nietzsche analisa dois pares antitéticos da moral: o conceito aristocrático de bom-ruim, e aquele dotado de um ressentimento plebeu bom-mau, e responde da seguinte maneira à questão de como teria surgido o conceito ético citado por último: “A resposta com todo o rigor: precisamente o ‘bom’ da outra moral, o nobre, o poderoso, o dominador, apenas pintado de outra cor, interpretado e visto de outro modo pelo olho de veneno do ressentimento. Aqui jamais negaríamos o seguinte: quem conhecesse aqueles ‘bons’ apenas como inimigos não conheceria senão inimigos maus, e os mesmos homens tão severamente contidos pelo costume, o respeito, os usos, a gratidão, mais ainda pela vigilância mútua, pelo ciúme inter pares, que por outro lado se mostram tão pródigos em consideração, autocontrole, delicadeza, lealdade, orgulho e amizade, nas relações entre si – para fora, ali onde o estranho começa, o que é estranho, eles não são melhores que animais de rapina deixados à solta. Ali desfrutam a liberdade de toda coerção social, na selva se recobram da tensão trazida por um longo cerceamento e confinamento na paz da comunidade, retornam à consciência inocente dos animais de rapina, como monstros jubilosos que deixam atrás de si, com ânimo elevado e equilíbrio interior, uma sucessão horrenda de assassínios, incêndios, violações e torturas, como se tudo não passasse de brincadeira de estudantes, convencidos de que mais uma vez os poetas muito terão para cantar e louvar. Na raiz de todas as raças nobres é difícil não reconhecer o ânima de rapina, a magnífica besta loura que vagueia ávida de espólios e vitórias .... Foram as raças nobres que deixaram na sua esteira o conceito de ‘bárbaro’, em toda parte aonde foram; mesmo em sua cultura mais elevada se revela a consciência e até mesmo o orgulho disso.”6

Portanto, no interior da classe dominante, cabe refinamento estético, moral e cultural; diante do “estranho”, ou seja, diante dos oprimidos, diante daqueles que devem ser oprimidos, cabe brutalidade, crueldade e barbárie. Vê-se que o entusiasmo do jovem Nietzsche a favor da escravidão na antiguidade continua um motivo permanente – certamente sempre ampliado – em sua filosofia. É verdade que, dessa maneira, um elemento romântico penetra em sua antecipação “profética” de um futuro imperialista. O modelo de Nietzsche – uma espécie de homem refinado e de cultura escravista como Péricles – corresponde muito mal a homens como Hitler e Göring, como McCarthy e Ridgway. A ignorância a respeito da diferença social e econômica entre as duas épocas conduzem, necessariamente (desconsiderando-se as intenções apologéticas), a esse idealismo romântico. É verdade que não se trata de um acaso que Nietzsche se perca justamente aqui em devaneios românticos, pois trata-se da questão central do seu fazer filosófico. A preocupação pela cultura certamente não é, em Nietzsche, simplesmente uma isca para a intelectualidade decadente; essa preocupação sempre ocupou em sua vida, em seu sentimento e pensamento, uma posição central: quando combate o declínio cultural e procura preparar a ascensão futura, ele é, sem dúvida, subjetivamente sincero, mesmo que do ponto de vista de uma posição de classe extremamente reacionária. O sonho romântico de uma camada dirigente altamente culta, camada que, ao mesmo tempo, defende a barbárie como algo considerado inevitável, recebe, a partir daqui, uma coloração particular. E é precisamente essa sinceridade subjetiva dessa falsa profecia que constitui uma fonte importante do fascínio que Nietzsche exerce sobre a intelectualidade parasitária do período imperialista: com a sua ajuda, esta pode esconder, atrás da máscara da “preocupação com a cultura”, a sua covardia, a sua adaptação às formas mais abjetas do imperialismo, o seu medo animalesco diante da revolução proletária.”

1 T. XII, p. 410.

2 Ibid., p. 157 (ed. bras., Companhia das Letras: p. 94, modif.).

3 T. XVI, p. 184 s.

4 T. XIV, p. 82.

5 Ver meus livros: Karl Marx und Friedrich Engels als Literaturhistoriker, Aufbau-Verlag, Berlim, 1952, p. 31 s. (ed. bras.: Marx e Engels como Historiadores da Literatura. Tradução de Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo, 2016), e Skizze einer Gechichte der neueren deutschen Literatur, cit., p. 115 s.

6 T. VII, p. 321 s. (ed. bras., Companhia das Letras: p. 32-33, modif.).

 

 

A ética de Nietzsche, esboçada aqui de maneira sumária, tem o significado histórico de ser uma ética ligada exclusivamente à classe dominante, opressora e exploradora, e de ter seu conteúdo e seu método determinados por essa posição explicitamente de luta. Concretiza-se aqui, pois, no terreno da ética, o desenvolvimento ulterior da apologética indireta. Nesse sentido, dois elementos particulares precisam ser colocados em evidência. Em primeiro lugar, que aqui Nietzsche também faz a defesa do capitalismo do ponto de vista de uma apologia dos seus “aspectos ruins”. Enquanto a apologia vulgar de seus contemporâneos coloca em primeiro plano a idealização do homem capitalista e se esforça por apagar todas as contradições do capitalismo, Nietzsche coloca no centro de suas considerações precisamente as questões que são problemáticas na sociedade capitalista e todos os seus aspectos ruins. É verdade que ele também idealiza; porém, sob a forma de uma crítica irônica e de um pathos poético, ele dá relevo exatamente à natureza egoísta, bárbara e bestial no homem capitalista, destacando esses traços como inerentes àquele tipo que se deve perseguir moralmente em prol da salvação da humanidade (quer dizer, do capitalismo). Portanto, também Nietzsche fala dos interesses da humanidade e a identifica com o capitalismo.

Entretanto – e isto é o segundo elemento que deve ser ressaltado –, Nietzsche, assim como fizeram os neokantianos, os positivistas etc., sequer pretendia fundar uma ética válida para todos os homens. Pelo contrário, a sua ética pertence deliberada e conscientemente apenas à classe dominante: ao lado dessa ética, ou abaixo dela, existe uma moral qualitativamente distinta desta, que pertence aos oprimidos, os que Nietzsche nega e combate apaixonadamente. A luta entre os dois sistemas morais que, embora se transformem de acordo com as circunstâncias históricas, representam, em sua essência, os dois tipos eternos de moral, determina, segundo Nietzsche, todas as questões nucleares da história. Assim, na ética de Nietzsche, reconhece-se, de certa maneira, o fato da luta de classes, e isso de novo em nítida oposição com a apologética direta, que, por meio de uma ética válida universal e eternamente para todos os homens, pretende eliminá-la teoricamente do mundo ou, ao menos, atenuá-la em termos morais. Mas Nietzsche não quer saber de atenuantes; a sua crítica do presente também se dirige ao fato de que a luta dos senhores e da plebe se encontra demasiadamente embotada pela democracia, de que a moral dos senhores está fazendo muitas concessões à moral dos escravos. Portanto, na luta contra o socialismo como inimigo principal, Nietzsche reconhece até certo ponto que a luta de classes constitui o fundamento do tipo e da transformação de toda forma de moral.

É certo que isso está longe de significar que ele tinha representações mais ou menos esclarecidas sobre as classes e a luta de classes. Isso está fora de questão: em Nietzsche a luta de classes aparece como uma luta entre raças elevadas e inferiores. Semelhante formulação já é capaz de indicar por si mesma uma tendência à fascistização da ideologia burguesa. Todos aqueles que pretendem dissociar Nietzsche de qualquer vínculo com Hitler se apegam ao fato de que o seu conceito de raça é totalmente diferente daquele de Gobineau, Chamberlain e Rosenberg. Está fora de questão que de fato há uma diferença substancial: embora Nietzsche também fundamente biologicamente as suas categorias sociais; embora a sua ética também parta de uma desigualdade pretensamente radical e eterna entre os homens, que ele procura demonstrar; embora, portanto, coincidam fundamentalmente, em suas consequências morais e sociais, as teorias raciais de Nietzsche e Gobineau, existe, pelo menos, entre uma e outra, a diferença de que Nietzsche não dá a menor importância à supremacia da raça “ariana”, e de que ele conhece as raças de senhores e de escravos apenas em termos bem gerais e no plano mítico, sem considerar outras determinações do que as sociais e morais. Portanto, nesse sentido podemos dizer que se trata mais de um precursor de Spengler do que de Rosenberg.1 A ênfase nessa diferença, porém, é hoje apenas um meio para a tentativa de “desnazificação” de Nietzsche, pois vimos que Nietzsche extrai da teoria das raças as mesmas conclusões bárbaro-imperialistas que aquelas extraídas por Rosenberg das teorias de Chamberlain, e que, portanto, eles só se distinguem, para usarmos a expressão de Lênin, assim como se distinguem um diabo amarelo de um diabo azul. A isso se soma ainda o fato de que o obscurecimento e a confusão das ciências sociais durante o período imperialista ocorrem, de maneira preponderante, na linha da teoria das raças (raça em vez de classe), e que também nessa questão podemos derivar de Nietzsche o mesmo irracionalismo obscurantista presente em Gobineau ou Chamberlain.

A ética de Nietzsche também se distingue daquela dos epígonos do idealismo e do positivismo pelo fato de se colocarem as questões individuais sempre de modo inseparável das questões sociais; aquelas questões que desempenham um papel decisivo, por exemplo, no neokantismo, como as da legalidade e da moralidade, nele sequer aparecem. Naturalmente, não se trata, no caso dele, de derivar a moral individual das determinações sociais concretas, mas de entrelaçar de modo irracionalista e intuitivo os problemas psíquico-morais de natureza extremamente individual a uma sociedade e a uma história convertidas em mito. Ora, uma das razões mais importantes para a influência duradoura de Nietzsche no período imperialista é o fato de que sua filosofia, do ponto de vista da forma, é arbitrariamente espirituosa, e, do ponto de vista do conteúdo, atende aos interesses permanentes do capitalismo monopolista reacionário. O neokantismo e também o neo-hegelianismo adotam com empenho excessivo a época da “segurança” como base para a colocação de suas questões, e almejam de modo demasiado aberto a um capitalismo consolidado para que possam ser realmente úteis aos interesses da burguesia reacionária nos tempos das grandes catástrofes, da crise e da revolução mundial. Em contrapartida, as tendências intelectuais decadentes aparentadas com Nietzsche – que geralmente também estão mais ou menos sob a sua influência (a “action gratuite” de Gide, o existencialismo etc.) – partem quase exclusivamente e de modo unilateral das necessidades ideológicas da intelectualidade individualista e parasitária. É verdade que elas expressam um nihilismo parecido com o de Nietzsche, naturalmente num nível ainda mais alto de desintegração interior, mas são – em suas formas de colocar e resolver o problema – muito mais estreitas, mais particulares do que as dele. Suas ideias filosóficas se conformam muito mais a uma espécie de “terceira via” do que a uma vanguarda reacionária. E foi precisamente essa unidade rica em tensões e paradoxos que temos descrito, entre um individualismo espirituoso decadente e uma sociabilidade imperialista reacionária que determinou a influência duradoura de Nietzsche no período imperialista e lhe permitiu sobreviver a todas as particularidades. (...)

A dissolução moral dos burgueses e pequeno-burgueses, que foi se agravando cada vez mais com o desenvolvimento da economia e da política imperialistas, confirmou a previsão “profética” da ética de Nietzsche. A sua influência duradoura não tem pouco a ver com o fato de ele atender amplamente às necessidades ideológicas da decadência, de colocar as questões que são de seu campo de interesse, de resolvê-las em seu próprio sentido e, sobretudo, de afirmar e favorecer os seus instintos decadentes com a pretensão de justamente assim suplantar a decadência. A “dialética” de Nietzsche aqui consiste, portanto, em simultaneamente afirmar e negar a decadência e em colocar o resultado desse processo a serviço da reação militante. O próprio Nietzsche afirma essa “dialética” para si mesmo; diz ele em Ecce Homo: “deixando de lado o fato de ser eu um decadente, sou também o seu contrário.”2

Esse contrário é representado por aquela ética da barbárie que descrevemos acima. E Nietzsche, de modo resoluto, inverte todo o problema da decadência, quando diz, ao definir o seu traço essencial mais importante: “nos amargaram o direito ao egoísmo.”3 Pois o predomínio das tendências egoístas individualistas sobre as tendências sociais é, precisamente, um dos traços essenciais mais importantes da decadência. Mas é exatamente dessa forma que Nietzsche pode “curar” os decadentes, quer dizer, conduzi-los, por meio de uma estrutura psicológico-moral essencialmente imutável, para uma autoafirmação incondicional, e tranquilizar-lhes a consciência, quando sugere que não são demasiadamente egoístas, mas, pelo contrário, demasiadamente pouco egoístas, e que devem se tornar – com consciência tranquila – ainda mais egoístas.

Torna-se aqui mais facilmente visível aquela “missão social” da qual falamos no princípio, ou seja, a tarefa de desviar do socialismo aqueles intelectuais insatisfeitos com o presente e de conduzi-los à reação extrema: o socialismo exige uma transformação tanto externa como interna (rompimento com a própria classe e mudança do comportamento subjetivo), enquanto que, para uma suplantação da decadência tal como proclama Nietzsche, não há necessidade de fratura alguma: permanece-se o que se foi (com menos constrangimentos e com a consciência mais tranquila) e tem-se a consciência de ser muito mais revolucionário do que são os socialistas. A isso se acrescenta ainda o caráter social e histórico das respostas na ética de Nietzsche. (...) Esses poucos exemplos serão suficientes para se esclarecer a metodologia inerente à relação de Nietzsche para com a intelectualidade, um dos fundamentos mais importantes de sua influência duradoura; os exemplos poderiam ser multiplicados à vontade, porém eles não trariam algo de substancialmente novo: no serviço ativo da reação imperialista extrema (de Hitler), a decadência “suplanta-se” a si mesma e “cura-se”, sem ter operado em si outra transformação que não seja aquela de liberar seus piores instintos, instintos até então parcial ou inteiramente reprimidos.”

1 T. IX, p. 305 s.

2 T. XV, p. 11.

3 Ibid., p. 147.

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