Editora: Estampa
ISBN: 978-85-7559-548-0
Tradução: José
Saramago
Opinião: ★★★★★
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Páginas: 316
Sinopse: Ver Parte
I
“Contudo, à boca do palco, o teatro da
devoção apresenta aos homens uma figura central, a de Deus. Deus em três
pessoas. Numerosas confrarias colocaram-se no século XIV sob a invocação da
Trindade. Pintores e escultores receberam, por consequência, ordem para figurar
as três pessoas divinas. Nos seus extremos mais aventurosos, a ala mercantil do
cristianismo punha em evidência a terceira delas, o Espírito Santo. Muitos
fiéis pensavam então, com os Fraticelli,
que o reino dele chegara. Todos lhe atribuíam o governo das relações entre a
alma e o poder divino. Nas imagens da Trindade, porém, a pomba do Espírito
Santo nunca é mais do que uma figura acessória, como um traço de união lírico.
O próprio Pai não constitui mais do que uma decoração de fundo, uma espécie de
trono vivo. No centro da composição ergue-se o Filho crucificado. Depois de cem
anos de impregnação franciscana, a arte figurativa do século XIV dispõe-se em
redor dum centro donde todo o amor irradia: Jesus. Mas que Jesus? Os
Beneditinos da idade românica haviam ordenado o tímpano das abaciais em função
do Cristo do Último Dia. No portal das catedrais, os intelectuais do século
XIII haviam colocado Jesus doutor. O Cristo que uma cristandade enfim popular
reclama é muito simplesmente um homem. Um homem comovedor, pois que a devoção
moderna é “uma certa tendência de coração pela qual as pessoas se desfazem
facilmente em lágrimas”. O Jesus de que falam os pregadores, aquele que as sacre rappresentazioni mostram, o Jesus
do Natal e o Jesus da Páscoa. Isto é, um Deus também “historial”, a personagem
duma narrativa: Cristo tornado mais próximo pelas fraquezas duma primeira infância,
sobretudo pelo mergulhar na agonia.
Natal, Páscoa. A festa do Inverno é uma festa
alegre. Proclama a esperança na profundidade da noite. Mas a sua alegria emana
menos do menino do que da Mãe. Mais entregue às mulheres, o cristianismo
vulgarizado entrança os seus arabescos um pouco afetados em torno do tema marial.
Este desabrochara largamente no cristianismo dos clérigos. Exibe-se e perde
qualidade. A arte do século XIV, que multiplica as figuras da Virgem,
dessacraliza-as pouco a pouco: Maria ajoelhada diante do Filho recém-nascido,
Maria perturbada na sua meditação pela anunciação do anjo, Maria vigiando as
brincadeiras na erva macia e nas florinhas dos hortos fechados, Maria
protetora, enfim, Virgem do manto levantado sobre a multidão dos santos, assumindo
sozinha a função tutelar deles, e protegendo sob a sua capa azul, como única
mediadora, todo o povo cristão reunido. Depois das penitências e macerações da
Quaresma, a Páscoa irrompe, mas precedida pelo cortejo das dores divinas. Se
Cristo, finalmente, leva todos os homens à salvação, é pela acumulação dos
sofrimentos: é a vítima, o cordeiro portador do pecado do mundo. Nenhum espetáculo
foi então mais popular do que o da Paixão e nenhuma imagem mais espalhada do
que a da Cruz, do crucifixo, eixo trágico da religião dos pobres. Pouco a
pouco, a atenção transporta-se do Cristo humilhado, do Cristo flagelado, do
Cristo pregado na cruz para o Cristo morto. No regaço da Virgem em piedade, não
já a mãe feliz dos vergéis floridos, das coroações, das assunções, mas cooperando
na redenção pelo aprofundamento da sua própria dor, pelo olhar de amor sofredor
fixado no destroço que é o Filho, jaz um cadáver. Cadáver cujo primeiro Santo Sepulcro,
esculpido em representação teatral, pôs em cena em 1419 o sepultamento. Com
efeito, desempenhar a personagem de Jesus, contemplar as cenas sucessivas do
seu suplício, “ver com os olhos da alma uns que cravam a cruz na terra, outros
que preparam os pregos e o martelo”, absorver-se nesta contemplação até receber
no corpo os estigmas, era identificar-se com ele de maneira suficientemente
íntima para finalmente vencer a morte, como ele mesmo a tinha vencido. É o medo
da noite eterna que leva à imitação de Cristo.”
“Mais do que uma arte de viver, o
cristianismo do século XIV foi uma arte de bem morrer, e a capela, mais do que
o lugar das orações e da contemplação mística, o dum culto funerário. As forças
associadas de vulgarização e de laicização colocaram o sentimento da morte
nessa posição dominante, pondo no centro dos ritos e da imaginária religiosa esta
interrogação primária: que aconteceu aos defuntos? onde estão?
A doutrina da alta Igreja propunha uma resposta
tranquilizadora. A morte é uma passagem, o termo da viagem terrestre, a chegada
ao porto. Um dia, talvez próximo, virá o fim dos tempos, o regresso glorioso de
Cristo, a ressurreição da carne na sua plenitude. Então os bons serão separados
dos maus e a imensa multidão dos ressuscitados repartida em dois grupos, que se
encaminharão, um para as alegrias, o outro para as penas eternas. Enquanto
esperam este último dia, os defuntos repousam num lugar de refrigério e de
calma, dormem o sono da paz. Tal é o ensinamento da liturgia dos funerais. E a
Igreja conquistadora da Alta Idade Média perseguira, ao tempo, para as
destruir, as práticas funerárias do paganismo. Ameaçara com as mais graves
penas os que se obstinassem em levar alimentos aos mortos. Esvaziara os túmulos
das joias, das vestes, das armas, de todo o abundante mobiliário colocado junto
dos cadáveres, para que o defunto pudesse viver em aprazimento a sua existência
misteriosa e não viesse, insatisfeito, importunar os vivos. A morte
instalara-se portanto na nudez, no despojamento tranquilo. Discrição
surpreendente: nenhum adorno, nenhum emblema sobre os restos das princesas
carolíngias inumadas no envasamento da basílica de Santa Gertrudes em Nivelles,
e quando os arqueólogos abriram o único túmulo dum rei de França que ficara
inviolado, o de Filipe I, em Saint-Benoit-sur-Loire, não descobriram nada junto
do corpo defunto, a não ser os restos dum simples revestimento de folhagem.
Os padres haviam tido no entanto que
transigir com crenças muito poderosas. Tinham dado cada vez mais amplitude à
liturgia dos defuntos. Tinham acolhido o mito dum espaço e dum tempo intermédio
entre a morte e o Juízo Final, tinham admitido que as almas dos mortos podiam sair
do sono: não era a adormecidos que Dante ia visitar. Sob a incerta fiscalização
da Igreja, o Purgatório estende-se como uma província reconquistada pelas concepções
pré-cristãs da morte. O campo desta reconquista alarga-se mais na segunda
metade do século XIII, quando afrouxou o domínio dos clérigos sobre as
manifestações de piedade, quando os frades mendicantes trabalhavam para fazer
verdadeiramente do cristianismo a religião do povo. A Igreja recusara durante
muito tempo o acesso do santuário a sepulturas que não fossem de santos, de
príncipes ou de prelados. A vontade dos vivos de pôr os seus mortos o mais
perto possível dos altares venceu pouco a pouco essa repugnância. O cerimonial
revestiu-se, para os ricos, de toda a ostentação do luxo. Era preciso que o defunto
entrasse no reino dos mortos adornado com todos os prestígios da sua glória.
Pois que o poder dum homem se media então pelo número dos seus “amigos”, dos
que viviam sob a sua proteção e em dedicação a ele, o longo cortejo da sua
casa, seguido por todos os pobres que alimentara com os seus donativos,
acompanhou o esquife. O túmulo, finalmente, cobriu-se de numerosos ornamentos.
Figurativos. Preocupado com não desaparecer completamente, o defunto quis ficar
presente sobre a terra, ao menos em efígie.
A vontade de sobreviver na sepultura
manifestava, contra o espírito cristão de renúncia, o desabrochar duma outra
tendência, mais essencial, talvez, do espírito profano: o desejo de vencer o
aniquilamento corporal e o terror do homem, não só diante dos mortos, mas
diante da sua morte, diante da Morte.
A Igreja quisera, desde o princípio, domesticar esta tendência e submetê-la aos
seus fins. Sempre convidara, portanto, a meditar sobre a podridão do cadáver,
apresentando-a como o sinal da imperfeição da carne, da sua inanidade, como a
condenação dos prazeres transitórios, como o mais impressionante convite ao
verdadeiro caminho, o de Deus, ao abandono do século. A imagem do esqueleto e
do corpo decomposto constituiu uma das ilustrações mais persuasivas da pregação
da penitência. Por isso, os laudi
cantados nas confrarias italianas evocavam frequentemente o isolamento do corpo
defunto, entregue aos vermes na fossa escura. Para essa obra de edificação
cooperava um tema figurativo construído sobre o poema dos Três Mortos e dos
Três Vivos, a representação dos três cavaleiros que esbarram com três sepulcros
abertos, revelados os cadáveres no cheiro da podridão e mostrando bruscamente
aos vivos a vaidade do mundo. O remexer dos vermes nas carnes destruídas dava
um duplo ensinamento. A putrefação atestava, em primeiro lugar, a íntima união
do invólucro carnal e do pecado. Não era verdade pensar-se que só o corpo dos
santos escapava a esta decadência? E quando os frades pregadores abriram o
túmulo de S. Domingos, não esperavam eles com ansiedade o suave “cheiro de
santidade” que provaria a todos que o fundador da Ordem alinhava efetivamente
entre os bem-aventurados? Mas o espetáculo do aniquilamento corporal devia
incitar também o fiel a conduzir a sua vida com prudência, a estar
constantemente pronto, como as Virgens sábias, em estado de graça, pois que a
morte é um arqueiro cujo dardo fere de imprevisto e atinge o homem quando ele
não espera. A visão do cadáver apodrecido erguia-se entre as representações do
cristianismo litúrgico como uma muralha contra as seduções perniciosas dum
mundo tentador e condenado.
Ora, os progressos do espírito laico vieram
no limiar do século XIV infletir o tema até o virar completamente. O grande afresco
pintado no Campo Santo de Pisa justapõe à imagem dos Três Mortos e dos Três Vivos
uma outra cena de espírito radicalmente oposto, a do Triunfo da Morte. Brandindo
uma gadanha, a figura da morte precipita-se em turbilhões furiosos sobre o
vergel deleitável onde, entre as suavidades da vida cortês, uma sociedade de
damas e senhores canta o amor e a alegria terrestres. Vai quebrar de um golpe
esta alegria e, como a peste, como a morte negra, confundir esta assembleia
cantante com os cadáveres que já se amontoam. A imagem não atua aqui como
exemplo da vaidade dos prazeres. Grita a angústia do homem mortal diante das
forças do seu destino. O recuodos cavalos, empinados diante dos Três Mortos e
dos seus sarcófagos descobertos, esboçava um movimento de renúncia, de
desprendimento. Os namorados, pelo contrário, desatentos, inconscientes do
furor convulsivo que vai de repente ceifar a sua felicidade, agarram-se às suas
alegrias, à sua vida. Para eles, como para os trovadores cujas canções
acompanham as danças, este mundo é belo, cheio de delícias. Escândalo é ser
arrancado a ele. Se a morte, a donna
involta in vesta negra de Petrarca, arrebatada, como em Pisa, cerca de
1350, nos tumultos dum furacão, cavalgando, como em Palermo, cerca de 1450, o
esqueleto dum cavalo, aparece na força inelutável dum terrível triunfo, é porque
antes triunfara na cultura do século XIV a sede da felicidade carnal duma
sociedade que se libertava da moral dos padres. Quando se levantou da sua
prosternação, o homem encontrou diante de si, ameaçadora, uma morte à sua exata
medida. A sua.
Os novos símbolos foram inscritos nas paredes
das igrejas. Os pregadores, os animadores da vida piedosa, viam-se impotentes
para reprimir o amor do mundo, para conter o surgimento do otimismo laico. Ao menos,
procuraram utilizar na sua pastoral a perturbação inerente a esse mesmo
otimismo, o horror da morte, destruidora dos prazeres do mundo. O afresco de
Pisa é como a ilustração dum sermão que tivesse reforçado os efeitos dum antigo
tema, cuja eficácia se atenuara, com um outro, mais perturbador porque tocava
na sua profundidade trágica a mola duma sensibilidade nova. Assim se
estabeleceram no fim do século XIV, no centro da iconografia religiosa, as
formas renovadas do macabro. Cerca de 1400 aparecem na Alemanha as primeiras Artes de Morrer, conjuntos de gravuras
que descrevem em cenas sucessivas o drama da agonia, o moribundo dilacerado
pelo pesar do que deixa, atormentado pelos demônios que tentam uma última
ofensiva e que finalmente são derrotados pelo Cristo irmão, a Virgem e os
santos. Na mesma época, talvez em França, organizava-se a Dança Macabra. No
mais fundo das crenças populares, a figura da morte vitoriosa juntava-se por
vezes à do flautista enfeitiçador. Tocadora de música, encadeava com as suas
melodias sorrateiras homens e mulheres, velhos e novos, ricos e pobres, o papa,
o imperador, o rei, o cavaleiro, os membros de cada um dos “estados” do mundo.
Irresistível, arrebatava-os a todos. Os pregadores imaginaram talvez fazer
mimar esta sarabanda triunfante e terrível e depois a representação sacra foi
fixada em imagens. Em 1424, o novo símbolo da mortalidade do homem erguia-se em
Paris no cemitério dos Inocentes, não longe do grupo, agora menos persuasivo,
dos Três Mortos e dos Três Vivos, que o duque João de Berry não havia muito
tempo aí mandara colocar. Expressão da angústia de ser homem, o tema impôs-se
por toda a parte, de Coventry a Lubeque, de Nuremberg a Ferrara. Atingia a
inquietação no seu ponto mais sensível. Não a transportava já para o além
longínquo e confuso dos Juízos Finais. Situava-a na certeza presente, atual,
perante um fato de experiência, a agonia. “Quem morre, morre na dor”. A morte
já não aparece como o adormecimento tranquilo do viajante que chega ao porto de
salvação. É abertura vertiginosa para um abismo escancarado. Ora, não foi a
miséria dos tempos, o redobrar dos flagelos, da guerra ou da epidemia que asseguraram
o triunfo do macabro, mas o desenvolvimento do longo movimento que, desde há
dois séculos, conciliava pouco a pouco o cristianismo com as aspirações
religiosas dos laicos. Tremer perante a agonia não é resultado duma cristandade
mais deprimida, menos segura de si mesma e menos crente, mas duma cristandade
muito menos seletiva, largamente aberta a homens simples, de fé também sólida
mas mais curta e menos capaz de abstração. A Dança Macabra, tal como o tema
italiano do Triunfo, tal como a imagem de Cristo morto no regaço de sua mãe, convinha
a uma sensibilidade religiosa que já não era a dos monges ou dos professores da
Universidade, mas do povo. Dos ricos e dos pobres que, na igreja franciscana ou
nas capelas, rezavam cercados de túmulos.
Quando a ideia da morte foi acolhida, em suas
formas frustes, no coração da vida de piedade, autorizada a governá-la
completamente, quando a angústia de desaparecer e a obstinação de sobreviver
fizeram da imitação de Jesus Cristo a imitação, acima de tudo, da sua agonia, o
túmulo apareceu à luz do dia o que era desde há séculos, por trás do biombo de
serenidade disposto pela alta Igreja: o objeto de preocupações essenciais. No
século XIV, as disposições do mecenato revelam-se principalmente orientadas
para a pompa funerária. De todas as encomendas feitas aos artistas, as mais
numerosas, as mais atentas, referem-se ao túmulo. A cláusula inicial de todos
os testamentos contém a eleição da sepultura, a escolha do lugar que receberá o
despojo mortal, que o abrigará até ao Último Dia. Todo o homem que pensa erigir
uma capela, que concebe a decoração, que constitui rendas para assegurar o
serviço, pensa menos nas suas orações do que no seu túmulo. É costume preparar
com grande antecedência essa última morada, vigiar em pessoa a edificação e o ornamento,
tal como regular em pormenor a ordenação do seu próprio funeral. A cerimônia
fúnebre é, com efeito, concebida como uma festa, como a principal festa da
existência. Ora, numa festa, exibe-se, desperdiça-se. As exéquias desse tempo
desenrolam-se no aparato dum cortejo ruinoso.”
“Espezinhado pelos homens de armas, dizimado
pelas pestes, o século XIV foi na Europa uma das grandes épocas da canção.
Essas canções são naturalmente pastoris e rústicas e sempre primaveris. Foram
compostas para os jardins. As moças dançam ao ritmo delas no prado, e, pela
roda das donzelas de vestidos salpicados de flores, a graça das planícies
vizinhas introduz-se no universo mineral e cubista da Siena de Lorenzetti. A
alegria mundana encontra o seu pleno desabrochar na natureza, no ar dos campos
e dos bosques, e a arte que suscita dispõe sobre as paredes das salas fechadas
e sobre as páginas dos livros um simulacro dos prazeres agrestes. O sonho que
ela propõe vai divagando em direção aos campos e às florestas familiares.
A cultura cavaleiresca, com efeito, nascera
num mundo que praticamente ignorava as cidades. A riqueza senhorial assentava
na terra e no trabalho camponês. Os príncipes viajavam constantemente de
domínio em domínio e reuniam as suas cortes solenes em pleno campo. Sabe-se que,
para administrar justiça, S. Luís gostava de se sentar debaixo dum carvalho, e
as rudes volúpias que a guerra proporcionava aos guerreiros do século XIV
resultavam em grande parte de a arte de combater se desenvolver como um
desporto de ar livre. Travava-se o combate nas vinhas, na orla dos bosques e no
perfume da terra calcada. As batalhas começavam sobre o orvalho, aqueciam pouco
a pouco com o subir do sol. Por isso, quando a torre desapertou os seus cintos
de muralhas e se aprestou para abrigar as doçuras da vida, logo se abriu para
um jardim. O papa em Avignon teve o seu pomar no recinto do palácio, Karlstein ergueu-se
longe de Praga, e Windsor longe de Londres. Em Paris, porque o velho palácio da
Cité, porque o próprio Louvre se encontravam demasiado longe das verduras,
Carlos V mandou comprar hortas no Marais para construir o palácio de
Saint-Paul. A fim de viverem como nobres, no lazer rural, todos os mercadores
ricos quiseram também possuir um domicílio fora das muralhas da cidade. Porque
colocara a figura do senhor feudal no centro do seu ideal de felicidade terrestre,
a civilização do Ocidente, que porém era governada cada vez mais pelos
costumes, pelo trabalho e pelos gostos urbanos, não escaparia às seduções dos
folguedos rústicos. Ora acontecia que o redescoberto Virgílio os celebrara já.
O humanismo nascente começou então a cantar as alegrias bucólicas, a celebrar a
felicidade dos pastores. Incitou os seus adeptos a trocar o luxo adulterado das
cortes pela simplicidade dos prazeres campestres. Instalou, também ele, longe
das cidades, os lugares ordenados das conversações ociosas. A companhia feliz
do Decameron não se reuniu em
Florença, e Petrarca trocava Avignon pela Fonte de Vaucluse. Mesmo as atitudes
religiosas tendiam, entre as pessoas do mundo, a transportar-se para o ar
livre. As únicas personagens que nos romances corteses tinham uma mensagem cristã
eram ermitas retirados, com os feiticeiros, para as solidões silvestres. Talvez
em parte alguma o otimismo cavaleiresco tenha encontrado melhor o seu Deus que
no seio da natureza virgem. Para um cristão que se liberta das liturgias e
tende a atingir o puro amor, Deus, diz Mestre Eckhart, “resplende em todas as
coisas, porque todas as coisas têm para ele o gosto de Deus e ele vê a sua
imagem em toda a parte”. A iluminação mística transporta a alma ao centro dum
vergel, rodeado de muros, mas cheio de flores, de pássaros e do canto das
fontes. A Igreja das catedrais coroara a Virgem, apresentara-a ao povo como uma
rainha rodeada duma corte de anjos e das pompas litúrgicas do poder. O século
XIV trouxe-a para si. Mergulhou-a, é certo, na dor redentora dos homens
prosternados diante do seu Deus morto, mas fez dela também a imagem duma mulher
feliz. A Virgem exultante da Visitação, da Natividade e da Infância de Cristo
preside entre os ramos de flores e essas mesmas coroas que Joana d’Arc, com as
suas companheiras, ia nas noites de Verão pendurar nas árvores das fadas.
Sentada na erva dum jardim, preside como a rainha duma natureza reconciliada.
Quando falavam de Natureza, os monges e os
padres da idade litúrgica evocavam a ideia abstrata duma perfeição inacessível
aos sentidos. Para eles, a natureza era a forma conceitual em que a substância
de Deus se revela. Não os aspectos transitórios e fictícios que a vista, o
ouvido, o olfato podem captar. Não as aparências incertas e desordenadas do mundo
—mas o que fora o Jardim do Paraíso para Adão antes da sua falta: um universo
de paz, de medida e de virtude, posto em ordem pela razão divina e que escapa
às alterações, às decadências mais tarde introduzidas ao mesmo tempo que os
poderes do sexo e da morte. No seu espírito, natura opunha-se à gula,
à voluptas, isto é, à natureza física
desviada, rebelde aos mandamentos de Deus, indócil e por isso condenada, por
isso desprezível, por isso indigna de atenção. Os intelectuais dos séculos XII
e XIII formavam da natureza uma ideia espiritual e não carnal. Para desvendar
os seus mistérios, o melhor era seguir pelos caminhos do raciocínio, de dedução
em dedução, de abstração em abstração, até chegar à razão de Deus. A sua física
era conceitual, e fora por isso que o seu pensamento acolhera tão bem o sistema
de Aristóteles.
Mas no ponto de partida da física
aristotélica colocava-se a observação. O caminho do conhecimento tendia por
vezes a erguer-se, num movimento muito semelhante ao da lógica escolástica, do
particular, do acidental, ao mais geral. A ciência ultrapassava assim, pouco a
pouco, a superfície, para chegar, para além do movente e do mutante, à substância,
sustentáculo e causa de todos os efeitos observados. Chegava desta maneira às
formas, por três graus sucessivos de abstração, física, matemática e depois
metafísica. Em Aristóteles, a física, ciência do que, no universo, é ainda
mudança, encontrava-se estritamente separada da matemática, conhecimento do
que, no universo, se torna estável, quando a abstração atinge o nível superior
em que o movimento se elimina. Quando os tradutores do árabe a revelaram, os
mestres e os estudantes de artes da Universidade de Paris deram uma adesão
entusiasta a esta filosofia. Deixaram-se seduzir por uma cosmologia completa,
hierarquizada, perfeitamente racional, e pela ciência do homem microcosmos que
lhe era simetricamente conjunta. Esta conceitualização do mundo convinha à elucidação
duma natureza em que os intelectuais viam a forma da razão divina. Dominada por
homens que desprezavam o carnal, que o diziam infectado de pecado, que
renegavam a observação direta e a experiência e que alimentavam a sua sede de
conhecer com o silogismo e a razão pura, a arte do primeiro gótico, tal como a
arte românica, foi abstrata. Não representava uma árvore, mas a ideia duma
árvore, tal como não representava Deus, que não tinha aparência, mas a ideia de
Deus.
Contudo, Deus encarnara. Por isso, na arte
das catedrais a figuração da essência dos seres criados se aproximou, pouco a
pouco, da das aparências. Em breve se pôde identificar na flora dos capitéis as
folhagens da alface, do morangueiro e da vinha. A lenta propagação do novo
cristianismo, aquele que S. Francisco pregara e que, num otimismo próximo da
alegria cavaleiresca, propunha reabilitar o mundo carnal, o irmão Sol e as
outras criaturas, contribuiu em muito para trazer para o concreto a atenção dos
homens de cultura. Na Universidade de Paris, na corte de S. Luís, os Frades
Menores eram numerosos e influentes. Falavam duma Natureza visível, que não era
já culpada e para a qual podiam voltar-se os olhares. Mas intervieram também,
no próprio seio da escola, certas reticências para com o sistema de
Aristóteles, que não se mostrava completamente sem fissura. A lógica
escolástica forjara-se para pôr em evidência as contradições das autoridades e
para as resolver. Depressa descobriu que a cosmologia de Aristóteles não
concordava exatamente com outros sistemas, como o de Ptolomeu, que as traduções
do Almagesto revelavam. Para reduzir
essas discordâncias, para decidir entre as opiniões diversas dos autores, era
forçoso observar o mundo. No século XIII, os astrônomos de Merton College, em
Oxford, os da Universidade de Paris, foram os primeiros sábios do Ocidente a
recorrer deliberadamente à experiência.
A física de Aristóteles apresentava um outro
defeito, mais grave. Não se conciliava com o dogma cristão. Colocando o homem
prisioneiro do cosmos, negava-lhe a liberdade. Propondo a noção duma matéria eterna,
não podia dar lugar nem à criação nem ao fim dos tempos. O comentário de
Averróis iluminava claramente o que se mostrava irredutível ao cristianismo na
física do Filósofo. Esta foi, por consequência, solenemente condenada em 1277, ao
mesmo tempo que o averroísmo, pelo bispo de Paris, Étienne Tempier. Este ato de
polícia intelectual, rejeitando um sistema confortável, que dava clara resposta
a tudo, mergulhava outra vez o mundo no mistério. Incitava os sábios a
procurar. Já nas escolas de Oxford os mestres franciscanos seguiam novos
caminhos. Propondo, contra Aristóteles, ver na luz a substância comum a todo o
universo, Roberto Grosseteste permitira conceber o mundo criado como não
fechado, não encerrado, restituí-lo ao infinito. E pois que a luz pudera ter
brotado e podia extinguir-se, o mundo pudera um certo dia ter começado e
poderia um certo dia acabar. Este sistema trazia sobretudo um método. Pois que o
universo era considerado como luz, para compreender as estruturas do mundo
físico convinha estabelecer leis da ótica. Ora estas dependiam duma geometria e
duma aritmética. A ciência matemática achava-se assim reunida à ciência física.
Toda a mística dos números que o neoplatonismo veiculava podia legitimamente
contribuir para a explicação do mundo e o novo sistema convidava, por outro
lado, a medir o universo. Nesta via, a ciência exata tomou depois de 1280 o seu
impulso. O sistema de Aristóteles atribuía aos quatro elementos apenas
qualidades conceituais. Os sábios de Oxford e de Paris procuraram dar a essas
qualidades valor quantitativo. Como, por outro lado, a luz era irrupção e
dinamismo, a reflexão sobre o movimento levou a propor, contra a matemática
grega, que era a do repouso, uma matemática da mudança. A nova doutrina, enfim,
voltava a dar toda a sua importância ao olhar e situava na vanguarda da
investigação a visão precisa, a observação direta. A ciência, desta maneira,
tornou-se lúcida. E quando no limiar do século XIV um outro franciscano de
Oxford, Guilherme d’Ockham, encheu o vazio aberto pela recusa do aristotelismo,
quando convenceu a gente das escolas de que todo o conhecimento conceitual é
ilusório, de que atingir a substância das coisas é proibido à inteligência do
homem, de que esta só pode captar os atributos e os acidentes por uma
experiência dos sentidos, dava ao espetáculo da natureza visível o seu valor
essencial Todo o movimento de pensamento que leva ao ockhamismo e que irrompe
com ele no século XIV trazia a natureza do abstrato ao concreto e reabilitava
as aparências. Aliado à alegria franciscana e à alegria das cortes, incitava os
artistas a olhar.
A olhar o mundo e a sua diversidade. A
sociedade cavaleiresca que, para dirigir a criação artística, ocupava então o
lugar do escol da Igreja, era espontaneamente curiosa e tinha prazer na
contemplação das coisas. Tinha o gosto do estranho. O exotismo abria para ela
uma das portas da evasão. Pelo seu estado, o cavaleiro vagueia à aventura e
diverte-se a descobrir países novos. A cruzada fora pretexto, de fato, para
maravilhosas viagens. A maior parte dos cruzados tinham, pelo caminho, passeado
um olhar de turistas pelas regiões do Oriente mediterrânico. Quando para
auditórios cavaleirescos uma literatura se formara, logo ela evocara as terras
distantes. Já nas primeiras canções de gesta se erguiam o pinheiro e a
oliveira, ao mesmo tempo como lembrança duma recordação e como incitamento a
novas viagens. As narrativas de viagens autênticas fizeram concorrência aos
contos que teciam em redor da demanda cortês um universo de fábula e de sonho.
Os Espelhos do Mundo, os Livros das Maravilhas, os Livros do Tesouro, os Bestiários, os Lapidários apresentavam em dialeto vulgar, para a roda dos grandes
senhores, a descrição minuciosa de criaturas desconhecidas. Estas, ao contrário
dos dragões ou dos licornes, tinham o mérito de existir. Todos os príncipes do
século XIV reuniram para seu divertimento, mas também por desejo de possuir
todo o universo, coleções de objetos estranhos que os mercadores traziam do
cabo do mundo. Nos seus jardins podiam-se ver, vivos, macacos e leopardos.
Entretanto, a curiosidade cavaleiresca
incidia também na natureza próxima, familiar, e contudo também ela misteriosa e
matéria para descobertas apaixonantes. A caça era igualmente conquista, e esta
quotidiana, maneira do homem se apropriar da criação, de a submeter ao seu
poder. Caçadores, estes homens tiravam dos animais selvagens, dos seus costumes
e dos seus abrigos, um conhecimento direto e muito preciso. Alguns deles, o
imperador Frederico II em primeiro lugar, quiseram fixar a soma das suas experiências
em tratados. Com as canções amorosas e as relações das expedições longínquas,
os livros de montaria foram as primeiras obras literárias compostas por
cavaleiros. Continham as primeiras histórias naturais. Tiveram imenso êxito. Os
seus leitores comprazeram-se em encontrar nas margens dos saltérios e nas “sebes”
dos livros de horas uma imagem fiel dos animais e das plantas que observavam
durante as suas batidas, Os pintores mostraram-na, misturada com a dos animais
de fábula, fechada nos arabescos divagantes duma flora sonhada.
A cultura cavaleiresca, com efeito, apelava
para uma figuração precisa da realidade, mas duma realidade fragmentária. Queria
que lhe mostrassem objetos imediatamente reconhecíveis na singularidade da sua aparência,
mas isolados, estreitamente imbricados na trama da recordação ou da irrealidade
poética. Nas festas corteses, a nobreza não organizava a natureza em espetáculo.
Tirava dela elementos isolados que dispunha sobre os seus atavios em ornamentos
ligados pela gratuidade dos bordados, com que semeava a decoração irreal, o
fundo de ouro ou o enxadrezado vermelho e azul dos vitrais, estendido para a
apresentação dos seus ritos. A unidade coerente dum universo conceitual era
substituída pela dispersão, pela multiplicidade dos fenômenos da física
ockhamista. Destruíra o espaço cheio de Aristóteles, enchia o vazio do mundo
com as acumulações dum tesouro de colecionador, e apenas sonhava animar as
peças separadas com o movimento do impetus,
do impulso, cuja teoria matemática o mestre parisiense construía então, da
mesma maneira que as sinuosidades das caroles
arrastavam os chapéus de flores, que a justa e a sua fogosidade arrastavam em
turbilhões os brilhos das montadas. Por isso não foi junto dos matemáticos de
Oxford, apesar de descobrirem a ótica, que os pintores encontraram as regras da
perspectiva. A natureza figurada nas ilustrações da alegria cavaleiresca não é
estruturada pelo cálculo, como o são as basílicas românicas e as catedrais. O
seu espaço dispersa-se na descontinuidade de olhares agudos, lúcidos, mas
múltiplos. As primeiras tentativas para construir racionalmente uma paisagem
não foram parisienses, mas italianas.
Na Itália, a ala móvel do franciscanismo
professava a pobreza em espírito e lançava o anátema contra a investigação
científica. As Universidades ficaram, no seu conjunto, impermeáveis ao
ockhamismo e continuaram a comentar Aristóteles e Averróis. Ficaram-se na
antiga filosofia, até que apareceu em Florença, subvertedora mas tardia, a
mensagem de Platão. Todas as conquistas científicas do século XIV, exceto as
dos médicos, operaram-se por consequência fora das escolas italianas. Os mestres
de pensamento deste país, os prelados e os frades pregadores por quem o escol
da sociedade urbana acedia ao saber escolar e que redigiam os programas
iconográficos dos empreendimentos de decoração, propunham a imagem dum universo
conceitual e uno, coordenado em todas as suas partes. Na península, porém, a
linguagem dos artistas, renovada nas fontes da pintura antiga, descobrira, mais
cedo do que em outros lugares, os antigos processos da ilusão. À grande arte
teatral das representações da majestade civil e da imitação de Jesus Cristo
convinha um cenário simples de símbolos, alguns sinais elementares que
colocavam a ação dramática no seu lugar. Esta arte utilizou, por consequência,
como o haviam feito a arte românica e a pintura de Bizâncio, um vocabulário
abstrato. Implantou ao redor das suas personagens ideias de árvores, de
rochedos, de construções e de tronos. Mas uma vez que se tratava agora de um teatro,
era preciso que os elementos do cenário fossem ordenados racionalmente num
espaço fechado, delimitado por um enquadramento, e que não surgissem, diante da
verdade dos atores, numa irrealidade demasiado discordante. Sobre o vasto palco
do seu drama, Giotto dispunha as figuras de Deus e dos santos numa
materialidade plástica que lhes dava o peso e a presença corporal das estátuas.
Mas importava ainda dispor em redor delas uma certa profundidade de campo.
Giotto não procurou rodeá-las de atmosfera, tal como não procurou abrir o muro
por trás delas para a fuga duma paisagem. Mas, pelo menos, quis pelos
artifícios duma perspectiva ainda balbuciante que a imagem dos objetos
simbólicos que localizavam a narrativa tomasse aos olhos dos espectadores a
aparência de se desdobrar na terceira dimensão. A transferência, inerente à
expressão teatral, que substituía então a expressão litúrgica, excluía a
intrusão brutal do realismo. Convidava, em compensação, numa abstração quase
aristotélica do acidente e do movimento, a não desprezar as leis óticas. Elas
abriam os caminhos da ilusão.
Giotto estava longe de procurar o verismo.
Contudo, poucos anos depois da sua morte, Bocácio louvava-o pela destreza em
figurar a realidade: “A natureza não produz nada que ele não tenha pintado
semelhante a ela e mesmo idêntico, de tal maneira que muitas vezes os homens se
enganam vendo as coisas que ele fez, tomando por verdade o que é pintura”. Ora,
a verdade de que fala Bocácio não é a verdade transcendente, e, por natureza,
ele está a entender as aparências do mundo. Entretanto, também os mecenas
italianos se tinham aberto à curiosidade pela natureza das coisas. Esperavam da
arte que passasse a apresentar-lhes uma ilustração verídica do real.
É aqui que se deve fazer intervir a
influência duma mentalidade a que não se poderá chamar burguesa sem trair as
suas aspirações profundas, mas que era partilhada, com os práticos da medicina,
do direito e da gestão pública, por todos os homens enriquecidos pelo trabalho
que se tinham instalado no poder nos senhorios urbanos. Estes práticos não
haviam frequentado as Universidades. Mas tinham adquirido no seu mister uma acuidade
visual indispensável para avaliar ao primeiro relance a qualidade dos números
objetos da mercatura. Os seus
negócios, dispersos por toda a parte, exigiam-lhes uma vista de conjunto do
mundo, exata e precisa. Tinham o sentido do número e para eles a palavra ratio designava também uma operação de
contabilidade. Estes homens quiseram que o cenário das cenas pintadas
refletisse mais fielmente a realidade do mundo, conservando a coerência, a
unidade e a profundidade de campo teatrais. As alegorias do Bom Governo são
conceitos. Estão situadas na abstração cênicas. Mas, em baixo, ao nível das
curiosidades profanas, apareceu em Siena, para um senhorio coletivo de
mercadores de panos e de especiarias e de manejadores de fundos, no mesmo
momento em que Giovanni Villani utilizava, para descrever a cidade de Florença,
os métodos da estatística, a primeira paisagem racionalmente construída.
Forneceu um modelo. Após as desordens da peste, os imaginários da Lombardia
inspiraram-se nele. Transportado em seguida de Milão a Paris, permitiu aos
irmãos Limbourg, herdeiros da visão realista, fragmentária mas mais carnal, da
imaginária de cavalaria, figurarem na sua verdade a natureza. Esta já não é um
labirinto, um entrelaçado de interstícios, onde podemos insinuar-nos,
perder-nos no mistério, de conquista em conquista, de surpresa em surpresa,
para esbarrar finalmente no simulacro de céu que a fecha como uma tapeçaria.
Jogando através da espessura da atmosfera, a luz rompe em profundidade o pano de
fundo do teatro. Reúne os olhares descontínuos lançados sobre as coisas numa
unidade que, contudo, não tem limites.”