Editora: Instituto Lukács
Opinião: ★★★★☆
Tradução: Bernard Herman Hess, Rainer Patriota,
Ronaldo Vielmi Fortes
Páginas: 794
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Sinopse: Ver Parte I
“Uma das grandes conquistas da dialética
hegeliana foi a de ter procurado fundamentar cientificamente a interação
concreta entre os elementos absolutos e os elementos relativos do conhecimento.
A teoria do caráter aproximativo de nosso conhecimento é a consequência
necessária dessas tentativas: a aproximação significa, nesse contexto, que a
existência ineliminável do elemento relativo não nega o caráter objetivo,
absoluto de um conhecimento correto, mas indica apenas o grau atingido pelo
nosso conhecimento em determinado estágio do
processo da aproximação progressiva. O fundamento objetivo da aproximação está
no fato de o objeto ser o concreto, aparente, sempre mais rico e pleno de
conteúdo do que aquelas leis com a ajuda das quais procuramos conhecê-lo. Por
isso, não existe, na concepção hegeliana da aproximação, derivada desses
pressupostos, qualquer tipo de relativismo, sobretudo em seu desenvolvimento
materialista, com Marx, Engels e Lênin, no qual o reflexo da realidade objetiva
garante o caráter absoluto do conhecimento.”
“Durante o período da influência de Nietzsche, o
declínio de classe e a decadência chegam a tal ponto que também a sua valoração
subjetiva no âmbito da classe burguesa passa por uma transformação importante:
enquanto que, por um longo período, só os críticos progressistas de oposição
haviam descoberto e denunciado os sintomas da decadência, a maior parte da
intelectualidade burguesa mantinha a ilusão de viver no “melhor dos mundos”,
defendendo a “sanidade” e o caráter progressista da própria ideologia, agora a
percepção da decadência, a consciência de ser decadente, começa a ocupar cada
vez mais o centro do autoconhecimento dessa intelectualidade. Essa mudança se
expressa, sobretudo, num relativismo, pessimismo, nihilismo etc.
autocomplacente, narcisista e frívolo, mas que muitas vezes se converte – em
intelectuais honestos – em um sincero estado de desespero e, como consequência,
numa atmosfera de rebeldia (messianismo etc.).
Nietzsche é agora, como psicólogo
da cultura, como esteta e moralista, talvez o mais genial e completo expoente
desse autoconhecimento da decadência. Mas a sua importância vai ainda muito
além disso: reconhecendo a decadência como fenômeno fundamental do
desenvolvimento burguês de seu tempo, ele assume a tarefa de apontar o caminho
de sua autossuplantação, pois entre os mais vivazes e atentos intelectuais que
se encontram sob a influência da visão decadente de mundo surge,
necessariamente, também o desejo de sua suplantação. Esse desejo torna
extremamente atraentes, para a melhor parte desses intelectuais, as lutas da
nova classe em ascensão, do proletariado: eles percebem aqui, sobretudo no modo
de conduzir a vida e na moral, sinais de uma possível recuperação da sociedade
e, em relação com isso – o que, naturalmente, está em primeiro plano –, uma
recuperação de si mesmos. A maior parte desses intelectuais não tem a menor
ideia do alcance econômico e social de uma real transformação socialista,
considerando esta de um modo puramente ideológico e, por isso, não têm uma
clara representação de até que ponto e quão profundamente uma decisão nessa
direção implicaria uma ruptura radical com a própria classe, e como essa
ruptura, necessariamente, repercutiria sobre a sua própria vida. Por mais
confuso que seja esse movimento, ele abraça vastos círculos da intelectualidade
burguesa progressista e se manifesta, naturalmente, de modo veemente, sobretudo
em períodos de crise. (Basta pensar no caso da Lei contra os socialistas, no
destino do naturalismo, na Primeira Guerra Mundial e no movimento expressionista
na Alemanha, no boulangerismo e na campanha em torno do caso Dreyfus, na França
etc.)
A “missão social” que
compete à filosofia de Nietzsche consiste em “salvar” esse tipo de intelectual
burguês, em “redimi-lo”, indicando-lhe um caminho que torna desnecessária toda
e qualquer ruptura, e até mesmo toda e qualquer tensão maior com a burguesia;
um caminho no qual o agradável sentimento moral de ser um rebelde pode
continuar existindo, tornando-se até mais acentuado, na medida em que se
contrapõe, sedutoramente, a uma revolução “mais profunda”, “cósmico-biológica”
à “superficial” e “exterior” revolução social. Ou seja, uma “revolução” que
conserva inteiramente os privilégios da burguesia, que, sobretudo, defende
apaixonadamente o modo privilegiado de viver da intelectualidade burguesa,
imperialista e parasitária; uma “revolução” que se dirige contra as massas, que
confere ao medo que os privilegiados têm de perderem seus privilégios
econômicos e culturais uma expressão patético-agressiva, que disfarça o caráter
egoísta desse medo. O caminho traçado por Nietzsche jamais abandona a tendência
decadente que se encontra profundamente imbricada com a vida sentimental e
intelectual dessa camada, tendência que, mediante o novo autoconhecimento, é
colocada sob uma nova luz: é exatamente na decadência na qual residem os germes
autênticos destinados a produzir uma efetiva e profunda renovação da
humanidade. Essa “missão social” se encontra, por assim dizer, numa harmonia
preestabelecida com o talento, com as mais íntimas disposições do pensamento e
com a sabedoria de Nietzsche. Como os setores sociais para os quais a sua obra
é dirigida, o próprio Nietzsche ocupa-se, sobretudo, dos problemas da cultura
e, entre estes, principalmente, da arte e da ética individual. A política
manifesta-se sempre como horizonte abstrato e mítico, e, em matéria de
economia, a ignorância de Nietzsche é comparável àquela de um intelectual
mediano de seu tempo.”
“Quando se lê a interpretação nietzschiana de
Voltaire, é possível ver que também aqui se trata da mesma luta que definimos
como a mais essencial de sua vida, embora, é verdade, com a diferença, muito
característica para essa época, que Nietzsche agora considera que a evolução,
da qual ele celebra Voltaire como representante, é o meio mais seguro para
evitar a revolução (o socialismo). É nesse sentido que ele vê um paralelo entre
Voltaire e Rousseau (o aforismo traz o título, significativo para o pensamento
de Nietzsche naquele momento: “Uma ilusão na doutrina da subversão”:
“Não foi a natureza moderada de Voltaire, com seu pendor a ordenar,
purificar e modificar, mas sim as apaixonadas tolices e meias verdades de Rousseau
que despertam o espírito otimista da Revolução, contra o qual eu grito: “Écrasez
l’infame! Graças a ele o espírito do Iluminismo e do
desenvolvimento progressivo foi por muito tempo afugentado”.1 É
nessa concepção de Voltaire que Nietzsche irá se apegar, mesmo depois de ter há
muito superado as ilusões de Humano, Demasiadamente Humano. Sim, de
acordo com o seu radicalismo tardio, ele vê agora a importância de Voltaire na
história universal exclusivamente por esta tomada de posição contra Rousseau e
a Revolução. Assim, em Vontade de Poder, afirma-se: “Só a partir disso é que Voltaire se torna o homem do seu século, o
filósofo, o representante da tolerância e da descrença (até aqui foi apenas um bel
esprit).”1 (...)
Pelas passagens citadas mais
acima a respeito de Voltaire e Rousseau, o leitor já é capaz de perceber o
valor científico de semelhantes tentativas. Voltaire, cuja obra foi, em sua
época, um grande centro de mobilização de todas as forças progressistas,
torna-se em Nietzsche o mentor da luta contra toda revolução. E é
extraordinariamente característico para esse suposto elo de Nietzsche com o
Iluminismo o fato de que ele – ao procurar essa analogia na conduta de vida de
Voltaire – tenha-na encontrado precisamente na vida de Schopenhauer; este foi,
segundo Nietzsche, “puro como nenhum outro filósofo alemão até então, de modo
que viveu e morreu ‘como um voltairiano”’.2 Voltaire, portanto, que
empregou a sua fama universal para combater com eficácia o absolutismo feudal
apodrecido de seu tempo, que arriscou a sua vida para salvar as vítimas
inocentes da reação clerical-absolutista (ou pelo menos a sua memória), teria vivido
uma vida semelhante à de Schopenhauer, cujo único engajamento foi uma briga
familiar em torno da sua herança, o mesmo que em 1848 ofereceu aos oficiais
contrarrevolucionários o seu binóculo de teatro para que eles pudessem atirar
com mais segurança contra os combatentes das barricadas, que deixou aos
inválidos da contrarrevolução parte da sua fortuna etc. Acreditamos que não
valha a pena determo-nos – o que seria demasiadamente fácil – em apresentar
provas semelhantes contra todas as pretensas ligações de Nietzsche com as
tradições progressistas. Basta que citemos, para concluir, a explicação do
próprio Nietzsche sobre a relação existente entre o seu, assim chamado, “novo
Iluminismo” e o “velho”, pois Nietzsche expressou as suas concepções – em
contraposição aos seus dissimulados expositores imperialistas – com uma
franqueza que não deixa nada a desejar. Diz ele: “O novo Iluminismo – o velho
existiu no sentido da horda democrática, da igualação de todos. O novo
Iluminismo quer indicar o caminho às naturezas dominantes; em que medida a
estas (como ao Estado) tudo é permitido, o que não se encontra livre aos
seres da horda.”3
1 Nietzsche, Werke, T. II, p. 341 (ed. bras., Companhia das Letras: p. 141).
2 T. XV, p. 215 (ed. bras.: A
Vontade de Poder. Tradução de Marcos Sinésio Pereira Fernandes e Francisco
José Dias de Moraes. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008. p. 75).
3 T. XIV, p. 321.
“O ponto de contato entre a ética de Nietzsche e a do Iluminismo, dos
moralistas franceses etc. consiste no fato de todos enxergarem o egoísmo do
indivíduo “capitalista” como fenômeno fundamental da vida social. O
desenvolvimento histórico da luta de classes produz, nos diversos períodos em
que atuam esses pensadores, diferenças qualitativas de conteúdo, e até mesmo
oposições de orientação e de valoração. Os iluministas, enquanto ideólogos
progressistas do período de preparação da revolução democrático-burguesa,
idealizavam a sociedade burguesa, e, dentro desta, em primeiro lugar, as
funções sociais do egoísmo. Sem conhecer, em grande parte, a economia clássica
da Inglaterra, e até mesmo antes de seu aparecimento, eles expressavam, na
ética, o princípio econômico fundamental de Adam Smith, ou seja, que a ação
econômica egoísta do indivíduo é o principal fator de desenvolvimento das
forças produtivas e que acaba, por fim, conduzindo necessariamente a uma
harmonia dos interesses globais da sociedade. (Não podemos assinalar aqui, nem
mesmo de modo esquemático, as contradições complexas a que a “teoria da
utilidade”, a moral do “egoísmo racional”, conduz os grandes
representantes do Iluminismo.) Mas é claro que depois de a teoria smithiana da
harmonia desmoronar por si só diante dos fatos trazidos pela realidade
capitalista, só foi possível a sua manutenção, na economia, como economia
vulgar (a partir de Say) e, na ética e na sociologia, como apologética direta
do capitalismo (a partir de Bentham). A falta de espírito, o ecletismo dos
positivistas, manifesta-se, entre outras coisas, também no fato de não se
encontrarem em condições de tomar uma posição unívoca em relação à questão do
egoísmo. A sua posição é um eterno “por um lado..., por outro lado”, que tudo
confunde. Se Nietzsche, como representante da apologética indireta, retomou o
problema da afirmação do egoísmo – e podemos ver que essa tendência desempenhou
um papel importante já em sua juventude com a atualização mitificadora do “agon”,
da “boa Eris” –, trata-se então, no seu caso, não mais de uma
idealização da sociedade burguesa revolucionária em formação, ainda
progressista, mas, pelo contrário, da idealização daquelas tendências egoístas
da burguesia decadente, que se desdobram na época de sua atuação e que
exerceram a sua difusão geral e efetiva no período imperialista: portanto,
trata-se do egoísmo de uma classe condenada ao declínio pela história, que, na
luta desesperada contra o seu coveiro, o proletariado, mobiliza todos os
instintos bárbaros no homem e, sobre eles, funda a sua própria ética.”
“Na maturidade, Nietzsche dedica-se, portanto, a uma tarefa central:
edificar a ética (a psicologia e – como acredita Nietzsche – também a
fisiologia) desse novo egoísmo. Nas suas anotações para uma continuação do Zaratustra,
ele estabelece talvez o programa mais franco para esse trabalho, tomando como
ponto de partida, muito significativamente, de sua definição, por nós já
referida, do “novo Iluminismo”: “‘Nada é verdade, tudo é
permitido’. Zaratustra: ‘Eximo-vos de tudo, a divindade, o dever – mas tens de
dar a mais alta prova de uma ação nobre, pois aqui se abre
o caminho para os malvados – repareis!’ – A luta pela dominação, na qual, por
fim, a horda será mais horda e o tirano mais tirano que nunca. – Nenhuma liga
secreta! As consequências de vossa doutrina devem causar terríveis estragos:
inúmeros homens, porém, deverão perecer. – Façamos uma tentativa com a verdade!
Talvez a humanidade pereça nesse processo! Que assim seja!”1
(...) Por isso, o reconhecimento do
tipo delinquente é tão importante para Nietzsche. Também aqui se constata uma
afinidade aparente com determinadas tendências da literatura do passado, do
período de ascensão da burguesia (Os Bandoleiros, no jovem Schiller, o
personagem Michael
Kohlhaas, em Kleist, o personagem Dubrovski de Puschkin e
Vautrin de Balzac etc.), mas também aqui o conteúdo é completamente oposto. No
período de ascensão da burguesia, as injustiças da sociedade feudal-absolutista
levaram ao delito homens de grande valor moral; a análise de tais criminosos
representava uma investida contra aquela sociedade. É certo que tal investida
também existe em Nietzsche. Mas aqui a ênfase é que um determinado tipo humano
deve ser deformado e transformado em outro tipo, no tipo criminoso. E o que
importa para Nietzsche é dar a esse criminoso uma consciência tranquila e, com
isso, superar a sua deformação, convertendo-o em um membro da nova elite. Em Crepúsculo
dos Ídolos, Nietzsche afirma: “O tipo criminoso é o tipo do ser humano
forte sob condições desfavoráveis, um homem forte que tornaram doente.
Falta-lhe a selva, uma natureza e forma de existência mais livre e mais
perigosa, em que tudo o que é arma e armadura, no instinto do homem forte, tem
direito a existir. Suas virtudes foram proscritas pela sociedade; os
impulsos mais vivos de que é dotado logo se misturam com afetos deprimentes,
com a suspeita, o medo, a infâmia.”2 A afinidade necessária e
orgânica, no sentido concebido por Nietzsche, entre grandeza e delinquência
(quer dizer, pertencimento ao tipo criminoso) é expressa claramente em Vontade
de Poder: “Em nosso mundo civilizado, quase só conhecemos aquele criminoso
degenerado, oprimido pela maldição e pelo desprezo da sociedade, desconfiado de
si mesmo, muitas vezes diminuindo e caluniando a sua própria ação, um tipo
de criminoso malsucedido; e resistimos à representação de que todos os
grandes homens foram criminosos (só que em grande estilo, não de maneira
miserável), que a delinquência faz parte da grandeza...”3
Aqui o problema da “saúde” e da
“doença” – que ocupa uma posição tão central na filosofia do Nietzsche maduro –
já está colocado e respondido com toda a clareza. E se acrescentarmos a essas
afirmações ainda uma outra, tomada dos trabalhos preparatórios
às suas obras finais, não o fazemos simplesmente para completar a nossa
exposição – tais citações poderiam ser feitas ainda por muitas páginas –, mas
porque muitos intérpretes de Nietzsche, justamente nos tempos mais recentes,
esforçam-se vivamente por abrandar ou mesmo eliminar todas aquelas tendências
que em Nietzsche apontam para um renascimento da barbárie, para uma exaltação
do terror branco, para a aprovação moral da crueldade e da bestialidade;
mediante esses intérpretes, temos a impressão de que a “besta loira”, por exemplo,
seria apenas uma metáfora inocente no âmbito de uma crítica refinada da
cultura. Ante essas deformações, devemos recorrer sempre novamente ao próprio
Nietzsche, que em todas essas questões – e nesse sentido era um pensador
honesto, não um hipócrita ou charlatão – manifestou-se com uma franqueza quase
cínica. Assim, na passagem a que nos referimos, ele diz: “Os animais predadores
e a selva provam que a maldade pode ser muito sadia e desenvolve o corpo de
modo esplêndido. Se a natureza dos animais predadores fosse afetada por
tormentos de consciência, há muito tempo eles teriam definhado e degenerado. O
cão (que tanto se lamenta e geme) é um predador degenerado; e também o gato.
Uma infinidade de pessoas bondosas e deprimidas prova que a boa índole
está ligada a uma degeneração das forças: as sensações de angústia
prevalecem e determinam o organismo.”4 Também a linguagem biológica
está, como veremos, em perfeita consonância com as tendências filosóficas
fundamentais do Nietzsche maduro, mas essa linguagem só serve ao mito, pois a
“maldade” do predador é, obviamente, um mito da exaltação imperialista dos
instintos ruins. (...)
A dificuldade que surge aqui para
os admiradores do Nietzsche “refinado” – como essa afirmação da barbárie se
combina com a sua crítica da cultura frequentemente sutil e refinada – não é
difícil de ser eliminada. Em primeiro lugar, essa unificação de refinamento e
brutalidade não é de modo algum uma peculiaridade pessoal de Nietzsche que
precisaria ser explicada psicologicamente, mas é uma característica geral,
psíquica e moral, da decadência imperialista. O autor das presentes
considerações demonstrou, em outro contexto, a relação íntima dessas
determinações opostas no ainda muito mais refinado Rilke.5 Em
segundo lugar, Nietzsche faz, em Genealogia da Moral, uma descrição excelente do seu tipo preferido, que não só revela a
psicologia e a moral, como nas passagens até aqui citadas, mas que lança, ao
mesmo tempo, uma luz clara sobre a base classista dessa contrastante dualidade
e unidade. Nesta descrição, Nietzsche analisa dois pares antitéticos da moral:
o conceito aristocrático de bom-ruim, e aquele dotado de um ressentimento
plebeu bom-mau, e responde da seguinte maneira à questão de como teria surgido
o conceito ético citado por último: “A resposta com todo o rigor: precisamente
o ‘bom’ da outra moral, o nobre, o poderoso, o dominador, apenas pintado de
outra cor, interpretado e visto de outro modo pelo olho de veneno do
ressentimento. Aqui jamais negaríamos o seguinte: quem conhecesse aqueles ‘bons’
apenas como inimigos não conheceria senão inimigos maus, e os mesmos
homens tão severamente contidos pelo costume, o respeito, os usos, a gratidão,
mais ainda pela vigilância mútua, pelo ciúme inter pares, que por outro
lado se mostram tão pródigos em consideração, autocontrole, delicadeza,
lealdade, orgulho e amizade, nas relações entre si – para fora, ali onde o estranho começa, o que é estranho, eles não são
melhores que animais de rapina deixados à solta. Ali desfrutam a liberdade de
toda coerção social, na selva se recobram da tensão trazida por um longo
cerceamento e confinamento na paz da comunidade, retornam à consciência
inocente dos animais de rapina, como monstros jubilosos que deixam atrás de si,
com ânimo elevado e equilíbrio interior, uma sucessão horrenda de assassínios,
incêndios, violações e torturas, como se tudo não passasse de brincadeira de
estudantes, convencidos de que mais uma vez os poetas muito terão para cantar e
louvar. Na raiz de todas as raças nobres é difícil não reconhecer o ânima de
rapina, a magnífica besta loura que vagueia ávida de espólios e vitórias
.... Foram as raças nobres que deixaram na sua esteira o conceito de ‘bárbaro’,
em toda parte aonde foram; mesmo em sua cultura mais elevada se revela a
consciência e até mesmo o orgulho disso.”6
Portanto, no interior da classe
dominante, cabe refinamento estético, moral e cultural; diante do “estranho”,
ou seja, diante dos oprimidos, diante daqueles que devem ser oprimidos, cabe
brutalidade, crueldade e barbárie. Vê-se que o entusiasmo do jovem Nietzsche a
favor da escravidão na antiguidade continua um motivo permanente – certamente
sempre ampliado – em sua filosofia. É verdade que, dessa maneira, um elemento
romântico penetra em sua antecipação “profética” de um futuro imperialista. O
modelo de Nietzsche – uma espécie de homem refinado e de cultura escravista
como Péricles – corresponde muito mal a homens como Hitler e Göring, como
McCarthy e Ridgway. A ignorância a respeito da diferença social e econômica
entre as duas épocas conduzem, necessariamente (desconsiderando-se as intenções
apologéticas), a esse idealismo romântico. É verdade que não se trata de um
acaso que Nietzsche se perca justamente aqui em devaneios românticos, pois
trata-se da questão central do seu fazer filosófico. A preocupação pela cultura
certamente não é, em Nietzsche, simplesmente uma isca para a intelectualidade
decadente; essa preocupação sempre ocupou em sua vida, em seu sentimento e
pensamento, uma posição central: quando combate o declínio cultural e procura
preparar a ascensão futura, ele é, sem dúvida, subjetivamente sincero, mesmo
que do ponto de vista de uma posição de classe extremamente reacionária. O
sonho romântico de uma camada dirigente altamente culta, camada
que, ao mesmo tempo, defende a barbárie como algo considerado inevitável,
recebe, a partir daqui, uma coloração particular. E é precisamente essa
sinceridade subjetiva dessa falsa profecia que constitui uma fonte importante
do fascínio que Nietzsche exerce sobre a intelectualidade parasitária do
período imperialista: com a sua ajuda, esta pode esconder, atrás da máscara da
“preocupação com a cultura”, a sua covardia, a sua adaptação às formas mais
abjetas do imperialismo, o seu medo animalesco diante da revolução proletária.”
1 T. XII, p. 410.
2 Ibid., p. 157 (ed.
bras., Companhia das Letras: p. 94, modif.).
3 T. XVI, p. 184 s.
4 T. XIV, p. 82.
5 Ver meus livros: Karl Marx
und Friedrich Engels als Literaturhistoriker, Aufbau-Verlag, Berlim, 1952,
p. 31 s. (ed. bras.: Marx e Engels como Historiadores da Literatura.
Tradução de Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo, 2016), e Skizze einer
Gechichte der neueren deutschen Literatur, cit., p. 115 s.
6 T. VII, p. 321 s. (ed. bras.,
Companhia das Letras: p. 32-33, modif.).
“A ética de Nietzsche, esboçada aqui de maneira sumária, tem o
significado histórico de ser uma ética ligada exclusivamente à classe
dominante, opressora e exploradora, e de ter seu conteúdo e seu método
determinados por essa posição explicitamente de luta. Concretiza-se aqui, pois,
no terreno da ética, o desenvolvimento ulterior da apologética indireta. Nesse
sentido, dois elementos particulares precisam ser colocados em evidência. Em
primeiro lugar, que aqui Nietzsche também faz a defesa do capitalismo do ponto
de vista de uma apologia dos seus “aspectos ruins”. Enquanto a apologia vulgar
de seus contemporâneos coloca em primeiro plano a idealização do homem
capitalista e se esforça por apagar todas as contradições do capitalismo,
Nietzsche coloca no centro de suas considerações precisamente as questões que
são problemáticas na sociedade capitalista e todos os seus aspectos ruins. É
verdade que ele também idealiza; porém, sob a forma de uma crítica irônica e de
um pathos poético, ele dá relevo exatamente à natureza egoísta, bárbara
e bestial no homem capitalista, destacando esses traços como inerentes àquele
tipo que se deve perseguir moralmente em prol da salvação da humanidade (quer
dizer, do capitalismo). Portanto, também Nietzsche fala dos interesses da
humanidade e a identifica com o capitalismo.
Entretanto
– e isto é o segundo elemento que deve ser ressaltado –, Nietzsche, assim como
fizeram os neokantianos, os positivistas etc., sequer pretendia fundar uma
ética válida para todos os homens. Pelo contrário, a sua ética pertence
deliberada e conscientemente apenas à classe dominante: ao lado dessa ética, ou
abaixo dela, existe uma moral qualitativamente distinta desta, que pertence aos
oprimidos, os que Nietzsche nega e combate apaixonadamente. A luta entre os
dois sistemas morais que, embora se transformem de acordo com as circunstâncias
históricas, representam, em sua essência, os dois tipos eternos de moral,
determina, segundo Nietzsche, todas as questões nucleares da história. Assim,
na ética de Nietzsche, reconhece-se, de certa maneira, o fato da luta de
classes, e isso de novo em nítida oposição com a apologética direta, que, por
meio de uma ética válida universal e eternamente para todos os homens, pretende
eliminá-la teoricamente do mundo ou, ao menos, atenuá-la em termos morais. Mas
Nietzsche não quer saber de atenuantes; a sua crítica do presente também se
dirige ao fato de que a luta dos senhores e da plebe se encontra demasiadamente
embotada pela democracia, de que a moral dos senhores está fazendo muitas
concessões à moral dos escravos. Portanto, na luta contra o socialismo como
inimigo principal, Nietzsche reconhece até certo ponto que a luta de classes constitui o fundamento do tipo e da transformação de toda forma
de moral.
É
certo que isso está longe de significar que ele tinha representações mais ou
menos esclarecidas sobre as classes e a luta de classes. Isso está fora de
questão: em Nietzsche a luta de classes aparece como uma luta entre raças
elevadas e inferiores. Semelhante formulação já é capaz de indicar por si mesma
uma tendência à fascistização da ideologia burguesa. Todos aqueles que
pretendem dissociar Nietzsche de qualquer vínculo com Hitler se apegam ao fato
de que o seu conceito de raça é totalmente diferente daquele de Gobineau,
Chamberlain e Rosenberg. Está fora de questão que de fato há uma diferença
substancial: embora Nietzsche também fundamente biologicamente as suas
categorias sociais; embora a sua ética também parta de uma desigualdade
pretensamente radical e eterna entre os homens, que ele procura demonstrar;
embora, portanto, coincidam fundamentalmente, em suas consequências morais e
sociais, as teorias raciais de Nietzsche e Gobineau, existe, pelo menos, entre
uma e outra, a diferença de que Nietzsche não dá a menor importância à
supremacia da raça “ariana”, e de que ele conhece as raças de senhores e de
escravos apenas em termos bem gerais e no plano mítico, sem considerar outras
determinações do que as sociais e morais. Portanto, nesse sentido podemos dizer
que se trata mais de um precursor de Spengler do que de Rosenberg.1
A ênfase nessa diferença, porém, é hoje apenas um meio para a tentativa de
“desnazificação” de Nietzsche, pois vimos que Nietzsche extrai da teoria das
raças as mesmas conclusões bárbaro-imperialistas que aquelas extraídas por
Rosenberg das teorias de Chamberlain, e que, portanto, eles só se distinguem,
para usarmos a expressão de Lênin, assim como se distinguem um diabo amarelo de
um diabo azul. A isso se soma ainda o fato de que o obscurecimento e a confusão
das ciências sociais durante o período imperialista ocorrem, de maneira
preponderante, na linha da teoria das raças (raça em vez de classe), e que
também nessa questão podemos derivar de Nietzsche o mesmo irracionalismo
obscurantista presente em Gobineau ou Chamberlain.
A
ética de Nietzsche também se distingue daquela dos epígonos do idealismo e do
positivismo pelo fato de se colocarem as questões individuais sempre de modo
inseparável das questões sociais; aquelas questões que desempenham um papel
decisivo, por exemplo, no neokantismo, como as da legalidade e da moralidade,
nele sequer aparecem. Naturalmente, não se trata, no caso
dele, de derivar a moral individual das determinações sociais concretas, mas de
entrelaçar de modo irracionalista e intuitivo os problemas psíquico-morais de
natureza extremamente individual a uma sociedade e a uma história convertidas
em mito. Ora, uma das razões mais importantes para a influência duradoura de
Nietzsche no período imperialista é o fato de que sua filosofia, do ponto de
vista da forma, é arbitrariamente espirituosa, e, do ponto de vista do
conteúdo, atende aos interesses permanentes do capitalismo monopolista
reacionário. O neokantismo e também o neo-hegelianismo adotam com empenho
excessivo a época da “segurança” como base para a colocação de suas questões, e
almejam de modo demasiado aberto a um capitalismo consolidado para que possam
ser realmente úteis aos interesses da burguesia reacionária nos tempos das
grandes catástrofes, da crise e da revolução mundial. Em contrapartida, as
tendências intelectuais decadentes aparentadas com Nietzsche – que geralmente
também estão mais ou menos sob a sua influência (a “action gratuite” de
Gide, o existencialismo etc.) – partem quase exclusivamente e de modo
unilateral das necessidades ideológicas da intelectualidade individualista e
parasitária. É verdade que elas expressam um nihilismo parecido com o de
Nietzsche, naturalmente num nível ainda mais alto de desintegração interior,
mas são – em suas formas de colocar e resolver o problema – muito mais estreitas,
mais particulares do que as dele. Suas ideias filosóficas se conformam muito
mais a uma espécie de “terceira via” do que a uma vanguarda reacionária. E foi
precisamente essa unidade rica em tensões e paradoxos que temos descrito, entre
um individualismo espirituoso decadente e uma sociabilidade imperialista
reacionária que determinou a influência duradoura de Nietzsche no período
imperialista e lhe permitiu sobreviver a todas as particularidades. (...)
A
dissolução moral dos burgueses e pequeno-burgueses, que foi se agravando cada
vez mais com o desenvolvimento da economia e da política imperialistas,
confirmou a previsão “profética” da ética de Nietzsche. A sua influência
duradoura não tem pouco a ver com o fato de ele atender amplamente às necessidades
ideológicas da decadência, de colocar as questões que são de seu campo de
interesse, de resolvê-las em seu próprio sentido e, sobretudo, de afirmar e
favorecer os seus instintos decadentes com a pretensão de justamente assim
suplantar a decadência. A “dialética” de Nietzsche aqui consiste, portanto, em
simultaneamente afirmar e negar a decadência e em colocar o
resultado desse processo a serviço da reação militante. O próprio Nietzsche
afirma essa “dialética” para si mesmo; diz ele em Ecce Homo: “deixando
de lado o fato de ser eu um decadente, sou também o seu contrário.”2
Esse
contrário é representado por aquela ética da barbárie que descrevemos acima. E
Nietzsche, de modo resoluto, inverte todo o problema da decadência, quando diz,
ao definir o seu traço essencial mais importante: “nos amargaram o direito ao
egoísmo.”3 Pois o predomínio das tendências egoístas individualistas
sobre as tendências sociais é, precisamente, um dos traços essenciais mais
importantes da decadência. Mas é exatamente dessa forma que Nietzsche pode
“curar” os decadentes, quer dizer, conduzi-los, por meio de uma estrutura
psicológico-moral essencialmente imutável, para uma autoafirmação
incondicional, e tranquilizar-lhes a consciência, quando sugere que não são
demasiadamente egoístas, mas, pelo contrário, demasiadamente pouco egoístas, e
que devem se tornar – com consciência tranquila – ainda mais egoístas.
Torna-se
aqui mais facilmente visível aquela “missão social” da qual falamos no
princípio, ou seja, a tarefa de desviar do socialismo aqueles intelectuais
insatisfeitos com o presente e de conduzi-los à reação extrema: o socialismo
exige uma transformação tanto externa como interna (rompimento com a própria
classe e mudança do comportamento subjetivo), enquanto que, para uma
suplantação da decadência tal como proclama Nietzsche, não há necessidade de
fratura alguma: permanece-se o que se foi (com menos constrangimentos e com a
consciência mais tranquila) e tem-se a consciência de ser muito mais
revolucionário do que são os socialistas. A isso se acrescenta ainda o caráter
social e histórico das respostas na ética de Nietzsche. (...) Esses poucos
exemplos serão suficientes para se esclarecer a metodologia inerente à relação
de Nietzsche para com a intelectualidade, um dos fundamentos mais importantes
de sua influência duradoura; os exemplos poderiam ser multiplicados à vontade,
porém eles não trariam algo de substancialmente novo: no serviço ativo da
reação imperialista extrema (de Hitler), a decadência “suplanta-se” a si mesma
e “cura-se”, sem ter operado em si outra transformação que não seja aquela de
liberar seus piores instintos, instintos até então parcial ou inteiramente
reprimidos.”
1 T.
IX, p. 305 s.
2 T.
XV, p. 11.
3 Ibid.,
p. 147.
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