terça-feira, 10 de maio de 2016

A Cidade de Deus (Livros VI-VIII), de Santo Agostinho

Editora: Fundação Calouste Gulbenkian

ISBN: 978-9723105438

Tradução, prefácio, nota biográfica e transcrições: J. Dias Pereira

Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 270

Sinopse: Ver Parte I


“É fácil crer que se deu uma resposta quando na realidade o que se quis foi não estar calado. Que é que há de mais palavroso do que a vacuidade? E lá por que ela pode, se quiser, gritar mais alto do que a verdade — nem por isso terá mais poder que a verdade.”

 

 

“A realidade é que nunca seremos capazes de lhe agradecer a dádiva de sermos, de vivermos, de contemplarmos o Céu e a Terra, de possuirmos inteligência e razão para procurarmos Aquele que todos estes bens criou. E todavia, acabrunhados pelo peso dos nossos pecados, desviados da contemplação da sua luz, cegos pelo amor das trevas, ou seja, da iniquidade, não fomos completamente abandonados — mas enviou-nos o seu Verbo, o seu único Filho, que, na sua carne de nós assumida, nasceu e sofreu para que soubéssemos quanto Deus amou o homem e ficássemos purificados de todos os pecados por esse sacrifício sem igual e, com a caridade do Espírito Santo, difundida em nossos corações, chegássemos ao eterno descanso e inefável doçura da sua contemplação. Que corações, que línguas poderão ter a pretensão de lhe prestarem condignas ações de graças?”

 

 

“Ao tratarmos da chamada teologia natural, temos que lidar, não com quaisquer homens (pois já não se trata da teologia fabulosa ou civil, isto é, a do teatro e a da cidade, das quais uma exalta ostensivamente os crimes dos deuses e a outra põe a descoberto os seus mais criminosos desejos, desejos, portanto, mais de demônios maléficos do que de deuses), mas é com filósofos que devemos discutir, com aqueles cujo nome proclama o amor da sabedoria.

Ora se a Sabedoria é Deus por quem tudo foi feito, como o demonstraram a autoridade divina e a verdade, verdadeiro filósofo é o que ama a Deus. Mas porque a própria coisa assim chamada não existe em todos os que se gabam deste nome (realmente nem todo aquele que se diz filósofo é por isso amigo da verdadeira sabedoria).”

 

 

“Cedam estas duas teologias — a fabulosa e a civil — aos filósofos platônicos que reconhecem o verdadeiro Deus como autor das coisas, fonte luminosa da verdade, dispensador da felicidade eterna. Cedam ainda a tão grandes pensadores que chegaram a conhecer um Deus tão grande, esses outros filósofos cujo pensamento, escravo do corpo, não admite para a natureza senão origens corpóreas: a água, segundo Tales; o ar, segundo Anaxímenes; o fogo, segundo os estoicos; segundo Epicuro, os átomos, isto é, corpúsculos, pequeníssimos, indivisíveis e imperceptíveis; e tantos outros que não vale a pena citar, para quem os corpos, simples ou compostos, inanimados ou vivos mas, todavia, corpos, são causas e princípios das coisas. Realmente, alguns deles, tais como os epicuristas, acreditaram que as coisas vivas podiam ser produzidas por coisas não vivas; outros pensaram que é do vivo que provêm os vivos e os não vivos, mas que todo o corpo provém de outro corpo. Quanto aos estoicos, consideraram o fogo, um dos quatro elementos que constituem o mundo visível, como dotado de vida e de sabedoria e consideraram-no como tendo fabricado o Mundo, de maneira que, segundo eles, era realmente um deus.

Estes e outros que tais não conseguiram elevar o seu pensamento acima dos fantasmas que os seus corações, submetidos aos sentidos carnais, imaginaram. Realmente, tinham dentro de si o que não viam e imaginavam que viam fora de si o que não viam, embora, na realidade, não o vissem, mas apenas o imaginassem. E isto, realmente, à vista do pensamento, já não é corpo: é antes a imagem do corpo. E a faculdade que vê na alma a imagem dum corpo não é nem esse corpo nem a imagem desse corpo: e ela que vê e julga se essa imagem é bela ou disforme, é, sem a menor dúvida, melhor do que a imagem julgada. Esta faculdade é a inteligência do homem, a natureza da alma racional que, sem dúvida, não é um corpo, pois que esta imagem do corpo quando é percebida e apreciada no ato do pensamento, já não é ela mesma um corpo. Ela não é, portanto, nem terra, nem água, nem ar, nem fogo; não é nenhum destes quatro corpos chamados os quatro elementos de que vemos ser composto o mundo corpóreo. Ora se a nossa alma não é um corpo, como é que será um corpo Deus criador da alma?

Que estes filósofos cedam, portanto, aos platônicos. Cedam-lhes também os que se envergonharam de dizer que Deus é um corpo, mas nem por isso deixam de pretender que as nossas almas são de natureza idêntica à d’Ele. Não se sentem chocados com a mobilidade tão grande da alma, que não se poderá atribuir, sem incorrer em impiedade, à natureza de Deus. Dirão: é pelo corpo que a natureza da alma está sujeita a mudanças; por si mesma ela é imutável. Poderiam dizer também: é pelo corpo que a alma é ferida porque esta por si mesma é invulnerável. Na verdade, o que não está sujeito a mudança, nada o pode mudar; por isso é que o que pode mudar por intermédio do corpo, alguma coisa o pode mudar e, então, já não pode em rigor chamar-se imutável.”

 

 

Pensamento de Platão acerca da chamada filosofia física.

Estes filósofos que, pela sua fama e glória, vemos colocados merecidamente acima dos demais, compreenderam que Deus não é corpo e por isso é que, na busca de Deus, transcenderam todos os corpos. Compreenderam que em Deus Soberano nada é mutável, e por isso é que, na procura de Deus Soberano, transcenderam toda a alma e todo o espírito mutável. Compreenderam, além disso, que em todo o ser que muda, toda a forma que o faz ser o que é, qualquer que seja a sua natureza e os seus modos, não pode ela própria existir senão por Aquele que é verdadeiramente porque é imutavelmente. E daí que, quer seja o corpo do Mundo inteiro, a sua estrutura, as suas propriedades, o seu movimento regular, os seus elementos escalonados do Céu à Terra e todos os corpos que ele encerra;

quer seja toda a vida: a que sustenta e mantém o ser, como nas árvores; a que, além disso, possui sensibilidade, como nos animais; a que acrescenta a tudo isto a inteligência, como nos homens; ou a que, sem necessidade de mantimentos, se mantém, goza de sentimentos e de inteligência, como nos anjos,

não pode manter o seu ser senão d’Aquele que simplesmente é. Para Ele, efetivamente, ser não é uma coisa e viver outra, como se pudesse ser sem viver; para Ele viver não é uma coisa e compreender outra, como se pudesse viver sem inteligência; para Ele compreender não é uma coisa e ser feliz outra, como se pudesse ter inteligência sem a beatitude. Mas para Ele viver, compreender, ser feliz, tudo isso para Ele é ser.

Devido a esta imutabilidade e a esta simplicidade, os platônicos compreenderam que Deus fez todos os seres e por nenhum pôde ser feito. Realmente observaram que tudo o que existe é corpo ou vida, que a vida é coisa superior ao corpo, que a forma do corpo é sensível e a da vida é inteligível. Puseram, portanto, a forma inteligível acima da forma sensível. Ora nós chamamos sensível ao que pode ser percebido pela vista e pelo tato do corpo; inteligível ao que pode ser captado pelo olhar do espírito. Não há efetivamente beleza corpórea quer na estrutura do corpo, nos seus traços por exemplo, quer num movimento, como é o canto, que não tenha o espírito por juiz. Mas este espírito não poderia ser juiz, se nele não houvesse essa beleza mais perfeita, sem o volume da massa, sem o ruído da voz, sem a extensão do lugar e do tempo. Quanto ao próprio espírito, se, também ele, não fosse mutável, um não seria melhor do que outro ao ajuizar acerca da beleza sensível: nem o mais vivaz, o mais esperto, o mais exercitado ajuizaria melhor do que o mais lento, o menos esperto, o menos exercitado — e até o próprio espírito, embora uno, ao evoluir ajuíza melhor depois do que antes de se desenvolver. Não há dúvida de que é mutável o que é capaz de mais e de menos. Daí facilmente concluírem homens engenhosos, doutos e experientes nestas matérias, que a primeira forma não se encontra nos seres em que ela se evidencia mutável. A seus olhos o corpo e a alma aparecem com mais ou menos forma, de maneira que se lhes chegasse a faltar toda a forma, deixariam totalmente de ser. Viram, pois, que existe um ser no qual reside a primeira forma, imutável e, consequentemente, incomparável; julgaram muito justamente que é aí que se encontra o princípio das coisas, o qual não poderá ter sido feito e pelo qual tudo terá sido feito.

Assim, é o próprio Deus que lhes desvenda o que de Deus pode ser conhecido, quando a inteligência deles perscruta, através das Escrituras, as suas perfeições invisí­veis, o seu eterno poder e a sua divindade (Rom. I, 19-20) — Ele por quem todos os seres, mesmo os visíveis e temporais, foram criados. Fica exposto assim o que se refere à parte chamada física, isto é, a natural.

 

 

“Segundo Platão, o bem supremo consiste em viver conforme a virtude — o que só pode ser alcançado por quem tem o conhecimento de Deus e procura imitá-lo: não há outra causa que possa torná-lo feliz. Também não hesita em dizer que filosofar é amar a Deus, cuja natureza é incorpórea. Donde se segue que o desejoso de sabedoria (que o mesmo é que dizer: o filósofo) só se torna feliz quando começa a gozar de Deus. Certamente que se não é feliz pelo simples fato de que se goza do que se ama, (muitos de fato são infelizes por amarem o que não deviam amar e mais infelizes ainda por dele gozarem). Todavia ninguém é feliz se não goza do que ama. Mesmo aqueles que amam o que não deve ser amado não se julgam felizes por amarem, mas por gozarem. Portanto, quem goza daquele que ama e ama o verdadeiro e supremo bem — quem senão o mais desgraçado negará que esse é feliz? A esse verdadeiro e supremo bem dá Platão o nome de Deus. Por isso é que diz que filósofo é o que ama a Deus; e porque a filosofia tende para a vida feliz, é gozando de Deus que quem o ama é feliz.”

 

 

“Realmente, a respeito do único e verdadeiro Deus construtor do mundo, muitas coisas Hermes Trismegisto diz que correspondem à verdade; e não compreendo como é que tal cegueira do coração o leva a afirmar que os homens estão sujeitos aos deuses que (é ele que o confessa) pelos homens foram feitos, e a deplorar a supressão futura desta sujeição — como se houvesse alguma coisa mais deplorável para o homem do que ser dominado pelas suas próprias ficções. Porque a verdade é que é mais fácil a um homem deixar de ser homem, adorando como deuses as obras das suas mãos, do que às suas obras tornarem-se deuses pelo culto que um homem lhes presta. Realmente, a um homem de tão elevada dignidade, se não é inteligente é mais fácil descer à categoria dos brutos do que a obra do homem ser preferida à obra de Deus feita à sua semelhança, isto é, ao próprio homem. É precisamente por isso que o homem se afasta daquele que o fez quando acima dele coloca o que ele próprio fez.”

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