Editora: UNESP
ISBN: 978-85-7665-361-5
Tradução (coord.): Hilário Franco Júnior
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 754
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Sinopse: Com o
objetivo de não apenas fornecer informações, mas traduzir o constante
desenvolvimento da história da Idade Média, os historiadores franceses
Jacques Le Goff e Jean-Claude Schmitt se lançaram na empreitada de organizar o Dicionário analítico do Ocidente medieval,
publicado agora no Brasil pela Editora Unesp. Guia para percorrer a Idade Média,
as centenas de verbetes convidam o leitor a pensar no passado e analisá-lo,
servindo como ferramenta para se pensar os caminhos que levaram a civilização
ocidental aos dias de hoje.
“Este dicionário é ‘analítico’ porque põe em destaque
todo um sistema de noções que dá conta do sistema medieval, conjunto complexo,
aberto, sem qualquer determinismo estrito que constitua um todo, uma
civilização”, escrevem Le Goff e Schmitt. “Os autores quiseram informar sobre
uma época bastante extensa (dez séculos, se considerarmos todo o tempo que
separa a Antiguidade tardia do Renascimento, ainda muito medieval), mas
principalmente demonstrar as significações desse período, explicá-lo. Isso foi
feito mediante cerca de sessenta noções, de dez a quinze páginas cada uma,
constituindo uma série de verbetes que, apesar de sua densidade, são abertos e
claros.”
Escrito por 66 medievalistas de nove nacionalidades, a
obra se compõe de dois volumes que, dado seu caráter de dicionário, não impõe
uma ordem obrigatória de leitura. “Ele conseguiu integrar os métodos e as
conquistas das recentes renovações da História desde a criação, na França, da
revista dos Annales, fundada por Marc Bloch e Lucien Febvre em 1929”, explicam
os autores.
“Não é preciso entender os princípios básicos da teoria
da gravitação para andar com os pés no chão, ou os mecanismos da fisiologia
para sentir sono e fome, mas, para melhor exercer seu papel político, social,
econômico e cultural, é importante que cada cidadão das democracias ocidentais
do século XXI conheça a trajetória histórica de sua sociedade e a de outras com
as quais ela se relaciona mais intimamente”, anota o coordenador da equipe de
tradução do texto, Hilário Franco Júnior. Os volumes contam ainda com cadernos
com ilustrações coloridas sobre os temas abordados.
A obra monumental sobre a Idade Média organizada por
Jacques Le Goff e Jean-Claude Schmitt, que agora sai em nova edição revista,
deslinda o complexo sistema de noções que constitui o tema do medievo.
Organizada em forma de dicionário, traz verbetes que seguem três linhas magnas
de orientação: o traçado de uma história do imaginário sobre a Idade Média; a
busca de uma Antropologia histórica, ou seja, a história em diálogo com as
ciências sociais; e o olhar desconfiado sobre noções pétreas sobre um período repleto
de problemáticas que, em grande parte, ainda tentamos solucionar.
“O poder da Igreja
A peça essencial do sistema não foi o
Paraíso, mas o Inferno. A Igreja Católica, para incitar os fiéis a trabalhar
por sua salvação, apresenta-lhes mais o medo do Inferno do que o desejo do
Paraíso. Diante da morte, eles temiam menos a própria morte do que o Inferno.
Assim se instala, apesar de algumas nuanças, um cristianismo do medo. Essas
práticas mostram como a Igreja medieval utiliza o Além para assentar sua dominação
sobre os cristãos e justificar a ordem do mundo pela qual ela vela. Em seu
ensinamento sobre o Juízo Final, ela dá um papel essencial, como porteiro do
Paraíso, a São Pedro, o chefe da Igreja. Sobretudo, em sua pastoral, ela põe em
evidência, notadamente na pregação, a função do Além criado por Deus para
corrigir as desigualdades e as injustiças da sociedade terrena. Lembrando que
todos os homens são irmãos, filhos de Deus, e a seus olhos desiguais apenas por
sua fé e seu comportamento, ela acalmava os excessos dos poderosos e dos maus
daqui de baixo, mas sobretudo a impaciência dos pobres e dos oprimidos, pela
evocação dos misericordiosos. Assim se explica por que, desde Santo Agostinho,
a Igreja combateu tão energicamente todos os revolucionários e reformadores que
apelaram para o advento da terra de santos que fará reinar a justiça no fim dos
tempos, durante o longo período do Milênio de que fala o Apocalipse. Ela
condenou os milenaristas como heréticos. O Além foi, assim, em outra visão da
história que tinha suas referências escriturais, mais um elemento nas lutas
ideológicas da Idade Média.
Nova geografia do Além: um terceiro lugar, o
Purgatório
O Além cristão bipolar permaneceu sem
modificações até o século XII. Grandes mudanças religiosas e sociais levaram
então ao nascimento de uma nova sociedade que transformou sua visão do mundo
não somente Aqui, mas também no Além. Santo Agostinho havia dividido os homens
em quatro categorias: os “completamente bons”, destinados ao Paraíso; os
“completamente maus”, enviados ao Inferno; os “não totalmente bons” e os “não
totalmente maus”, dos quais não se sabia muito bem a sorte que Deus lhes
reservava. Imaginou-se que os defuntos que pela ocasião da morte só estavam
carregados de pecados “leves” desfaziam-se deles sofrendo “penas purgatórias”
por meio de um “fogo purgatório”, semelhante ao fogo do Inferno e situado em
“lugares purgatórios”. A localização desses lugares continuava muito vaga. O
papa Gregório Magno, em fins do século VI, imaginou que eles poderiam se
encontrar na terra, mas a solução mais frequente foi distinguir no Inferno uma
geena inferior, o Inferno propriamente dito, de onde não se saía nunca, e uma
geena superior, de onde se poderia, depois de um tempo mais ou menos longo de
suplícios e purgação, subir ao Paraíso. Na segunda metade do século XII,
inventou-se um lugar independente para esses eleitos sob sursis, o Purgatório.
Esse foi o “terceiro lugar do Além”, intermediário entre o Paraíso e o Inferno,
lugar que desaparecerá no Juízo Final, esvaziado de seus habitantes, todos
elevados ao Céu. O tempo de estadia no Purgatório dependia de três fatores. Ele
era, primeiro, proporcional à quantidade de pecados (chamados doravante
“veniais”, isto é, remissíveis, por oposição aos pecados mortais, irremissíveis
para evitar o fogo do Inferno) dos quais o defunto estava carregado no momento
de sua morte. Dependia, em seguida, dos “sufrágios” (preces, esmolas, missas)
que os vivos, parentes ou amigos, pagavam para abreviar o tempo de purgatório
de certas “almas”. Por fim, a Igreja, mediante pagamento em dinheiro, podia
obter para certos defuntos o perdão integral ou parcial de seu tempo restante
de purgatório. Tais foram as “indulgências”, que a Igreja tornou objeto de um
comércio cada vez maior a partir do século XIII. O Purgatório, enfim, era de
sentido único: não se saía dele senão para ir ao Paraíso, não se podia
“retroceder” para o Inferno.
Foi grande a importância desse terceiro
lugar, que esvaziava parcialmente o Inferno e substituía o sistema binário do
Além por um sistema mais complexo e mais flexível, adequado à evolução dos
“estados” sociais na terra e que foi largamente difundido pelos frades das
Ordens Mendicantes criadas no começo do século XIII (dominicanos,
franciscanos). Ele assegurou o triunfo do julgamento individual no momento da
morte e, completando o sistema da confissão individual obrigatória para todos
os vivos ao menos uma vez por ano, determinado pelo IV Concílio de Latrão
(I2I5), contribuiu grandemente para a afirmação do indivíduo em relação aos
grupos e às ordens, o que caracteriza o fim da Idade Média. O Purgatório
transformou as estruturas e os comportamentos sociais do Aqui. Esteve na origem
de uma matematização dos pecados e das penitências que engendrou, nesse tempo
de desenvolvimento do comércio e dos mercadores, uma “contabilidade do Além”.
Enfim, aumentou consideravelmente o poder da Igreja (que no século XIII fez da
existência do Purgatório um dogma) sobre os mortos, estendendo ao Além do
Purgatório, por intermédio dos sufrágios e das indulgências, que dependiam
dela, um poder de jurisdição que anteriormente pertencia apenas a Deus.”
(Jacques Le Goff)
“A submissão, amansamento ou adestramento
individuais de certos animais selvagens aconteceu durante toda a Idade Média,
mas a verdadeira domesticação estendeu-se por milênios e ainda está em curso,
com a constituição de espécies ou de raças diferentes das primitivas.” (Robert
Delort)
“A reflexão sobre a significação do anjo da
guarda individual é retomada no final do século XIV pelos sermões de Ludolfo da
Saxônia, Vicente Ferrer e João Gerson, e termina com o reconhecimento da
primeira festa solene dos anjos da guarda pela bula pontifícia de I5I8, a
pedido do bispo de Rodez, Francisco de Estaing. Assim, a devoção aos anjos da
guarda, individuais ou coletivos, aparece como o legado essencial da
angelologia medieval à piedade moderna.
Em Gerson, tal devoção ainda está ligada à
ascensão mística, de acordo com a perspectiva dionisina; todavia, parece que o
anjo surge mais frequentemente como uma resposta à necessidade de proteção.
Dois aspectos destacam-se nessa figura: o guardião-combatente e o guia da alma.
O primeiro traço, mais precoce, se enraíza na função guerreira de São Miguel e
ocupa seu lugar na visão do mundo como teatro de um combate sem trégua entre
anjos e demônios. A onipresença angélica parece fazer eco à onipresença do
Diabo. É difícil não vislumbrar, por trás da “explosão demográfica dos anjos”
nas iluminuras e nas margens dos livros de horas, suportes da piedade das
elites laicas, uma resposta aos medos e angústias da salvação. O universo
angélico fornecia uma inesgotável reserva de intercessores e a visão
reconfortante de um universo povoado de espíritos benfazejos.
O anjo-guia ganha importância em razão da
insistência da pastoral sobre a salvação pessoal. Miguel permanece o modelo do
guardião e guia da alma, embora a ele se junte o arcanjo Rafael, promovido a
patrono dos viajantes no século XV. Desde a década de I330, a Peregrinação da alma, de Guilherme de
Digulleville, valoriza a dupla formada pela atina e seu anjo da guarda. No fim
do século XV, A arte de bem morrer põe em cena o anjo e o
demônio ao redor do leito do moribundo. A morte é o momento-chave do combate
terrestre entre os dois campos: o anjo é aquele que prepara o agonizante, que
orienta seus pensamentos, que lhe permite frustrar as últimas artimanhas do
demônio. A devoção ao protetor individual é tanto mais forte quanto mais se
dissemina a crença nos imensos poderes do demônio, posta em relevo por uma
poderosa iconografia. Satã não parece mais ligado à sua natureza angélica, e
sim ter adquirido uma tal autonomia que surge como rival de Deus.
A devoção ao anjo da guarda provocou práticas
ilícitas, mesmo porque a própria Igreja atribuía aos anjos possibilidades de
ação concreta. A invocação das potências celestes para fins utilitários e a
transmissão de conhecimentos por parte dos anjos caracterizam a “arte angélica”,
suscetível de bloquear o caminho dos ardis do demônio. A devoção ao anjo da
guarda insere-se na consciência da assimilação escatológica dos homens aos
seres celestes, estes representando o estado espiritual esperado por aqueles.
Os monges não têm mais o monopólio da “angelidade”, pois os leigos doravante
acedem a ela por meio de sua participação na liturgia e de sua vida devota.
Além disso, o próprio conteúdo da noção de vida angélica se alarga: atribui-se
aos anjos atividades intelectuais ou materiais, embora a imitação dos anjos não
se reduza à de sua função contemplativa e litúrgica. Essa evolução é
inseparável do interesse marcadamente crescente pelos anjos inferiores, quer
dizer, pelos anjos ativos, em contato permanente com o universo físico e com os
homens.
Mas a relação com o anjo toma, desde o século
XV, uma coloração sentimental que enfraquece seriamente sua significação. O
movimento dinâmico que une o Céu e a terra é concebido mais como um vai-e-vem
de anjos da guarda, conselheiros e intercessores aos quais se solicita ajuda,
do que como participação gradual na luz divina. Em tal esquema, a hierarquia
angélica se esbate e os anjos superiores, serafins, querubins e tronos, não têm
mais lugar.
A respeito da imagem de anjo, os visionários
do século XV quase não se afastam de seus predecessores do XIII: Francisca
Romana e Margarida Kempe viam seus anjos da guarda sob o aspecto de uma
criança, à qual a primeira delas atribui a idade de 9 anos, o que é uma maneira
nova de afirmar que ele pertence ao último dos coros celestes. Parece que se
assiste a um processo de rejuvenescimento do ser angélico, que toma a forma de
uma “feminização” ou de uma “infantilização”. De início homem jovem, o anjo
passa a ser visto depois como andrógino, adolescente, criança e nenê. De fato,
o século XV cria a imagem do putto, esse sincretismo entre o anjo e o
Cupido antigo, que veio a
ser uma das representações mais correntes do ser celeste nos séculos XVI e
XVII. O rejuvenescimento do sobrenatural estaria relacionado com a própria
ideia de Renascimento? É a mitologia greco-latina que é solicitada nesse
processo, mais do que as bases bíblicas, apesar da alusão evangélica aos anjos
das crianças (Mateus I8, I0). A imagem sincrética do putto associou-se ao fenômeno de
crescimento quantitativo da presença angélica nos manuscritos, para empobrecer
singularmente o peso espiritual do ser angélico.
Por detrás de uma aparência de uniformidade
doutrinal, abalada, porém, por heresias ou influências estrangeiras, percebe-se
uma gradual modificação do sistema angelofânico da tradição cristã ocidental.
Essa evolução é caracterizada pelo distanciamento do substrato bíblico, sobre o
qual se havia desenvolvido a dimensão teofânica do anjo. A imitação de Cristo,
na sua natureza humana e sofredora, suplantou a imitação dos anjos, concebida
primeiro de modo litúrgico e contemplativo, depois em termos de integração de
estados espirituais hierarquizados e de participação na luz divina. A
“antropologia angélica” não desapareceu, mas abriu-se a novas formas,
respondendo às necessidades dos leigos. Em compensação, o declínio do anjo como
forma de manifestação do Cristo e como potência mediadora ressalta o
desmoronamento do sentido teofânico bíblico. À “angelidade” do homem sucedeu
progressivamente a humanidade do anjo. O processo parece correspondente ao de
Cristo. Tornado confidente, conselheiro e intercessor, o anjo experimenta
sentimentos humanos e adota as atitudes do devoto. As tendências opostas da
iconografia do fim da Idade Média, atribuindo ao ser celeste uma corporeidade
etérea, luminosa e feminina, ou, ao contrário, a pesada corporeidade do puttto,
traduzem certa ruptura na tradição. O fim da hegemonia do modelo monástico,
centrado sobre a imitação dos anjos, a diversificação das vias espirituais
nascida da evolução da sociedade medieval, a pressão das heresias, as
tendências ao sincretismo intelectual ou artístico, explicam em boa medida a amplitude
da transformação da figura angélica e a sobrevivência do anjo da guarda, que
permanece sozinho, face a face com o homem, após a Idade Média. Assim, os anjos
aparecem como reveladores das inflexões e das mutações do cristianismo
ocidental; exprimem sua tonalidade particular.” (Philippe Faure)
“A longa
prática das assembleias da Igreja
Quer tenham escrupulosamente cumprido seu
dever dominical – desde 506, um concílio realizado em Agde tornou a missa
obrigatória aos domingos – ou preferido ignorar a convocação do sino, os
cristãos da época medieval viveram num tempo marcado por exortações a fazer uma
pausa em suas ocupações e se dirigir a Deus. Inspirado na sucessão das
estações, o calendário litúrgico contribuía para transcender o curso regular
dos dias e colocava os heróis epônimos locais em um “panteão” com as dimensões
do universo católico.
Ainda que os dados quantitativos sobre
comparecimento à missa sejam muito raros e de exploração delicada, é certo que
a participação ativa dos fiéis na refeição eucarística perdeu importância
enquanto era exaltado o papel sacrificial e consagratório do celebrante, a
ponto de ser considerado um ato meritório a recitação solitária das preces do
cânone por parte de um único religioso. Contudo, mesmo no crepúsculo da Idade
Média, a missa nunca deixou de ser uma ocasião de reunião e a igreja paroquial
um lugar de afirmação de identidade. Prova da crescente vontade de associar os
vivos e os mortos conhecidos dos assistentes à comemoração da paixão do Cristo,
é a insistência nos dois. mementos, o rápido desenvolvimento das missas
votivas, a inclusão nas preces da homilia de pedidos ditados pelo pertencimento
a uma entidade política e a introdução do ritual da paz. Este último, onde a
troca do beijo na boca foi substituída pela circulação de um objeto destinado a
ser beijado, veio contrabalançar o uso da prece para os amigos, a qual supunha,
pelo menos implicitamente, a maldição dos inimigos.
A construção de uma igreja para nela celebrar
a missa constituiu um acontecimento, se não fundador, pelo menos fundamental na
história das comunidades rurais. Antes que se estabelecesse a rede de
paróquias, a partir do século X, os cristãos da Idade Média formaram células de
vida ao redor dos corpos de seus ancestrais. Não se tem certeza se a
implantação dos cemitérios precedeu ou seguiu a dos edifícios de culto, mas o
esquema da aldeia organizada em torno de sua igreja-necrópole prevaleceu em
todo o Ocidente. A instalação de pias batismais no santuário conferindo-lhe a
categoria de igreja paroquial implantou um sistema no qual cada fiel era
ritualmente introduzido, desde seu nascimento, no seio de uma comunidade por
muito tempo confundida com a sociedade.
Enquanto se formavam as paróquias, a ordem
clerical impunha-se como uma das componentes maiores do mundo medieval e se
apropriava da própria noção de Igreja. A separação entre clérigos, únicos
habilitados a entrar no coro, e a massa de leigos, abrigados no resto do
edifício, caracterizavam aqueles locais. Dotado de uma estrutura piramidal, o
clero, entretanto, nem sempre obedeceu aos impulsos de cima para baixo. Até o
fim do século XI, o exercício da colegialidade episcopal prevaleceu sobre a
primazia romana. Mais tarde, após um período de relativo equilíbrio, a
monarquia pontifical desenvolveu-se e finalmente superou um período de
terríveis dificuldades, durante as quais as assembleias conciliares apareceram
como rivais do papa no exercício da soberania. Mas, quer tenham servido ou não
ao desenvolvimento do poder pontifical (tanto do papa quanto do bispo), as
reuniões de clérigos de todos os escalões – deado, diocese, província, região,
circunscrição política ou mundo cristão – foram uma constante na vida da Igreja
medieval. Teoricamente aceitos para assistir a essas reuniões, os leigos só
foram em geral lá representados por seus chefes políticos.
No primeiro Concílio de Niceia (325), vemos
que a celebração de assembleias conciliares era considerada um costume. A
tradição fixou em oito o número dessas reuniões excepcionais, qualificadas de ecumênicas
e convocadas pelo imperador do Oriente, que de Niceia ao IV Concílio de
Constantinopla, em 869, trouxeram respostas precisas às controvérsias
dogmáticas e disciplinares que agitavam a Cristandade. Após a ruptura com a
ortodoxia (I054), a Igreja latina reatou por conta própria esse modo de
resolução de antagonismos. Os canonistas revalorizaram então o antigo princípio
Quod omnes tangit ab obnmibus debet tractari (“aquilo que concerne a
todos deve ser tratado por todos”), essencial para o desenvolvimento de todo
corpo social e político. Na assembleia de todos os bispos, sucessores dos
apóstolos, eles viam a Igreja reunida e visitada pelo Espírito Santo.
Buscava-se também a unanimidade para cada decisão e, inversamente, eram vistos
como cismáticos aqueles que se abstinham intencionalmente de participar da
celebração ou que se recusavam a aplicar os decretos firmados naquela ocasião.
Somente os bispos deliberavam e votavam, as demais pessoas convocadas
desempenhavam um papel de assistência ou de conselho.
Ostentando ou não a etiqueta de ecumênicos
(apesar da ausência quase total das Igrejas orientais), todas as grandes
assembleias conciliares que se seguiram à de Latrão I (II23) tiveram uma grande
repercussão no Ocidente, seja porque tomaram decisões políticas plenas de
consequências (deposição do imperador Frederico II em Lyon I, em I245), seja
porque envolveram um grande número de pessoas (segundo as estimativas, entre
800 e I.200 padres em Latrão IV, em I2I5), seja porque duraram vários anos, o
recorde pertencia ao Concílio de Basileia (I43I-I449), que se colocou como
verdadeiro parlamento da Igreja.
Contrariamente a vários concílios gerais, com
frequência reunidos por iniciativa do poder laico, o caráter eclesiástico dos
concílios reunidos pelo bispo metropolitano em uma província eclesiástica não
precisa ser demonstrado. A antiga disciplina, codificada pelo Concílio de
Latrão IV, determinava a organização de um concílio, mesmo que sua celebração
fosse anual, com o objetivo de corrigir abusos e regulamentar os costumes. Além
dos bispos da província, o arcebispo convidava os principais dignitários
eclesiásticos, tanto regulares como seculares, para sessões de aproximadamente
uma semana. A instituição parece ter funcionado notavelmente no século XIII.
Ela ocupou um lugar de destaque no pensamento dos reformadores dos séculos
posteriores: eles viam nela tanto um eficaz instrumento de purificação moral
como um contrapeso necessário às pretensões absolutistas da cúria romana.
As decisões das assembleias conciliares das
épocas antigas sempre constituíram uma referência de grande autoridade.
Fielmente compiladas em épocas nas quais a escrita era rara, elas formam o
coração das coleções canônicas e, por conseguinte, o fundo insubmersível do
direito da Igreja. A legislação pontifical, com o reforço das “falsas
decretais” isidorianas, tendia a substituí-lo, mas sempre precisou se
harmonizar com esse antigo e venerável patrimônio que funcionava por meio de um
colegiado. Em especial, a nomeação dos bispos pela assembleia de clérigos e de
fiéis da cidade era vista como regra. Na prática diocesana, ocorreu uma dupla
evolução: os procedimentos que, como a aclamação, eram os mais aptos a camuflar
as imposições foram, progressivamente, eliminados em benefício da escolha feita
por um grupo restrito de homens de boa reputação. Ao mesmo tempo, a composição
desse colégio eleitoral tendeu a se manter, excluindo todos aqueles que não
fossem cônegos da catedral. Nos séculos XII e XIII, esses últimos desempenharam
plenamente seu papel de grandes eleitores, beneficiando-se da tranquilidade de
seu claustro para organizar escrutínios quando não chegavam a um acordo sobre
um nome: cada um exprimia então, oralmente ou por escrito, sua opinião para
escrutinadores designados pelo conjunto dos votantes, os quais contabilizavam
em seguida os votos e proclamavam os resultados. Os cônegos encontraram-se, de facto, desprovidos de suas prerrogativas a partir do final do século XIII, diante das pressões conjugadas
dos príncipes e do papa; os recursos apresentados na cúria pelos perdedores das
votações favoreceram as intervenções pontificais, a tal ponto que se caminhou
quase imperceptivelmente em direção a um regime centralizador, visto, no
entanto, como de exceção.” (Helène Millet)
“Em um Império que soube manter até seus
últimos momentos escolas laicas muito semelhantes às do inundo greco-romano, e
que se proclamará sempre romano, o fato de seu programa escolar do enkykliospaideusis
(“educação geral”), do qual o cristianismo apenas expurgou os traços pagãos
demasiadamente visíveis, não reservar qualquer lugar à geografia – mesmo nos
períodos de apogeu cultural dos séculos IX-X ou dos séculos XIII-XV – não nos
deve surpreender: trata-se de um saber que permanece implícito, que se evita o
máximo possível reproduzir porque é “técnico”, como a estenografia ou o
direito, estes também excluídos e considerados pouco dignos. Ana Comneno, que
conhece bem o Ocidente, pede desculpas a seu leitor quando se vê obrigada a dar
algumas informações a respeito dos “bárbaros” ou simplesmente citar seus nomes.
Se os bizantinos são os homens mais cultos da Idade Média, eles possuem também
uma cultura cujos contornos foram enrijecidos pela cristianização, pois o povo
romano considera-se duplamente privilegiado, tanto por sua velha cultura grega
quanto por ter sido eleito por Deus. Também não é casual que os gregos
medievais comecem a fornecer verdadeiros ensinamentos sobre o mundo exterior no
momento em que, conscientes de certa esclerose de seu sistema educativo,
soberanos dos séculos XIII ao
XV, como Andrônico II, João Cantacuzeno e Manuel II Paleólogo, dotam o Império
de um ensino superior parcialmente inspirado na experiência universitária
ocidental e cuja qualidade levará Enéas Sílvio Piccolomini, o futuro papa Pio
II, a dizer que ninguém podia se considerar verdadeiramente culto antes de ter
completado sua educação em Constantinopla.”
“O direito de fortificar, ligado ao poder de
comando, o ban, é um direito público, regalista. Mas, consideremos que o
castelo tenha sido construído sem autorização de príncipe, em terras
patrimoniais do castelão, ou que este tenha recebido delegação da autoridade
pública; o fato é que o ban (e com ele a polícia e a justiça) foi
usurpado pelo detentor do castelo. Michel Bur mostrou que a primeira idade
feudal é revolucionária em relação ao regime anterior: o castelo – e
especialmente o castelo de colina – é o instrumento dessa revolução; ele
enraíza o poder no solo. É ao redor do castelo que gravitam os vassalos – todos
os feudos do reino da França dependem da torre do Louvre –, é do castelo que
vem e pesa a autoridade sobre os habitantes rurais. É então natural que a
colina, elemento topográfico, mais estável que as construções, tenha se tornado
o símbolo do poder. Sobre a colina abandonada em benefício de um novo castelo,
frequentemente se continuou a produzir a justiça senhorial. Explica-se dessa
forma o furor dos senhores do sul da França em recortar os relevos em forma de
colina. (...)
Em todos os casos, o resultado da atração
exercida pelo castelo é a concentração do hábitat camponês em detrimento das
aglomerações anteriores, menores e dispersas. Aliás, o fenômeno é geral, ou
largamente presente em todo o Ocidente, e o agrupamento se dá mesmo na ausência
do castelo. Mas não na ausência do senhorio. O impulso do movimento de
concentração dos hábitats que acompanha, pelo menos na cronologia, o
estabelecimento do regime feudal, não deve ser buscado na opressão, nem no medo
das guerras ou das invasões (sarracenas, por exemplo), nem nas vantagens
econômicas. É a necessidade de ordem, mesmo sendo uma ordem dura e severa, a
necessidade de paz civil, mesmo se permanece precária, que leva os homens a se
reunir sob a dominação senhorial e, então, frequentemente sob a proteção das
defesas castrenses.” (Jean-Marie Pesez)
“Na França, em compensação, Igreja e
cavalaria relacionaram-se desde cedo, em razão do enfraquecimento do poder real
nos séculos X e X. A Igreja tentou controlar a ordem pública e impregnar a
cavalaria com seus ideais e ritos, sem consegui-lo totalmente.
Igreja e
cavalaria
O ideal de não violência praticado por Jesus
e pelo cristianismo primitivo não sobreviveu, pelo menos na Igreja oficial, à
chegada ao poder dos imperadores cristãos. Desde o século V, Santo Agostinho
justifica o recurso à guerra empreendida por autoridades legítimas para
proteger a “pátria” (logo assimilada à Cristandade e à Igreja) ou para
recuperar um bem injustamente espoliado. Essa defesa da comunidade compete aos
imperadores no Império Romano decadente, depois aos reis e aos príncipes no
mundo “bárbaro” que o sucede no Ocidente. A proibição de derramar sangue
persiste para os eclesiásticos e, sobretudo, os monges, que em vários campos
aparecem como herdeiros e continuadores dos primeiros cristãos de quem
perpetuam certos valores, particularmente os da não violência. A sociedade
cristã, desde então, cinde-se em dois grupos de homens, cujos ideais não são
mais os mesmos. Os monges e os clérigos, milites Dei, servem a Deus no mosteiro por meio da oração, ou
no mundo por meio dos sacramentos; os leigos, milites saeculi, vivem no
“século”, mantêm os primeiros ou protegem-nos. A essa divisão em dois estados,
laico e eclesiástico, superpõe-se, a partir do século X, uma divisão funcional
representando as três ordens que subsistirão até o fim da Idade Média e mesmo
até a Revolução de I789: expressa-se pela célebre fórmula de Adalberon de Laon,
no começo do século XI, segundo a qual a casa de Deus, que se crê una, está na
verdade dividida em três, uns rezam, outros combatem, outros trabalham.
Existe, portanto, realmente, um 0rdo militum, uma ordem de
guerreiros. Aos olhos da Igreja, sua importância cresce na proporção que dela
necessita. Depois da era carolíngia, estabeleceu-se no Ocidente uma nova
sociedade, denominada feudal, caracterizada pelo declínio do poder central,
sobretudo na França, e pelo desenvolvimento dos principados, depois das
castelanias (século X-XI). Doravante, a ordem pública está nas mãos dos
castelões, assistidos por seus guerreiros. São eles que comandam, julgam e
recebem as taxas. São eles que fazem reinar a ordem ou a desordem.
A Igreja, para defender seus membros e bens e
para tentar refrear a violência desses guerreiros (milites), começa por
brandir as armas espirituais de que dispõe: a privação dos sacramentos coletiva
(interdito) ou individual (excomunhão). Do século X ao XII, com as instituições
de paz, ela tenta induzir os guerreiros a prestar juramento de não atacar,
roubar ou extorquir os que não podem se defender: eclesiásticos, mulheres
nobres não acompanhadas, camponeses e camponesas, pobres e desprotegidos em
geral. É a “paz de Deus”, de origem meridional (Le Puy, 975; Charroux, 989;
Narbonne, 990 etc.); pouco depois, a “trégua de Deus” tenta subtrair à
violência não somente os seres vivos, mas também as datas: festas solenes, dias
santos, descanso semanal, depois estendido, em lembrança da paixão de Cristo,
ao período da quinta-feira à noite à segunda de manhã. Pode-se comparar essa
limitação voluntária imposta aos guerreiros a uma verdadeira ascese, porém
insuficiente para assegurar a ordem. Testemunham-no a multiplicação de
concílios e assembleias de paz. O objetivo dessas instituições de paz não é
colocar a guerra fora da lei, sendo ela privada, mas reservar seu uso a um
período limitado e a uma categoria determinada de indivíduos, que praticam
entre eles esse esporte perigoso: os guerreiros profissionais. Trata-se de
promulgar regras para eles, um código deontológico impregnado de valores
cristãos.
A Igreja logo enfatiza o escândalo que
constitui a guerra no interior da Cristandade. “Aquele que mata um cristão
derrama o sangue de Cristo” (Narbonne, I054). Revezando-se com os mosteiros da
Ordem Cluniacense, o papado esforça-se para empenhar os cavaleiros no combate
contra os muçulmanos, na Espanha (Reconquista) ou na Terra Santa (cruzadas).
O sermão de Urbano II em Clermont (I095) situa-se na linha direta das
instituições de paz, e a primeira cruzada pode ser considerada como sua
consequência lógica. O papa condena os guerreiros cristãos que se matam por
algumas moedas, com risco para a alma; ao contrário, exalta os que, por Deus,
deixam a família para libertar o sepulcro do Senhor. Os que viessem a morrer em
tal expedição de peregrinação guerreira alcançavam infalivelmente as palmas do
martírio. Os cavaleiros cruzados, como os mártires outrora e os monges
recentemente, podem, portanto, ornar-se com o termo milites Christi. Mas
a Cruzada não é a cavalaria! Os cavaleiros não são todos cruzados e quando dela
participam, é por uma espécie de penitência, para remir os pecados de... sua
cavalaria!
A Igreja conseguiu institucionalizar a
Cruzada, mas não totalmente a cavalaria. A criação das ordens dos
monges-guerreiros, templários ou hospitalários, testemunha essa derrota.
Contudo, ela tentou por outras vias, em especial a liturgia do adubamento*.
Para proteger-se, desde o século X os estabelecimentos eclesiásticos recrutaram
guerreiros (milites ecclesiat) ou confiaram-se à proteção de senhores
laicos, nomeados como defensores ou advogados (defensores, advocati). Foi
por ocasião dessas investiduras de tipo vassálico, que a Igreja organizou
rituais reunindo fórmulas de bênção das armas e estandartes, outrora reservados
a reis e príncipes, por isso impregnados da antiga ideologia real de proteção
das igrejas e dos fracos. O ordo de Cambrai (século XI) é o que melhor
representa esses rituais. Essas fórmulas ainda estão em grande parte ausentes
dos testemunhos que possuímos para o século XII de rituais de adubamento de
cavaleiros “comuns”. Em compensação, no século XIII e mais ainda no XIV, elas
invadem os rituais de adubamento e contribuem para introduzir no conjunto da
cavalaria o antigo ideal régio de proteção da Igreja, da viúva” do órfão e dos
fracos em geral.
Assim, a ideologia cavaleiresca agrega-se
tardiamente à cavalaria. Além disso, trata-se aqui apenas da faceta religiosa
dessa ideologia. Existe outra, aristocrática e laica, profana, que se mistura
àquela para conferir à cavalaria a ética que lhe é própria.” (Jean Flori)
* Este termo técnico (adoubement) não
está dicionarizado em português, mas o verbo adubar, nas acepções de “equipar”,
“preparar”, “temperar”, decorre desses mesmos sentidos do francês adouber (significativamente
surgido em I080, na Chanson de Roland,
do qual derivou por volta de II50 aquele substantivo para indicar a cerimônia
de entrega das armas e equipamento que fazia de alguém um cavaleiro. [HFJ]
Torneios
e exercícios de cavalaria
O cavaleiro aprendiz, antes de ser adubado,
serve “pelas armas”, quase sempre como escudeiro, a um senhor de seu
parentesco, de preferência um tio materno, de posição superior à sua.
Polindo-lhe as armas, esfregando-lhe os cavalos, assistindo-o nos combates,
servindo-o à mesa e na caça, ele familiariza-se com o essencial da vida
cavaleiresca. Desse modo, pode treinar para combate nos exercícios de quintaine, em que se procura
atingir com a lança um manequim 0u um
escudo, e de behourds, justas de
treinamento mais próximas do combate real. Quanto aos cavaleiros, aperfeiçoam
sua técnica em torneios, que surgem a partir de meados do século XI e se
multiplicam no século seguinte, apesar das repetidas proibições da Igreja
(Clermont, II30). Até o fim do século XII, esses torneios não se diferenciam
das guerras verdadeiras, de que são réplica codificada. Como na guerra feudal,
dois campos se opõem, em combates coletivos feitos de ataques compactos e de
emboscadas destinadas a isolar do grupo alguns indivíduos, se possível
bem-nascidos ou de prestígio, a fim de capturá-los para obter resgate ou
desmontá-los para se apossar de seu cavalo. O objetivo, nos torneios como na
guerra, consiste mais em acumular o saque e ampliar a glória do que em matar o
adversário, mesmo que tais acidentes não
sejam raros, tão completa é a semelhança entre torneios e combates guerreiros.
É também a oportunidade para os cavaleiros pobres de atrair a atenção de algum
patrono rico e entrar para sua “equipe”, a seu serviço. O prestígio da façanha
cavaleiresca também pode ganhar os favores de uma rica viúva e, graças ao
casamento, assegurar a promoção social do herói. Pelo menos esse é o sonho dos
cavaleiros pobres.
Utilitários, mas prestigiosos desde a origem,
os torneios tornam-se mais faustosos e menos perigosos com o decorrer do tempo,
com o surgimento das armaduras e das armas “para diversão” (sem ponta de ferro)
que, sem anular totalmente os riscos, distanciam, contudo, os torneios da
verdadeira guerra. A proeza torna-se mais individual, mais teatral, e os
grandes torneios “flamejantes” dos séculos XIV e XV tomam rumos suntuários: a
nobreza procura neles se afirmar, tranquilizar e distrair ante a crescente
ameaça econômica e social da burguesia.
Destinados a aumentar a coesão dos esquadrões
de cavaleiros por meio de exercícios em conjunto, da camaradagem guerreira e
dos prazeres compartilhados, os torneios contribuíram incontestavelmente para
criar a mentalidade cavaleiresca e elaborar uma ética própria à cavalaria:
culto da coragem e do heroísmo, respeito ao código deontológico que poupa, por
interesse ou por ideal, o homem desarmado ou caído por terra; respeito à
palavra dada; zelo pela reputação, ampliada pela bravura de uns e pela
generosidade de outros.” (Jean Flori)
“Os romances de aventuras traduzem essa
tendência. Tomam, inicialmente, a forma dos romances antigos, de que Eneias, Heitor ou Alexandre representam os heróis. Repõem a Antiguidade em moda e introduzem nas
mentalidades elementos da moral laica, sobretudo um ideal novo, que também se
encontra nos trovadores provençais: a cortesia que exalta as boas maneiras, o
serviço à senhora, o amor dito “cortesão”, naturalmente adúltero, desprezando o
casamento e desdenhando o ciúme. Pelo que já se disse, deve-se ver aí uma
elaboração ideológica da pequena nobreza? É possível. Mas pode-se também
sustentar que os príncipes e senhores usaram os modelos cortesãos em proveito
próprio, para atrair os cavaleiros. Em troca, está claro que o ideal cortesão
se opõe radicalmente à moral tradicional da Igreja: ele canta o amor sensual, o
apelo aos favores da dama casada, a procura do luxo e da moda, o brilho dos
tecidos, das riquezas e das cores, a bravura guerreira desinteressada, o porte
imponente, a altivez, mesmo a arrogância aristocráticas. O fato de essas
colorações cortesãs não terem cessado de impregnar as obras literárias diz
muito da influência laica e mundana que se exerce sobre a mentalidade da
cavalaria e penetra sua ideologia.
As origens célticas e míticas da “matéria da
Bretanha” contribuem ainda mais para aumentar essa influência. Os romances arturianos exalam um perturbador perfume de maravilhoso pagão que a posterior
cristianização de alguns de seus temas não dissipa totalmente. Eles idealizam
um novo tipo de herói, o cavaleiro errante em busca de aventuras, força
sobrenatural que, como o amor, o impele a ultrapassar, a dilatar ao máximo os
limites do inacessível. Lancelote representa o modelo dessa cavalaria mundana.
Nele reúnem-se as virtudes guerreiras dos heróis épicos e os valores corteses
dos romances antigos. Esse ideal cavaleiresco, totalmente profano, de moral
ambígua, marca profundamente as mentalidades dos escritores da Idade Média, de
Chrétien de Troyes a Froissart.
Evidentemente, a Igreja opõe-se-lhe e
condena-o. Mas é tal a aceitação desses romances pelo público, aristocrático ou
não, que seria impossível refrear semelhante torrente; melhor tentar
revertê-la. Assiste-se, então, à cristianização da maior parte dos temas
arturianos. É assim que o Graal, profano no início, ganha cores religiosas, e
que sua demanda se reveste de sentido eucarístico. Galaaz, piedoso, místico e
puro, encarna a cavalaria “celestial”, cuja imagem a Igreja tenta impor à
cavalaria “terrena” de Alexandre, Lancelote e Percival.
Ao mesmo tempo, começa a idealização da
Cruzada e o ciclo épico de Godofredo de Bulhão populariza seu herói, o
cavaleiro cruzado. Em meados do século XIII, o tema dos “Novos Bravos” faculta
a elaboração de uma espécie de história santa da cavalaria, que, através da
Antiguidade e de seus modelos (Heitor, Alexandre, César), liga os heróis da
cavalaria cristã (Artur, Carlos Magno e Godofredo de Bulhão) aos da cavalaria
bíblica (Josué, Davi e Judas Macabeu).
Trata-se de uma tentativa de recuperação
ideológica. Ao longo da sua história, a cavalaria não deixou de venerar valores
que a Igreja oficial condenava. Esta podia, sem dúvida, aprovar a fidelidade
vassálica ou monárquica, as virtudes do companheirismo, a exaltação da coragem
moral e física dos guerreiros cristãos colocando a espada a serviço da pátria e
da Cristandade. Mas a essas virtudes sempre se misturaram aspectos mais
aristocráticos, mais claramente profanos, como a busca exacerbada da façanha
guerreira, a preocupação com a glória e o nome, o sentido excessivo de honra e
linhagem facultando a faide, a vingança, os costumes mundanos da
cortesia, sua exaltação do amor como valor supremo, seu desprezo pelo casamento
etc. A própria liberalidade era ambígua. Aliás, ela é antes uma virtude
aristocrática que cavaleiresca: a nobreza proporciona jantares, oferece
torneios e festas suntuosas, cede cavalos e armas, ouro e prata, vestimentas e
tecidos preciosos. Contrariamente à burguesia “cúpida”, que acumula, a nobreza
dilapida, resplandece. Ela redistribui as riquezas, mas os cavaleiros são, na
verdade, os primeiros, mesmo os únicos beneficiários das generosidades
ostentatórias. Porque generosidade não é caridade, e dádiva não é esmola.
Todos esses valores profanos, aristocráticos
e mundanos misturam-se ao ideal de luta pela fé cristã ou de proteção das
igrejas, das viúvas e dos órfãos, que a Igreja tentava havia muito tempo
imputar à cavalaria como sua missão particular, transferida dos reis. Sem
recusá-la, a cavalaria do século XI ao XIV, fabricou uma ideologia muito mais
complexa, multiforme, cambiante e fascinante.” (Jean Flori)
“A história desenrola-se sempre nos lugares,
no espaço. Tanto quanto às datas e aos tempos, o historiador deve estar atento
a essa característica fundamental da história.
Mas o espaço não é um continente inerte, mais
ou menos valorizado, mais ou menos orientado; é mais do que um quadro, é
diferente de um quadro no qual a história se desenrolaria em relativa
independência. O espaço produz a história tanto quanto é modificado e
construído por ela. Entre os elementos espaciais que estruturam a evolução dos
conjuntos históricos, nada há de mais revelador dessa interação e dessas
transformações que a relação entre centro (s) e periferia (s), e a observação
de sua evolução dentro de seus limites.
Uma sociedade, uma civilização, tem seus
limites, é um todo. Uma periferia na Idade Média é uma história de ocupação e
exploração do solo, portanto de demografia e de economia, de urbanização, de
sistema social e político: em situações-limite, feudalismo e Estado. É uma
história militar: conquista e defesa são os elementos essenciais do fenômeno
periférico; uma história tecnológica: a introdução, o encontro, a combinação
das técnicas militares, agrícolas e artesanais são aspectos capitais das
situações periféricas; uma história da religião: a conversão é um elemento fundamental, a criação de bispados, as formas
de evangelização, o comportamento das ordens religiosas, as práticas
litúrgicas; uma história da cultura: confluência da escrita e da oralidade dos
repertórios artísticos, difusão de estilos; uma história dos costumes: encontro
de hábitos vestimentares e alimentares (que se tornam, na periferia, a Europa
do vinh0 e da cerveja, a Europa das gorduras vegetais e das gorduras animais?);
uma história, enfim, do imaginário: há um lugar que mais faça sonhar que um
limite, uma frente, um horizonte, uma fronteira?
Numa perspectiva de “antropologia
territorial”, a história das relações segundo as realidades concretas e as
representações entre centro e periferia na Idade Média abarca todo o campo
histórico e geográfico da sociedade do Ocidente medieval.
As relações centro/periferia podem, como em
todos os outros períodos, exprimir-se por movimentos centrípetos e/ou
centrífugos. Durante a maior parte da Idade Média, o essencial desses
movimentos é centrífugo. Das regiões centrais há mais tempo romanizadas e
cristianizadas, eles partem em direção às periferias. Mas, durante o primeiro
período, do século V ao X, o principal movimento foi centrípeto, designado
pelos termos “invasão”, “deslocamento de povos” ou “migrações”. As periferias
penetram em direção ao centro. Essas migrações, vindas de periferias próximas
ou longínquas, foram complexas. A instalação dos francos na Gália, por exemplo,
situa-se num longo processo de aculturação recíproca entre francos e
galo-romanos, iniciado no século II e só encerrado por volta do século VII.
Aculturação bem-sucedida, apesar das fases de violência, guerras e destruição,
uma vez que ela acaba em uma verdadeira fusão entre as duas populações, sob o
impulso da Igreja, dos chefes bárbaros e das elites sociais eclesiásticas e
laicas. As periferias não evoluem apenas de forma brutal por meio de invasões
mais ou menos repentinas e maciças, mas são constituídas de infiltrações de
longa duração.
Uma periferia revelou-se de particular
importância, a periferia oriental. Não somente porque ela é um objeto de desenvolvimentos
e de confrontos especialmente fortes entre germanos e bálticos, germanos e
eslavos, germanos e húngaros, mas porque foi a mais aberta, a que acabou por
fim por colidir com a periferia de dois outros conjuntos de sociedades e de
duas civilizações que a bloquearam. Um primeiro contato negativo a aprofundou,
no coração da Europa, uma cisão fundamental que ainda hoje é uma linha
divisória interna capital, aquela que separa a Europa marcada pela Cristandade
latina daquela marcada pela Cristandade grega, a Europa de Roma e a de
Bizâncio. Ela acentuou a fronteira entre a parte ocidental e a parte oriental
do Império Romano. Do lado de cá, na Cristandade latina, a Polônia, o Estado
tcheco e a Eslováquia (a grande aposta da missão de Cirilo e Metódio), a Hungria,
a Eslovênia e a Croácia; do lado de lá, as regiões ocidentais do antigo império
russo e soviético, e a própria Rússia, a Romênia, a Bulgária, a Sérvia, a
Macedônia e a Grécia.
O outro choque foi com o Islã. Ele
compreendeu dois aspectos. Um foi o retorno para os territórios cristãos,
impulsionado pelo centro, de uma periferia mediterrânea conquistada pelos
muçulmanos nos séculos VII e VIII, ao passo que a periferia da África do Norte,
a periferia de Agostinho, tão importante nos primeiros séculos do cristianismo,
era definitivamente perdida. Essa periferia meridional, incluindo a Itália do
Sul, a Sicília e a Península Ibérica, foi objeto de uma reconquista
particularmente ativa e vitoriosa na Península Ibérica nos séculos XI e XII (a Reconquista propriamente dita) e
completada pela tomada total do reino muçulmano de Granada em I492. Ela
permaneceu uma periferia de um tipo especial. Em compensação, a conquista de
uma periferia longínqua de além-mar, a Terra Santa de Jerusalém, nos séculos
XII e XIII, encerrou-se com uma reconquista muçulmana.
Não se deve esquecer uma Europa periférica
interior com o seu universo de florestas e pântanos, as periferias em volta de
cada cidade, de quase cada aldeia, de cada mosteiro, de cada castelo.” (Jacques
Le Goff)
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