Editora: UNESP
ISBN:
Tradução (coord.): Hilário Franco Júnior
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 754
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Sinopse: Ver Parte
I
“O suposto poder dos feiticeiros não tem, a
nossos olhos de historiadores ou de etnólogos, realidade objetiva: lançar um
malefício não seria, pensamos nós, a causa objetiva da morte de um indivíduo ou
da precipitação de neve, não importando o que diga o discurso autóctone. Mas o
imaginário, para o historiador ou o etnólogo, não deixa de ser uma realidade
social que possui efeitos objetivos e materiais. A convicção do feiticeiro de
possuir poder e, paralelamente, a convicção de suas supostas vítimas de serem
efetivamente objeto de um sortilégio, delineiam os papéis sociais, os
comportamentos. Além disso, a acusação de malefício proferida contra um
vizinho, a violência física exercida contra ele e, em certos casos, o
desencadeamento de uma repressão institucional contra supostos feiticeiros, são
consequências materiais daquilo que na origem nada mais é do que uma realidade
imaginária. Assim, a feitiçaria mostra-nos de maneira exemplar como o
imaginário, o fantasma, a crença nessas entidades, podem ser forças históricas
de primeira importância.” (Jean-Claude Schmitt)
“Não existe espírito de síntese pior que o do
senso comum, forma de aproximação das realidades sociais que utiliza como
ferramentas naturais e acima de qualquer suspeita as grandes categorias do espírito
público contemporâneo: política, economia, direito, religião, arte, língua,
cultura, família etc. Sintagmas como “lutas políticas”, “desenvolvimento
econômico”, “preocupações religiosas”, são ingenuamente considerados como
dotados de um valor intrínseco, perpétuo, independente da sociedade
considerada. Se pensamos que o historiador deve examinar minuciosamente cada
grande forma de sociedade ou de civilização para tentar encontrar as
articulações específicas, de maneira a explicitar seu modo de funcionamento
original e poder expor assim sua dinâmica própria, não se pode omitir uma fase
de crítica radical desse sistema de senso comum. Isto a fim de poder elaborar
empiricamente, em cada caso, um repertório das mais importantes formas
originais de relações sociais e de atividades, graças ao qual se possa esperar
construir um jogo de hipóteses o mais próximo possível da sociedade
considerada, permitindo dessa forma obter uma imagem adaptada e realista de seu
funcionamento, em suma, uma imagem explicativa.” (Alain Guerreau)
“No estado atual da pesquisa, a noção de
feudalismo soa antes de tudo como o apelo a uma escolha da qual é inútil
pretender se esquivar: ou nos acomodamos ao espírito de síntese mais difundido,
o do senso comum, que se refere aos efeitos do acaso e dos grandes homens, que
a respeito de tudo invoca a infinita diversidade do real e a eternidade da
psicologia humana, que acredita, portanto, na autossuficiência das narrativas e
das pequenas construções locais; ou então percebemos a necessidade prévia de
esclarecer a lógica geral de uma civilização para poder compreender o sentido
de seus elementos e procuramos construir as noções e as hipóteses que permitem,
lenta e laboriosamente, apreender fragmentos de coerência nessa civilização,
evitando, assim, atribuir relações que lhe são alheias. Cada um que decida.
Livremente, se possível.” (Alain Guerreau)
“O conceito de “guilda” abarca duas noções
bem diferentes, quer nos posicionemos do ponto de vista das fontes ou da
pesquisa histórica. Essa dualidade sustentou uma certa ambiguidade. O conceito,
tal como os pesquisadores o compreendem, encontra seus principais elementos no
mais antigo registro da palavra “guilda” designando um grupo social, ou seja,
no capitular que Carlos Magno assinou em Herstal, datado de 779: “Quanto aos
juramentos entre membros de guildas, eles estão proibidos a todos. Quanto às
suas esmolas em caso de incêndio ou de naufrágio, seus acordos não devem
envolver juramentos” (c. I6, MGH Capit. I, S.5I). As guildas são, portanto, grupos
criados por acordo, consentimento e contrato; são “associações livres” (O. von
Gierke). Consequentemente, elas concluem acordos (convenientiae) e
dotam-se de um estatuto. O consentimento e o contrato repousam num juramento
mútuo promissivo, ou seja, que envolve comportamentos e ações futuros. Esse
juramento faz das guildas associações juramentadas – coniurationes, para
retomar o vocabulário das fontes medievais –, mas elas não agradam ao poder
estabelecido, que se empenha em proibi-las. O capitular que nos interessa aqui
indica, além disso, que a constituição de uma guilda tem por objetivo o auxílio
mútuo em caso de indigência, incêndio e naufrágio. Trata-se, então, de um
sistema de socorro mútuo, destinado a remediar todas as situações de angústia,
oferecer uma proteção recíproca e uma assistência social em sentido amplo.
Estas compreendem, como é o caso aqui, elementos imanentes e profanos, mas
também elementos transcendentes e religiosos, sempre presentes. As guildas se
constituem e continuam a existir para assegurar auxílio mútuo coletivo numa
situação de desordem.” (Otto Gerhard Oexle)
“As
guildas da Alta Idade Média: guilda e comuna
A exemplo das guildas clericais galo-francas
dos séculos VI e VIII, é no campo que são encontradas as guildas locais da
época carolíngia, que o capitular de Herstal foi o primeiro a criticar. Essas
guildas reuniam leigos e eclesiásticos, homens e mulheres, e substituíam as
estruturas sociais do vilarejo, da paróquia e do senhorio.
As mais antigas guildas profissionais são as
dos mercadores itinerantes, as primeiras das quais aparecem no começo do século
XI (Tiel, no Reno inferior, por volta de I020) e cujos estatutos (final do
século XI, Saint-Omer, Valenciennes) são os mais antigos da Europa continental
que chegaram até nós. Eles provam, uma vez mais, que o primeiro motivo para a
constituição de uma guilda era a desorganização local. De fato, aqueles
estatutos organizam as questões de proteção e assistência mútuas em matéria de
seguro (no caso de perda de mercadorias por confisco, roubo ou acidente
ocorridos durante uma viagem), bem como ajuda diante de tribunais estrangeiros.
Eles definem também as prerrogativas dos membros da guilda sobre o mercado
local e organizam a vida interna do grupo: cooptação, direitos de adesão, lista
de membros, leitura regular dos estatutos, celebração de reuniões, bebedeiras,
refeições e banquetes, ofício divino e celebração dos mortos, eleição do
presidente e dos membros do tribunal da guilda, competências e procedimentos
desse tribunal, necessidade de vivenciar sentimentos fraternais e de se
comportar e agir de acordo com eles. Enfim, esses estatutos regulamentam as
relações do grupo com o ambiente urbano no qual as guildas de mercadores já
estão integradas no final do século XI: obras de caridade e participação nas
tarefas comunitárias da cidade, como a manutenção das ruas e das
fortificações.” (Otto Gerhard Oexle)
“A importância das guildas na história
ocidental
Os grupos sociais encarnam sempre uma
“cultura” específica sobre a qual se
apoiam, garantindo ao mesmo tempo sua continuidade; essa cultura encobre
certas normas e valores, engendrando ações sociais que são, por sua vez, função do comportamento alheio. Essas ações
têm resultados objetivos, materiais ou imateriais, como as instituições. O ethos e os efeitos
específicos da associação
juramentada repousam sobre a ideia de
ajuda mútua (mutuum adiutorium,
mutuum consilium et auxilium). A associação juramentada tem como
membros indivíduos conscientes de sua fraqueza no seio da ordem política ou social, e buscam unir-se
por que ficaram muito tempo isolados
e ainda estão. O primeiro meio de constituição do grupo é o
juramento recíproco, cuja importância é difícil de ser supervalorizada. De
fato, somente a força desse juramento e
da “conjuração” que ele cria permite ao indivíduo libertar-se dos laços sociais
que o prendem, estabelecendo outros. Esses novos laços caracterizam-se
por um equilíbrio e uma concordância de interesses, pelo
consentimento e pela conclusão de um contrato, e, enfim, pela estipulação de
objetivos livremente definidos. As pessoas externas sempre reconheceram
e temeram esses efeitos das associações juramentadas.
Essa profunda ancoragem social e as múltiplas
repercussões que as conjurationes tiveram na história do Ocidente
permitem explicar as consequências que ultrapassam amplamente a história do
Ocidente, e cujas formas mais impressionantes são, sem dúvida, a comuna urbana
e a Universidade, além da fase de dissolução das corporações ocorrida no final
do Antigo Regime e sob a Revolução. Da mesma maneira, as associações de
companheiros do final da Idade Média e do começo da época moderna exercerão
seus efeitos até sobre o nascente movimento operário. Contrariamente ao que
muitas vezes se afirma, não se deve enxergar nos princípios de associação
moderna – ingresso espontâneo, igualdade social, regras de conduta
independentes – o reflexo das aspirações burguesas à emancipação e um sintoma
do processo de modernização que se manifestou no começo do século XIX. Esses
elementos, na realidade, acompanharam a evolução da civilização ocidental desde
suas origens.
Por outro lado, as associações juramentadas
influenciaram os processos mentais, sociais e políticos da época moderna, e em
especial marcaram as ideias políticas e sociais. Isso é essencialmente verdade
no caso do “republicanismo “e do “movimento comunal” modernos; o papel das
associações medievais na constituição delas não foi ainda suficientemente
reconhecido e explicado. É sobretudo na história das ideias políticas e sociais
que a experiência histórica das guildas e das comunas tomou vários aspectos;
basta, para nos convencermos, evocar Jean Bodin e Althusius, Hegel e
Tocqueville, Proudhon e Kropotkin. As controvérsias do final do século XVIII e
do começo do século XIX sobre a liberdade de empreendimento e a liberdade de
associação sempre se referem àquelas experiências históricas. A criação na
Europa de uma sociologia da cultura por instigação de Émile Durkheim, Georg
Simmel, Ferdinand Tönnies e Max Weber foi feita em grande parte por meio de uma
reflexão sobre as guildas e as corporações medievais.
A apreensão dessas realidades históricas
permite, em suma, compreender a cultura e a sociedade da Idade Média, afastando
-se dos habituais esquemas de interpretação. De fato, continua-se muitas vezes
a apresentar a Idade Média como a era da “comunidade”, uma época na qual o
indivíduo, não podia desempenhar nenhum papel na sociedade porque estava
subjugado pelas ordens e pelos grupos nos quais ele se dissolvia. Contudo, a
história das associações medievais revela que a feitura de contratos
independentes e individuais foi desde a origem uma característica da sociedade
medieval, profundamente marcada por eles.” (Otto Gerhard Oexle)
“Metas e métodos do historiador
Na Idade Média, o historiador frequentemente
se oculta atrás de sua obra. Para compreender o que ele quis fazer, não há
outro recurso senão analisá-la. Porém, com mais frequência do que se poderia
imaginar, o autor aparece na narrativa e, sobretudo, cuida de dizer, em um
Prólogo, quais foram suas metas e métodos. Esses prólogos dos historiadores
foram por muito tempo negligenciados. Via-se aí apenas um punhado de lugares-comuns,
de que se podia até dispensar a leitura e a publicação. Na verdade, só o estudo
atento dos prólogos permite perceber a que ponto a obra histórica era uma
construção consciente. Graças a eles, vê-se bem melhor o que era a história
para os historiadores e como a fizeram.
A história é um relato simples e verdadeiro,
visando transmitir à posteridade a memória do que passou. A liturgia também
tinha por tarefa, a cada Ano, restituir à lembrança a vida de Cristo e dos
santos. Como a liturgia, a história e instrumento da memória. Naquele tempo que
que queria se edificar sobre o passado, a tradição e a memória não é de
surpreender que se tenha podido fazer da história “o fundamento de toda
ciência”. O paradoxo é que, nas escolas e universidades, ensinavam-se as sete
artes liberais, a teologia, o direito e a medicina, a história nunca foi aí
considerada uma disciplina completa. É um bem? É um mal? A história aproveita
apenas indireta e incompletamente os enormes progressos que a produção
intelectual então conheceu. Porém, soube melhor preservar suas perspectivas e
sua especificidade.
Naturalmente, a história não podia conservar
a memória de tudo o que havia passado. Só devia fixar o que era digno de
lembrança e relatar coisas memoráveis. Isto é, os prodígios, as guerras, os
atos de príncipes e santos. No fim do século XII, Geraldo de Gales, em sua Topographia
hibernica, pretendia
também estudar os costumes dos irlandeses. Curiosidades antropológicas
semelhantes emergiram depois, aqui e ali, entre alguns franciscanos e
mercadores. Nunca foram preocupação da erudição histórica.
Frequentemente, é para dizer o que Deus havia
feito, gesta Dei, que o
historiador escrevia. Podia também, muito simplesmente, querer conservar a
memória do passado para obedecer a sua natureza de homem. “Um homem sem
cultura, que ignora o passado, não passa de um estúpido bestial”, dizia Mateus
Paris, no século XIII. Mais
precisamente, o historiador podia querer extrair exemplos do passado. Na Idade
Média, muitas outras espécies de obras tiveram a mesma preocupação com o
exemplo. Em particular, hoje se conhece bem a importância das recolhas de exempla, que os clérigos usavam para
alimentar seus sermões. Porém, numerosos livros de história, a começar pelo Livro
de ações e palavras memoráveis,
de Valério Máximo, que tanto sucesso teve na Idade Média, nada mais
foram, para seus autores e leitores, do que recolhas de exemplos. Revelando os
nomes dos que tinham sido heróis de algum exemplo por seguir, o historiador
tinha um outro objetivo: salvá-los do esquecimento, colocar ao abrigo do tempo
sua honra e renome. Igualmente, em relação aos heróis desgraçados, os exemplos
por evitar: a história estava lá para perpetuar a infâmia deles. O historiador
tinha, pois, um formidável poder. E escrevendo os nomes no grande livro da
memória, ele era, para a eternidade, o artesão da glória e da vergonha.
As
fontes dos historiadores
O historiador compunha sua narrativa com
aquilo que tinha visto, ouvido e lido. Por muito tempo, ele preferiu a tradição
oral às fontes escritas. Quando Flodoardo, no século X, dispunha de um
testemunho oral, negligenciava os arquivos, que lhe estavam, contudo,
facilmente acessíveis. No século XII, para falar de um passado remoto, os
historiadores não hesitavam em utilizar as tradições orais. Não era
ingenuidade. É que sua erudição não censurava isso. Por que, aliás, em tempos
de oralidade, teriam eles reagido como um sábio do século XIX ou XX? E nossa
crítica não demonstrou que os escritos de que eles dispunham eram
frequentemente tão pouco confiáveis como os relatos orais?
Ainda assim, os historiadores dos séculos XII
e XIII, mesmo confiando mais na memória dos homens do que atualmente
ousaríamos, estavam cada vez mais convencidos de que a memória era frágil (labilis memoria), era
fugaz (fugitiva memoria). Por
isso, os historiadores tinham o dever de confiar à escrita a lembrança do
passado, a fim de transmiti-lo à posteridade. E se, naturalmente, utilizavam os
testemunhos orais para contar o passado recente, quanto mais dele se afastavam,
mais deploravam as falhas da memória. Planejando no início do século XIV
escrever a história de sua ordem, o dominicano Bernardo Gui confessava sua
amargura: “Há certo número de coisas que eu queria saber sobre os primeiros [de
nós], mas não encontrei ninguém de quem pudesse obter a verdade, porque os
primeiros, que presenciaram as coisas, estão mortos, e o tempo passado faz que
certos anciãos que ainda vivem tenham perdido a memória ou se lembrem apenas
através de uma névoa, como em sonho”. Desde o final do século XII, Gautier Map
notara que a memória oral cobria no máximo cem anos. É o que ele chamava seu
tempo, a época moderna. E, nos últimos séculos da Idade Média, os historiadores
com frequência distinguiam os tempos modernos, que a frágil memória dos homens
podia ainda alcançar, dos tempos antigos, cuja obscuridade só a escrita podia
penetrar.
Exatamente como hoje, os historiadores
pretendiam utilizar documentos de arquivos. Além disso, eram sempre eles que,
para defender os direitos de seu mosteiro, nele guardavam os documentos
originais, classificavam-nos e recopiavam-nos em cartulários. Porém a leitura e
interpretação desses velhos pergaminhos não avançavam sem colocar difíceis
problemas. Seja como for, o historiador podia usufruir de um único fundo de
arquivos, o de seu mosteiro. Uma história original e documentada só podia ser
local. Quanto ao resto, o historiador dependia de histórias já escritas por
seus predecessores. Não há historiador sem biblioteca e não há bons
historiadores sem boas bibliotecas.
Ora, durante muito tempo as bibliotecas
medievais não foram tão ricas. Elas contavam quase sempre com apenas algumas
centenas de volumes. Só uns poucos eram livros de história. E tanto melhor se
estivessem inventariados e acessíveis. Quem desejasse narrar a história do
mundo a partir da Criação, dispunha então, com bastante facilidade, de alguns
livros que Cassiodoro, no século VI, recomendara e que toda boa biblioteca
devia possuir. A Bíblia, é óbvio. E a História eclesiástica, que Eusébio de Cesareia escreveu em grego e que Rufino
traduziu para o latim e ampliou. E a História contra os pagãos, que o latino Orósio escreveu
em 4I5-4I7. E alguns outros. Para tempos posteriores, o historiador dependia de
raras obras, cuja difusão era lenta e espacialmente limitada, muito devendo ao
acaso. Sigeberto havia terminado sua crônica universal em Gembloux, em III2.
Orderico Vital estava feliz em ver uma cópia dela em Cambrai, pouco antes de
II32, porque era uma dessas obras “modernas” que “muito dificilmente” se
encontravam. Em II47, a crônica de Sigeberto estava em Beauvais. Foi lá que
Roberto de Torigny a encontrou. Esse achado foi a origem do sucesso normando e
inglês da crônica. Contudo, ao que parece, ela não foi conhecida em Londres
antes do século XII.
Com o tempo, o peso do acaso diminuiu na
difusão do conhecimento histórico. Pesquisadores mais bem preparados multiplicavam
as pesquisas que lhes permitissem reencontrar velhos textos perdidos. As bibliotecas
eram mais numerosas e os volumes mais abundantes e acessíveis. Em meados do século
XIV, a peste negra fazia desaparecer as pessoas, não os livros. Menos
procurados, tornavam-se menos caros. Um simples particular podia agora esperar
reunir algumas dezenas, mesmo algumas centenas de volumes. A organização quase
industrial da produção do livro manuscrito já permitira a extensa e rápida
difusão de uma obra, quando a invenção da imprensa resultou na fabricação de
livros às centenas (mas não ainda aos milhares). No início do século XVI, em
alguns meses um historiador tinha em mãos uma obra às vezes escrita muito
longe. Desde então, o problema do historiador sempre tem sido dominar uma
documentação abundante demais. É preciso entender bem que antes o historiador
esbarrava em muitas outras dificuldades. A Idade Média foi o tempo da
documentação escassa.
Credibilidade
e verossimilhança
O que também faltou aos historiadores da Idade
Média, diz-se muitas vezes, foi o espírito crítico. E observa-se com gosto a
ingenuidade com que podiam repetir histórias errôneas ou inverossímeis e a
facilidade com que tantas mentiras mais ou menos grosseiras puderam impor-se.
De fato, as falsificações são inúmeras do
início ao fim da Idade Média. No século IX, particularmente sob Carlos, o
Calvo, apareceram falsificações que marcaram toda a cultura medieval. No fim do
século XV, João Nanni, também conhecido por Annio de Viterbo, publicou em Roma
as obras de vários autores da Antiguidade que se acreditavam perdidas: ele
tinha escrito todas. Seguramente, a falsificação marca a Idade Média. Resta
saber se ela revela certa ingenuidade.
Observemos, inicialmente, que as grandes
fábricas de falsificações da Idade Média sempre foram grandes centros de
cultura e erudição. Os historiadores de hoje muitas vezes têm alguma
dificuldade em admitir que respeitáveis prelados e distintos sábios tivessem
podido fabricar falsificações que nossa consciência condena. Mas o fato aí
está. Como a falsa moeda, o falso texto é atividade de especialistas. Por outro
lado, se há historiadores ingênuos, a muitos outros não falta espírito crítico.
Eles sabem muito bem comparar as fontes e constatar, se existirem, as
diferenças (varietas, diversitas,
dissonantia). Simplesmente, eles não se sentem no direito de
resolver essa diversidade. Oferecem todas as versões de que dispõem e convidam
expressamente o leitor a escolher. Só que, às vezes, orientam sua escolha
silenciando sobre a versão que lhes parece falha. É preciso saber entender o
silêncio dos historiadores. Para julgá-los, não é suficiente encontrar a
proveniência do que dizem; é necessário também ver o que sabiam e não disseram.
Preocupados em avaliar os textos, os
historiadores da Idade Média não tinham, contudo, os mesmos critérios que nós.
Primeiramente, eram enganados pela fraqueza de seus conhecimentos e pela falta
de instrumentos eruditos. Temos, atualmente, todos esses instrumentos de
trabalho que nos permitem, não sem fadiga, ir ao encontro da verdade. Eles
tinham, quando muito, alguns catálogos, algumas genealogias mais ou menos
falsas; permaneciam, diante das suas fontes, quase desarmados. Portanto, sua
crítica devia basear-se na verossimilhança? Mas a verossimilhança é uma noção
ambígua. O critério moral da verossimilhança foi, durante um tempo, primordial.
Perdeu sua força no transcorrer dos séculos. Quando Lourenço Valla descreve o
rei Martinho adormecendo durante uma audiência, ainda no século XV, reprova-lhe
dizer uma coisa inverossímil, porque é contrário à dignidade de um rei
adormecer durante uma audiência. Lourenço Valla não deixa de lhe responder que
talvez não seja digno de um rei adormecer durante uma audiência, mas que não há
nada de inverossímil em que um indivíduo, seja ele rei, adormeça durante uma
audiência. A ordem natural das coisas tornava-se, pouco a pouco, a pedra de
coque da verossimilhança.
Mas um milagre era sempre possível. Se bem
que o único critério com que o historiador podia realmente contar era o da
autoridade da fonte. Havia textos que tinham autoridade e textos que não. Havia
textos que tinham mais ou menos autoridade. Deviam-na ao seu autor ou ao seu
fiador. Um texto aprovado por um príncipe tinha menos autoridade que um texto
aprovado por um rei. Um texto aprovado por um bispo tinha menos autoridade que
um texto aprovado pelo papa e menos autoridade que um texto aprovado pela
Igreja. Um texto aprovado pela Igreja tinha tanto mais autoridade quanto mais
velho fosse.
Desse amplo princípio crítico provinham
várias consequências. Nos primeiros séculos da Idade Média, quem queria melhor
convencer podia tentar abrigar sua obra sob a autoridade de um homem vetusto e
de prestígio. Mais tarde, para impor um texto no qual nada levava alguém a
crer, o historiador algumas vezes teve a ideia de buscar a aprovação de uma
autoridade. Por iniciativa própria, Caffaro havia escrito a história de Gênova
desde II00. Em II52, apresentou-a aos cônsules de Gênova, que, ordenando que
fosse transcrita por um escrivão público e depositada em arquivos públicos,
fizeram dela um documento autêntico, em que se devia acreditar. Em I3 de abril
de I362, o notário Roland de Pádua acabou de escrever sua crônica. Fez então
que fosse lida diante dos veneráveis mestres da Universidade de Pádua, que a
aprovaram com sua autoridade magistral e validaram-na. Na França, os
historiadores de Saint-Denis estavam havia muito tempo preocupados em colocar
sua obra sob a autoridade do abade e do rei. Em I8 de novembro de I437, quando
retomou Paris e começou a restaurar suas funções, Carlos VII até criou um cargo
de cronista da França. Confiou -o a um monge de Saint-Denis, João Chartier, que
prestou juramento e recebeu salário, como todo oficial. Outros príncipes do
Ocidente imitaram o rei de França. A história oficial nascia, na Idade Média,
com toda a naturalidade do respeito que as autoridades inspiravam.
Se era condenável não respeitar um texto
“católico”, “autêntico”, aprovado pela Igreja, cortar, resumir, modificar ou
interpolar um texto era falha tanto mais perdoável quanto menor fosse sua
autoridade. Assim, há obras respeitáveis de que a Idade Média escrupulosamente
nos transmitiu o texto original, e outras que cada um podia, ao copiá-las,
tratar como bem quisesse. Numerosas obras históricas eram dessas obras vivas,
às quais cada geração, cada leitor, acrescentava sua pedra.
Enfim, desde que o critério não era o
verdadeiro, mas o autêntico, não faltam exemplos em que um documento foi
fabricado por um autor que bem sabia não ser ele verdadeiro, mas esperava que a
aprovação de uma autoridade o tornasse autêntico.
Os historiadores eram muito estimulados a ir
nessa direção, porque, se proclamavam sua vontade de dizer o que realmente
tinha acontecido, frequentemente também pensavam que, sendo seu dever fornecer
os melhores exemplos, era melhor relatar o que deveria ter acontecido. Miguel
Pintoin, que escreveu em latim essa grande história do reinado de Carlos VI,
conhecida com o nome de Crônica dos religiosos de Saint-Denis, tomou por tarefa, entre
outras, descrever as cerimônias da corte nas quais se manifestava a majestade
real. Se, por infelicidade, em tal circunstância um incidente a tinha
denegrido, o Religioso não hesitava em transmitir à posteridade, como ainda o
desejava Bartolomeu Facio um pouco mais tarde, somente a lembrança do que
deveria ter sido.
Essas omissões em relação à verdade, essas
mentiras, enfim, eram tão mais tentadoras quanto maior o contraste entre a
ciência dos eruditos que ousavam fazê-las e a ignorância do público a quem se
dirigiam. Os avanços da cultura histórica restringiam, pouco a pouco, o
privilégio que por muito tempo tiveram os sábios de impor suas convicções como
verdades.” (Bernard Guenée)
“Antes da “época da arte” e da “invenção do
quadro”, teria havido, segundo Hans Belting, o “tempo das imagens e do culto”,
ou seja, das concepções e das práticas não essencialmente estéticas, mas
primeiramente cultuais e rituais das “imagens”. De fato, em se tratando da
Cristandade medieval, a noção de “imagem” parece ser de uma singular
fecundidade, mesmo que compreendamos pouco todos os sentidos correlatos do
termo latino imago. Essa noção está, com efeito, no centro da concepção
medieval do mundo e do homem: ela remete não somente aos objetos figurados
(retábulos, esculturas, vitrais, miniaturas etc.), mas também às “imagens” da
linguagem, metáforas, alegorias, similitudines, das obras literárias ou
da pregação. Ela se refere também à imaginatio, às “imagens mentais” da
meditação e da memória, dos sonhos e das visões, tão importantes na experiência
religiosa do cristianismo e que são muitas vezes desenvolvidas em íntima
relação com as imagens materiais que serviam à devoção dos clérigos e dos
fiéis. A noção de imagem diz respeito, enfim, à antropologia cristã como um
todo, pois é o homem – nada menos que isso – que a Bíblia, desde suas primeiras
palavras, qualifica como “imagem”: Deus diz que modela o homem “ad imaginem
et similitudinem nostram” (Gênesis I,26). Segundo o Novo Testamento, a Encarnação completou essa relação de
imagem entre homem, Deus e Cristo. Pela fé, diz São Paulo, “somos
transfigurados nessa mesma imagem, cada vez mais resplandecente, pela ação do
Senhor, que é o Espírito” (2 Coríntios 3,I8) e, aliás, Cristo é a “imagem do Deus invisível” (Colossenses I,I5), como Ele mesmo disse: “Quem me ve, vê, vê o Pai” (João I4,9). Os teólogos da Idade Média tirarão dessas passagens bíblicas
argumentos para legitimar a representação antropomórfica não somente do Filho,
mas do Deus Pai, ultrapassando assim a proibição do Antigo Testamento referente
a toda figuração de Deus e da Criatura.
É sobre essa complexa noção de imago que
a cultura medieval se constituiu e justificou suas escolhas em matéria de
imagens durante séculos. Pode-se, portanto, com justiça, ver na cultura
medieval uma “cultura das imagens” que apresenta características originais, já
que o cristianismo deixou sua marca no repertório iconográfico, na teoria e na
finalidade das imagens. De um lado, as imagens cristãs da Idade Média deviam
opor-se aos “ídolos” pagãos da Antiguidade e qualquer retorno à “idolatria”
devia ser banido, uma vez que a crescente veneração das imagens despertava
suspeitas. De outro lado, a hostilidade do judaísmo para com as imagens foi
cada vez mais interpretada como uma consequência da obstinação dos judeus em
não querer reconhecer no Cristo “a imagem do Deus invisível”. Mas a “cultura
das imagens” da Cristandade latina conheceu igualmente uma via original em
relação ao cristianismo grego de Bizâncio, tanto em seus ritmos de
desenvolvimento (ignorando a maioria das tensões da crise iconoclasta e depois
o triunfo da iconodulia entre os séculos VIII e IX) como em seu repertório,
adotando livremente para suas próprias imagens uma variedade de formas,
suportes, temas que contrastam com a relativa fixidez dos ícones ortodoxos.”
(Jean-Claude Schmitt)
“Para explicar qual era a função das imagens
na Idade Média, é comum citar-se a famosa carta que o papa Gregório Magno
dirigiu no ano 600 ao bispo Sereno de Marselha. Este último, por temor à
idolatria, tinha ordenado a destruição de pinturas em sua diocese. O papa
reprovou essa atitude iconoclasta mostrando-lhe a utilidade das imagens, mas
também os limites dentro dos quais convinha encerrar sua utilização: as imagens
não devem ser “adoradas” como o são os ídolos pelos pagãos, mas também não
devem ser destruídas. Elas têm, de fato, uma tripla função: lembram a história
sagrada; suscitam o arrependimento dos pecadores; e, por fim, instruem os
iletrados, que, ao contrário dos clérigos, não têm acesso direto à Bíblia.
Desde então, frequentemente se insistiu neste ponto: as imagens seriam a
“Bíblia dos iletrados”. De fato, a repetição das cenas mais importantes da
iconografia cristã – Anunciação, Visitação, Natividade, Crucificação,
Julgamento Final – facilitava seu reconhecimento pelos fiéis e tornava-os mais
familiarizados com os fundamentos da crença cristã.” (Jean-Claude Schmitt)
“A Reforma Protestante do início do século
XVI foi em grande parte o resultado da vontade dos leigos de assumir suas
responsabilidades numa Igreja confiscada pelos clérigos. Em sua cidade,
Nuremberg, que acabava de se unir a Lutero e de expulsar os padres, Dürer
decidiu pintar, sem que lhe tivesse sido encomendado, imensas figuras dos
apóstolos que ele ofereceu ao magistrado da cidade a fim de recordar-lhe que, a
partir de então, ele estava encarregado das almas e não somente dos negócios
temporais de seus concidadãos. As exigências religiosas dos reformados, bem
como antes deles as dos lolardos da Inglaterra e dos hussitas na Boêmia,
reavivaram o radicalismo iconoclasta: as imagens materiais poderiam desviar os
fiéis das “imagens interiores” alimentadas pela palavra de Deus e pela
meditação da Bíblia. Elas pareciam excessivamente ligadas à instituição
eclesiástica e aos lucros materiais que esta tirava de seu culto (qualificado
de idólatra), e também excessivamente ligadas ao culto dos santos e a outros
“erros” da Igreja. Em certas regiões, as destruições dos iconoclastas foram
consideráveis. Mas a crítica protestante suscitou uma profunda renovação das
imagens católicas, defendidas pelo Concílio de Trento, difundidas pela Igreja
barroca, mas confinadas em limites mais estreitos e mais bem definidos do que
se pode chamar, a partir de então, de “arte religiosa”.” (Jean-Claude Schmitt)
“O problema do indivíduo comporta,
acreditamos, dois aspectos diferentes, ainda que muito ligados: o da pessoa e o
da individualidade. A pessoa pode ser definida como um “elo intermediário”
entre sociedade e cultura. O indivíduo torna-se uma pessoa ao interiorizar a
cultura, o sistema de valores, a visão de mundo que são próprios de uma
sociedade ou de um grupo social. Nesse sentido, toda sociedade, em qualquer
época, é feita de pessoas. De seu lado, a individualidade é uma pessoa que se
voltou a uma autorreflexão e que se pensa como um eu particular, único.” (Aaron
Gourevitch)
“Antes de mais nada, o historiador da
individualidade pesquisa textos do tipo “autobiografia” e” confissão”, nos
quais, à primeira vista, o indivíduo não pode deixar de revelar os mistérios de
sua vida interior. Mas tais textos são de acesso extraordinariamente difícil,
quer se trate das confissões de Orlo de Saint-Emmeran ou do bispo Rathier de
Verona, do abade Guiberto de Nogent ou do abade Suger, de Abelardo ou de
Heloísa, do bardo islandês Egill Skalagrimmson ou do rei e impostor norueguês
Sverrir, do monge Salimbene ou enfim de Dante e de Petrarca. A pessoa busca
meios para se exprimir, mas aqueles que a cultura põe à sua disposição são
frequentemente, ou quase sempre, obstáculos para o conhecimento de si mesmo. O
texto da “autobiografia”, da “confissão” ou da saga jamais é transparente; a
poética, as regras do gênero, são tais que todo elemento pessoal e único é
dissimulado pelos topoi, os
lugares-comuns tradicionais e as citações dos escritos autorizados, de maneira
que uma tela opaca e dificilmente identificável separa o pesquisador do objeto
de sua pesquisa.
Ao tomar consciência de si, o autor medieval identifica-se
constantemente com modelos ou “exemplos” emprestados das obras antigas, da
Bíblia ou dos textos patrísticos. A frequência com que essas identificações se
repetem entre os mais diferentes indivíduos permite supor que não se trata aqui
somente de uma homenagem forçada. Parece que o indivíduo medieval só pôde se
formar “assimilando” os fragmentos de outros indivíduos que ele podia captar
nos textos.
Na sua Autobiografia, Guiberto de Nogent procura
se exprimir imitando as Confissões, de Santo Agostinho, e pretende representar
sua própria mãe recorrendo ao modelo de Mônica (a mãe de Agostinho). Quando Abelardo evoca os momentos críticos de sua existência, ele se compara a São
Jerônimo: “a malevolência dos francos levou-me para o Ocidente [do seu retiro
do Paráclito], como a dos romanos havia feito outrora com Jerônimo em relação
ao Oriente”. Ele descreve sua condenação no Concílio de Soissons praticamente
nos mesmos termos de que se serve o evangelista ao relatar a condenação de
Cristo pelo sinédrio. Certamente, a personalidade de Abelardo é original e
pode-se seguir G. P. Fedotov quando ele escreve que “o historiador não pode
passar ao largo dessa catastrófica explosão da consciência individual que nos
vem das profundezas da Idade Média”, mas é preciso reconhecer que essa
“explosão” segue os cânones do século XII e que Abelardo “constrói” sua
individualidade a partir de modelos “arquetípicos”. A mesma coisa para Heloísa.
A fim de exprimir seu amor por Abelardo, ela usa imagens e palavras tiradas do Cântico dos cânticos. Ela também se identifica a Cornélia, a mulher de Pompeu, que acabava
de voltar para casa após sua derrota: Cornélia oferece sua vida a seu marido a
fim de apaziguar a cólera dos deuses que o atinge, da mesma forma que Heloísa,
antecipando Abelardo, torna-se monja.
Paradoxalmente, a originalidade da
personalidade afirmava-se por sua negação. É sem dúvida o que Georg Misch tinha
em vista quando evocava o caráter “centrífugo” da personalidade medieval, que
se construíra, segundo ele, de acordo com o princípio da “individuação
morfológica” (as manifestações decisivas da personalidade referem-se às
representações e às formas preestabelecidas que lhe parecem exteriores),
contrariamente à personalidade” centrípeta” dos tempos modernos, que contém seu
próprio centro (“individuação orgânica”).
Não se trata somente de procedimentos formais
aos quais estavam sujeitos os autores das “confissões”, “vidas” e
“autobiografias”, mas, na mesma medida, de cânones religiosos e éticos que eles
eram obrigados a seguir. O cristão medieval que estava talvez altamente
consciente de sua importância, até mesmo de seu valor excepcional, não podia exprimir
espontaneamente esse sentimento, porque deveria a todo preço reprimir ou
camuflar de todas as maneiras o pecado capital do orgulho. Bem no início da
Idade Média, Gregório de Tours pede ao leitor que o desculpe pela rusticidade
de sua língua, sua estupidez e seu precário conhecimento de latim. Se ele
empreende a descrição da vida de São Martinho, é somente, escreve ele, porque
sua falecida mãe convenceu-o em sonho que esse modo de escrever era o único
acessível ao povo, sem o que ele jamais teria se lançado em semelhante
empreendimento que excedia suas forças e suas capacidades. No último capítulo
de sua História dos francos,
o mesmo Gregório exorta os futuros bispos de Tours a não mudarem uma
só palavra de seu texto e a preservarem suas obras na Íntegra. Desde quando se
pode dizer que ele estava movido por uma humildade sincera ou por um sentimento
de autor que a etiqueta literária e o medo do pecado conspiravam para refrear?
Estranho modo de fazer sua própria apologia,
aquele que consiste em condenar seu orgulho e a ver em seus próprios
infortúnios um castigo de Deus. E, contudo, o que fez Abelardo na História de minhas
calamidades, porque, a despeito
de todas as suas negações, ele de modo algum havia renunciado à ideia de que
era o primeiro, até mesmo o único filósofo de seu tempo. Contemporâneo de
Abelardo, Suger “diluiu” de certa forma seu eu no filho querido que é a abadia
de Saint-Denis. Mas essa identificação é tamanha que a personalidade de Suger
cintila por toda a abadia até absorvê-la completamente. A renúncia a si transforma-se
em autossublimação...
É, portanto, difícil se aproximar da
personalidade medieval, dificuldade que de resto era experimentada pelos
contemporâneos. Eis aqui dois depoimentos sobre Abelardo, deixados por homens
que o conheceram pessoalmente. Um pertence ao seu pior adversário, Bernardo de
Claraval: “É um homem diferente de si mesmo, Herodes no interior, João no exterior;
ele é inteiramente ambíguo e de monge só tem o nome e o hábito”. O outro é o
seu epitáfio, redigido por seus amigos: “Aqui jaz Pedro Abelardo. Somente ele
teria podido dizer o que era”. Para seus amigos, como para seus inimigos,
Abelardo permanecia um enigma.
Tentou-se explicar a personalidade medieval
em termos da psicanálise. Ela é de grande auxílio nesse caso? Ela não
identifica uma doença quando há uma crise de individualidade provocada pelas
condições específicas da vida religiosa? Um homem que se sentisse diferente de
seu meio por seu comportamento ou sua vida intelectual (o que era, sem dúvida,
o caso se ele era levado a escrever sobre si mesmo), naturalmente se achava
muito instável, tanto no plano moral quanto no social. A fonte desse desconforto
podia ser sua originalidade e não uma disfunção psíquica. As personalidades
fortes jamais são portadoras de normas. Na Idade Média, quando a originalidade
era considerada com suspeição, ela podia passar por uma anomalia tanto aos
olhos do indivíduo em questão quanto aos de seu círculo de relações.
Admitamos, entretanto, que tal ou qual
indivíduo efetivamente sofresse de perturbações psíquicas. O historiador
interessa-se pouco pelas neuroses e psicoses. Se havia mesmo a perturbação, sua
tarefa é estabelecer um elo entre ela e a cultura da época considerada. O que
lhe importa saber, é justamente de que maneira aquele homem era louco.” (Aaron
Gourevitch)
“Patologia?
Pode-se supor que a tomada de consciência da
pessoa encontrou na Idade Média grandes obstáculos e foi às vezes acompanhada
de psicopatologias. A exigência religiosa de humildade, arrependimento,
expiação, a condenação da originalidade individual na qual se via uma fonte de
orgulho, tantos fatores incitavam o indivíduo a se exprimir ou sob a forma
paradoxal da renúncia de si ou da automortificação, ou de uma extensão de seu
eu às dimensões do Universo: a escala humana era-lhe inaplicável, porque ainda
permanecia desconhecida.
Mesmo quando uma personalidade não é esmagada
pelo peso da religião e do sentimento de culpa que dele decorre, tais conflitos
impedem-no de se afirmar, a não ser sob formas que nos parecem pertencer à
psicopatologia.
Concluindo, é preciso retornar a outro
paradoxo, metodológico. A pessoa é a categoria central do estudo das
mentalidades, cujos principais assuntos de interesse – percepção do tempo, do
espaço, da natureza e do mundo sobrenatural, concepção das diferentes idades do
homem, ética do trabalho, ideias de riqueza e de pobreza, consciência do
direito ou das relações entre a sociedade e os grupos que a compõem, enfim toda
a vasta esfera emocional – não são nada mais do que manifestações da pessoa
humana. Nela, esses diferentes elementos formam um sistema que se exprimem na
sua consciência e no seu subconsciente, determinando seu comportamento e
atribuindo-lhe as cores específicas de cada cultura.
Mas o todo não se reduz à adição de suas
diferentes partes, de maneira que é preciso tentar compreender o centro que as
estrutura. Já dissemos, o estudo da personalidade medieval choca-se com
obstáculos metodológicos dificilmente superáveis. As personagens que se
encontram nos textos são pouco numerosas e suas personalidades dissimulam-se
tão depressa nas suas conchas que continuam quase sempre inacessíveis.
Nesse sentido, a herança deixada por
Opicínio, de certa forma “presa” entre Dante e os humanistas, perdida na
fronteira entre Idade Média e Renascimento, retoma todo o interesse. Não se
trata somente de um caso patológico, porque seus escritos e seus mapas ou
desenhos não se contentam em exprimir o mal interior de um clérigo anônimo de
Avignon: justamente porque seu autor sofria de um desequilíbrio psíquico,
porque era incapaz de conter as expressões extremas de seu eu, seu contrapeso
oscilou entre uma extrema humildade de um lado e uma extrema sublimação de
outro, e essas oscilações, que são características da personalidade medieval,
atingiram uma amplitude máxima, de maneira que aquela pessoa se exprimiu, sob
uma forma patológica certamente, mas com a vantagem da franqueza e da
espontaneidade que não seriam permitidas a uma pessoa mais equilibrada.” (Aaron
Gourevitch)
“Desde o fulgurante avanço muçulmano sobre a
Península Ibérica e a Gália no século VIII até a conquista dos Bálcãs pelos
otomanos nos séculos XIV e XV, a ameaça do Islã pairou sobre a Europa,
periodicamente reavivada, por diversas razões, com maior ou menor intensidade.
Se a expansão ocidental a partir do fim do século XI fez o Islã recuar no
oeste, na Sicília e na Espanha, o mesmo não ocorreu no leste da Europa, onde os
otomanos, senhores dos Bálcãs, sitiaram Viena em I529.
As aventuras transoceânicas iriam oferecer ao
Ocidente condições para a dominação mundial, no quadro da qual a ameaça
islâmica seria refreada, depois reduzida, e o próprio mundo muçulmano viria a
ficar exposto aos empreendimentos europeus. Ao considerar-se esse longo
processo histórico a partir da Europa ocidental, há uma incontestável
continuidade entre o recuo do Islã no Mediterrâneo ocidental, a consolidação do
poder europeu e sua expansão oceânica. Devem-se aos mediterrâneos os primeiros
empreendimentos atlânticos significativos em fins do século XIII e na primeira
metade do século XIV, no mesmo momento em que a expansão militar de Castela
abria definitivamente o estreito de Gibraltar às frotas ocidentais (tomada de
Algeciras em I344). Por essa via é que o capitalismo mediterrâneo e as técnicas
marítimas atlânticas iriam se associar.
A luta contra o Islã contribuiu para a
unidade da Europa do século VIII ao XV. Europeus do Mediterrâneo e do Atlântico
aprenderiam em seguida a dominar o mar ocidental, e caberia a um genovês o
privilégio de pôr fim à Idade Média ao descobrir a América. A exploração e a
tomada de posse das imensidões que se abriam diante deles foram em parte
motivadas pelo desejo de flanquear o Islã pelo sul da África ou pelo oeste, e
de continuar a Cruzada ao descobrir os domínios do mítico “Preste João”. Para
tanto, “serviram-se em boa parte do saber do inimigo muçulmano e da experiência
adquirida graças aos contatos medievais que tinham ocasionado a Cruzada, e
graças às muitas traduções de obras árabes em latim efetuadas na Espanha,
Itália e França durante os séculos XII e XIII” (A. Hamdani). Cristóvão Colombo
mostrou aos Reis Católicos que as riquezas trazidas da Índia serviriam para a
reconquista de Jerusalém, mas apoiava-se num conhecimento geográfico herdado
quase sempre dos árabes e das traduções que estes tinham feito dos sábios da
Antiguidade.
O saber árabe teve importância considerável
na formação da ciência e da cultura europeias. Entretanto, convém lembrar que a
referida transferência não resultou de um processo pacífico de transmissão do
saber. O movimento das traduções acompanhou a Reconquista. Os ocidentais
enriqueceram os conhecimentos necessários ao seu desenvolvimento científico com
a espada em punho, selecionando o que lhes parecia útil no próprio momento em
que o pensamento árabe, incapaz de se renovar, esclerosava-se na fidelidade aos
antigos mestres e fechava-se em suas preocupações exclusivamente religiosas e místicas.
O sucesso extraordinário e quase imediato de Averróis no Ocidente – morto em
II98, ele está traduzido para o latim desde a segunda década do século XIII –
ilustra bem o distanciamento entre as duas culturas: no mundo muçulmano, ele
“fechou” por assim dizer o ciclo da filosofia aristotélica, da qual representa
ao mesmo tempo o apogeu e o fim; no mundo cristão, pelo contrário, constituiu o
ponto de partida da renovação do pensamento europeu.” (Pierre Guichard)
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