domingo, 23 de outubro de 2022

Maigret e o ladrão preguiçoso, de Georges Simenon

Editora: L&PM

ISBN: 978-85-254-1879-1

Tradução: Paulo Neves

Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 176

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Sinopse: São quatro horas da manhã e Jules Maigret acorda com um telefonema. É Aristide Fumel, antigo colega do inspetor do 16º arrondissement, que lhe pede ajuda: o corpo de um homem não identificado foi encontrado no Bois de Boulogne.

De acordo com as novas regras da polícia francesa, o caso está oficialmente fora da jurisdição do comissário. Ignorando o regulamento, Maigret vai até o local e reconhece a vítima. Afinal, ninguém o impediria de se ocupar da morte do ladrão Honoré Cuendet, um homem que ele conhecia havia trinta anos e que era quase um amigo.


Maigret não era o único na Polícia Judiciária a sentir-se desanimado, e o diretor já falara duas vezes de sua possível demissão. Não seria preciso falar uma terceira, pois sabia que cogitavam substituí-lo.

Estavam reorganizando, como diziam. Jovens instruídos, bem-educados, oriundos das melhores famílias da República, estudavam todas as questões no silêncio de seus escritórios, em busca de eficiência. De suas sábias cogitações saíam planos miríficos que se traduziam, toda semana, em novos regulamentos.

E o primeiro ponto é que a polícia devia ser um instrumento a serviço da justiça. Um instrumento. Ora, um instrumento não tem cabeça.

Era o juiz, de seu gabinete, o procurador, de seu prestigioso escritório, que conduziam a investigação e davam ordens.

E, para executar essas ordens, não queriam mais policiais à moda antiga, os velhos “sapatos ferrados” que, como Aristide Fumel, continuavam sem saber a ortografia.

O que fazer, sobretudo quando se tratava de preencher papelada, com essa gente que aprendera o ofício na rua, passando da via pública aos grandes magazines e às estações ferroviárias, conhecendo cada bistrô de seu bairro, cada delinquente, cada prostituta, e eventualmente capaz de discutir com o inimigo usando a linguagem dele?

Agora eram necessários diplomas, exames a cada etapa da carreira, e, quando precisava pôr alguém a espionar, Maigret só podia contar com alguns veteranos da sua equipe.

Por enquanto não se desfaziam dele. Esperavam com paciência, sabendo que só lhe faltavam dois anos para a aposentadoria.”

 

 

“Era raro que Maigret falasse de sua profissão, mais raro ainda que emitisse uma opinião sobre os homens e suas instituições. Ele desconfiava das ideias, sempre precisas demais para se aplicar à realidade que, como sabia por experiência, é muito fluida.

Apenas com seu amigo Pardon, o médico da Rue Popincourt, acontecia-lhe murmurar, depois da janta, o que a rigor podiam se chamar de confidências.

Algumas semanas antes, justamente, ele se pusera a falar com um certo amargor.

— As pessoas imaginam, Pardon, que existimos para prender os criminosos e obter suas confissões. É mais uma das tantas ideias falsas que circulam por aí e às quais as pessoas se habituam de tal modo que ninguém pensar em verificar. Em realidade, nossa principal função é proteger o Estado, em primeiro lugar o governo, seja ele qual for, as instituições, depois a moeda e os bens públicos, dos particulares, e só então, por último, a vida dos indivíduos...”

 

 

“Lida, a modelo com quem o jovem Wilton casou, era uma moça excepcionalmente bonita, de origem húngara, se não me engano... Stuart Wilton se opôs ao casamento. Mas o filho casou assim mesmo e, um belo dia, teria descoberto que sua mulher era amante do pai.

“Não houve escândalo. Nesse meio, os escândalos são raros, e entre gente fina há sempre conciliação.””

Economia do desejo: a farsa da tese neoliberal, de Eduardo Moreira

Editora: Civilização Brasileira

ISBN: 978-85-2001-393-9

Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 96

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Sinopse: Depois dos best-sellers Desigualdade e O que os donos do poder não querem que você saiba, em Economia do desejo, Eduardo Moreira revela por que é insustentável economicamente a ideia de que o Estado deve se preocupar mais com a economia do que com o atendimento das necessidades básicas dos cidadãos. Para isso, ele conceitua o que é a economia do desejo: aquela que trabalha com a falta incessante, que inclusive é responsável pelo alto consumo de supérfluos por determinada parcela da sociedade, enquanto outra parcela ainda está em situação de pobreza ou na linha abaixo da pobreza. Segundo o autor, para que o Brasil se torne um país sem pobreza, é necessário haver um passo em direção à economia da necessidade. Assim, as necessidades básicas de todos serão atendidas e a economia se tornará mais forte.



Infelizmente, existe uma enorme distância entre o discurso esperançoso dos economistas neoliberais e a realidade vivida pela maior parte da população mundial. Apesar de, realmente, ter havido uma diminuição relevante do número de pessoas que vivem na extrema pobreza (as que recebem menos de US$ 1,90 por dia) ao longo das últimas décadas — fato celebrado também por instituições como o Fundo Monetário Internacional, Banco Mundial e outros notórios defensores das políticas de livre mercado e Estado mínimo —, a parcela da população mundial que vive em situação de pobreza (a que recebe menos de US$ 5,50 por dia) é ainda assustadora,2 pois representa quase 50% da população mundial, ou quase 4 bilhões de pessoas.

Mesmo os avanços registrados no caso da diminuição das taxas de extrema pobreza não deveriam ser comemorados ou associados ao “sucesso” do modelo capitalista. E são vários os motivos que levam a essa conclusão. Primeiro porque aconteceram em um ritmo absolutamente desproporcional ao aumento da produção da riqueza mundial (e em muitos casos sem correlação com ele). Um simples cálculo pode demonstrar que o mundo não suportaria a geração de riqueza necessária para, com o modelo capitalista de distribuição de riqueza, acabar com a pobreza. Basta observar que da década de 1960 à década de 2010 a quantidade de riqueza gerada no mundo (PIB Global), já descontada a inflação do período, multiplicou-se por mais de 8 vezes (800%). Se, mesmo multiplicando a quantidade de riqueza gerada no mundo por tantas vezes (o que levou a vários recursos naturais darem sinais claros de esgotamento), temos ainda metade da população vivendo em situação de pobreza, como imaginar um mundo capaz de oferecer os recursos naturais necessários para tirar toda a população dessa situação?

 

Fonte: https://www.worldometers.info/gdp/

 

Fonte: www.researchgate.net/figure/Global-poverty-pyramid-Prahalad-2009_fig3_325704218

 

Pirâmide global de riqueza

Uma visão geral de distribuição de renda (US$)

 

Fonte: www.statista.com/chart/11857/the-global-pyramid-of-wealth/

Em segundo lugar, é importante destacar que boa parte das pessoas que têm saído da situação de extrema pobreza ao longo das últimas décadas é de chineses; são de um país com um modelo econômico diferente do defendido pelos economistas neoliberais, que creditam ao sucesso do capitalismo a diminuição dessas estatísticas.”

2. www.worldbank.org/en/topic/poverty/overview

 

 

O que é maximizado no sistema capitalista não é “utilidade”, esse conceito abstrato, difícil de ser definido, mas relacionado sempre a algo positivo. Aliás, essa correlação justifica o uso do termo e sua capacidade de convencimento de que, quanto maior a utilidade, melhor para todos, chancelando assim toda a lógica do sistema. O que é maximizado no sistema capitalista é o desejo! Não a necessidade! E existe um motivo claro para que assim seja. Tão claro que vem há milhares de anos sendo repetido por todos aqueles que se aventuraram na caminhada espiritual. Mas que parece ter passado despercebido por Marshall, dado que em seu texto comete um deslize enorme bem no final do parágrafo, quando diz “para preencher ou satisfazer seu desejo”. Isso porque, por definição, desejos não podem ser satisfeitos. Necessidades podem. E como o preço será sempre função da vontade de ter mais de alguma coisa para poder adquirir a tal “utilidade marginal”, uma economia que incentiva lucros focará exclusivamente em desejos, esse pote sem fundo, impossível de ser preenchido, ao passo que, se focasse nas necessidades, jamais maximizaria seus lucros.”

 

 

“O papel do Estado como realocador reside em escolher de quem irá tirar riquezas, para quem irá entregar e qual legado deixará como resultado. E, em cada um desses passos, existe a possibilidade de promover a economia da necessidade, ou de abdicar a ela, e de frear ou estimular a economia do desejo. Vejamos um exemplo bem simples.

Imaginemos que um Estado resolva recolher compulsoriamente R$ 1 bilhão das pessoas que vivem sob sua tutela, através de impostos (que tem esse nome exatamente por não serem uma opção, serem uma imposição). Começa aí o processo de escolha: atender as necessidades ou estimular o desejo das pessoas? Isso porque o Estado pode, por exemplo, tirar essa riqueza das pessoas que têm riqueza acumulada em quantidade muito acima daquilo que teriam a necessidade de ter (ricos) e redistribuí-la àqueles que estão com as necessidades mais básicas não atendidas (pobres), ou pode, mesmo parecendo cruel e desumano, tirar daqueles que sequer têm essas necessidades atendidas, para entregar essas riquezas manchadas com sangue e sofrimento aos que não farão qualquer uso dela, senão acumular ainda mais poder e saciar momentaneamente ainda mais desejos supérfluos.”

 

 

“Infelizmente os governantes têm dificuldade de entender que as ações e os investimentos do governo são um enorme instrumento de redistribuição de renda. Talvez porque seja muito mais fácil propagandear o legado de um governo do que o seu “gasto”, este visto pela população, a mesma que personifica o Estado, como desperdício de dinheiro, recursos que somem em algum ralo rumo ao desconhecido.

Uma medida prática, e que teria um impacto gigantesco na capacidade do governo atender com maior velocidade e eficiência as necessidades da população pobre, seria criar regras para somente contratar empresas que seguissem condições mínimas de redistribuição de renda. Por exemplo, empresas em que os donos tivessem de distribuir um percentual grande de seus lucros entre seus empregados, talvez 50% ou mais. Ou empresas em que a diferença entre os maiores e menores salários não ultrapassassem um valor determinado, por exemplo 30x. Empresas que tivessem políticas de remuneração e de contratação auditadas e que garantissem diversidade e iguais oportunidades para todos os grupos da sociedade. Imediatamente, contratando somente as empresas que cumprissem esses pré-requisitos, centenas de bilhões de reais “gastos” pelo governo, passariam a ser distribuídos de maneira muito mais eficiente para maximizar o acesso às necessidades básicas de uma parcela muito maior da população. E o legado continuaria existindo. A população mais pobre ganharia dos dois lados.

O que acontece hoje, infelizmente, é que fica o legado, mas o dinheiro que sai do Estado para contratar os serviços e comprar os produtos que serão utilizados vai quase todo para os donos das empresas que os fornecem. Construir uma escola pode fazer com que R$ 1 milhão vá parar nas mãos de um dono de construtora e R$ 500 mil nas mãos de cinquenta funcionários, ou pode fazer com que R$ 1 milhão vá parar nas mãos de cinquenta funcionários e R$ 500 mil nas mãos de um dono. O legado é o mesmo, a escola. A distribuição de renda e o impacto social, completamente diferente. É assim que o Estado pode exercer a economia da necessidade, focando no legado e no direcionamento (e distribuição final) de seus gastos.”

 

 

“Em uma de minhas viagens para morar nas comunidades pobres do país, pude presenciar um exemplo incrivelmente didático de como muitas vezes contratar um serviço mais barato para o governo pode representar uma economia numa planilha de Excel e um desastre em termo de condições de vida para a população.

Era um quilombo no interior de país. Uma pequena comunidade, com quase 400 anos de história de resistência, onde a principal atividade econômica era o plantio de bananas. Durante vários anos consecutivos, na segunda metade da década de 2000, a comunidade viveu uma melhora constante na condição de vida de seus moradores. Tudo resultado de novos programas de governo que haviam sido implementados para a aquisição e distribuição, em todo o país, de alimentos da agricultura familiar e de pequenas comunidades que vivem dessa atividade. Através dos programas, o governo garantia que compraria desses pequenos agricultores uma quantidade definida de sua produção, a um preço também definido. Os alimentos eram distribuídos para pessoas em situação de miserabilidade, para merenda escolar, para hospitais e outros usos condizentes com a lógica da economia da necessidade.

Como tinham previsibilidade sobre os recursos que receberiam ao longo do ano, essas comunidades passaram a planejar seu desenvolvimento, construindo por conta própria creches, escolas, postos de saúde e melhorando gradativamente sua infraestrutura. Sabendo que poderiam contar com os recursos das vendas garantidas pelo governo, as comunidades vizinhas passaram a se reunir em feiras para trocas de sementes e passaram a fazer intercâmbio de seus moradores com o de outros grupos para aprender as técnicas de produção que mais deram certo. Passaram também a não precisar mais caçar animais nem degradar o meio ambiente para dele extrair recursos para sua sobrevivência.

Até que assumiram novos governantes, adeptos da tese neoliberal. Aqueles que acreditam que a competição e o lucro são os maximizadores da utilidade de um grupo. Os mesmos que olhavam para uma planilha e viam milhões de reais sendo gastos com alimentos! Veja bem, com os alimentos não era gasto nada. Nenhum pé de alface, cacho de banana ou folha de couve recebeu um real sequer. Parece piada, mas não é, é assim mesmo que as pessoas imaginam os gastos do Estado. Quem recebia o dinheiro todo “gasto” pelo Estado eram as pessoas dessas pequenas comunidades, todas elas pobres e com carências em suas necessidades básicas. E eis que os novos governantes tiveram uma ideia “brilhante”. Para que garantir um preço de compra para esses agricultores, isso é estúpido!, provavelmente pensaram. Podemos gastar muito menos em alimentos se colocarmos esse pessoal para competir! Vamos passar a comprar esses alimentos por um processo competitivo de licitação.

Pronto! Com essa ideia estúpida foram capazes de destruir tudo o que foi construído ao longo de quase uma década. Imediatamente após a medida, todas as comunidades vizinhas, que eram parceiras e amigas, passaram a ser adversárias, disputando os mesmos contratos. As feiras de trocas de sementes acabaram. Os intercâmbios entre os moradores também. Os fazendeiros da região, com maior patrimônio, acesso a linhas de financiamento muito mais baratas, mais terras (e consequente possibilidade de escalar a produção) e maquinário mais avançado, passaram a ganhar os contratos. Os moradores das pequenas comunidades passaram a deixar a comunidade — onde trabalhavam e podiam estar próximos de seus filhos e da família — para trabalhar em regimes muitas vezes de semiescravidão para esses fazendeiros. Em situação de miséria, os moradores voltaram a ter de caçar os animais e a degradar o meio ambiente para conseguir sobreviver. O caos voltou a reinar nas comunidades. Mas as planilhas de Excel mostravam que milhões de reais haviam sido economizados com os alimentos! Um desastre total, e um prejuízo incalculável para a sociedade.

Esse exemplo real mostra perfeitamente a dificuldade de as pessoas de verem os gastos do Estado como uma redistribuição de recursos. Provavelmente os governos justificarão que conseguem agora comprar mais alface e couve com as verbas públicas. Só não sabem que existem milhares de pessoas que agora não podem mais comer alface e couve porque o dinheiro passou a ir todo parar nas mãos de fazendeiros que já tinham todas as suas necessidades básicas atendidas.”

 

 

“Infelizmente o que vemos, porém, é um Estado que estimula a guerra. Um Estado com enorme comprometimento com a economia do desejo e seu impulsionador, que joga lenha para alimentar a fogueira dessa guerra. É isso que faz um Estado cuja função, como defendem os pensadores neoliberais, é estimular a iniciativa privada. Sua função deveria ser a de regular e controlar a iniciativa privada. Na verdade, e muitos me crucificarão por dizer isso, sua função deveria ser também a de frear a iniciativa privada.

Isso porque a iniciativa privada não precisa jamais ser estimulada. Sua natureza já é a de querer crescer sem limites. Se nada for feito pelo Estado, será em rumo ao maior crescimento e competição possíveis que ela marchará. E é exatamente direcionando, colocando limites e, quando necessário, freando, que o Estado deve atuar.

E o Estado pode exercer essa função de duas maneiras. A primeira delas, com um contrato social, um conjunto de leis, que cumpra essas funções. Algo bem distinto do que vemos hoje em boa parte dos países capitalistas, incluindo o Brasil, onde o Estado define leis para estimular a guerra e beneficiar aqueles que mais lucram com a economia dos desejos. Um resultado previsível ao observar que aqueles que foram eleitos para definir as regras dessa guerra são, em boa parte (normalmente em maioria), financiados e ligados aos grandes grupos econômicos. A importância de ter o comando dessas regras que moldarão a guerra (controlando-a ou estimulando-a) é tão grande, que hoje os grandes empresários passaram a financiar escolas de formação de políticos. Uma fábrica de representantes que cumpram o papel desejado de estimular a guerra que tanto lhes traz lucro.

A segunda maneira que o Estado tem para diminuir os efeitos da guerra é estimular a paz. E isso não pode ser feito através das leis. As leis servem somente para controlar a guerra. A paz só pode ser alcançada através da função de redistribuidor de riquezas e gerador de legados que o Estado tem o dever de cumprir. E é cumprindo essa função, 100% focado em suprir as necessidades daqueles que não as tem atendidas, que pode dar sua maior contribuição para uma sociedade mais justa, humana, forte e saudável. Costumo dizer que um governo que tem como foco de suas políticas os ricos (estimulando a iniciativa privada e a economia do desejo) acaba com uma nação. Um governo que tenta governar para todos (estimulando a iniciativa privada, mas também com alguma vocação social) governa para os ricos. E um governo que governa para os pobres (permitindo a iniciativa privada, controlando seus impulsos e focando suas atividades e políticas na economia da necessidade) governa para todos.

Os exemplos no mundo são fartos. Países que têm o Estado cumprindo a função de redistribuir riqueza dos indivíduos mais ricos para os mais pobres e têm seus “gastos” focados em programas sociais, criados para atender as necessidades da população, vivem uma guerra muito mais amena. Nesses países, todos os efeitos da guerra são menores. Edward Glaeser, autor já citado neste livro, nos mostra, em seu trabalho, como países que estimulam a economia do ódio são mais corruptos e têm pior qualidade de governo.

A fórmula de governar para os pobres e permitir, de maneira controlada e com limites, as atividades dos ricos, para maximizar a paz presente em uma sociedade, não é nova. Podemos olhar todos os outros rankings que trazem indicadores de “paz” de uma sociedade e verificar os países que as lideram. São sempre aqueles que conseguem atender às necessidades básicas de seus habitantes através de um processo impositivo (através de impostos que redistribuem a riqueza, e não da competição) e que tem regras claras para a iniciativa privada atuar. São os líderes nos rankings de educação, alfabetização, saúde, saneamento, menor corrupção, menores índices de violência e qualquer outro indicativo que traga informações sobre necessidades básicas atendidas e convívio pacífico dos cidadãos. Não são os mais ricos ou os que têm maior crescimento de seu PIB. Mas esses, os que focam na economia do desejo e no crescimento máximo de sua economia, raramente ocupam os primeiros lugares nesses rankings. Os Estados Unidos são um ótimo exemplo, já citado em meus dois últimos livros. Apesar de gerar mais riqueza do que qualquer outro país no mundo, apresenta péssimos indicadores de saúde, educação, corrupção e violência, quando comparado, por exemplo, à maior parte dos países europeus. Lá nos Estados Unidos, reina a economia do desejo. O Estado é um fomentador de guerras, sejam elas entre as empresas de sua economia, sejam elas contra outros países. Os recursos, apesar de absurdamente altos, são consumidos pelo pote sem fundo dos desejos e faltam em quantidades assustadoras para as necessidades de boa parte da população. Muitos se assustam ao saber que os EUA são o país com maior taxa de pobreza entre todos os 35 membros da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).15 No país da guerra, não é surpresa não haver paz.”

15. https://www.oecd-ilibrary.org/sites/8483c82f-en/index.html?itemId=/content/component/8483c82f-en

 

 

“Respondendo a uma pergunta outro dia, em uma de minhas palestras, disse que não acreditava que morreria num mundo melhor do que este em que vivo hoje. Provavelmente será ainda mais cruel e injusto do que é. Com mais desigualdade, sofrimento e dor. E me perguntaram então por que eu não desistia. Contei a eles então a história do peregrino que todos os anos passava por uma pequena cidade, famosa por seus governantes e empresários corruptos, e via um homem em pé no banco da praça, discursando sobre aquelas injustiças para quase ninguém. Numa dessas viagens, o peregrino não aguentou a curiosidade e foi falar com o homem. Perguntou-lhe: “Eu passo aqui todos os anos e vejo você discursando contra os corruptos e cruéis governantes da cidade. Será que não percebeu que jamais irá mudá-los?” Eis que o homem então lhe responde: “Eu sei disso. Mas no dia em que eu parar de falar é sinal de que eles terão me mudado.” Abandonar a luta é deixar-se dominar pela guerra. Não desistir é fazer a derrota impossível.

A vida é caminho, passagem, páscoa. Todas as religiões parecem concordar nisso. Dela, levamos somente (se é que levamos algo) a transformação pessoal que pudemos experimentar. É esse o motivo de jamais abandonar a luta. Mesmo sabendo que, estando em uma guerra, e contra o lado que tem as armas mais fortes, esta é uma opção pelo sofrimento. São João Crisóstomo, há pouco citado, dizia que, quando resolvemos lutar por uma vida mais justa, causamos três possíveis reações nos outros. A alguns inspiramos com nosso brilho dos olhos e entrega à jornada. Esses passarão também a lutar conosco. Essa é a reação que mais buscamos causar. Por outros, não seremos sequer notados, tamanho seu envolvimento em seu mundo egoico e egoísta. Existe um terceiro grupo, ainda, que irá nos atacar violentamente. É o grupo que lucra e se beneficia com as injustiças do mundo. Essa última reação, a que menos queremos ter. São João Crisóstomo, porém, nos diz que apesar de não desejada, é exatamente ao sofrer esse tipo de reação que podemos ter a certeza de estarmos acertando o alvo. E a vida é feita para acertarmos o alvo. A palavra “pecar” significa errar o alvo.

Por fim, podemos estar errados em tudo aquilo que acreditamos e defendemos. Todo este livro pode ser falho, com teses que não resistirão nem ao tempo e nem às críticas. Talvez seja até este seu destino mais provável. Foi o destino de quase tudo que foi produzido pelo homem até hoje. Mas, com o amigo Frei Betto, que muito me ajudou com uma conversa num momento de muito sofrimento nesta jornada que escolhi trilhar, aprendi algo que passei a sempre lembrar nos momentos difíceis. Disse-me ele: “Querido Eduardo. Espero que Deus lhe conceda na vida a graça que me concedeu. E que você perceba que é melhor estar errado ao lado dos oprimidos do que ter a pretensão de estar certo ao lado dos opressores.””

quarta-feira, 19 de outubro de 2022

A Incrível e Fascinante História do Capitão Mouro, de Georges Bourdoukan

Editora: Casa Amarela

ISBN: 978-85-8682-106-6

Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 218

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Sinopse: O autor narra a saga do muçulmano Saifudin, construtor das fortificações do Quilombo dos Palmares, e de seu amigo, o judeu Ben Suleiman. Fala também do senhor de engenho Epaminondas Conde e de seu amor pelo escravo Gaspar; de Zumbi e de uma de suas mulheres, a branca Maria Paim, tendo como cenário a Capitania de Pernambuco, a Inquisição, a revolta dos escravos e a epidemia do mal-de-bicho. Transcrevem-se diários de bordo dos navios negreiros e explica-se o significado da letra F e da cruz, gravadas com ferro em brasa na testa e no peito dos escravos. Centrando a narrativa no personagem Saifundin – que se juntou a Zumbi e teve participação na destruição do Quilombo dos Palmares – o autor traz à tona a mentalidade e o ambiente predominantes no país à época.


 

“— Vocês sabem que amo meus escravos como amo meus animais. Mas de vez em quando os negros se excedem. Quando isso acontece, mando cobrir a cara do faltoso com uma lata. Deixo alguns buraquinhos para ele respirar. Assim ele queima a cara no sol mas continua intacto. Não posso estragar uma mercadoria valiosa.”

 

 

“— Queimem as choupanas!!!

Chegaram atirando. Eram brancos, mas havia muitos negros entre eles. Não encontraram resistência porque os guerreiros haviam saído. Nem por isso foram menos brutais.

Animais mortos, velhos, mulheres e crianças acorrentados. O que sobrou da aldeia o fogo consumia. A fumaça atrairia os guerreiros. Não era outra a intenção dos escravistas. Sabiam que os homens voltariam rapidamente assim que vissem a fumaça e prepararam-se para recebê-los. As mulheres e as crianças serviriam de escudo.

— Peguem os bebês e as velhas! — gritou o chefe do grupo.

Sempre agiam assim. Por temer uma reação dos guerreiros, escolhiam para sacrificar aquilo que consideravam mercadoria de menor valor. Criança de colo e velho, que no entender deles dão muito trabalho e não têm valor comercial.

Quando os primeiros guerreiros apareceram, um negro forte, ao lado de um branco, gritou num dialeto para que eles se rendessem. Não deram a menor atenção. A primeira lança que partiu foi a senha para que os bebês e os velhos fossem degolados. A brutalidade do ato e alguns disparos convenceram os guerreiros. Entregaram as armas, temendo pela vida dos restantes.

Muitos corpos espalhados pelo chão. Os prisioneiros são colocados em fila, acorrentados pelo pescoço e pelos pés. Os feridos mal podem se arrastar. Alguns chutes e pancadas os convencem a caminhar.

— De pé, seus safados! — gritou um branco.

— Estão fazendo corpo mole! — gritou outro. — Vou mostrar qual é o castigo para quem faz corpo mole!

Puxou de um punhal e cortou a orelha do caído. O sangue jorrou.

— Não estraga a mercadoria! Não estraga a mercadoria! — gritou o líder.

— Esta mercadoria já está estragada, não tem mais jeito. Ele está muito ferido.

— Então deixe-o, que não temos tempo a perder.

A punhalada certeira no coração calou o ferido.

Chicotadas, chutes e pauladas colocaram os últimos recalcitrantes na fila. Crianças choravam, mulheres lamentavam, o chicote fazia todos se calarem.”

 

 

“Conversavam ainda quando o comandante do barco lhes gritou para darem uma olhada na praia, cheia de escravos.

— O que está acontecendo? — perguntou a um homem que corria esbaforido até o local.

— Você não pode perder este espetáculo — respondeu o homem.

Na praia, escravos recém-desembarcados e acorrentados ouviam o leiloeiro explicando por que estavam ali.

— Vocês vão ver o que acontece com aquele que tenta fugir ou desrespeita o seu senhor.

A um sinal seu trouxeram um escravo com as mãos acorrentadas para trás. Estava com a letra F gravada na testa e sem uma das orelhas.

— O que significa a letra F? — perguntou Saifudin.

— Fugitivo — respondeu Ben Suleiman. — Quando eles o recapturam, gravam a letra F com ferro em brasa. Quando foge pela segunda vez, cortam uma de suas orelhas.”

 

 

“Quando retornavam, Saifudin perguntou a Ishak que história era aquela de o Ribamar ser absolvido porque o escravo não confessou.

— Nesta terra, quando um branco importante comete um crime, pode apresentar um escravo para ser interrogado em seu lugar. Este sofre todo tipo de tortura para confessar, mesmo não sabendo do que se trata. Se não confessa, seu amo é inocentado.

— E se o escravo, não resistindo às torturas, confessa, o que acontece?

— Aí o seu dono é condenado. Mas é o escravo quem cumpre a pena em seu lugar.

Isto a história registra.

— São loucos esses nazarenos!

— Seres humanos. Apenas seres humanos.”

 

 

“Enquanto comiam, Saifudin comentou com Zumbi sobre índios e alguns brancos que havia visto.

— O que fazem aqui?

— Eles vivem aqui.

— Quem são?

— Os brancos — respondeu Zumbi — eram pequenos proprietários que não puderam pagar suas dívidas. São os sem-engenho ou sem-terra. Os índios tiveram suas aldeias invadidas e destruídas pelos brancos. São os sem-aldeia. Os negros que vivem aqui são os sem-correntes.

Saifudin apontou para dois mulatos que discutiam entre si, disputando uma ave.

— E aqueles, quem são?

— São sem-vergonha mesmo — respondeu Zumbi. — Vivem discutindo e nunca dividem suas coisas. Mas são excelentes guerreiros.”

 

 

“— Está confirmado, mas Alláh sabe mais — falou Saifudin.

— O que está confirmado? — perguntou Ben Suleiman.

— O que os nabateus diziam. É impossível possuir bens e ser livre ao mesmo tempo. Por isso proibiam plantar trigo, árvores frutíferas e construir casas. Entendiam que não era possível conservar esses bens sem sacrificar a liberdade.”

 

 

“Raríssimos os brancos que conseguiam identificar Zumbi. Para eles, todos os negros eram iguais, mas sabiam tratar-se de um grande guerreiro. Gozava de prestígio entre alguns fazendeiros da região de Porto Calvo, que viviam em dificuldades por causa dos tributos que a Coroa estava sempre exigindo e aumentando.

A história dessa sobrecarga de tributos é mais ou menos a que segue.

O rei de Portugal, dom Sebastião, foi convencido pela Igreja Católica a invadir o norte da África e jogar os muçulmanos no mar. Ao invés do veni, vidi, vici (“vim, vi, venci”, palavras que Júlio César pronunciou ao anunciar sua vitória sobre Farnaces em 47 a.C.), o que se viu na Batalha de Al Kácer Quibir, no Marrocos, foi o feci quod potui (“fiz o que pude”) e terminou com hic jacet (“aqui jaz”).

A Igreja convenceu o povo de que o rei não havia morrido, mas sido poupado por Deus, e que a qualquer instante ressurgiria vitorioso. Enquanto esperavam pela volta de dom Sebastião, o rei da Espanha, com apoio da Inquisição, declarou-se também rei de Portugal, juntando as duas coroas. A Espanha era uma nação muito rica graças ao ouro de suas colônias na América. E usou essa riqueza para expandir a religião católica e fazer guerras. Resolveu brigar com a Inglaterra, França e também com a Holanda.

Apesar de muito rica, a Espanha era dependente dos mercados externos, pois, com a expulsão dos muçulmanos e dos judeus, a Inquisição passou a governar de fato, deixando o país à deriva. A armada espanhola, que ostentava o título de invencível, foi destruída pelos ingleses e a guerra com a França durou trinta anos. A riqueza foi se diluindo, a penúria aumentando. A alternativa foi recorrer ainda mais aos tributos. Portugal e suas colônias se desdobravam para abastecer os cofres espanhóis. Até que em 640 os portugueses resolveram dar um basta proclamando sua independência. Proclamada a independência, os portugueses começaram a brigar pela linha sucessória ao trono. Os pretendentes acusavam-se de bastardos, hemiplégicos, homossexuais e portadores de deficiências mentais.

No que todos tinham razão.

Os colonos brasileiros, apesar de terem gasto o que e o que não tinham para expulsar os holandeses (que em represália à guerra com os espanhóis haviam invadido o Brasil), continuaram abastecendo os cofres reais portugueses.

Finalmente, em 1668, Portugal celebrou a paz com a Espanha. Mas as intrigas e a luta pela sucessão em Portugal somente terminariam em 1683 com a proclamação de dom Pedro II rei de Portugal, depois de uma série de acordos a França e a Inglaterra.

A política mercantilista e protecionista portuguesa foi abolida depois de tais acordos. Os críticos da época afirmaram que isso resultou na destruição da indústria têxtil portuguesa. Mas se esqueceram de dizer que a aristocracia portuguesa nunca se preocupou porque estava acostumada a mamar nas tetas do reino.

Portugal, que até então dominava os mares e era considerado uma grande potência, nunca mais se recuperou. Para agravar ainda mais essa situação, a Inquisição, que jamais perdoou os portugueses pela independência, começou a agir. Seus inquisidores vieram até o Brasil, paralisando completamente a produção de açúcar.”

sexta-feira, 14 de outubro de 2022

O amigo de infância de Maigret, de Georges Simenon

Editora: L&PM

ISBN: 978-85-254-1907-1

Tradução: Rejane Janowitzer

Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 176

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Sinopse: Em O amigo de infância de Maigret, o inspetor vê-se às voltas com um conhecido, colega dos bancos escolares, que o procura devido ao assassinato de sua amante. No decorrer da investigação Maigret constata que a vítima era mantida por mais quatro amantes...



“– Mas você não está achando que eu a matei, certo?

– Por que não?

– Você me conhece...

– Vi você pela última vez há vinte anos, na Place de la Madeleine, e, antes disso, só no liceu de Moulins...

– Tenho cara de assassino?

– Não leva mais do que alguns minutos, alguns segundos, para alguém se tornar um assassino. Antes, se é um homem como qualquer outro...”

 

 

“– Sua mulher é ciumenta?

– Sem dúvida, mas não de uma maneira particularmente feroz... Ela suspeita que eu tenha de tempos em tempos uma aventura, em Marselha ou em Paris...

– E o senhor tem, apesar de Josée?

– Pode acontecer... eu sou curioso, como todos os homens...”

 

 

“O filho do confeiteiro nunca fora o que se pode chamar de amigo. Já no liceu, o jovem Maigret experimentara por ele sentimentos mistos.

Florentin era engraçado e fazia a classe rir, não hesitava em se arriscar a uma punição para divertir os colegas.

Mas não havia na sua atitude uma espécie de desafio, ou mesmo de agressividade?

Ele zombava de todo mundo, imitava comicamente as expressões e os tiques dos professores.

Suas tiradas eram cômicas. Esperava o efeito delas sobre os rostos e ficava decepcionado se os risos não explodiam.

Já naquele tempo, não vivia à margem? Não se sentia diferente? E não era por causa disso que seu humor era ferino?

Em Paris, já homem, ele continuara o mesmo, conhecendo épocas mais ou menos faustosas e épocas sombrias, inclusive a prisão.

Sem se confessar derrotado, continuava mantendo a pose e, mesmo dentro de um terno gasto, uma elegância natural.

Ele mentia sem se dar conta. Tinha sempre mentido e não se abalava quando seu interlocutor percebia. Parecia dizer:

– Mas foi um achado, convenhamos!... Pena que não tenha funcionado...

Decerto frequentava o Fouquet, outros bares da Champs-Elysées e vizinhanças, e os cabarés, endereços em que se pode aparentar uma falsa segurança.

No fundo, Maigret suspeitava que Florentin era um atormentado. Seu papel de cômico não passava de uma fachada para se defender de uma verdade implacável.

Era um perdido, um perdido típico e, o que era mais grave, mais lamentável, um perdido ficando velho.”

 

 

“Jornalistas esperavam Maigret no corredor e ele se mostrou menos amável do que habitualmente.

– Está seguindo uma pista, senhor comissário?...

– Sigo várias...

– E ignora qual é a certa?

– Exatamente...

– Crê que se trata de um crime passional?

Quase respondeu que não existem dramas passionais. Pois, no fundo, era exatamente o que ele pensava. Tinha aprendido durante sua carreira que o amante desprezado ou a mulher abandonada matam menos por amor do que por orgulho ferido.”