terça-feira, 8 de março de 2022

Dicionário analítico do Ocidente medieval (Volume I, Parte IV), de Jacques Le Goff e Jean-Claude Schmitt (Orgs.)

Editora: UNESP

ISBN978-85-393-0685-5

Tradução (coord.): Hilário Franco Júnior

Opinião: ★★★★☆

Páginas: 754

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Sinopse: Ver Parte I



 

“O suposto poder dos feiticeiros não tem, a nossos olhos de historiadores ou de etnólogos, realidade objetiva: lançar um malefício não seria, pensamos nós, a causa objetiva da morte de um indivíduo ou da precipitação de neve, não importando o que diga o discurso autóctone. Mas o imaginário, para o historiador ou o etnólogo, não deixa de ser uma realidade social que possui efeitos objetivos e materiais. A convicção do feiticeiro de possuir poder e, paralelamente, a convicção de suas supostas vítimas de serem efetivamente objeto de um sortilégio, delineiam os papéis sociais, os comportamentos. Além disso, a acusação de malefício proferida contra um vizinho, a violência física exercida contra ele e, em certos casos, o desencadeamento de uma repressão institucional contra supostos feiticeiros, são consequências materiais daquilo que na origem nada mais é do que uma realidade imaginária. Assim, a feitiçaria mostra-nos de maneira exemplar como o imaginário, o fantasma, a crença nessas entidades, podem ser forças históricas de primeira importância.” (Jean-Claude Schmitt)

 

 

“Não existe espírito de síntese pior que o do senso comum, forma de aproximação das realidades sociais que utiliza como ferramentas naturais e acima de qualquer suspeita as grandes categorias do espírito público contemporâneo: política, economia, direito, religião, arte, língua, cultura, família etc. Sintagmas como “lutas políticas”, “desenvolvimento econômico”, “preocupações religiosas”, são ingenuamente considerados como dotados de um valor intrínseco, perpétuo, independente da sociedade considerada. Se pensamos que o historiador deve examinar minuciosamente cada grande forma de sociedade ou de civilização para tentar encontrar as articulações específicas, de maneira a explicitar seu modo de funcionamento original e poder expor assim sua dinâmica própria, não se pode omitir uma fase de crítica radical desse sistema de senso comum. Isto a fim de poder elaborar empiricamente, em cada caso, um repertório das mais importantes formas originais de relações sociais e de atividades, graças ao qual se possa esperar construir um jogo de hipóteses o mais próximo possível da sociedade considerada, permitindo dessa forma obter uma imagem adaptada e realista de seu funcionamento, em suma, uma imagem explicativa.” (Alain Guerreau)

 

 

“No estado atual da pesquisa, a noção de feudalismo soa antes de tudo como o apelo a uma escolha da qual é inútil pretender se esquivar: ou nos acomodamos ao espírito de síntese mais difundido, o do senso comum, que se refere aos efeitos do acaso e dos grandes homens, que a respeito de tudo invoca a infinita diversidade do real e a eternidade da psicologia humana, que acredita, portanto, na autossuficiência das narrativas e das pequenas construções locais; ou então percebemos a necessidade prévia de esclarecer a lógica geral de uma civilização para poder compreender o sentido de seus elementos e procuramos construir as noções e as hipóteses que permitem, lenta e laboriosamente, apreender fragmentos de coerência nessa civilização, evitando, assim, atribuir relações que lhe são alheias. Cada um que decida. Livremente, se possível.” (Alain Guerreau)

 

 

“O conceito de “guilda” abarca duas noções bem diferentes, quer nos posicionemos do ponto de vista das fontes ou da pesquisa histórica. Essa dualidade sustentou uma certa ambiguidade. O conceito, tal como os pesquisadores o compreendem, encontra seus principais elementos no mais antigo registro da palavra “guilda” designando um grupo social, ou seja, no capitular que Carlos Magno assinou em Herstal, datado de 779: “Quanto aos juramentos entre membros de guildas, eles estão proibidos a todos. Quanto às suas esmolas em caso de incêndio ou de naufrágio, seus acordos não devem envolver juramentos” (c. I6, MGH Capit. I, S.5I). As guildas são, portanto, grupos criados por acordo, consentimento e contrato; são “associações livres” (O. von Gierke). Consequentemente, elas concluem acordos (convenientiae) e dotam-se de um estatuto. O consentimento e o contrato repousam num juramento mútuo promissivo, ou seja, que envolve comportamentos e ações futuros. Esse juramento faz das guildas associações juramentadas – coniurationes, para retomar o vocabulário das fontes medievais –, mas elas não agradam ao poder estabelecido, que se empenha em proibi-las. O capitular que nos interessa aqui indica, além disso, que a constituição de uma guilda tem por objetivo o auxílio mútuo em caso de indigência, incêndio e naufrágio. Trata-se, então, de um sistema de socorro mútuo, destinado a remediar todas as situações de angústia, oferecer uma proteção recíproca e uma assistência social em sentido amplo. Estas compreendem, como é o caso aqui, elementos imanentes e profanos, mas também elementos transcendentes e religiosos, sempre presentes. As guildas se constituem e continuam a existir para assegurar auxílio mútuo coletivo numa situação de desordem.” (Otto Gerhard Oexle)

 

 

“As guildas da Alta Idade Média: guilda e comuna

A exemplo das guildas clericais galo-francas dos séculos VI e VIII, é no campo que são encontradas as guildas locais da época carolíngia, que o capitular de Herstal foi o primeiro a criticar. Essas guildas reuniam leigos e eclesiásticos, homens e mulheres, e substituíam as estruturas sociais do vilarejo, da paróquia e do senhorio.

As mais antigas guildas profissionais são as dos mercadores itinerantes, as primeiras das quais aparecem no começo do século XI (Tiel, no Reno inferior, por volta de I020) e cujos estatutos (final do século XI, Saint-Omer, Valenciennes) são os mais antigos da Europa continental que chegaram até nós. Eles provam, uma vez mais, que o primeiro motivo para a constituição de uma guilda era a desorganização local. De fato, aqueles estatutos organizam as questões de proteção e assistência mútuas em matéria de seguro (no caso de perda de mercadorias por confisco, roubo ou acidente ocorridos durante uma viagem), bem como ajuda diante de tribunais estrangeiros. Eles definem também as prerrogativas dos membros da guilda sobre o mercado local e organizam a vida interna do grupo: cooptação, direitos de adesão, lista de membros, leitura regular dos estatutos, celebração de reuniões, bebedeiras, refeições e banquetes, ofício divino e celebração dos mortos, eleição do presidente e dos membros do tribunal da guilda, competências e procedimentos desse tribunal, necessidade de vivenciar sentimentos fraternais e de se comportar e agir de acordo com eles. Enfim, esses estatutos regulamentam as relações do grupo com o ambiente urbano no qual as guildas de mercadores já estão integradas no final do século XI: obras de caridade e participação nas tarefas comunitárias da cidade, como a manutenção das ruas e das fortificações.” (Otto Gerhard Oexle)

 

 

A importância das guildas na história ocidental

Os grupos sociais encarnam sempre uma “cultura” específica sobre a qual se apoiam, garantindo ao mesmo tempo sua continuidade; essa cultura encobre certas normas e valores, engendrando ações sociais que são, por sua vez, função do comportamento alheio. Essas ações têm resultados objetivos, materiais ou imateriais, como as instituições. O ethos e os efeitos específicos da associação juramentada repousam sobre a ideia de ajuda mútua (mutuum adiutorium, mutuum consilium et auxilium). A associação juramentada tem como membros indivíduos conscientes de sua fraqueza no seio da ordem política ou social, e buscam unir-se por que ficaram muito tempo isolados e ainda estão. O primeiro meio de constituição do grupo é o juramento recíproco, cuja importância é difícil de ser supervalorizada. De fato, somente a força desse juramento e da “conjuração” que ele cria permite ao indivíduo libertar-se dos laços sociais que o prendem, estabelecendo outros. Esses novos laços caracterizam-se por um equilíbrio e uma concordância de interesses, pelo consentimento e pela conclusão de um contrato, e, enfim, pela estipulação de objetivos livremente definidos. As pessoas externas sempre reconheceram e temeram esses efeitos das associações juramentadas.

Essa profunda ancoragem social e as múltiplas repercussões que as conjurationes tiveram na história do Ocidente permitem explicar as consequências que ultrapassam amplamente a história do Ocidente, e cujas formas mais impressionantes são, sem dúvida, a comuna urbana e a Universidade, além da fase de dissolução das corporações ocorrida no final do Antigo Regime e sob a Revolução. Da mesma maneira, as associações de companheiros do final da Idade Média e do começo da época moderna exercerão seus efeitos até sobre o nascente movimento operário. Contrariamente ao que muitas vezes se afirma, não se deve enxergar nos princípios de associação moderna – ingresso espontâneo, igualdade social, regras de conduta independentes – o reflexo das aspirações burguesas à emancipação e um sintoma do processo de modernização que se manifestou no começo do século XIX. Esses elementos, na realidade, acompanharam a evolução da civilização ocidental desde suas origens.

Por outro lado, as associações juramentadas influenciaram os processos mentais, sociais e políticos da época moderna, e em especial marcaram as ideias políticas e sociais. Isso é essencialmente verdade no caso do “republicanismo “e do “movimento comunal” modernos; o papel das associações medievais na constituição delas não foi ainda suficientemente reconhecido e explicado. É sobretudo na história das ideias políticas e sociais que a experiência histórica das guildas e das comunas tomou vários aspectos; basta, para nos convencermos, evocar Jean Bodin e Althusius, Hegel e Tocqueville, Proudhon e Kropotkin. As controvérsias do final do século XVIII e do começo do século XIX sobre a liberdade de empreendimento e a liberdade de associação sempre se referem àquelas experiências históricas. A criação na Europa de uma sociologia da cultura por instigação de Émile Durkheim, Georg Simmel, Ferdinand Tönnies e Max Weber foi feita em grande parte por meio de uma reflexão sobre as guildas e as corporações medievais.

A apreensão dessas realidades históricas permite, em suma, compreender a cultura e a sociedade da Idade Média, afastando -se dos habituais esquemas de interpretação. De fato, continua-se muitas vezes a apresentar a Idade Média como a era da “comunidade”, uma época na qual o indivíduo, não podia desempenhar nenhum papel na sociedade porque estava subjugado pelas ordens e pelos grupos nos quais ele se dissolvia. Contudo, a história das associações medievais revela que a feitura de contratos independentes e individuais foi desde a origem uma característica da sociedade medieval, profundamente marcada por eles.” (Otto Gerhard Oexle)

 

 

Metas e métodos do historiador

Na Idade Média, o historiador frequentemente se oculta atrás de sua obra. Para compreender o que ele quis fazer, não há outro recurso senão analisá-la. Porém, com mais frequência do que se poderia imaginar, o autor aparece na narrativa e, sobretudo, cuida de dizer, em um Prólogo, quais foram suas metas e métodos. Esses prólogos dos historiadores foram por muito tempo negligenciados. Via-se aí apenas um punhado de lugares-comuns, de que se podia até dispensar a leitura e a publicação. Na verdade, só o estudo atento dos prólogos permite perceber a que ponto a obra histórica era uma construção consciente. Graças a eles, vê-se bem melhor o que era a história para os historiadores e como a fizeram.

A história é um relato simples e verdadeiro, visando transmitir à posteridade a memória do que passou. A liturgia também tinha por tarefa, a cada Ano, restituir à lembrança a vida de Cristo e dos santos. Como a liturgia, a história e instrumento da memória. Naquele tempo que que queria se edificar sobre o passado, a tradição e a memória não é de surpreender que se tenha podido fazer da história “o fundamento de toda ciência”. O paradoxo é que, nas escolas e universidades, ensinavam-se as sete artes liberais, a teologia, o direito e a medicina, a história nunca foi aí considerada uma disciplina completa. É um bem? É um mal? A história aproveita apenas indireta e incompletamente os enormes progressos que a produção intelectual então conheceu. Porém, soube melhor preservar suas perspectivas e sua especificidade.

Naturalmente, a história não podia conservar a memória de tudo o que havia passado. Só devia fixar o que era digno de lembrança e relatar coisas memoráveis. Isto é, os prodígios, as guerras, os atos de príncipes e santos. No fim do século XII, Geraldo de Gales, em sua Topographia hibernica, pretendia também estudar os costumes dos irlandeses. Curiosidades antropológicas semelhantes emergiram depois, aqui e ali, entre alguns franciscanos e mercadores. Nunca foram preocupação da erudição histórica.

Frequentemente, é para dizer o que Deus havia feito, gesta Dei, que o historiador escrevia. Podia também, muito simplesmente, querer conservar a memória do passado para obedecer a sua natureza de homem. “Um homem sem cultura, que ignora o passado, não passa de um estúpido bestial”, dizia Mateus Paris, no século XIII. Mais precisamente, o historiador podia querer extrair exemplos do passado. Na Idade Média, muitas outras espécies de obras tiveram a mesma preocupação com o exemplo. Em particular, hoje se conhece bem a importância das recolhas de exempla, que os clérigos usavam para alimentar seus sermões. Porém, numerosos livros de história, a começar pelo Livro de ações e palavras memoráveis, de Valério Máximo, que tanto sucesso teve na Idade Média, nada mais foram, para seus autores e leitores, do que recolhas de exemplos. Revelando os nomes dos que tinham sido heróis de algum exemplo por seguir, o historiador tinha um outro objetivo: salvá-los do esquecimento, colocar ao abrigo do tempo sua honra e renome. Igualmente, em relação aos heróis desgraçados, os exemplos por evitar: a história estava lá para perpetuar a infâmia deles. O historiador tinha, pois, um formidável poder. E escrevendo os nomes no grande livro da memória, ele era, para a eternidade, o artesão da glória e da vergonha.

 

As fontes dos historiadores

O historiador compunha sua narrativa com aquilo que tinha visto, ouvido e lido. Por muito tempo, ele preferiu a tradição oral às fontes escritas. Quando Flodoardo, no século X, dispunha de um testemunho oral, negligenciava os arquivos, que lhe estavam, contudo, facilmente acessíveis. No século XII, para falar de um passado remoto, os historiadores não hesitavam em utilizar as tradições orais. Não era ingenuidade. É que sua erudição não censurava isso. Por que, aliás, em tempos de oralidade, teriam eles reagido como um sábio do século XIX ou XX? E nossa crítica não demonstrou que os escritos de que eles dispunham eram frequentemente tão pouco confiáveis como os relatos orais?

Ainda assim, os historiadores dos séculos XII e XIII, mesmo confiando mais na memória dos homens do que atualmente ousaríamos, estavam cada vez mais convencidos de que a memória era frágil (labilis memoria), era fugaz (fugitiva memoria). Por isso, os historiadores tinham o dever de confiar à escrita a lembrança do passado, a fim de transmiti-lo à posteridade. E se, naturalmente, utilizavam os testemunhos orais para contar o passado recente, quanto mais dele se afastavam, mais deploravam as falhas da memória. Planejando no início do século XIV escrever a história de sua ordem, o dominicano Bernardo Gui confessava sua amargura: “Há certo número de coisas que eu queria saber sobre os primeiros [de nós], mas não encontrei ninguém de quem pudesse obter a verdade, porque os primeiros, que presenciaram as coisas, estão mortos, e o tempo passado faz que certos anciãos que ainda vivem tenham perdido a memória ou se lembrem apenas através de uma névoa, como em sonho”. Desde o final do século XII, Gautier Map notara que a memória oral cobria no máximo cem anos. É o que ele chamava seu tempo, a época moderna. E, nos últimos séculos da Idade Média, os historiadores com frequência distinguiam os tempos modernos, que a frágil memória dos homens podia ainda alcançar, dos tempos antigos, cuja obscuridade só a escrita podia penetrar.

Exatamente como hoje, os historiadores pretendiam utilizar documentos de arquivos. Além disso, eram sempre eles que, para defender os direitos de seu mosteiro, nele guardavam os documentos originais, classificavam-nos e recopiavam-nos em cartulários. Porém a leitura e interpretação desses velhos pergaminhos não avançavam sem colocar difíceis problemas. Seja como for, o historiador podia usufruir de um único fundo de arquivos, o de seu mosteiro. Uma história original e documentada só podia ser local. Quanto ao resto, o historiador dependia de histórias já escritas por seus predecessores. Não há historiador sem biblioteca e não há bons historiadores sem boas bibliotecas.

Ora, durante muito tempo as bibliotecas medievais não foram tão ricas. Elas contavam quase sempre com apenas algumas centenas de volumes. Só uns poucos eram livros de história. E tanto melhor se estivessem inventariados e acessíveis. Quem desejasse narrar a história do mundo a partir da Criação, dispunha então, com bastante facilidade, de alguns livros que Cassiodoro, no século VI, recomendara e que toda boa biblioteca devia possuir. A Bíblia, é óbvio. E a História eclesiástica, que Eusébio de Cesareia escreveu em grego e que Rufino traduziu para o latim e ampliou. E a História contra os pagãos, que o latino Orósio escreveu em 4I5-4I7. E alguns outros. Para tempos posteriores, o historiador dependia de raras obras, cuja difusão era lenta e espacialmente limitada, muito devendo ao acaso. Sigeberto havia terminado sua crônica universal em Gembloux, em III2. Orderico Vital estava feliz em ver uma cópia dela em Cambrai, pouco antes de II32, porque era uma dessas obras “modernas” que “muito dificilmente” se encontravam. Em II47, a crônica de Sigeberto estava em Beauvais. Foi lá que Roberto de Torigny a encontrou. Esse achado foi a origem do sucesso normando e inglês da crônica. Contudo, ao que parece, ela não foi conhecida em Londres antes do século XII.

Com o tempo, o peso do acaso diminuiu na difusão do conhecimento histórico. Pesquisadores mais bem preparados multiplicavam as pesquisas que lhes permitissem reencontrar velhos textos perdidos. As bibliotecas eram mais numerosas e os volumes mais abundantes e acessíveis. Em meados do século XIV, a peste negra fazia desaparecer as pessoas, não os livros. Menos procurados, tornavam-se menos caros. Um simples particular podia agora esperar reunir algumas dezenas, mesmo algumas centenas de volumes. A organização quase industrial da produção do livro manuscrito já permitira a extensa e rápida difusão de uma obra, quando a invenção da imprensa resultou na fabricação de livros às centenas (mas não ainda aos milhares). No início do século XVI, em alguns meses um historiador tinha em mãos uma obra às vezes escrita muito longe. Desde então, o problema do historiador sempre tem sido dominar uma documentação abundante demais. É preciso entender bem que antes o historiador esbarrava em muitas outras dificuldades. A Idade Média foi o tempo da documentação escassa.

 

Credibilidade e verossimilhança

O que também faltou aos historiadores da Idade Média, diz-se muitas vezes, foi o espírito crítico. E observa-se com gosto a ingenuidade com que podiam repetir histórias errôneas ou inverossímeis e a facilidade com que tantas mentiras mais ou menos grosseiras puderam impor-se.

De fato, as falsificações são inúmeras do início ao fim da Idade Média. No século IX, particularmente sob Carlos, o Calvo, apareceram falsificações que marcaram toda a cultura medieval. No fim do século XV, João Nanni, também conhecido por Annio de Viterbo, publicou em Roma as obras de vários autores da Antiguidade que se acreditavam perdidas: ele tinha escrito todas. Seguramente, a falsificação marca a Idade Média. Resta saber se ela revela certa ingenuidade.

Observemos, inicialmente, que as grandes fábricas de falsificações da Idade Média sempre foram grandes centros de cultura e erudição. Os historiadores de hoje muitas vezes têm alguma dificuldade em admitir que respeitáveis prelados e distintos sábios tivessem podido fabricar falsificações que nossa consciência condena. Mas o fato aí está. Como a falsa moeda, o falso texto é atividade de especialistas. Por outro lado, se há historiadores ingênuos, a muitos outros não falta espírito crítico. Eles sabem muito bem comparar as fontes e constatar, se existirem, as diferenças (varietas, diversitas, dissonantia). Simplesmente, eles não se sentem no direito de resolver essa diversidade. Oferecem todas as versões de que dispõem e convidam expressamente o leitor a escolher. Só que, às vezes, orientam sua escolha silenciando sobre a versão que lhes parece falha. É preciso saber entender o silêncio dos historiadores. Para julgá-los, não é suficiente encontrar a proveniência do que dizem; é necessário também ver o que sabiam e não disseram.

Preocupados em avaliar os textos, os historiadores da Idade Média não tinham, contudo, os mesmos critérios que nós. Primeiramente, eram enganados pela fraqueza de seus conhecimentos e pela falta de instrumentos eruditos. Temos, atualmente, todos esses instrumentos de trabalho que nos permitem, não sem fadiga, ir ao encontro da verdade. Eles tinham, quando muito, alguns catálogos, algumas genealogias mais ou menos falsas; permaneciam, diante das suas fontes, quase desarmados. Portanto, sua crítica devia basear-se na verossimilhança? Mas a verossimilhança é uma noção ambígua. O critério moral da verossimilhança foi, durante um tempo, primordial. Perdeu sua força no transcorrer dos séculos. Quando Lourenço Valla descreve o rei Martinho adormecendo durante uma audiência, ainda no século XV, reprova-lhe dizer uma coisa inverossímil, porque é contrário à dignidade de um rei adormecer durante uma audiência. Lourenço Valla não deixa de lhe responder que talvez não seja digno de um rei adormecer durante uma audiência, mas que não há nada de inverossímil em que um indivíduo, seja ele rei, adormeça durante uma audiência. A ordem natural das coisas tornava-se, pouco a pouco, a pedra de coque da verossimilhança.

Mas um milagre era sempre possível. Se bem que o único critério com que o historiador podia realmente contar era o da autoridade da fonte. Havia textos que tinham autoridade e textos que não. Havia textos que tinham mais ou menos autoridade. Deviam-na ao seu autor ou ao seu fiador. Um texto aprovado por um príncipe tinha menos autoridade que um texto aprovado por um rei. Um texto aprovado por um bispo tinha menos autoridade que um texto aprovado pelo papa e menos autoridade que um texto aprovado pela Igreja. Um texto aprovado pela Igreja tinha tanto mais autoridade quanto mais velho fosse.

Desse amplo princípio crítico provinham várias consequências. Nos primeiros séculos da Idade Média, quem queria melhor convencer podia tentar abrigar sua obra sob a autoridade de um homem vetusto e de prestígio. Mais tarde, para impor um texto no qual nada levava alguém a crer, o historiador algumas vezes teve a ideia de buscar a aprovação de uma autoridade. Por iniciativa própria, Caffaro havia escrito a história de Gênova desde II00. Em II52, apresentou-a aos cônsules de Gênova, que, ordenando que fosse transcrita por um escrivão público e depositada em arquivos públicos, fizeram dela um documento autêntico, em que se devia acreditar. Em I3 de abril de I362, o notário Roland de Pádua acabou de escrever sua crônica. Fez então que fosse lida diante dos veneráveis mestres da Universidade de Pádua, que a aprovaram com sua autoridade magistral e validaram-na. Na França, os historiadores de Saint-Denis estavam havia muito tempo preocupados em colocar sua obra sob a autoridade do abade e do rei. Em I8 de novembro de I437, quando retomou Paris e começou a restaurar suas funções, Carlos VII até criou um cargo de cronista da França. Confiou -o a um monge de Saint-Denis, João Chartier, que prestou juramento e recebeu salário, como todo oficial. Outros príncipes do Ocidente imitaram o rei de França. A história oficial nascia, na Idade Média, com toda a naturalidade do respeito que as autoridades inspiravam.

Se era condenável não respeitar um texto “católico”, “autêntico”, aprovado pela Igreja, cortar, resumir, modificar ou interpolar um texto era falha tanto mais perdoável quanto menor fosse sua autoridade. Assim, há obras respeitáveis de que a Idade Média escrupulosamente nos transmitiu o texto original, e outras que cada um podia, ao copiá-las, tratar como bem quisesse. Numerosas obras históricas eram dessas obras vivas, às quais cada geração, cada leitor, acrescentava sua pedra.

Enfim, desde que o critério não era o verdadeiro, mas o autêntico, não faltam exemplos em que um documento foi fabricado por um autor que bem sabia não ser ele verdadeiro, mas esperava que a aprovação de uma autoridade o tornasse autêntico.

Os historiadores eram muito estimulados a ir nessa direção, porque, se proclamavam sua vontade de dizer o que realmente tinha acontecido, frequentemente também pensavam que, sendo seu dever fornecer os melhores exemplos, era melhor relatar o que deveria ter acontecido. Miguel Pintoin, que escreveu em latim essa grande história do reinado de Carlos VI, conhecida com o nome de Crônica dos religiosos de Saint-Denis, tomou por tarefa, entre outras, descrever as cerimônias da corte nas quais se manifestava a majestade real. Se, por infelicidade, em tal circunstância um incidente a tinha denegrido, o Religioso não hesitava em transmitir à posteridade, como ainda o desejava Bartolomeu Facio um pouco mais tarde, somente a lembrança do que deveria ter sido.

Essas omissões em relação à verdade, essas mentiras, enfim, eram tão mais tentadoras quanto maior o contraste entre a ciência dos eruditos que ousavam fazê-las e a ignorância do público a quem se dirigiam. Os avanços da cultura histórica restringiam, pouco a pouco, o privilégio que por muito tempo tiveram os sábios de impor suas convicções como verdades.” (Bernard Guenée)

 

 

“Antes da “época da arte” e da “invenção do quadro”, teria havido, segundo Hans Belting, o “tempo das imagens e do culto”, ou seja, das concepções e das práticas não essencialmente estéticas, mas primeiramente cultuais e rituais das “imagens”. De fato, em se tratando da Cristandade medieval, a noção de “imagem” parece ser de uma singular fecundidade, mesmo que compreendamos pouco todos os sentidos correlatos do termo latino imago. Essa noção está, com efeito, no centro da concepção medieval do mundo e do homem: ela remete não somente aos objetos figurados (retábulos, esculturas, vitrais, miniaturas etc.), mas também às “imagens” da linguagem, metáforas, alegorias, similitudines, das obras literárias ou da pregação. Ela se refere também à imaginatio, às “imagens mentais” da meditação e da memória, dos sonhos e das visões, tão importantes na experiência religiosa do cristianismo e que são muitas vezes desenvolvidas em íntima relação com as imagens materiais que serviam à devoção dos clérigos e dos fiéis. A noção de imagem diz respeito, enfim, à antropologia cristã como um todo, pois é o homem – nada menos que isso – que a Bíblia, desde suas primeiras palavras, qualifica como “imagem”: Deus diz que modela o homem “ad imaginem et similitudinem nostram” (Gênesis I,26). Segundo o Novo Testamento, a Encarnação completou essa relação de imagem entre homem, Deus e Cristo. Pela fé, diz São Paulo, “somos transfigurados nessa mesma imagem, cada vez mais resplandecente, pela ação do Senhor, que é o Espírito” (2 Coríntios 3,I8) e, aliás, Cristo é a “imagem do Deus invisível” (Colossenses I,I5), como Ele mesmo disse: “Quem me ve, vê, vê o Pai” (João I4,9). Os teólogos da Idade Média tirarão dessas passagens bíblicas argumentos para legitimar a representação antropomórfica não somente do Filho, mas do Deus Pai, ultrapassando assim a proibição do Antigo Testamento referente a toda figuração de Deus e da Criatura.

É sobre essa complexa noção de imago que a cultura medieval se constituiu e justificou suas escolhas em matéria de imagens durante séculos. Pode-se, portanto, com justiça, ver na cultura medieval uma “cultura das imagens” que apresenta características originais, já que o cristianismo deixou sua marca no repertório iconográfico, na teoria e na finalidade das imagens. De um lado, as imagens cristãs da Idade Média deviam opor-se aos “ídolos” pagãos da Antiguidade e qualquer retorno à “idolatria” devia ser banido, uma vez que a crescente veneração das imagens despertava suspeitas. De outro lado, a hostilidade do judaísmo para com as imagens foi cada vez mais interpretada como uma consequência da obstinação dos judeus em não querer reconhecer no Cristo “a imagem do Deus invisível”. Mas a “cultura das imagens” da Cristandade latina conheceu igualmente uma via original em relação ao cristianismo grego de Bizâncio, tanto em seus ritmos de desenvolvimento (ignorando a maioria das tensões da crise iconoclasta e depois o triunfo da iconodulia entre os séculos VIII e IX) como em seu repertório, adotando livremente para suas próprias imagens uma variedade de formas, suportes, temas que contrastam com a relativa fixidez dos ícones ortodoxos.” (Jean-Claude Schmitt)

 

 

“Para explicar qual era a função das imagens na Idade Média, é comum citar-se a famosa carta que o papa Gregório Magno dirigiu no ano 600 ao bispo Sereno de Marselha. Este último, por temor à idolatria, tinha ordenado a destruição de pinturas em sua diocese. O papa reprovou essa atitude iconoclasta mostrando-lhe a utilidade das imagens, mas também os limites dentro dos quais convinha encerrar sua utilização: as imagens não devem ser “adoradas” como o são os ídolos pelos pagãos, mas também não devem ser destruídas. Elas têm, de fato, uma tripla função: lembram a história sagrada; suscitam o arrependimento dos pecadores; e, por fim, instruem os iletrados, que, ao contrário dos clérigos, não têm acesso direto à Bíblia. Desde então, frequentemente se insistiu neste ponto: as imagens seriam a “Bíblia dos iletrados”. De fato, a repetição das cenas mais importantes da iconografia cristã – Anunciação, Visitação, Natividade, Crucificação, Julgamento Final – facilitava seu reconhecimento pelos fiéis e tornava-os mais familiarizados com os fundamentos da crença cristã.” (Jean-Claude Schmitt)

 

 

“A Reforma Protestante do início do século XVI foi em grande parte o resultado da vontade dos leigos de assumir suas responsabilidades numa Igreja confiscada pelos clérigos. Em sua cidade, Nuremberg, que acabava de se unir a Lutero e de expulsar os padres, Dürer decidiu pintar, sem que lhe tivesse sido encomendado, imensas figuras dos apóstolos que ele ofereceu ao magistrado da cidade a fim de recordar-lhe que, a partir de então, ele estava encarregado das almas e não somente dos negócios temporais de seus concidadãos. As exigências religiosas dos reformados, bem como antes deles as dos lolardos da Inglaterra e dos hussitas na Boêmia, reavivaram o radicalismo iconoclasta: as imagens materiais poderiam desviar os fiéis das “imagens interiores” alimentadas pela palavra de Deus e pela meditação da Bíblia. Elas pareciam excessivamente ligadas à instituição eclesiástica e aos lucros materiais que esta tirava de seu culto (qualificado de idólatra), e também excessivamente ligadas ao culto dos santos e a outros “erros” da Igreja. Em certas regiões, as destruições dos iconoclastas foram consideráveis. Mas a crítica protestante suscitou uma profunda renovação das imagens católicas, defendidas pelo Concílio de Trento, difundidas pela Igreja barroca, mas confinadas em limites mais estreitos e mais bem definidos do que se pode chamar, a partir de então, de “arte religiosa”.” (Jean-Claude Schmitt)

 

 

“O problema do indivíduo comporta, acreditamos, dois aspectos diferentes, ainda que muito ligados: o da pessoa e o da individualidade. A pessoa pode ser definida como um “elo intermediário” entre sociedade e cultura. O indivíduo torna-se uma pessoa ao interiorizar a cultura, o sistema de valores, a visão de mundo que são próprios de uma sociedade ou de um grupo social. Nesse sentido, toda sociedade, em qualquer época, é feita de pessoas. De seu lado, a individualidade é uma pessoa que se voltou a uma autorreflexão e que se pensa como um eu particular, único.” (Aaron Gourevitch)

 

 

“Antes de mais nada, o historiador da individualidade pesquisa textos do tipo “autobiografia” e” confissão”, nos quais, à primeira vista, o indivíduo não pode deixar de revelar os mistérios de sua vida interior. Mas tais textos são de acesso extraordinariamente difícil, quer se trate das confissões de Orlo de Saint-Emmeran ou do bispo Rathier de Verona, do abade Guiberto de Nogent ou do abade Suger, de Abelardo ou de Heloísa, do bardo islandês Egill Skalagrimmson ou do rei e impostor norueguês Sverrir, do monge Salimbene ou enfim de Dante e de Petrarca. A pessoa busca meios para se exprimir, mas aqueles que a cultura põe à sua disposição são frequentemente, ou quase sempre, obstáculos para o conhecimento de si mesmo. O texto da “autobiografia”, da “confissão” ou da saga jamais é transparente; a poética, as regras do gênero, são tais que todo elemento pessoal e único é dissimulado pelos topoi, os lugares-comuns tradicionais e as citações dos escritos autorizados, de maneira que uma tela opaca e dificilmente identificável separa o pesquisador do objeto de sua pesquisa.

Ao tomar consciência de si, o autor medieval identifica-se constantemente com modelos ou “exemplos” emprestados das obras antigas, da Bíblia ou dos textos patrísticos. A frequência com que essas identificações se repetem entre os mais diferentes indivíduos permite supor que não se trata aqui somente de uma homenagem forçada. Parece que o indivíduo medieval só pôde se formar “assimilando” os fragmentos de outros indivíduos que ele podia captar nos textos.

Na sua Autobiografia, Guiberto de Nogent procura se exprimir imitando as Confissões, de Santo Agostinho, e pretende representar sua própria mãe recorrendo ao modelo de Mônica (a mãe de Agostinho). Quando Abelardo evoca os momentos críticos de sua existência, ele se compara a São Jerônimo: “a malevolência dos francos levou-me para o Ocidente [do seu retiro do Paráclito], como a dos romanos havia feito outrora com Jerônimo em relação ao Oriente”. Ele descreve sua condenação no Concílio de Soissons praticamente nos mesmos termos de que se serve o evangelista ao relatar a condenação de Cristo pelo sinédrio. Certamente, a personalidade de Abelardo é original e pode-se seguir G. P. Fedotov quando ele escreve que “o historiador não pode passar ao largo dessa catastrófica explosão da consciência individual que nos vem das profundezas da Idade Média”, mas é preciso reconhecer que essa “explosão” segue os cânones do século XII e que Abelardo “constrói” sua individualidade a partir de modelos “arquetípicos”. A mesma coisa para Heloísa. A fim de exprimir seu amor por Abelardo, ela usa imagens e palavras tiradas do Cântico dos cânticos. Ela também se identifica a Cornélia, a mulher de Pompeu, que acabava de voltar para casa após sua derrota: Cornélia oferece sua vida a seu marido a fim de apaziguar a cólera dos deuses que o atinge, da mesma forma que Heloísa, antecipando Abelardo, torna-se monja.

Paradoxalmente, a originalidade da personalidade afirmava-se por sua negação. É sem dúvida o que Georg Misch tinha em vista quando evocava o caráter “centrífugo” da personalidade medieval, que se construíra, segundo ele, de acordo com o princípio da “individuação morfológica” (as manifestações decisivas da personalidade referem-se às representações e às formas preestabelecidas que lhe parecem exteriores), contrariamente à personalidade” centrípeta” dos tempos modernos, que contém seu próprio centro (“individuação orgânica”).

Não se trata somente de procedimentos formais aos quais estavam sujeitos os autores das “confissões”, “vidas” e “autobiografias”, mas, na mesma medida, de cânones religiosos e éticos que eles eram obrigados a seguir. O cristão medieval que estava talvez altamente consciente de sua importância, até mesmo de seu valor excepcional, não podia exprimir espontaneamente esse sentimento, porque deveria a todo preço reprimir ou camuflar de todas as maneiras o pecado capital do orgulho. Bem no início da Idade Média, Gregório de Tours pede ao leitor que o desculpe pela rusticidade de sua língua, sua estupidez e seu precário conhecimento de latim. Se ele empreende a descrição da vida de São Martinho, é somente, escreve ele, porque sua falecida mãe convenceu-o em sonho que esse modo de escrever era o único acessível ao povo, sem o que ele jamais teria se lançado em semelhante empreendimento que excedia suas forças e suas capacidades. No último capítulo de sua História dos francos, o mesmo Gregório exorta os futuros bispos de Tours a não mudarem uma só palavra de seu texto e a preservarem suas obras na Íntegra. Desde quando se pode dizer que ele estava movido por uma humildade sincera ou por um sentimento de autor que a etiqueta literária e o medo do pecado conspiravam para refrear?

Estranho modo de fazer sua própria apologia, aquele que consiste em condenar seu orgulho e a ver em seus próprios infortúnios um castigo de Deus. E, contudo, o que fez Abelardo na História de minhas calamidades, porque, a despeito de todas as suas negações, ele de modo algum havia renunciado à ideia de que era o primeiro, até mesmo o único filósofo de seu tempo. Contemporâneo de Abelardo, Suger “diluiu” de certa forma seu eu no filho querido que é a abadia de Saint-Denis. Mas essa identificação é tamanha que a personalidade de Suger cintila por toda a abadia até absorvê-la completamente. A renúncia a si transforma-se em autossublimação...

É, portanto, difícil se aproximar da personalidade medieval, dificuldade que de resto era experimentada pelos contemporâneos. Eis aqui dois depoimentos sobre Abelardo, deixados por homens que o conheceram pessoalmente. Um pertence ao seu pior adversário, Bernardo de Claraval: “É um homem diferente de si mesmo, Herodes no interior, João no exterior; ele é inteiramente ambíguo e de monge só tem o nome e o hábito”. O outro é o seu epitáfio, redigido por seus amigos: “Aqui jaz Pedro Abelardo. Somente ele teria podido dizer o que era”. Para seus amigos, como para seus inimigos, Abelardo permanecia um enigma.

Tentou-se explicar a personalidade medieval em termos da psicanálise. Ela é de grande auxílio nesse caso? Ela não identifica uma doença quando há uma crise de individualidade provocada pelas condições específicas da vida religiosa? Um homem que se sentisse diferente de seu meio por seu comportamento ou sua vida intelectual (o que era, sem dúvida, o caso se ele era levado a escrever sobre si mesmo), naturalmente se achava muito instável, tanto no plano moral quanto no social. A fonte desse desconforto podia ser sua originalidade e não uma disfunção psíquica. As personalidades fortes jamais são portadoras de normas. Na Idade Média, quando a originalidade era considerada com suspeição, ela podia passar por uma anomalia tanto aos olhos do indivíduo em questão quanto aos de seu círculo de relações.

Admitamos, entretanto, que tal ou qual indivíduo efetivamente sofresse de perturbações psíquicas. O historiador interessa-se pouco pelas neuroses e psicoses. Se havia mesmo a perturbação, sua tarefa é estabelecer um elo entre ela e a cultura da época considerada. O que lhe importa saber, é justamente de que maneira aquele homem era louco.” (Aaron Gourevitch)

 

 

Patologia?

Pode-se supor que a tomada de consciência da pessoa encontrou na Idade Média grandes obstáculos e foi às vezes acompanhada de psicopatologias. A exigência religiosa de humildade, arrependimento, expiação, a condenação da originalidade individual na qual se via uma fonte de orgulho, tantos fatores incitavam o indivíduo a se exprimir ou sob a forma paradoxal da renúncia de si ou da automortificação, ou de uma extensão de seu eu às dimensões do Universo: a escala humana era-lhe inaplicável, porque ainda permanecia desconhecida.

Mesmo quando uma personalidade não é esmagada pelo peso da religião e do sentimento de culpa que dele decorre, tais conflitos impedem-no de se afirmar, a não ser sob formas que nos parecem pertencer à psicopatologia.

Concluindo, é preciso retornar a outro paradoxo, metodológico. A pessoa é a categoria central do estudo das mentalidades, cujos principais assuntos de interesse – percepção do tempo, do espaço, da natureza e do mundo sobrenatural, concepção das diferentes idades do homem, ética do trabalho, ideias de riqueza e de pobreza, consciência do direito ou das relações entre a sociedade e os grupos que a compõem, enfim toda a vasta esfera emocional – não são nada mais do que manifestações da pessoa humana. Nela, esses diferentes elementos formam um sistema que se exprimem na sua consciência e no seu subconsciente, determinando seu comportamento e atribuindo-lhe as cores específicas de cada cultura.

Mas o todo não se reduz à adição de suas diferentes partes, de maneira que é preciso tentar compreender o centro que as estrutura. Já dissemos, o estudo da personalidade medieval choca-se com obstáculos metodológicos dificilmente superáveis. As personagens que se encontram nos textos são pouco numerosas e suas personalidades dissimulam-se tão depressa nas suas conchas que continuam quase sempre inacessíveis.

Nesse sentido, a herança deixada por Opicínio, de certa forma “presa” entre Dante e os humanistas, perdida na fronteira entre Idade Média e Renascimento, retoma todo o interesse. Não se trata somente de um caso patológico, porque seus escritos e seus mapas ou desenhos não se contentam em exprimir o mal interior de um clérigo anônimo de Avignon: justamente porque seu autor sofria de um desequilíbrio psíquico, porque era incapaz de conter as expressões extremas de seu eu, seu contrapeso oscilou entre uma extrema humildade de um lado e uma extrema sublimação de outro, e essas oscilações, que são características da personalidade medieval, atingiram uma amplitude máxima, de maneira que aquela pessoa se exprimiu, sob uma forma patológica certamente, mas com a vantagem da franqueza e da espontaneidade que não seriam permitidas a uma pessoa mais equilibrada.” (Aaron Gourevitch)

 

 

“Desde o fulgurante avanço muçulmano sobre a Península Ibérica e a Gália no século VIII até a conquista dos Bálcãs pelos otomanos nos séculos XIV e XV, a ameaça do Islã pairou sobre a Europa, periodicamente reavivada, por diversas razões, com maior ou menor intensidade. Se a expansão ocidental a partir do fim do século XI fez o Islã recuar no oeste, na Sicília e na Espanha, o mesmo não ocorreu no leste da Europa, onde os otomanos, senhores dos Bálcãs, sitiaram Viena em I529.

As aventuras transoceânicas iriam oferecer ao Ocidente condições para a dominação mundial, no quadro da qual a ameaça islâmica seria refreada, depois reduzida, e o próprio mundo muçulmano viria a ficar exposto aos empreendimentos europeus. Ao considerar-se esse longo processo histórico a partir da Europa ocidental, há uma incontestável continuidade entre o recuo do Islã no Mediterrâneo ocidental, a consolidação do poder europeu e sua expansão oceânica. Devem-se aos mediterrâneos os primeiros empreendimentos atlânticos significativos em fins do século XIII e na primeira metade do século XIV, no mesmo momento em que a expansão militar de Castela abria definitivamente o estreito de Gibraltar às frotas ocidentais (tomada de Algeciras em I344). Por essa via é que o capitalismo mediterrâneo e as técnicas marítimas atlânticas iriam se associar.

A luta contra o Islã contribuiu para a unidade da Europa do século VIII ao XV. Europeus do Mediterrâneo e do Atlântico aprenderiam em seguida a dominar o mar ocidental, e caberia a um genovês o privilégio de pôr fim à Idade Média ao descobrir a América. A exploração e a tomada de posse das imensidões que se abriam diante deles foram em parte motivadas pelo desejo de flanquear o Islã pelo sul da África ou pelo oeste, e de continuar a Cruzada ao descobrir os domínios do mítico “Preste João”. Para tanto, “serviram-se em boa parte do saber do inimigo muçulmano e da experiência adquirida graças aos contatos medievais que tinham ocasionado a Cruzada, e graças às muitas traduções de obras árabes em latim efetuadas na Espanha, Itália e França durante os séculos XII e XIII” (A. Hamdani). Cristóvão Colombo mostrou aos Reis Católicos que as riquezas trazidas da Índia serviriam para a reconquista de Jerusalém, mas apoiava-se num conhecimento geográfico herdado quase sempre dos árabes e das traduções que estes tinham feito dos sábios da Antiguidade.

O saber árabe teve importância considerável na formação da ciência e da cultura europeias. Entretanto, convém lembrar que a referida transferência não resultou de um processo pacífico de transmissão do saber. O movimento das traduções acompanhou a Reconquista. Os ocidentais enriqueceram os conhecimentos necessários ao seu desenvolvimento científico com a espada em punho, selecionando o que lhes parecia útil no próprio momento em que o pensamento árabe, incapaz de se renovar, esclerosava-se na fidelidade aos antigos mestres e fechava-se em suas preocupações exclusivamente religiosas e místicas. O sucesso extraordinário e quase imediato de Averróis no Ocidente – morto em II98, ele está traduzido para o latim desde a segunda década do século XIII – ilustra bem o distanciamento entre as duas culturas: no mundo muçulmano, ele “fechou” por assim dizer o ciclo da filosofia aristotélica, da qual representa ao mesmo tempo o apogeu e o fim; no mundo cristão, pelo contrário, constituiu o ponto de partida da renovação do pensamento europeu.” (Pierre Guichard)

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