Editora: UNESP
ISBN: 978-85-393-0685-5
Tradução (coord.): Hilário Franco Júnior
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 754
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Sinopse: Ver Parte
I
“Diabo
Sob seus divers os nomes e com suas
aparências multiformes, o Diabo – Satã e seus demônios – é seguramente uma das
figuras mais importantes do universo do Ocidente medieval: encarnação do mal, oponente
das forças celestes, tentador do justo, inspirador dos ímpios e dos pecadores, verdugo
dos condenados, ele é onipresente e seu terrível poder se faz sentir em todos
os aspectos da vida e das representações mentais medievais. É o “príncipe deste
mundo” (João I2,3I), aqui “ele faz a festa” (J. Le Goff).
O Diabo, e em particular Satã, potência
parcialmente autônoma e que concentra o conjunto das causalidades maléficas, é
uma das criações mais interessantes e originais do cristianismo. O Antigo
Testamento em grande medida o ignora, com exceção de textos tardios, como o
livro da Sabedoria, que pela primeira vez interpreta a serpente tentadora do Éden
como uma figura do Diabo (Sabedoria 2,24). Se a literatura apócrifa judaica abre
aos demônios um espaço crescente, o Novo Testamento, por sua vez, marca uma
etapa decisiva, enfatizando o conflito entre as forças celestes e aquele que
São Paulo chamou de “o deus deste mundo” (2
Coríntios 4,4): lembrem-se especialmente as tentações de Cristo, as
parábolas ou ainda os combates do Apocalipse. Satã congrega a multidão dos
espíritos demoníacos do judaísmo popular e, ao mesmo tempo, procede da
dissociação da figura ambivalente de lahweh, o deus veterotestamentário, deus
tanto da cólera e do castigo quanto benfeitor. Na Antiguidade cristã, o Diabo
ocupa um lugar ainda maior, como o testemunham textos tão diversos quanto A vida de Santo Antônio, de Atanási0,
ou os escritos de Santo Agostinho. Ao que parece, a importância do Maligno vai
se reforçando globalmente durante o curso da Idade Média. Note-se que o Diabo
está quase totalmente ausente das imagens
cristãs até o século IX. É somente por volta do ano I000 que encontra uma
posição digna dele, quando se desenvolve uma representação específica
enfatizando sua monstruosidade e animalidade, e manifestando seu poder hostil
de modo cada vez mais insistente.
Contudo, mesmo que se tenda a interpretar o
universo como teatro de uma luta entre Deus e Satã, não se pode fazer do
cristianismo medieval uma variante das religiões dualistas. Ao contrário,
confrontado com as doutrinas de Mani e depois às do catarismo, o cristianismo
sempre se esforçou por se distinguir do dualismo (que se pode definir por duas
ideias essenciais: o princípio do mal não foi criado por Deus e é totalmente independente
dele; o mundo material não foi criado por Deus, mas pelo princípio do mal). A
doutrina cristã sustenta, ao contrário, que Deus é fonte e senhor de todas as
coisas, enquanto Satã é uma criatura, um anjo decaído; submetido a Deus e que
não pode agir sem sua permissão. No entanto, uma forte tendência centrífuga –
uma tentação politeísta? – trabalha os estratos mais profundos do cristianismo
medieval. As incessantes advertências da doutrina não impediram o
desenvolvimento de uma faceta, sem dúvida vivida de forma muito sensível, que
dá ao Diabo um vasto campo de autonomia.
A esse respeito, é significativa a história
do cânone Episcopi (século IX), que
define o ponto de vista que a Igreja conservou por longo tempo em questão de
feitiçaria. Longe de propor a perseguição das feiticeiras, afirma que a crença
no voo noturno não tem fundamento e que deve ser denunciada como ilusão: os que
creem nisso desviam-se da verdadeira fé, pois “pensam que existe uma outra
potência divina além do Deus único”. Ora, no século XV, os clérigos reincidirão
nessas concepções e admitirão a realidade do voo noturno. Serão como os
heréticos de outrora, denunciados porque acreditavam na existência de uma
divindade diabólica. Desse modo, involuntariamente, consagrarão a vitória de
Satã.” (Jérôme Baschet)
“Embora o caráter personalizado dos demônios
pareça menos desenvolvido do que o dos anjos da guarda, não deixa de ser
verdade que a consciência cristã se vê assaltada por seres diabólicos. Enquanto
na Alta Idade Média a presença do demônio no indivíduo ocorre sob a forma de
possessão, e de seu complemento ritual, o exorcismo, tal tipo de manifestação
tende a recuar depois do ano I000. Em compensação, multiplicam-se então os
testemunhos relativos à obsessão diabólica, em particular no meio monástico.
Percebe-se nesses relatos sinais de uma
consciência atormentada, perseguida por forças hostis. O Diabo exprime tudo o que
a consciência não pode reconhecer como emanando dela própria (e nem de Deus),
tudo que ela julga negativo, hostil, e que deve ser rejeitado, colocado para
fora de si. Sabe-se que, segundo Freud, os demônios são formas personificadas
de maus desejos, recalcados. São pulsões sexuais angustiantes que se manifestam
quando, por exemplo, a mãe de Guiberto de Nogent conta que um diabo deitava sobre
ela para oprimi-la, ou ainda nos casos de “poluções noturnas” que os monges
atribuem à intervenção do Diabo. Mas este também pode aparecer como porta-voz
de pulsões mórbidas; por exemplo, quando manda um peregrino de São Tiago se castrar
e se matar.
O universo diabólico permite a expressão de fantasmas
multiformes. As características sexuais dos demônios são com frequência enfatizadas,
notadamente quando providos de órgãos sexuais desmesurados e agridem os condenados
(afrescos da colegiada de San Giminiano). A analidade não é menos importante:
nos grandes afrescos italianos do Inferno, a partir de Giotto, o próprio Satã
aparece excretando os danados. De maneira ainda mais intensa, o mundo diabólico
é posto sob o signo de uma oralidade angustiante, devoradora. O próprio Inferno
é geralmente simbolizado pela imensa goela do Leviatã. É sobre a boca
contorcida, desmesurada, geralmente animal do Diabo, que se concentra uma parte
importante de seu poder ameaçador. Enfim, a multiplicação de rostos e bocas no
corpo dos demônios, o que cresce entre os séculos XII e XIV, pode ser
considerada como o triunfo dessa oralidade hostil. Assim, o mundo diabólico
aparece menos como o porta-voz do “baixo corporal” do que como lugar de
expressão de imagens corporais e sexuais particularmente angustiantes.
Ao menos durante a Idade Média central, a
crença no Diabo é expressão de uma consciência individual necessariamente
culpável, atormentada e dividida. A consciência cristã encontra em si um mal
que é preciso repelir, que ela pode em parte atribuir às tentações do Diabo e
combater como a um inimigo exterior. O Diabo atormenta a consciência, mas ao
mesmo tempo a ajuda a se constituir no interior de um universo dual no qual se
opõem o bem e o mal, Deus e Satã, o anjo da guarda e o diabo pessoal.” (Jérôme
Baschet)
“Ora não são as instituições que produzem a história,
são os homens, mesmo quando eles o conseguem apenas graças às instituições.”
(Jacques Chiffoleau)
“O
Anticristo e o fim do mundo
A aparição do Anticristo, já evocada na Primeira
epístola de João (2,I8 e 22;4,3), e a grande perseguição aos cristãos que o
surgimento dele provocará desempenharam um papel decisivo nas representações escatológicas
da Idade Média. As representações do Anticristo foram profundamente marcadas pela
exposição de Jerônimo em seu comentário do Livro de Daniel, redigido no começo
do século V. A crer em Jerônimo, o Anticristo é de origem judaica, vem da
Babilônia, exercerá o poder durante três anos e meio, sua morte precederá em 45
dias o Juízo Final. As ideias medievais sobre o fim do mundo e sobre o Anticristo
também foram influenciadas por Remígio de Auxerre, que, em meados do século XI,
escreveu comentários sobre a Segunda epístola de Paulo aos tessalonicenses e
sobre o Apocalipse. Ele imagina um cenário que se imporá amplamente: a aparição
do Anticristo, precedendo o fim do mundo, ocorrerá somente após a dispersão (discessio) dos reinos do
Império Romano. Nascido na Babilônia, da tribo judaica de Dan, o Anticristo
começará por atrair para sua causa os judeus, cuja conversão última Remígio não
menciona; depois da destruição do Império Romano, reinará por três anos e meio
antes de ser morto no Monte das Oliveiras por Cristo ou pelo arcanjo Miguel.
Restará, então, pouco tempo para os justos fazer em penitência antes do Juízo
Final. Tal é o esquema fundamental que permanece válido, com algumas
modificações menores, para numerosos autores e durante toda a Ida de Média.
A perspectiva da vinda do Anticristo, figura
central do evento escatológico, só poderia estimular a interpretação de
catástrofes naturais; de epidemias, de desordens duradouras de vidas à guerra,
e também de situações sociais ou religiosas intoleráveis, como signos
precursores de sua vinda próxima e, portanto, do fim do mundo que o sucederia.
Na primeira metade do século X, o abade Odo de Cluny, está persuadido de que a
vinda do Anticristo e do fim do mundo estão próximos, em razão das “ondas de injustiça”
que se elevam cada vez mais. Por volta do ano I000 e por volta do ano I033, isto é, mil anos após o
nascimento do Cristo ou depois de sua crucificação, não houve psicose geral. No
entanto, nossas fontes revelam claramente o medo de ver acabar o milênio
durante o qual Satã teria estado preso, conforme as promessas do Apocalipse.
Pode-se também perceber um certo pressentimento do fim do mundo entre os
participantes do que se chama “Cruzada Popular”, contemporânea à primeira
cruzada. Por outro lado, a palavra de ordem de Bernardo de Claraval, no começo da
segunda cruzada, conclamando os cruzados a ou converter ou aniquilar os pagãos,
deve evidentemente ser interpretada sobre o pano de fundo de esperas
escatológicas.
O conflito entre as duas potências universais
do Ocidente, o papado e o Império, por ocasião da Querela das Investiduras, vai
igualmente dar lugar a interpretações escatológicas. Estas aparecem
principalmente entre os autores eclesiásticos alemães. Oto de Freising, na Crônica
(7,34) que redige na década de II40, declara estar convencido de que a
ruptura entre o papa Gregório VII e o imperador Henrique IV, assim como “a fétida
propensão ao pecado destes tempos altamente conturbados”, são sinais da
iminência do fim do mundo. Só o monaquismo, reforçado por nossas ordens
reformadoras e mais particularmente pelos cistercienses, poderia, por seus méritos·ou
suas preces, acabar provisoriamente com tal ameaça.
Assim, as catástrofes e as desordens cada vez
mais acentuadas da sociedade ocidental exacerbaram a ideia, muito corrente,
segundo a qual a humanidade estava para viver o último século de sua existência
e que o fim ·do inundo estava próximo. A perspectiva de um apocalipse iminente difunde-se
bastante. Do ponto de vista dos monges, sobretudo os funestos eventos da época,
caracterizados pela pecabilidade do homem, aparecem como pródromos diretos do
fim. O Anticristo e o fim do mundo estão próximos, portanto, é preciso estar
vigilante e fazer penitência. Os autores eclesiásticos veem na descrição dos
pecados do homem e dos horrores do fim do mundo um bom meio de impressionar
seus próximos e de levá-los a se converter. A alusão ao Juízo Final, mais ou
menos próximo, mas cuja data continuará sempre imprevisível, aparece como um meio
educativo propositalmente utilizado pela Igreja; trata-se de inspirar temor, sem
paralisar os homens. Tais concepções escatológicas, que estabelecem uma ligação
relativamente estreita entre a situação atual, considerada sob uma luz
extremamente negativa e que permite pressagiar a aparição do Anticristo, e o
fim deste mundo, não oferecem nenhuma esperança de transformação profunda das
condições existentes; elas encerram, em sua essência, uma visão pessimista do
futuro até o Juízo Final. A perspectiva, frequentemente levantada , do retorno
de Elias e de Henoc, bem como da conversão dos judeus e dos pagãos, não
pretende tampouco descrever uma evolução positiva precedendo a aparição do
Cristo como Juiz universal.” (Bernhard Tôpfer)
“Às portas do século XIII, um fato novo se
produz na história das escolas: a emergência de uma instituição – a Universidade
– na qual mestres eclesiásticos especialistas da cultura se associam para
formar um corpo profissional segundo o modelo das corporações de ofício.
Consagrado pelo papa, esse corpo é englobado pela Igreja a título de
instituição autônoma que, subtraída à jurisdição dos bispos e dos senhores,
está submetida unicamente ao poder pontifício e a seu controle doutrinário.
Essa nova instituição desenvolve-se de início em Paris e em Oxford (o studium de Bolonha é um caso
à parte) e não é separável da emergência da cultura – fortemente organizada e
privilegiada de maneira exclusiva – que chamamos “escolástica”.
Nascidas conjuntamente, a Universidade e a
escolástica estão ligadas uma à outra: a Universidade é o corpo fechado
constituído pelos mestres, e a escolástica é o ensino magistral que a
Universidade tem por função proporcionar. Vivem uma para a outra: não há
Universidade sem escolástica nem escolástica sem Universidade. Depois de
séculos de implantação na Europa·(com setenta sedes universitárias no fim do
século XIV), elas se confundem também em seu declínio comum: o humanismo, que
se afirma a partir do século XV, é uma cultura livre, radicalmente antiescolástica
e estranha à instituição universitária.” (Franco Alessio)
“A Idade Média começa no século V quando se
dá o desmoronamento do mais poderoso Estado, cuja lembrança vai perdurar: o
Império Romano. Império de uma cidade que se tornou progressivamente imenso
espaço territorial, o Império Romano sofria da ambiguidade de sua própria natureza:
seu ideal cívico, de início limitado a Roma, estendeu-se à Itália, mas dele
partilhavam apenas os magistrados e os militares veteranos. O caráter meramente
predador de sua construção territorial perpetuou-se no fiscalismo. Para
acumular recursos, era necessário expandir o Império: ora, a própria dilatação
do espaço controlado tornava as conquistas mais difíceis, menos rentáveis
quando a agitação das populações germânicas no Ocidente e a concorrência
exacerbada com o Império Parta no Oriente absorviam o essencial dos recursos. Sem
poder aumentar a pressão fiscal, os imperadores arriscaram-se em manipulações
monetárias, provocando, por muito tempo, inevitável enfraquecimento econômico.
O sobressalto produzido pela militarização do Império, depois pela sua
cristianização no reinado de Constantino, prolongou sua existência, mas não lhe
deixou tempo para uma mudança em profundidade.
Efetivamente, o Império Romano desmoronou
apenas no Ocidente. No Oriente, subsistiu um império que chamamos de Bizantino
e cujas províncias do Egito e da Síria, desde o final do reinado de Heráclio,
foram tomadas pelos árabes. Seus súditos, até a queda final de Bizâncio, diziam-se
“romanos”. Na verdade, esse império representou um dos modelos possíveis da
evolução e da adaptação do sistema romano: um imperador que conjugava
sacralidade cristã e magistratura antiga, prática de associação e valorização
da legitimidade dinástica (os “porfirogênetas”, nascidos no palácio imperial),
que davam certa estabilidade à instituição; uma aristocracia civil animada pelo
ideal do serviço ao Estado; uma população de camponeses-soldados (os
estratiotas) ou marinheiros que garantiam a defesa da coletividade. Entretanto,
submetido a múltiplas pressões dos povos eslavos ou eslavizados (búlgaros,
russos), do Islã (árabes, turcos) e do Ocidente (normandos, depois cruzados),
esvaziado de sua substância econômica por seus “aliados” venezianos ou
genoveses, o Império Bizantino revelou-se incapaz de se regenerar, e do século
XII até seu desaparecimento, em I453,
sua decadência parecia inevitável.” (Jean-Philippe Genet)
“É indispensável mencionar esses
acontecimentos para compreender o Estado carolíngio, que foi o primeiro Estado
medieval. Não se pode dizer que a monarquia merovíngia tenha sido algo além de
um esboço de Estado. No entanto, em profundidade, a situação merovíngia
perdurou: o poder não tinha outro recurso senão o que ele possuía ou usurpava;
o Estado carolíngio permanece um Estado predador. Mas desde então ele tem uma
maior eficiência. O sistema de redistribuição em favor dos grandes funcionários
por intermédio de verdadeiras instituições (a vassalidade, a recomendação, o
juramento prestado ao imperador e sistemas de transferência da terra como o benefício
ou o precário) que permitem estabilizar e regular a relação social é a própria
essência do poder. O soberano e seus representantes na terra, condes, bispos e missi
dominici, esforçam-se
por controlar esse sistema multiplicando as visitas de inspeção, mantendo vivas
e ativas as instituições públicas (os tribunais, o exército) e fazendo observar
as disposições tomadas pelo monarca e seus conselheiros e consignadas nos
capitulares. E a espantosa série de conquistas de que Carlos Magno é autor
(Frísia, Saxônia, Francônia, Baviera, reino lombardo, Gótia, Marca da Espanha) irriga
com sangue revivificante o velho organismo do reino dos francos.
No entanto, não é essa a contribuição essencial
de Carlos Magno. É a construção ideológica de uma monarquia cristã: fazendo-se
coroar imperador em Roma, Carlos garante a renovatio imperii, o renascimento do império de
Constantino. Cercado de letrados anglo-saxões (Alcuíno), lombardos (Paulo Diácono)
e aquitânios, o imperador desenvolve sistematicamente uma imitatio imperii. Mas ele não é nem um novo
Constantino nem um novo Davi, o regente do povo eleito . Davi e Salomão foram
desde o começo constantemente evocados pela propaganda carolíngia em detrimento
dos bizantinos. Mas, como Davi, Carlos era a uma só vez rex et sacerdos (rei
e sacerdote), embora isso não implicasse para o soberano caráter sacerdotal,
apenas a função de pregador e fiador da ortodoxia: isso simplesmente quer dizer
que, sob sua autoridade e proteção, os povos e a Igreja devem viver em paz. Carlos
Magno e os intelectuais que o cercam conceberam assim uma monarquia
profundamente cristã na qual a questão dos dois poderes (do rei e da Igreja)
está resolvida antes de ter sido efetivamente colocada por um papado decadente.
Restauração
do Império e ascensão das monarquias
O edifício carolíngio não tardaria a desmoronar.
Desde meados do século IX, os ataques dos vikings, húngaros e sarracenos tinham
posto fim à sua expansão triunfante: na defensiva, o Império entra em fase de contração.
O velho problema da patrimonialidade do reino ressurge com as lutas ferozes que
opõem os filhos de Luís, o Piedoso: não apenas o Império está dividido a ponto
de o título imperial acabar por perder toda a significação como também os reis
rivais multiplicam as ofertas para garantir a fidelidade dos poderosos. Eles
estão de tal forma ofuscados pela competição imperial que preferem delegar seu
poder de mando aos condes que agrupam numerosos condados sob sua autoridade
para assumir os encargos da defesa contra os invasores. Assim, nasce no Império
uma série de principados, enquanto os últimos Carolíngios desaparecem, uns após
outros, despojados de suas terras e de seu prestígio. A pulverização do poder
público acentua-se ainda mais no século X e prossegue no XI. O poder de mando
de origem pública não desaparece, mas, despedaçado, reparte-se segundo uma hierarquia
variável no seio das elites da aristocracia militar, dos príncipes aos condes,
dos condes aos castelões e dos castelões aos mais poderosos senhores. Aí, esse
poder encontra outro, o do senhor rural sobre seus homens, seus dependentes. O
Estado não mais se resume a uma relação social privilegiada entre o soberano e
a aristocracia militar: ele está compreendido no conjunto de relações sociais
que estruturam essa classe aristocrática; é exatamente isso que constitui a
revolução feudal.
O Estado poderá, entretanto, restabelecer-se
e reformar-se. Dois fatos de estrutura explicam isso em parte. Em primeiro
lugar, a autoridade econômica mantém-se, e rapidamente, após o ano I000, conhece
mesmo um extraordinário crescimento, que vai durar até o século XIII. As
cidades do Ocidente, em decadência desde o século III, crescem e
multiplicam-se; a produção dos campos enquadrados nos senhorios, graças aos
arroteamentos, à diversificação e intensificação das culturas, nutre uma população
em pleno crescimento. O grande comércio renasce, uma grande indústria têxtil (Flandres,
Itália do norte) aparece; o contexto econômico é, portanto, favorável. Posteriormente,
com o Império Carolíngio desmoronado, a Igreja manteve-se: mais uma vez, os
invasores são convertidos. Sem dúvida, a instituição episcopal, quase integrada
ao Estado carolíngio, sofre com sua ruína e a instalação do feudalismo, mas a
fundação de mosteiros (como Cluny) dispensados pelo papado da tutela episcopal
permite uma reforma profunda e uma regeneração do monasticismo. Essa Igreja
reformada conserva intacta a memória histórica e a cultura jurídica e
ideológica oriundas do passado romano e carolíngio, e está pronta a fornecer
dirigentes de valor a um Estado renascente.” (Jean-Philippe Genet)
“Uma nova estrutura política, porém, emerge
lentamente no próprio coração do desastre carolíngio. Dessa aristocracia
militar que passou a exercer coletivamente o poder público distinguiam-se
gradualmente dois poderes, a monarquia feudal e a Igreja. Mas essa mesma
Igreja, após haver de início ajudado, voltava-se contra o poder imperial,
agindo poderosamente a favor das monarquias feudais. A reforma, há pouco
evocada, tivera como objetivo fundamental na sua primeira fase escapar ao
arbítrio e à violência inerentes ao feudalismo. Mesmo os senhores e detentores
de parcelas da autoridade pública (quantos bispos não eram também condes em
suas cidades?) e os clérigos arriscavam-se a ser absorvidos na tormenta. Os
imensos bens da Igreja eram presa tentadora para os feudais, que a espoliavam pura
e simplesmente, ou que garantiam a membros de sua família a posse hereditária
dos mais importantes benefícios e dos domínios que mais lhes interessavam. Para
salvar a Igreja, a reforma visava, antes de tudo, separar completamente a ordem
dos leigos da dos clérigos; fora do mundo dos leigos, a ordem eclesiástica
estaria livre para cumprir sua missão, regenerar a sociedade cristã e
conduzi-la pelo caminho da salvação. Nessa perspectiva, o celibato dos
sacerdotes (até então longe de ser a norma) tornava-se empresa essencial; no
tocante ao intercâmbio de mulheres, a ordem eclesiástica exercia estrito
controle dos laços de parentesco e reforçava o valor sacramental do laço
conjugal. Outro meio de ação sobre a aristocracia guerreira era a “paz de Deus”,
que visava disciplinar, se não impedir, a violência feudal, proibindo a guerra
em certos períodos e excluindo de suas devastações as mulheres, as crianças e
todos os que estavam sob proteção da Igreja. Programa ambicioso, que se chocava
com forte oposição no próprio seio da Igreja, cujos dirigentes eram quase sempre
originários dessa mesma aristocracia guerreira que ele tratava de combater. Os
reformadores eclesiásticos ficaram felizes em encontrar a aliança dos monarcas feudais:
os reis, não tendo as pretensões universais dos imperadores, não se mostravam
perigosos nesse plano.
Entre o Loire e o Mosa, onde se situava o
epicentro da revolução feudal, apenas uma monarquia subsiste inicialmente, a
dos Capetíngios. Eles não são, provavelmente, os mais poderosos príncipes
feudais do reino, e de início sua legitimidade não é clara. Somente eles, entretanto,
são reis, e sagrados: apoiando-se nessa força moral, vão fazer reconhecer sua
posição excepcional no reino e tornar, pouco a pouco, a monarquia feudal uma
instituição de envergadura diferente da dos principados feudais, por mais
poderosos que eles momentaneamente fossem. Quando o movimento de paz lançado
pela Igreja se enfraquece, eles o tomam sob sua responsabilidade; os bispos
recrutam por sua conta milícias comunais que os reis utilizam com os vassalos
submissos ao seu próprio ban [poder de mando] para defender o reino e manter
a paz, aplicando os julgamentos da justiça real. O princípio monárquico, com a
cumplicidade da Igreja, acrescenta seu prestígio e seu poder legitimador às
regras próprias do feudalismo e amplia muito sua eficiência, ao menos a partir
do momento em que foi respeitado. No coração da anarquia e da violência
arbitrárias do feudalismo, a monarquia feudal coloca-se como a imagem e a
garantia da legitimidade e da sacralidade do poder, da justiça e da paz: a
insistência dos Capetíngios em sua posição de “reis cristianíssimos” assinala
sua singularidade e sua eminência.
Ora, mesmo se a ação dos Capetíngios do século
XII, Luís VI e Luís VII, é valorizada pelo talento e inteligência excepcionais
do abade de Saint-Denis, Suger, a monarquia capetíngia logo teve de lutar pela
defesa do reino contra uma estrutura política concorrente. Em I066, de fato, o
duque da Normandia conquistou a Inglaterra e, transformando completamente a
sociedade e o sistema político anglo-saxão, lá introduziu o feudalismo e edificou
uma monarquia feudal. Mas a periferia britânica era para essa nova monarquia
apenas uma zona de dominação extensiva: a frente sobre a qual ela empenhou toda
a sua energia era continental, sobretudo quando o plantageneta Henrique II
anexou à Normandia o principado angevino de sua família e a Aquitânia de sua
esposa Eleonora. Duas monarquias feudais concorrentes defrontam-se, então, para
o controle do mesmo espaço e essa relação dialética faz delas duas estruturas
orientadas principalmente para a guerra, em conformidade com as mentalidades e
o gênero de vida da aristocracia feudal de que elas aparecem como o
prolongamento.
Em suma, durante os períodos precedentes, os
diferentes regna não eram senão
múltiplas facetas do todo inicial, o Império, disputadas entre os membros da mesma
família, que concorriam entre si corrompendo suas respectivas clientelas: a
guerra era uma estrutura endógena. As monarquias feudais, ao contrário,
caracterizavam-se por uma relação dialética de concorrência em que a guerra era
uma estrutura exógena; qualquer que fosse sua fraqueza aparente, os reis irão
desde logo aparecer como chefes naturais de suas aristocracias guerreiras:
assim se explica o sucesso em Saint-Denis do hasteamento da auriflama (estandarte
real) contra o Império, no século XII. Essa relação reproduziu-se, com os
mesmos efeitos, no caso das monarquias da Península Ibérica (Leão, depois Navarra
e Castela, Aragão, depois Portugal): a preponderância da estrutura feudal aí
era menor e as comunidades rurais e urbanas desempenharam um papel mais
importante; mas também concorreram entre si na sua própria zona para
apropriar-se, controlar e valorizar as terras tomadas aos muçulmanos na Reconqusta, vasta empresa guerreira. A
monarquia feudal apresenta, assim, duas faces contrastantes: uma de paz, de
justiça e de religião; outra, de guerra. Mas elas são inseparáveis e o
desenvolvimento de uma passa pelo da outra.
Nascimento
do Estado
Ao final do século XIII, ocorre uma mudança
decisiva que contém em germe a evolução futura e a transformação da monarquia
feudal no que se pode denominar Estado moderno, pois essa forma de Estado é o
ancestral direto, sem descontinuidade, do moderno Estado europeu atual. Tempo marcado
pela personalidade singular de São Luís, a concorrência entre as duas grandes
monarquias ocidentais assume uma violência e uma amplitude novas com Eduardo I
e Filipe, o Belo: Eduardo, conquistando o País de Gales e em seguida a Escócia,
pretende governar sua Aquitânia como soberano, no momento em que Filipe não
quer abandonar nenhuma de suas prerrogativas soberanas na Gasconha ou em Flandres.
A partir de I29I, os dois reis irão gastar na batalha grandes somas não somente
para equipar e pagar exércitos em que os profissionais desempenham um papel cada
vez mais determinante, como também para financiar alianças diplomáticas através
de toda a Europa. Estimou-se que, em I294, Eduardo I cobrou de impostos uma
quarta parte da massa monetária em circulação na Inglaterra...
Níveis semelhantes de fiscalidade tinham sido
alcançados anteriormente, em especial no auge da rivalidade entre Filipe
Augusto e os Plantagenetas, porém agora o esforço devia durar. Dos incessantes
conflitos franco-ingleses, anglo-escoceses, franco-flamengos do início do século
XIV, passa-se sem solução de continuidade à Guerra dos Cem Anos. Tanto a frequência
quanto o elevado nível da carga fiscal levam os soberanos a inovar e a passar
de uma fiscalidade feudal a uma fiscalidade de Estado que, a despeito das
repetidas experiências no decorrer do século precedente, é ao menos em parte
novidade. Da fiscalidade feudal, a monarquia guarda o conceito de auxilium, de “ajuda ao suserano”, e é
importante constatar que o “Estado moderno” nasceu onde se desenvolveu o
feudalismo (e onde foi importado pelos normandos ou pelos cruzados). Mas a
fiscalidade do Estado rompe com o caráter amplamente arbitrário da cobrança
feudal, feita de uma mistura de costumes e de “doações” ou de empréstimos que
são apenas uma espoliação aceita devido à relação de forças. Para manter essa cobrança
por mais tempo, é necessário demonstrar sua legitimidade e, pelo consentimento
negociado com os representantes dos que irão pagar, tornar a recusa fiscal difícil,
se não impossível. Para isso, existe o aparelho jurídico e ideológico necessário:
ele se desenvolvera havia já um século, e para o próprio uso (especialmente
para a Cruzada) da Igreja , que integrara no direito canônico princípios
jurídicos do direito romano (particularmente o princípio quod omnes tangit
ab omnibus tractari et approbari debet)1 e os indispensáveis mecanismos de representação e
delegação de poder. Com a ajuda dos clérigos que estão a seu serviço, os reis
buscam demonstrar que a guerra cria uma situação de necessidade: eles são
forçados a mobilizar homens e dinheiro para defender seu reino, e, defendendo o
reino, defendem os bens de todos os súditos, sendo, pois, natural que estes
contribuam com seus próprios bens para a defesa com um.
Mas, ao taxar o conjunto de seus súditos
porque são seus súditos, e não somente seus vassalos (com a obrigação de
eventualmente taxar seus próprios homens), os reis não executam uma simples mudança
de escala, mas uma verdadeira subversão do sistema político, que vai bem além
da multiplicação do número de contribuintes. Efetivamente, três mudanças
fundamentais decorreram dessa medida: em primeiro lugar, ela ignora as
diferenças de estatuto entre os homens e os poderes intermediários; livres e
não livres, clérigos e leigos, nobres e não nobres, todos têm vocação para, um
dia ou outro, ser contribuintes. Por outro lado, o conflito logo envolve os
reis do Ocidente e o papado: a humilhação de Bonifácio VIII em Anagni, depois o
exílio do papado em Avignon, mostram bem a vitória do Estado. Quanto à isenção
fiscal que Carlos VII acabou por conceder à nobreza (com, no final a mudança da
monarquia francesa em monarquia absoluta), esta é mais exceção do que regra; a
vassalidade, como a servidão, estão por isso mesmo destinadas a se enfraquecer
enquanto relações sociais determinantes. Em seguida, já que o Estado se reserva
o direito de, em caso de necessidade, apelar aos bens de seus súditos, é
preciso que esses bens existam e sejam protegidos: contra a arbitrariedade da
violência feudal e a flutuação dos variados tipos de terra que favorecem o
feudalismo, o Estado, por intermédio de seus juízes, vai permitir e proteger o
desenvolvimento da propriedade individual. Enfim, para negociar o assentimento
do súdito, o Estado estabelece com ele um diálogo que se opera, ao menos em
parte, por intermédio de assembleias representativas, como o Parlamento inglês,
os Estados franceses ou as Cortes ibéricas, e criou uma comunicação “política”,
posto que em toda parte os contribuintes irão subordinar seu acordo a
concessões e contrapartidas da parte do Estado. No Estado moderno, a taxação é
bem mais fácil (e rentável) porque fundamentada no consenso. Assim, o súdito
passível de cobrança é, antes de tudo, um súdito ativo na política,
prefiguração do que será, séculos mais tarde, o cidadão moderno. No fundo, o
Estado moderno cria um princípio de participação política que é novo porque não
está mais fundado no fato de o indivíduo pertencer à pólis; ele está adaptado a um
espaço extensível, não diferenciado, justamente o que o Império Romano não havia
conseguido. É sintomático, desse ponto de vista, que a redescoberta da palavra “política”
e de sua plena significação pelo viés da Política de Aristóteles coincida
exatamente com o nascimento do Estado moderno.
As resistências sociais no próprio seio dos “Estados
modernos” são fortes: resistências da aristocracia nobiliária e das burguesias
que veem suas prerrogativas ameaçadas; resistências dos campesinatos oprimidos
pela nova taxação que se junta à imposta pelos senhores. De maneira geral, contudo,
disputando os benefícios da distribuição do dinheiro cobrado, as elites da
sociedade política reconhecem a legitimidade da construção estatal. O Estado
transforma profundamente a sociedade por sua própria existência. É preciso
povoar as administrações e as cortes; oficiais de justiça e burocratas de toda
espécie são cada vez mais numerosos, pelo menos proporcionalmente a uma
população em profundo declínio até meados do século XV. Os “salários do rei”
distribuídos aos soldados, os ofícios e os cargos públicos que conferem
vantagens e autoridade, a benevolência e compreensão dos tribunais reais:
tantos privilégios levam a uma busca encarniçada, que obriga à concordância
mesmo aqueles que teriam podido contestar a ação do Estado. Os partidos
nobiliários lutam menos contra as cobranças do Estado do que para controlar sua
redistribuição em época de crise econômica e social e na qual a renda senhorial
estagnou ou diminuiu.
É necessário, no entanto, resguardar-se de
toda teleologia e anacronismo. As construções estatais medievais são várias e o
“Estado moderno” é apenas uma dentre elas: a Inglaterra e a Escócia, os reinos
ibéricos , a França e os principados que a cercam ou dependem dela (Brabante e,
de modo geral, os Estados borgonheses, Bretanha, Savoia), alguns principados do
Império. Existem outras construções: o Império, as monarquias “extensivas” da
Europa do leste efetivamente dominadas pela nobreza, as grandes cidades
italianas ou imperiais, que ainda mantêm rotas comerciais, o banco e estão em
melhores condições para mobilizar capital que as monarquias ocidentais. Por
outro lado, na medida em que a guerra é ao mesmo tempo causa e a melhor justificativa
do desenvolvimento do Estado moderno, Estado de guerra, deve suportar as devastações
e as vicissitudes de uma guerra que ele infatigavelmente alimentou. Uma era de
feroz e generalizada concorrência abre-se, assim, para a Europa, selecionando
impiedosamente os Estados mais competitivos: a própria complexidade do mapa
político da Europa no final do século XV mostra que o processo, na sua fase medieval,
está ainda apenas no seu começo.” (Jean-Philippe Genet)
I “O que atinge a todos deve ser aprovado por
todos”. [N.T.]
“A integração da fé em um
sistema de pensamento e de ordem
A partir do século IV, construiu-se um
verdadeiro saber cristão específico que se impôs como o conteúdo do ato de fé.
Desde então, estabelece-se gradualmente
o esquema clássico da Igreja
segundo o qual o fiel deve passar da fides
quae creditur (os elementos da crença) à fides qua creditur (a fé em ato).
Esse saber novo procedia da necessidade de
abstração e de desenvolvimento a partir das fontes da revelação. A mensagem
crística, com efeito, contém bem poucos elementos em matéria de dogma e de
rito, em geral neutralizando grande parte das injunções do Antigo Testamento.
Oferece uma esperança, uma moral, alguns esboços de sacramentos (o batismo e a eucaristia)
e de preces (o Pai-Nosso e as Bem-Aventuranças), mas nenhum sistema de
organização do mundo e da história. Razão pela qual a prática da exegese se imporá
para tentar suprir o que está ausente na letra: a explicação do texto torna-se
o primeiro ato de integração da fé em um saber orgânico. De modo mais radical,
foi preciso opor-se às diversas heresias e estabelecer um corpus de
verdades cristãs. Esse intenso esforço ocorreu no século IV (século do saber
trinitário construído essencialmente contra a heresia ariana, notadamente no
momento do Concílio de Niceia, em 325) e nos séculos V e VI (tempo da cristologia,
elaborada em contraposição, aos erros do nestorianismo, marcado pelos concílios
de Éfeso, em 43I, de Calcedônia, em 45I, e do II de Constantinopla, em 553). A
forte figura do imperador Justiniano, firme regente desses trabalhos e
construtor de um direito ao mesmo tempo romano e cristão, marca claramente as
relações entre a fé cristã e a gestão do mundo.
Ainda aqui, o Ocidente produziu inflexões
particulares. Até o século V, o que se pode anacronicamente chamar de teologia
desenvolve-se essencialmente no Oriente cristão: os Pais da Capadócia e depois
a Escola de Antioquia fornecem os elementos mais decisivos para a ciência
trinitária e cristológica. Grandes pensadores, como Máximo, o Confessor, ou João
Damasceno dão continuidade a essa reflexão até o século VII. Depois disso, no
entanto, a teologia torna-se estagnada, enquanto no Ocidente o progresso, lento
a princípio, retomado pelos debates sobre os sacramentos (séculos IX a XII),
termina por levar ao extraordinário florescimento da Idade Média central. Tal
fenômeno conduziu à extrema intelectualização da fé que singulariza o Ocidente
cristão.
A figura de Boécio (480-525) talvez permita
compreender as razões dessa divergência de destinos. Boécio, pela primeira vez
no mundo cristão, empreende a articulação sistemática do saber antigo e da
doutrina cristã. Começou por um gigantesco esforço de tradução e de comentário
das obras lógicas de Aristóteles e de Porfírio; compôs compilações de aritmética
e de música e alicerçou as bases da organização geral do saber (as sete artes liberais).
Essa obra de preservação desembocou no tratamento racional e lógico das
questões dogmáticas, realizado em cinco opúsculos teológicos nos quais as
noções de Trindade, de pessoa, de natureza divina, estavam articuladas com as
categorias de Aristóteles. O prólogo de seu tratado Contra Êutiques mostra
a vontade de compreender racionalmente o dogma: Boécio explica ali porque
redige esse tratado. Ele participava do Sínodo de Roma (5I2), que recebeu a
mensagem de um bispo da Cíntia expondo uma nova fórmula cristológica apoiada
pelo imperador e destinada a encerrar os debates entre nestorianos e monofisitas:
a pessoa do Cristo, saída de duas naturezas, residiria em duas
naturezas. Boécio compreendia mal essa fórmula, enquanto o clero romano
considerava-a evidente. A indignação com tal conformismo obscurantista levou-o
a refletir sobre a questão retomando os conceitos pela raiz: o que é uma
natureza? O que é uma pessoa? O episódio mostrava que já não era possível
manter a distinção entre fé recebida e saber construído, pois o debate, mesmo
sem apelar para a lógica profana, tinha atingido um alto grau de tecnicidade e
se renovava com muita rapidez. Por outro lado, a atitude de Boécio diante do
clero revelava que, desde então, abria-se uma brecha entre a instituição,
ansiosa pelo compromisso e pela adaptação, e a exigência intelectual de
compreensão, sustentada por um grupo de letrados conscientes de sua própria
legitimidade. Nesse sentido, Boécio aparece como o primeiro desses “intelectuais”
da Idade Média, os quais Jacques Le Goff mostrou que constituíam, a partir do
século XII, um elemento original da Cristandade ocidental. Não é por acaso que
a renovação teológica do século XII se fez, em grande medida, a partir dos comentários de Boécio (por
Thierry de Chartres, Gilberto de la Porrée, Clarembault de Arras e muitos
outros), a tal ponto que o padre Chenu designava o século XII como a aetas
boetbiana.
O contexto sociopolítico da obra de Boécio dá
conta de seu status de precursor: Boécio era um leigo, nascido numa antiga
família patrícia romana e exerceu altas funções administrativas para o rei ostrogodo
Teodorico, que, como a maioria dos reis “bárbaros” de então, era adepto do
arianismo. A erudita defesa da fé católica dava a Boécio a oportunidade de afirmar
a antiga legitimidade da cultura romana, associando-a à distante ortodoxia do imperador
de Bizâncio, contra a tirania e a heresia de um poder local e contra a apatia
de um clero pouco esclarecido. O fim de Boécio, selvagemente morto por ordem de
Teodorico, depois de ter redigido na prisão sua famosa Consolação da
filosofia, enaltece a dignidade do saber e termina por fazer dele uma
figura emblemática do letrado ocidental que une firmemente fé e razão. Mesmo
durante os séculos difíceis da Alta Idade Média, a ciência cristã continuou seu
curso, à margem dos poderes, leigos ou eclesiásticos, comumente hostis ou
indiferentes: os meios monásticos e depois, a partir do século XI, os grupos de
cônegos regulares não conheceram a forte solidariedade entre bispos, higomenos
e imperadores que caracteriza o Oriente (excetuado o momento da crise
iconoclasta); é essa situação, sem dúvida, que favorece a emergência do
terceiro poder, o do studium,
que levará à criação das universidades e das faculdades de Teologia
no século XIII, depois da fase de desenvolvimento das escolas catedrais e
canônicas no século XII.
As etapas dessa conquista da fé pela razão e
da razão pela fé são bem conhecidas, especialmente através das grandes figuras
de Santo
Anselmo, de Abelardo
e de Santo
Tomás. Mas é preciso tomar cuidado com o anacronismo que dá à palavra “razão”
seu sentido contemporâneo: quando Santo Anselmo se propõe a fazer ascender a fé
à intelecção, trata-se de um modo argumentativo, de um estilo de pensamento
desenvolvido a partir da revelação e tendo-a em vista, e não de uma ciência
autossuficiente. Certamente, é uma nova ciência que se constitui no século XII
como “teologia”, mas mantendo uma característica bem particular: os numerosos
esquemas de saber do período escolástico jamais a incluem entre as ciências “humanas”.
Até meados do século XIII, os
termos Scriptura sacra e theologia designam ao mesmo tempo tanto
o texto bíblico quanto a teologia, como se uma suma ou um tratado fossem apenas
a edição anotada da revelação. Incontáveis comentários sobre o Prólogo das Sentenças
de Pedro Lombardo, incontáveis primeiras partes de sumas consagradas às
provas da existência de Deus, reafirmam o caráter específico da ciência divina,
que combina os modos de saber sem se submeter a eles.
No entanto, essa integração da fé não se fez
sem choques nem sem crises, desde o feroz combate de São Bernardo contra
Abelardo e Gilberto de la Porrée até as condenações do tomismo e do averroísmo
latino pelo bispo de Paris, Estêvão Tempier, em I277. A continuidade da ciência
cristã e as precauções tomadas contra toda secularização da fé mascaram uma mutação
radical : em torno de Abelardo e de Gilberto, o século XII edificou um novo
regime da verdade; doravante, numa “episteme” escolástica que conjuga a
teologia, o direito e a filosofia, a verdade se constrói ao fim de uma pesquisa
contraditória. Os conteúdos da fé não são dados diretamente pela revelação, que
aparece constantemente enviesada por sua transmissão humana. O ato fundador
dessa nova orientação pode ser encontrada no Sic et Non, de
Abelardo, cujo prólogo mostra que a doutrina cristã transmitida pelos Pais
parece em geral obscura, contraditória, até mesmo herética, pelo distanciamento
de uma tradição que sobrepõe linguagens diversas e às vezes obsoletas. O corpo
do texto é composto de uma série de capítulos temáticos nos quais, sem nenhum
comentário, Abelardo justapõe opiniões incompatíveis. O próprio texto
evangélico não está ao abrigo dessa investigação: em seu prólogo, Abelardo
mostra que Cristo enganou-se de autor ao citar um profeta. Seria negar a
infalibilidade do Senhor? Não, o que está em causa é o testemunho dos
evangelistas, como o mostra um pequeno comentário do Pai-Nosso feito pelo
próprio Abelardo. Considerando as duas versões dadas por Mateus e por Lucas,
ele busca determinar a boa lição usando verdadeiras técnicas filológicas, pondo
a questão sobre a língua original desse ou ·daquele Evangelho, criticando o texto
em uso na liturgia, que adiciona variantes. Seria enganoso limitar a amplitude da
crítica às orientações radicais de Abel ar do, pois esse mesmo espírito manifesta-se
na Concordância dos cânones discordantes – título original do Decreto de Graciano, texto fundador
do novo direito canônico, escrito quase na mesma época (por volta de II40) –
ou, ao longo de todo o período escolástico, nas questões disputadas que rapidamente
se tornaram o mais importante exercício das faculdades de Teologia.
Tal mutação escolástica reduzia
consideravelmente a especificidade do saber cristão, ao submeter as verdades da
fé a um exame cujas técnicas são de uma epistemologia geral. Essa tendência foi
acentuada pela segunda descoberta de Aristóteles, a partir do fim do século
XII. É verdade que muitas vezes a acolhida foi reticente, mas a amplitude de visão
do Filósofo, sua aparência de um monoteísmo pré-cristão e fecundos mal-entendidos
fizeram dele o guia indispensável da pesquisa teológica até o século XVII. A utilidade
das teses lógicas, morais, metafísicas de Aristóteles para a ciência divina prova-se
pelo próprio movimento da teologia.
Esse intenso desenvolvimento da ciência
divina, da fides quae creditur,
ocorria em detrimento do ato de fé, da fides qua creditur? Seguramente não. É preciso
levar em conta o contrapeso oposto à doutrina aristotélico-tomista pelos “neoagostinianos”,
numerosos na Ordem Franciscana, que insistiam na necessidade de iluminação para
a aquisição das certezas da fé. A história do cristianismo ocidental foi marcada
por uma sucessão de retornos a Agostinho.
Por outro lado, se considerarmos o conjunto da comunidade cristã e não somente
os círculos de teólogos, o antigo tema da fé como confiança na autoridade transmitida
por Cristo à Igreja guarda sua força e mesmo a intensifica, graças à
convergência entre essa fé religiosa e a fidelidade jurada que fundamenta o
laço social nos tempos feudais. A Igreja, inquieta com transbordamentos
evangélicos e desvios heréticos, colocava-se como severa guardiã da fé, como
selo de autenticidade doutrinal. A expansão da doutrina expunha-se ao risco da
contestação.
A pastoral eclesiástica parecia, portanto, na
Idade Média central, sobretudo defensiva, ocupada com a censura das “superstições”
e inovações; restringia o acesso dos simples ao texto bíblico e limitava os credenda
(os conteúdos da fé) a um número limitado de enunciados; do mesmo modo, ela
se contentava com uma prática ritual reduzida, em essência, aos dois sacramentos
propriamente crísticos, o batismo e a eucaristia, embora a insistência sobre a
necessidade da confissão e da penitência tenha crescido no decurso do século
XIII. Até o fim da Idade Média, as recomendações sinodais ou os manuais dos
curas só exigem do fiel um conhecimento limitado do Credo, do Pai-Nosso e da
Ave-Maria, às vezes ampliado pela memorização de séries como a dos sete
sacramentos, dos sete pecados capitais, dos dez mandamentos etc. A história do
Credo atesta bem essa reticência da Igreja em aumentar a bagagem doutrinal do
fiel. Ao longo de toda a Idade Média, o que prevalece é o texto mais simples,
mais curto, o Símbolo dos apóstolos, redigido em fins do século II. O Símbolo
de Niceia-Constantinopla, de maior precisão dogmática, que se difundiu na
Espanha, na Irlanda e depois no Império Franco, só é prescrito para as missas dos
domingos e das festas. O terceiro Credo, o Quicumque vult, atribuído a Santo Atanásio, é de
fato reservado aos clérigos. E quando o IV Concílio de Latrão (I2I5) produz um
novo Credo, o Firmiter, a Igreja limita seu uso ao ensino avançado.
Considerando a massa dos sermões dirigidos ao
povo no século XIII, encontra-se aí raras exposições dogmáticas e muitas
diretrizes morais. A palavra revelada distribuía-se, então, segundo modos
hierárquicos bem diferenciados: os teólogos escolásticos referem-se
frequentemente a um texto de Gregório Magno que compara as Santas Escrituras a
um rio no qual tanto o cordeiro – imagem do simples – pode entrar sem perder o
pé, quanto pode nadar o elefante – imagem do erudito. Mas, a partir do fim do
século XIII, a metáfora começou a se inverter: os cordeiros lançavam-se na
correnteza enquanto os elefantes estavam muitas vezes reduzidos a chafurdar em
águas que se tinham tornado rasas.” (Alain Boureau)
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