terça-feira, 8 de março de 2022

Dicionário analítico do Ocidente medieval (Volume I, Parte III), de Jacques Le Goff e Jean-Claude Schmitt (Orgs.)

Editora: UNESP

ISBN: 978-85-393-0685-5

Tradução (coord.): Hilário Franco Júnior

Opinião: ★★★★☆

Páginas: 754

Análise em vídeoClique aqui

Link para compraClique aqui

Sinopse: Ver Parte I




Diabo

Sob seus divers os nomes e com suas aparências multiformes, o Diabo – Satã e seus demônios – é seguramente uma das figuras mais importantes do universo do Ocidente medieval: encarnação do mal, oponente das forças celestes, tentador do justo, inspirador dos ímpios e dos pecadores, verdugo dos condenados, ele é onipresente e seu terrível poder se faz sentir em todos os aspectos da vida e das representações mentais medievais. É o “príncipe deste mundo” (João I2,3I), aqui “ele faz a festa” (J. Le Goff).

O Diabo, e em particular Satã, potência parcialmente autônoma e que concentra o conjunto das causalidades maléficas, é uma das criações mais interessantes e originais do cristianismo. O Antigo Testamento em grande medida o ignora, com exceção de textos tardios, como o livro da Sabedoria, que pela primeira vez interpreta a serpente tentadora do Éden como uma figura do Diabo (Sabedoria 2,24). Se a literatura apócrifa judaica abre aos demônios um espaço crescente, o Novo Testamento, por sua vez, marca uma etapa decisiva, enfatizando o conflito entre as forças celestes e aquele que São Paulo chamou de “o deus deste mundo” (2 Coríntios 4,4): lembrem-se especialmente as tentações de Cristo, as parábolas ou ainda os combates do Apocalipse. Satã congrega a multidão dos espíritos demoníacos do judaísmo popular e, ao mesmo tempo, procede da dissociação da figura ambivalente de lahweh, o deus veterotestamentário, deus tanto da cólera e do castigo quanto benfeitor. Na Antiguidade cristã, o Diabo ocupa um lugar ainda maior, como o testemunham textos tão diversos quanto A vida de Santo Antônio, de Atanási0, ou os escritos de Santo Agostinho. Ao que parece, a importância do Maligno vai se reforçando globalmente durante o curso da Idade Média. Note-se que o Diabo está quase totalmente ausente das imagens cristãs até o século IX. É somente por volta do ano I000 que encontra uma posição digna dele, quando se desenvolve uma representação específica enfatizando sua monstruosidade e animalidade, e manifestando seu poder hostil de modo cada vez mais insistente.

Contudo, mesmo que se tenda a interpretar o universo como teatro de uma luta entre Deus e Satã, não se pode fazer do cristianismo medieval uma variante das religiões dualistas. Ao contrário, confrontado com as doutrinas de Mani e depois às do catarismo, o cristianismo sempre se esforçou por se distinguir do dualismo (que se pode definir por duas ideias essenciais: o princípio do mal não foi criado por Deus e é totalmente independente dele; o mundo material não foi criado por Deus, mas pelo princípio do mal). A doutrina cristã sustenta, ao contrário, que Deus é fonte e senhor de todas as coisas, enquanto Satã é uma criatura, um anjo decaído; submetido a Deus e que não pode agir sem sua permissão. No entanto, uma forte tendência centrífuga – uma tentação politeísta? – trabalha os estratos mais profundos do cristianismo medieval. As incessantes advertências da doutrina não impediram o desenvolvimento de uma faceta, sem dúvida vivida de forma muito sensível, que dá ao Diabo um vasto campo de autonomia.

A esse respeito, é significativa a história do cânone Episcopi (século IX), que define o ponto de vista que a Igreja conservou por longo tempo em questão de feitiçaria. Longe de propor a perseguição das feiticeiras, afirma que a crença no voo noturno não tem fundamento e que deve ser denunciada como ilusão: os que creem nisso desviam-se da verdadeira fé, pois “pensam que existe uma outra potência divina além do Deus único”. Ora, no século XV, os clérigos reincidirão nessas concepções e admitirão a realidade do voo noturno. Serão como os heréticos de outrora, denunciados porque acreditavam na existência de uma divindade diabólica. Desse modo, involuntariamente, consagrarão a vitória de Satã.” (Jérôme Baschet)

 

 

“Embora o caráter personalizado dos demônios pareça menos desenvolvido do que o dos anjos da guarda, não deixa de ser verdade que a consciência cristã se vê assaltada por seres diabólicos. Enquanto na Alta Idade Média a presença do demônio no indivíduo ocorre sob a forma de possessão, e de seu complemento ritual, o exorcismo, tal tipo de manifestação tende a recuar depois do ano I000. Em compensação, multiplicam-se então os testemunhos relativos à obsessão diabólica, em particular no meio monástico.

Percebe-se nesses relatos sinais de uma consciência atormentada, perseguida por forças hostis. O Diabo exprime tudo o que a consciência não pode reconhecer como emanando dela própria (e nem de Deus), tudo que ela julga negativo, hostil, e que deve ser rejeitado, colocado para fora de si. Sabe-se que, segundo Freud, os demônios são formas personificadas de maus desejos, recalcados. São pulsões sexuais angustiantes que se manifestam quando, por exemplo, a mãe de Guiberto de Nogent conta que um diabo deitava sobre ela para oprimi-la, ou ainda nos casos de “poluções noturnas” que os monges atribuem à intervenção do Diabo. Mas este também pode aparecer como porta-voz de pulsões mórbidas; por exemplo, quando manda um peregrino de São Tiago se castrar e se matar.

O universo diabólico permite a expressão de fantasmas multiformes. As características sexuais dos demônios são com frequência enfatizadas, notadamente quando providos de órgãos sexuais desmesurados e agridem os condenados (afrescos da colegiada de San Giminiano). A analidade não é menos importante: nos grandes afrescos italianos do Inferno, a partir de Giotto, o próprio Satã aparece excretando os danados. De maneira ainda mais intensa, o mundo diabólico é posto sob o signo de uma oralidade angustiante, devoradora. O próprio Inferno é geralmente simbolizado pela imensa goela do Leviatã. É sobre a boca contorcida, desmesurada, geralmente animal do Diabo, que se concentra uma parte importante de seu poder ameaçador. Enfim, a multiplicação de rostos e bocas no corpo dos demônios, o que cresce entre os séculos XII e XIV, pode ser considerada como o triunfo dessa oralidade hostil. Assim, o mundo diabólico aparece menos como o porta-voz do “baixo corporal” do que como lugar de expressão de imagens corporais e sexuais particularmente angustiantes.

Ao menos durante a Idade Média central, a crença no Diabo é expressão de uma consciência individual necessariamente culpável, atormentada e dividida. A consciência cristã encontra em si um mal que é preciso repelir, que ela pode em parte atribuir às tentações do Diabo e combater como a um inimigo exterior. O Diabo atormenta a consciência, mas ao mesmo tempo a ajuda a se constituir no interior de um universo dual no qual se opõem o bem e o mal, Deus e Satã, o anjo da guarda e o diabo pessoal.” (Jérôme Baschet)

 

 

“Ora não são as instituições que produzem a história, são os homens, mesmo quando eles o conseguem apenas graças às instituições.” (Jacques Chiffoleau)

 

 

“O Anticristo e o fim do mundo

A aparição do Anticristo, já evocada na Primeira epístola de João (2,I8 e 22;4,3), e a grande perseguição aos cristãos que o surgimento dele provocará desempenharam um papel decisivo nas representações escatológicas da Idade Média. As representações do Anticristo foram profundamente marcadas pela exposição de Jerônimo em seu comentário do Livro de Daniel, redigido no começo do século V. A crer em Jerônimo, o Anticristo é de origem judaica, vem da Babilônia, exercerá o poder durante três anos e meio, sua morte precederá em 45 dias o Juízo Final. As ideias medievais sobre o fim do mundo e sobre o Anticristo também foram influenciadas por Remígio de Auxerre, que, em meados do século XI, escreveu comentários sobre a Segunda epístola de Paulo aos tessalonicenses e sobre o Apocalipse. Ele imagina um cenário que se imporá amplamente: a aparição do Anticristo, precedendo o fim do mundo, ocorrerá somente após a dispersão (discessio) dos reinos do Império Romano. Nascido na Babilônia, da tribo judaica de Dan, o Anticristo começará por atrair para sua causa os judeus, cuja conversão última Remígio não menciona; depois da destruição do Império Romano, reinará por três anos e meio antes de ser morto no Monte das Oliveiras por Cristo ou pelo arcanjo Miguel. Restará, então, pouco tempo para os justos fazer em penitência antes do Juízo Final. Tal é o esquema fundamental que permanece válido, com algumas modificações menores, para numerosos autores e durante toda a Ida de Média.

A perspectiva da vinda do Anticristo, figura central do evento escatológico, só poderia estimular a interpretação de catástrofes naturais; de epidemias, de desordens duradouras de vidas à guerra, e também de situações sociais ou religiosas intoleráveis, como signos precursores de sua vinda próxima e, portanto, do fim do mundo que o sucederia. Na primeira metade do século X, o abade Odo de Cluny, está persuadido de que a vinda do Anticristo e do fim do mundo estão próximos, em razão das “ondas de injustiça” que se elevam cada vez mais. Por volta do ano I000 e por volta do ano I033, isto é, mil anos após o nascimento do Cristo ou depois de sua crucificação, não houve psicose geral. No entanto, nossas fontes revelam claramente o medo de ver acabar o milênio durante o qual Satã teria estado preso, conforme as promessas do Apocalipse. Pode-se também perceber um certo pressentimento do fim do mundo entre os participantes do que se chama “Cruzada Popular”, contemporânea à primeira cruzada. Por outro lado, a palavra de ordem de Bernardo de Claraval, no começo da segunda cruzada, conclamando os cruzados a ou converter ou aniquilar os pagãos, deve evidentemente ser interpretada sobre o pano de fundo de esperas escatológicas.

O conflito entre as duas potências universais do Ocidente, o papado e o Império, por ocasião da Querela das Investiduras, vai igualmente dar lugar a interpretações escatológicas. Estas aparecem principalmente entre os autores eclesiásticos alemães. Oto de Freising, na Crônica (7,34) que redige na década de II40, declara estar convencido de que a ruptura entre o papa Gregório VII e o imperador Henrique IV, assim como “a fétida propensão ao pecado destes tempos altamente conturbados”, são sinais da iminência do fim do mundo. Só o monaquismo, reforçado por nossas ordens reformadoras e mais particularmente pelos cistercienses, poderia, por seus méritos·ou suas preces, acabar provisoriamente com tal ameaça.

Assim, as catástrofes e as desordens cada vez mais acentuadas da sociedade ocidental exacerbaram a ideia, muito corrente, segundo a qual a humanidade estava para viver o último século de sua existência e que o fim ·do inundo estava próximo. A perspectiva de um apocalipse iminente difunde-se bastante. Do ponto de vista dos monges, sobretudo os funestos eventos da época, caracterizados pela pecabilidade do homem, aparecem como pródromos diretos do fim. O Anticristo e o fim do mundo estão próximos, portanto, é preciso estar vigilante e fazer penitência. Os autores eclesiásticos veem na descrição dos pecados do homem e dos horrores do fim do mundo um bom meio de impressionar seus próximos e de levá-los a se converter. A alusão ao Juízo Final, mais ou menos próximo, mas cuja data continuará sempre imprevisível, aparece como um meio educativo propositalmente utilizado pela Igreja; trata-se de inspirar temor, sem paralisar os homens. Tais concepções escatológicas, que estabelecem uma ligação relativamente estreita entre a situação atual, considerada sob uma luz extremamente negativa e que permite pressagiar a aparição do Anticristo, e o fim deste mundo, não oferecem nenhuma esperança de transformação profunda das condições existentes; elas encerram, em sua essência, uma visão pessimista do futuro até o Juízo Final. A perspectiva, frequentemente levantada , do retorno de Elias e de Henoc, bem como da conversão dos judeus e dos pagãos, não pretende tampouco descrever uma evolução positiva precedendo a aparição do Cristo como Juiz universal.” (Bernhard Tôpfer)

 

 

“Às portas do século XIII, um fato novo se produz na história das escolas: a emergência de uma instituição – a Universidade – na qual mestres eclesiásticos especialistas da cultura se associam para formar um corpo profissional segundo o modelo das corporações de ofício. Consagrado pelo papa, esse corpo é englobado pela Igreja a título de instituição autônoma que, subtraída à jurisdição dos bispos e dos senhores, está submetida unicamente ao poder pontifício e a seu controle doutrinário. Essa nova instituição desenvolve-se de início em Paris e em Oxford (o studium de Bolonha é um caso à parte) e não é separável da emergência da cultura – fortemente organizada e privilegiada de maneira exclusiva – que chamamos “escolástica”.

Nascidas conjuntamente, a Universidade e a escolástica estão ligadas uma à outra: a Universidade é o corpo fechado constituído pelos mestres, e a escolástica é o ensino magistral que a Universidade tem por função proporcionar. Vivem uma para a outra: não há Universidade sem escolástica nem escolástica sem Universidade. Depois de séculos de implantação na Europa·(com setenta sedes universitárias no fim do século XIV), elas se confundem também em seu declínio comum: o humanismo, que se afirma a partir do século XV, é uma cultura livre, radicalmente antiescolástica e estranha à instituição universitária.” (Franco Alessio)

 

 

“A Idade Média começa no século V quando se dá o desmoronamento do mais poderoso Estado, cuja lembrança vai perdurar: o Império Romano. Império de uma cidade que se tornou progressivamente imenso espaço territorial, o Império Romano sofria da ambiguidade de sua própria natureza: seu ideal cívico, de início limitado a Roma, estendeu-se à Itália, mas dele partilhavam apenas os magistrados e os militares veteranos. O caráter meramente predador de sua construção territorial perpetuou-se no fiscalismo. Para acumular recursos, era necessário expandir o Império: ora, a própria dilatação do espaço controlado tornava as conquistas mais difíceis, menos rentáveis quando a agitação das populações germânicas no Ocidente e a concorrência exacerbada com o Império Parta no Oriente absorviam o essencial dos recursos. Sem poder aumentar a pressão fiscal, os imperadores arriscaram-se em manipulações monetárias, provocando, por muito tempo, inevitável enfraquecimento econômico. O sobressalto produzido pela militarização do Império, depois pela sua cristianização no reinado de Constantino, prolongou sua existência, mas não lhe deixou tempo para uma mudança em profundidade.

Efetivamente, o Império Romano desmoronou apenas no Ocidente. No Oriente, subsistiu um império que chamamos de Bizantino e cujas províncias do Egito e da Síria, desde o final do reinado de Heráclio, foram tomadas pelos árabes. Seus súditos, até a queda final de Bizâncio, diziam-se “romanos”. Na verdade, esse império representou um dos modelos possíveis da evolução e da adaptação do sistema romano: um imperador que conjugava sacralidade cristã e magistratura antiga, prática de associação e valorização da legitimidade dinástica (os “porfirogênetas”, nascidos no palácio imperial), que davam certa estabilidade à instituição; uma aristocracia civil animada pelo ideal do serviço ao Estado; uma população de camponeses-soldados (os estratiotas) ou marinheiros que garantiam a defesa da coletividade. Entretanto, submetido a múltiplas pressões dos povos eslavos ou eslavizados (búlgaros, russos), do Islã (árabes, turcos) e do Ocidente (normandos, depois cruzados), esvaziado de sua substância econômica por seus “aliados” venezianos ou genoveses, o Império Bizantino revelou-se incapaz de se regenerar, e do século XII até seu desaparecimento, em I453, sua decadência parecia inevitável.” (Jean-Philippe Genet)

 

 

“É indispensável mencionar esses acontecimentos para compreender o Estado carolíngio, que foi o primeiro Estado medieval. Não se pode dizer que a monarquia merovíngia tenha sido algo além de um esboço de Estado. No entanto, em profundidade, a situação merovíngia perdurou: o poder não tinha outro recurso senão o que ele possuía ou usurpava; o Estado carolíngio permanece um Estado predador. Mas desde então ele tem uma maior eficiência. O sistema de redistribuição em favor dos grandes funcionários por intermédio de verdadeiras instituições (a vassalidade, a recomendação, o juramento prestado ao imperador e sistemas de transferência da terra como o benefício ou o precário) que permitem estabilizar e regular a relação social é a própria essência do poder. O soberano e seus representantes na terra, condes, bispos e missi dominici, esforçam-se por controlar esse sistema multiplicando as visitas de inspeção, mantendo vivas e ativas as instituições públicas (os tribunais, o exército) e fazendo observar as disposições tomadas pelo monarca e seus conselheiros e consignadas nos capitulares. E a espantosa série de conquistas de que Carlos Magno é autor (Frísia, Saxônia, Francônia, Baviera, reino lombardo, Gótia, Marca da Espanha) irriga com sangue revivificante o velho organismo do reino dos francos.

No entanto, não é essa a contribuição essencial de Carlos Magno. É a construção ideológica de uma monarquia cristã: fazendo-se coroar imperador em Roma, Carlos garante a renovatio imperii, o renascimento do império de Constantino. Cercado de letrados anglo-saxões (Alcuíno), lombardos (Paulo Diácono) e aquitânios, o imperador desenvolve sistematicamente uma imitatio imperii. Mas ele não é nem um novo Constantino nem um novo Davi, o regente do povo eleito . Davi e Salomão foram desde o começo constantemente evocados pela propaganda carolíngia em detrimento dos bizantinos. Mas, como Davi, Carlos era a uma só vez rex et sacerdos (rei e sacerdote), embora isso não implicasse para o soberano caráter sacerdotal, apenas a função de pregador e fiador da ortodoxia: isso simplesmente quer dizer que, sob sua autoridade e proteção, os povos e a Igreja devem viver em paz. Carlos Magno e os intelectuais que o cercam conceberam assim uma monarquia profundamente cristã na qual a questão dos dois poderes (do rei e da Igreja) está resolvida antes de ter sido efetivamente colocada por um papado decadente.

 

Restauração do Império e ascensão das monarquias

O edifício carolíngio não tardaria a desmoronar. Desde meados do século IX, os ataques dos vikings, húngaros e sarracenos tinham posto fim à sua expansão triunfante: na defensiva, o Império entra em fase de contração. O velho problema da patrimonialidade do reino ressurge com as lutas ferozes que opõem os filhos de Luís, o Piedoso: não apenas o Império está dividido a ponto de o título imperial acabar por perder toda a significação como também os reis rivais multiplicam as ofertas para garantir a fidelidade dos poderosos. Eles estão de tal forma ofuscados pela competição imperial que preferem delegar seu poder de mando aos condes que agrupam numerosos condados sob sua autoridade para assumir os encargos da defesa contra os invasores. Assim, nasce no Império uma série de principados, enquanto os últimos Carolíngios desaparecem, uns após outros, despojados de suas terras e de seu prestígio. A pulverização do poder público acentua-se ainda mais no século X e prossegue no XI. O poder de mando de origem pública não desaparece, mas, despedaçado, reparte-se segundo uma hierarquia variável no seio das elites da aristocracia militar, dos príncipes aos condes, dos condes aos castelões e dos castelões aos mais poderosos senhores. Aí, esse poder encontra outro, o do senhor rural sobre seus homens, seus dependentes. O Estado não mais se resume a uma relação social privilegiada entre o soberano e a aristocracia militar: ele está compreendido no conjunto de relações sociais que estruturam essa classe aristocrática; é exatamente isso que constitui a revolução feudal.

O Estado poderá, entretanto, restabelecer-se e reformar-se. Dois fatos de estrutura explicam isso em parte. Em primeiro lugar, a autoridade econômica mantém-se, e rapidamente, após o ano I000, conhece mesmo um extraordinário crescimento, que vai durar até o século XIII. As cidades do Ocidente, em decadência desde o século III, crescem e multiplicam-se; a produção dos campos enquadrados nos senhorios, graças aos arroteamentos, à diversificação e intensificação das culturas, nutre uma população em pleno crescimento. O grande comércio renasce, uma grande indústria têxtil (Flandres, Itália do norte) aparece; o contexto econômico é, portanto, favorável. Posteriormente, com o Império Carolíngio desmoronado, a Igreja manteve-se: mais uma vez, os invasores são convertidos. Sem dúvida, a instituição episcopal, quase integrada ao Estado carolíngio, sofre com sua ruína e a instalação do feudalismo, mas a fundação de mosteiros (como Cluny) dispensados pelo papado da tutela episcopal permite uma reforma profunda e uma regeneração do monasticismo. Essa Igreja reformada conserva intacta a memória histórica e a cultura jurídica e ideológica oriundas do passado romano e carolíngio, e está pronta a fornecer dirigentes de valor a um Estado renascente.” (Jean-Philippe Genet)

 

 

“Uma nova estrutura política, porém, emerge lentamente no próprio coração do desastre carolíngio. Dessa aristocracia militar que passou a exercer coletivamente o poder público distinguiam-se gradualmente dois poderes, a monarquia feudal e a Igreja. Mas essa mesma Igreja, após haver de início ajudado, voltava-se contra o poder imperial, agindo poderosamente a favor das monarquias feudais. A reforma, há pouco evocada, tivera como objetivo fundamental na sua primeira fase escapar ao arbítrio e à violência inerentes ao feudalismo. Mesmo os senhores e detentores de parcelas da autoridade pública (quantos bispos não eram também condes em suas cidades?) e os clérigos arriscavam-se a ser absorvidos na tormenta. Os imensos bens da Igreja eram presa tentadora para os feudais, que a espoliavam pura e simplesmente, ou que garantiam a membros de sua família a posse hereditária dos mais importantes benefícios e dos domínios que mais lhes interessavam. Para salvar a Igreja, a reforma visava, antes de tudo, separar completamente a ordem dos leigos da dos clérigos; fora do mundo dos leigos, a ordem eclesiástica estaria livre para cumprir sua missão, regenerar a sociedade cristã e conduzi-la pelo caminho da salvação. Nessa perspectiva, o celibato dos sacerdotes (até então longe de ser a norma) tornava-se empresa essencial; no tocante ao intercâmbio de mulheres, a ordem eclesiástica exercia estrito controle dos laços de parentesco e reforçava o valor sacramental do laço conjugal. Outro meio de ação sobre a aristocracia guerreira era a “paz de Deus”, que visava disciplinar, se não impedir, a violência feudal, proibindo a guerra em certos períodos e excluindo de suas devastações as mulheres, as crianças e todos os que estavam sob proteção da Igreja. Programa ambicioso, que se chocava com forte oposição no próprio seio da Igreja, cujos dirigentes eram quase sempre originários dessa mesma aristocracia guerreira que ele tratava de combater. Os reformadores eclesiásticos ficaram felizes em encontrar a aliança dos monarcas feudais: os reis, não tendo as pretensões universais dos imperadores, não se mostravam perigosos nesse plano.

Entre o Loire e o Mosa, onde se situava o epicentro da revolução feudal, apenas uma monarquia subsiste inicialmente, a dos Capetíngios. Eles não são, provavelmente, os mais poderosos príncipes feudais do reino, e de início sua legitimidade não é clara. Somente eles, entretanto, são reis, e sagrados: apoiando-se nessa força moral, vão fazer reconhecer sua posição excepcional no reino e tornar, pouco a pouco, a monarquia feudal uma instituição de envergadura diferente da dos principados feudais, por mais poderosos que eles momentaneamente fossem. Quando o movimento de paz lançado pela Igreja se enfraquece, eles o tomam sob sua responsabilidade; os bispos recrutam por sua conta milícias comunais que os reis utilizam com os vassalos submissos ao seu próprio ban [poder de mando] para defender o reino e manter a paz, aplicando os julgamentos da justiça real. O princípio monárquico, com a cumplicidade da Igreja, acrescenta seu prestígio e seu poder legitimador às regras próprias do feudalismo e amplia muito sua eficiência, ao menos a partir do momento em que foi respeitado. No coração da anarquia e da violência arbitrárias do feudalismo, a monarquia feudal coloca-se como a imagem e a garantia da legitimidade e da sacralidade do poder, da justiça e da paz: a insistência dos Capetíngios em sua posição de “reis cristianíssimos” assinala sua singularidade e sua eminência.

Ora, mesmo se a ação dos Capetíngios do século XII, Luís VI e Luís VII, é valorizada pelo talento e inteligência excepcionais do abade de Saint-Denis, Suger, a monarquia capetíngia logo teve de lutar pela defesa do reino contra uma estrutura política concorrente. Em I066, de fato, o duque da Normandia conquistou a Inglaterra e, transformando completamente a sociedade e o sistema político anglo-saxão, lá introduziu o feudalismo e edificou uma monarquia feudal. Mas a periferia britânica era para essa nova monarquia apenas uma zona de dominação extensiva: a frente sobre a qual ela empenhou toda a sua energia era continental, sobretudo quando o plantageneta Henrique II anexou à Normandia o principado angevino de sua família e a Aquitânia de sua esposa Eleonora. Duas monarquias feudais concorrentes defrontam-se, então, para o controle do mesmo espaço e essa relação dialética faz delas duas estruturas orientadas principalmente para a guerra, em conformidade com as mentalidades e o gênero de vida da aristocracia feudal de que elas aparecem como o prolongamento.

Em suma, durante os períodos precedentes, os diferentes regna não eram senão múltiplas facetas do todo inicial, o Império, disputadas entre os membros da mesma família, que concorriam entre si corrompendo suas respectivas clientelas: a guerra era uma estrutura endógena. As monarquias feudais, ao contrário, caracterizavam-se por uma relação dialética de concorrência em que a guerra era uma estrutura exógena; qualquer que fosse sua fraqueza aparente, os reis irão desde logo aparecer como chefes naturais de suas aristocracias guerreiras: assim se explica o sucesso em Saint-Denis do hasteamento da auriflama (estandarte real) contra o Império, no século XII. Essa relação reproduziu-se, com os mesmos efeitos, no caso das monarquias da Península Ibérica (Leão, depois Navarra e Castela, Aragão, depois Portugal): a preponderância da estrutura feudal aí era menor e as comunidades rurais e urbanas desempenharam um papel mais importante; mas também concorreram entre si na sua própria zona para apropriar-se, controlar e valorizar as terras tomadas aos muçulmanos na Reconqusta, vasta empresa guerreira. A monarquia feudal apresenta, assim, duas faces contrastantes: uma de paz, de justiça e de religião; outra, de guerra. Mas elas são inseparáveis e o desenvolvimento de uma passa pelo da outra.

 

Nascimento do Estado

Ao final do século XIII, ocorre uma mudança decisiva que contém em germe a evolução futura e a transformação da monarquia feudal no que se pode denominar Estado moderno, pois essa forma de Estado é o ancestral direto, sem descontinuidade, do moderno Estado europeu atual. Tempo marcado pela personalidade singular de São Luís, a concorrência entre as duas grandes monarquias ocidentais assume uma violência e uma amplitude novas com Eduardo I e Filipe, o Belo: Eduardo, conquistando o País de Gales e em seguida a Escócia, pretende governar sua Aquitânia como soberano, no momento em que Filipe não quer abandonar nenhuma de suas prerrogativas soberanas na Gasconha ou em Flandres. A partir de I29I, os dois reis irão gastar na batalha grandes somas não somente para equipar e pagar exércitos em que os profissionais desempenham um papel cada vez mais determinante, como também para financiar alianças diplomáticas através de toda a Europa. Estimou-se que, em I294, Eduardo I cobrou de impostos uma quarta parte da massa monetária em circulação na Inglaterra...

Níveis semelhantes de fiscalidade tinham sido alcançados anteriormente, em especial no auge da rivalidade entre Filipe Augusto e os Plantagenetas, porém agora o esforço devia durar. Dos incessantes conflitos franco-ingleses, anglo-escoceses, franco-flamengos do início do século XIV, passa-se sem solução de continuidade à Guerra dos Cem Anos. Tanto a frequência quanto o elevado nível da carga fiscal levam os soberanos a inovar e a passar de uma fiscalidade feudal a uma fiscalidade de Estado que, a despeito das repetidas experiências no decorrer do século precedente, é ao menos em parte novidade. Da fiscalidade feudal, a monarquia guarda o conceito de auxilium, de “ajuda ao suserano”, e é importante constatar que o “Estado moderno” nasceu onde se desenvolveu o feudalismo (e onde foi importado pelos normandos ou pelos cruzados). Mas a fiscalidade do Estado rompe com o caráter amplamente arbitrário da cobrança feudal, feita de uma mistura de costumes e de “doações” ou de empréstimos que são apenas uma espoliação aceita devido à relação de forças. Para manter essa cobrança por mais tempo, é necessário demonstrar sua legitimidade e, pelo consentimento negociado com os representantes dos que irão pagar, tornar a recusa fiscal difícil, se não impossível. Para isso, existe o aparelho jurídico e ideológico necessário: ele se desenvolvera havia já um século, e para o próprio uso (especialmente para a Cruzada) da Igreja , que integrara no direito canônico princípios jurídicos do direito romano (particularmente o princípio quod omnes tangit ab omnibus tractari et approbari debet)1 e os indispensáveis mecanismos de representação e delegação de poder. Com a ajuda dos clérigos que estão a seu serviço, os reis buscam demonstrar que a guerra cria uma situação de necessidade: eles são forçados a mobilizar homens e dinheiro para defender seu reino, e, defendendo o reino, defendem os bens de todos os súditos, sendo, pois, natural que estes contribuam com seus próprios bens para a defesa com um.

Mas, ao taxar o conjunto de seus súditos porque são seus súditos, e não somente seus vassalos (com a obrigação de eventualmente taxar seus próprios homens), os reis não executam uma simples mudança de escala, mas uma verdadeira subversão do sistema político, que vai bem além da multiplicação do número de contribuintes. Efetivamente, três mudanças fundamentais decorreram dessa medida: em primeiro lugar, ela ignora as diferenças de estatuto entre os homens e os poderes intermediários; livres e não livres, clérigos e leigos, nobres e não nobres, todos têm vocação para, um dia ou outro, ser contribuintes. Por outro lado, o conflito logo envolve os reis do Ocidente e o papado: a humilhação de Bonifácio VIII em Anagni, depois o exílio do papado em Avignon, mostram bem a vitória do Estado. Quanto à isenção fiscal que Carlos VII acabou por conceder à nobreza (com, no final a mudança da monarquia francesa em monarquia absoluta), esta é mais exceção do que regra; a vassalidade, como a servidão, estão por isso mesmo destinadas a se enfraquecer enquanto relações sociais determinantes. Em seguida, já que o Estado se reserva o direito de, em caso de necessidade, apelar aos bens de seus súditos, é preciso que esses bens existam e sejam protegidos: contra a arbitrariedade da violência feudal e a flutuação dos variados tipos de terra que favorecem o feudalismo, o Estado, por intermédio de seus juízes, vai permitir e proteger o desenvolvimento da propriedade individual. Enfim, para negociar o assentimento do súdito, o Estado estabelece com ele um diálogo que se opera, ao menos em parte, por intermédio de assembleias representativas, como o Parlamento inglês, os Estados franceses ou as Cortes ibéricas, e criou uma comunicação “política”, posto que em toda parte os contribuintes irão subordinar seu acordo a concessões e contrapartidas da parte do Estado. No Estado moderno, a taxação é bem mais fácil (e rentável) porque fundamentada no consenso. Assim, o súdito passível de cobrança é, antes de tudo, um súdito ativo na política, prefiguração do que será, séculos mais tarde, o cidadão moderno. No fundo, o Estado moderno cria um princípio de participação política que é novo porque não está mais fundado no fato de o indivíduo pertencer à pólis; ele está adaptado a um espaço extensível, não diferenciado, justamente o que o Império Romano não havia conseguido. É sintomático, desse ponto de vista, que a redescoberta da palavra “política” e de sua plena significação pelo viés da Política de Aristóteles coincida exatamente com o nascimento do Estado moderno.

As resistências sociais no próprio seio dos “Estados modernos” são fortes: resistências da aristocracia nobiliária e das burguesias que veem suas prerrogativas ameaçadas; resistências dos campesinatos oprimidos pela nova taxação que se junta à imposta pelos senhores. De maneira geral, contudo, disputando os benefícios da distribuição do dinheiro cobrado, as elites da sociedade política reconhecem a legitimidade da construção estatal. O Estado transforma profundamente a sociedade por sua própria existência. É preciso povoar as administrações e as cortes; oficiais de justiça e burocratas de toda espécie são cada vez mais numerosos, pelo menos proporcionalmente a uma população em profundo declínio até meados do século XV. Os “salários do rei” distribuídos aos soldados, os ofícios e os cargos públicos que conferem vantagens e autoridade, a benevolência e compreensão dos tribunais reais: tantos privilégios levam a uma busca encarniçada, que obriga à concordância mesmo aqueles que teriam podido contestar a ação do Estado. Os partidos nobiliários lutam menos contra as cobranças do Estado do que para controlar sua redistribuição em época de crise econômica e social e na qual a renda senhorial estagnou ou diminuiu.

É necessário, no entanto, resguardar-se de toda teleologia e anacronismo. As construções estatais medievais são várias e o “Estado moderno” é apenas uma dentre elas: a Inglaterra e a Escócia, os reinos ibéricos , a França e os principados que a cercam ou dependem dela (Brabante e, de modo geral, os Estados borgonheses, Bretanha, Savoia), alguns principados do Império. Existem outras construções: o Império, as monarquias “extensivas” da Europa do leste efetivamente dominadas pela nobreza, as grandes cidades italianas ou imperiais, que ainda mantêm rotas comerciais, o banco e estão em melhores condições para mobilizar capital que as monarquias ocidentais. Por outro lado, na medida em que a guerra é ao mesmo tempo causa e a melhor justificativa do desenvolvimento do Estado moderno, Estado de guerra, deve suportar as devastações e as vicissitudes de uma guerra que ele infatigavelmente alimentou. Uma era de feroz e generalizada concorrência abre-se, assim, para a Europa, selecionando impiedosamente os Estados mais competitivos: a própria complexidade do mapa político da Europa no final do século XV mostra que o processo, na sua fase medieval, está ainda apenas no seu começo.” (Jean-Philippe Genet)

I “O que atinge a todos deve ser aprovado por todos”. [N.T.]

 

 

A integração da fé em um sistema de pensamento e de ordem

A partir do século IV, construiu-se um verdadeiro saber cristão específico que se impôs como o conteúdo do ato de fé. Desde então, estabelece-se gradualmente o esquema clássico da Igreja segundo o qual o fiel deve passar da fides quae creditur (os elementos da crença) à fides qua creditur (a fé em ato).

Esse saber novo procedia da necessidade de abstração e de desenvolvimento a partir das fontes da revelação. A mensagem crística, com efeito, contém bem poucos elementos em matéria de dogma e de rito, em geral neutralizando grande parte das injunções do Antigo Testamento. Oferece uma esperança, uma moral, alguns esboços de sacramentos (o batismo e a eucaristia) e de preces (o Pai-Nosso e as Bem-Aventuranças), mas nenhum sistema de organização do mundo e da história. Razão pela qual a prática da exegese se imporá para tentar suprir o que está ausente na letra: a explicação do texto torna-se o primeiro ato de integração da fé em um saber orgânico. De modo mais radical, foi preciso opor-se às diversas heresias e estabelecer um corpus de verdades cristãs. Esse intenso esforço ocorreu no século IV (século do saber trinitário construído essencialmente contra a heresia ariana, notadamente no momento do Concílio de Niceia, em 325) e nos séculos V e VI (tempo da cristologia, elaborada em contraposição, aos erros do nestorianismo, marcado pelos concílios de Éfeso, em 43I, de Calcedônia, em 45I, e do II de Constantinopla, em 553). A forte figura do imperador Justiniano, firme regente desses trabalhos e construtor de um direito ao mesmo tempo romano e cristão, marca claramente as relações entre a fé cristã e a gestão do mundo.

Ainda aqui, o Ocidente produziu inflexões particulares. Até o século V, o que se pode anacronicamente chamar de teologia desenvolve-se essencialmente no Oriente cristão: os Pais da Capadócia e depois a Escola de Antioquia fornecem os elementos mais decisivos para a ciência trinitária e cristológica. Grandes pensadores, como Máximo, o Confessor, ou João Damasceno dão continuidade a essa reflexão até o século VII. Depois disso, no entanto, a teologia torna-se estagnada, enquanto no Ocidente o progresso, lento a princípio, retomado pelos debates sobre os sacramentos (séculos IX a XII), termina por levar ao extraordinário florescimento da Idade Média central. Tal fenômeno conduziu à extrema intelectualização da fé que singulariza o Ocidente cristão.

A figura de Boécio (480-525) talvez permita compreender as razões dessa divergência de destinos. Boécio, pela primeira vez no mundo cristão, empreende a articulação sistemática do saber antigo e da doutrina cristã. Começou por um gigantesco esforço de tradução e de comentário das obras lógicas de Aristóteles e de Porfírio; compôs compilações de aritmética e de música e alicerçou as bases da organização geral do saber (as sete artes liberais). Essa obra de preservação desembocou no tratamento racional e lógico das questões dogmáticas, realizado em cinco opúsculos teológicos nos quais as noções de Trindade, de pessoa, de natureza divina, estavam articuladas com as categorias de Aristóteles. O prólogo de seu tratado Contra Êutiques mostra a vontade de compreender racionalmente o dogma: Boécio explica ali porque redige esse tratado. Ele participava do Sínodo de Roma (5I2), que recebeu a mensagem de um bispo da Cíntia expondo uma nova fórmula cristológica apoiada pelo imperador e destinada a encerrar os debates entre nestorianos e monofisitas: a pessoa do Cristo, saída de duas naturezas, residiria em duas naturezas. Boécio compreendia mal essa fórmula, enquanto o clero romano considerava-a evidente. A indignação com tal conformismo obscurantista levou-o a refletir sobre a questão retomando os conceitos pela raiz: o que é uma natureza? O que é uma pessoa? O episódio mostrava que já não era possível manter a distinção entre fé recebida e saber construído, pois o debate, mesmo sem apelar para a lógica profana, tinha atingido um alto grau de tecnicidade e se renovava com muita rapidez. Por outro lado, a atitude de Boécio diante do clero revelava que, desde então, abria-se uma brecha entre a instituição, ansiosa pelo compromisso e pela adaptação, e a exigência intelectual de compreensão, sustentada por um grupo de letrados conscientes de sua própria legitimidade. Nesse sentido, Boécio aparece como o primeiro desses “intelectuais” da Idade Média, os quais Jacques Le Goff mostrou que constituíam, a partir do século XII, um elemento original da Cristandade ocidental. Não é por acaso que a renovação teológica do século XII se fez, em grande medida, a partir dos comentários de Boécio (por Thierry de Chartres, Gilberto de la Porrée, Clarembault de Arras e muitos outros), a tal ponto que o padre Chenu designava o século XII como a aetas boetbiana.

O contexto sociopolítico da obra de Boécio dá conta de seu status de precursor: Boécio era um leigo, nascido numa antiga família patrícia romana e exerceu altas funções administrativas para o rei ostrogodo Teodorico, que, como a maioria dos reis “bárbaros” de então, era adepto do arianismo. A erudita defesa da fé católica dava a Boécio a oportunidade de afirmar a antiga legitimidade da cultura romana, associando-a à distante ortodoxia do imperador de Bizâncio, contra a tirania e a heresia de um poder local e contra a apatia de um clero pouco esclarecido. O fim de Boécio, selvagemente morto por ordem de Teodorico, depois de ter redigido na prisão sua famosa Consolação da filosofia, enaltece a dignidade do saber e termina por fazer dele uma figura emblemática do letrado ocidental que une firmemente fé e razão. Mesmo durante os séculos difíceis da Alta Idade Média, a ciência cristã continuou seu curso, à margem dos poderes, leigos ou eclesiásticos, comumente hostis ou indiferentes: os meios monásticos e depois, a partir do século XI, os grupos de cônegos regulares não conheceram a forte solidariedade entre bispos, higomenos e imperadores que caracteriza o Oriente (excetuado o momento da crise iconoclasta); é essa situação, sem dúvida, que favorece a emergência do terceiro poder, o do studium, que levará à criação das universidades e das faculdades de Teologia no século XIII, depois da fase de desenvolvimento das escolas catedrais e canônicas no século XII.

As etapas dessa conquista da fé pela razão e da razão pela fé são bem conhecidas, especialmente através das grandes figuras de Santo Anselmo, de Abelardo e de Santo Tomás. Mas é preciso tomar cuidado com o anacronismo que dá à palavra “razão” seu sentido contemporâneo: quando Santo Anselmo se propõe a fazer ascender a fé à intelecção, trata-se de um modo argumentativo, de um estilo de pensamento desenvolvido a partir da revelação e tendo-a em vista, e não de uma ciência autossuficiente. Certamente, é uma nova ciência que se constitui no século XII como “teologia”, mas mantendo uma característica bem particular: os numerosos esquemas de saber do período escolástico jamais a incluem entre as ciências “humanas”. Até meados do século XIII, os termos Scriptura sacra e theologia designam ao mesmo tempo tanto o texto bíblico quanto a teologia, como se uma suma ou um tratado fossem apenas a edição anotada da revelação. Incontáveis comentários sobre o Prólogo das Sentenças de Pedro Lombardo, incontáveis primeiras partes de sumas consagradas às provas da existência de Deus, reafirmam o caráter específico da ciência divina, que combina os modos de saber sem se submeter a eles.

No entanto, essa integração da fé não se fez sem choques nem sem crises, desde o feroz combate de São Bernardo contra Abelardo e Gilberto de la Porrée até as condenações do tomismo e do averroísmo latino pelo bispo de Paris, Estêvão Tempier, em I277. A continuidade da ciência cristã e as precauções tomadas contra toda secularização da fé mascaram uma mutação radical : em torno de Abelardo e de Gilberto, o século XII edificou um novo regime da verdade; doravante, numa “episteme” escolástica que conjuga a teologia, o direito e a filosofia, a verdade se constrói ao fim de uma pesquisa contraditória. Os conteúdos da fé não são dados diretamente pela revelação, que aparece constantemente enviesada por sua transmissão humana. O ato fundador dessa nova orientação pode ser encontrada no Sic et Non, de Abelardo, cujo prólogo mostra que a doutrina cristã transmitida pelos Pais parece em geral obscura, contraditória, até mesmo herética, pelo distanciamento de uma tradição que sobrepõe linguagens diversas e às vezes obsoletas. O corpo do texto é composto de uma série de capítulos temáticos nos quais, sem nenhum comentário, Abelardo justapõe opiniões incompatíveis. O próprio texto evangélico não está ao abrigo dessa investigação: em seu prólogo, Abelardo mostra que Cristo enganou-se de autor ao citar um profeta. Seria negar a infalibilidade do Senhor? Não, o que está em causa é o testemunho dos evangelistas, como o mostra um pequeno comentário do Pai-Nosso feito pelo próprio Abelardo. Considerando as duas versões dadas por Mateus e por Lucas, ele busca determinar a boa lição usando verdadeiras técnicas filológicas, pondo a questão sobre a língua original desse ou ·daquele Evangelho, criticando o texto em uso na liturgia, que adiciona variantes. Seria enganoso limitar a amplitude da crítica às orientações radicais de Abel ar do, pois esse mesmo espírito manifesta-se na Concordância dos cânones discordantes – título original do Decreto de Graciano, texto fundador do novo direito canônico, escrito quase na mesma época (por volta de II40) – ou, ao longo de todo o período escolástico, nas questões disputadas que rapidamente se tornaram o mais importante exercício das faculdades de Teologia.

Tal mutação escolástica reduzia consideravelmente a especificidade do saber cristão, ao submeter as verdades da fé a um exame cujas técnicas são de uma epistemologia geral. Essa tendência foi acentuada pela segunda descoberta de Aristóteles, a partir do fim do século XII. É verdade que muitas vezes a acolhida foi reticente, mas a amplitude de visão do Filósofo, sua aparência de um monoteísmo pré-cristão e fecundos mal-entendidos fizeram dele o guia indispensável da pesquisa teológica até o século XVII. A utilidade das teses lógicas, morais, metafísicas de Aristóteles para a ciência divina prova-se pelo próprio movimento da teologia.

Esse intenso desenvolvimento da ciência divina, da fides quae creditur, ocorria em detrimento do ato de fé, da fides qua creditur? Seguramente não. É preciso levar em conta o contrapeso oposto à doutrina aristotélico-tomista pelos “neoagostinianos”, numerosos na Ordem Franciscana, que insistiam na necessidade de iluminação para a aquisição das certezas da fé. A história do cristianismo ocidental foi marcada por uma sucessão de retornos a Agostinho. Por outro lado, se considerarmos o conjunto da comunidade cristã e não somente os círculos de teólogos, o antigo tema da fé como confiança na autoridade transmitida por Cristo à Igreja guarda sua força e mesmo a intensifica, graças à convergência entre essa fé religiosa e a fidelidade jurada que fundamenta o laço social nos tempos feudais. A Igreja, inquieta com transbordamentos evangélicos e desvios heréticos, colocava-se como severa guardiã da fé, como selo de autenticidade doutrinal. A expansão da doutrina expunha-se ao risco da contestação.

A pastoral eclesiástica parecia, portanto, na Idade Média central, sobretudo defensiva, ocupada com a censura das “superstições” e inovações; restringia o acesso dos simples ao texto bíblico e limitava os credenda (os conteúdos da fé) a um número limitado de enunciados; do mesmo modo, ela se contentava com uma prática ritual reduzida, em essência, aos dois sacramentos propriamente crísticos, o batismo e a eucaristia, embora a insistência sobre a necessidade da confissão e da penitência tenha crescido no decurso do século XIII. Até o fim da Idade Média, as recomendações sinodais ou os manuais dos curas só exigem do fiel um conhecimento limitado do Credo, do Pai-Nosso e da Ave-Maria, às vezes ampliado pela memorização de séries como a dos sete sacramentos, dos sete pecados capitais, dos dez mandamentos etc. A história do Credo atesta bem essa reticência da Igreja em aumentar a bagagem doutrinal do fiel. Ao longo de toda a Idade Média, o que prevalece é o texto mais simples, mais curto, o Símbolo dos apóstolos, redigido em fins do século II. O Símbolo de Niceia-Constantinopla, de maior precisão dogmática, que se difundiu na Espanha, na Irlanda e depois no Império Franco, só é prescrito para as missas dos domingos e das festas. O terceiro Credo, o Quicumque vult, atribuído a Santo Atanásio, é de fato reservado aos clérigos. E quando o IV Concílio de Latrão (I2I5) produz um novo Credo, o Firmiter, a Igreja limita seu uso ao ensino avançado.

Considerando a massa dos sermões dirigidos ao povo no século XIII, encontra-se aí raras exposições dogmáticas e muitas diretrizes morais. A palavra revelada distribuía-se, então, segundo modos hierárquicos bem diferenciados: os teólogos escolásticos referem-se frequentemente a um texto de Gregório Magno que compara as Santas Escrituras a um rio no qual tanto o cordeiro – imagem do simples – pode entrar sem perder o pé, quanto pode nadar o elefante – imagem do erudito. Mas, a partir do fim do século XIII, a metáfora começou a se inverter: os cordeiros lançavam-se na correnteza enquanto os elefantes estavam muitas vezes reduzidos a chafurdar em águas que se tinham tornado rasas.” (Alain Boureau)

Nenhum comentário: