Este blog destina-se a dividir com os companheiros de estrada as impressões e alguns belos trechos deste fantástico universo que é a literatura.
terça-feira, 31 de março de 2020
A ideologia alemã (Parte III) – Karl Marx e Friedrich Engels
A ideologia alemã (Parte II), de Karl Marx e Friedrich Engels
Subtítulo: Crítica da mais recente filosofia alemã em
seus representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e do socialismo alemão em
seus diferentes profetas
Editora: Boitempo
ISBN: 978-85-7559-073-7
Tradução: Rubens Enderle, Nélio Schneider e Luciano Cavini Martorano
Introdução: Emir Sader
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 616
Sinopse: Ver Parte I
“Enquanto na vida comum qualquer lojista sabe
muito bem a diferença entre o que alguém faz de conta que é e aquilo que ele
realmente é, nossa historiografia ainda não atingiu esse conhecimento trivial.
Toma cada época por sua palavra, acreditando naquilo que ela diz e imagina
sobre si mesma.”
“O
processo seguinte na expansão da divisão do trabalho foi a separação entre a
produção e o comércio, a formação de uma classe particular de comerciantes, uma
separação que nas cidades históricas tradicionais (com os judeus, entre outras
coisas) foi herdada do passado e que não tardou a aparecer nas cidades de
formação recente. Com isso, estava dada a possibilidade de uma ligação
comercial para além dos círculos mais próximos, uma possibilidade cuja
realização dependia dos meios de comunicação existentes, do estado de segurança
pública alcançado no país e condicionado pelas relações políticas (ao longo de
toda a Idade Média, como se sabe, os comerciantes viajavam em caravanas
armadas) e pelas necessidades mais ou menos desenvolvidas das regiões
acessíveis ao comércio, necessidades estas que eram condicionadas pelo
correspondente grau de cultura de cada região.
Com o
comércio constituído numa classe especial, com a expansão do comércio por meio
dos comerciantes para além dos arredores mais próximos da cidade, surgiu
prontamente uma ação recíproca entre a produção e o comércio. As cidades
estabelecerama ligação umas com as outras, novas ferramentas
foram levadas de uma cidade para outra e a separação entre produção e comércio
provocou rapidamente uma nova divisão da produção entre as diversas cidades,
que passaram cada qual a explorar um ramo industrial predominante. A limitação
inicial à localidade começou gradualmente a desaparecer.
Depende
exclusivamente da extensão do comércio se as forças produtivas obtidas numa
localidade, sobretudo as invenções, perdem-se ou não para o desenvolvimento
posterior. Na medida em que ainda não existe comércio para além da
circunvizinhança imediata, cada invenção tem de ser feita separadamente em cada
localidade, e meros acasos, tais como irrupções de povos bárbaros, até mesmo
guerras habituais, são o bastante para fazer com que um país com forças
produtivas e necessidades desenvolvidasaa seja forçado a recomeçar
tudo novamente a partir do início. No começo da história, toda invenção tinha
de diariamente ser realizada de novo e em cada localidade, de forma
independente. A prova de quão pouco as forças produtivas desenvolvidas, até
mesmo no caso em que o comércio tenha atingido uma relativa extensão, estão
salvas de uma destruição total é-nos fornecida pelos fenícios, cujas invenções
desapareceram em sua maior parte e por longo tempo a partir do momento em que
essa nação viu-se excluída do comércio pela conquista de Alexandre e pela
decadência que daí se seguiu. Assim também se deu na Idade Média, com a pintura
sobre vidro, por exemplo. Somente quando o intercâmbio torna-se intercâmbio mundial
e tem por base a grande indústria, quando todas as nações são levadas à luta da
concorrência, é que está assegurada a permanência das forças produtivas já
alcançadas.”
a
saindo de seu isolamento.
aa suficientes para fazer com que uma massa
de forças produtivas e de invenções adquiridas (um país com forças produtivas e
necessidades desenvolvidas) possa durar muito tempo.
“A
transformação, pela divisão do trabalho, de forças (relações) pessoais em forças
reificadas não pode ser superada arrancando-se da cabeça a representação geral
dessas forças, mas apenas se os indivíduos voltarem a subsumir essas forças
reificadas a si mesmos e superarem a divisão do trabalho.a Isso não
é possível sem a comunidadeb. É somente na comunidade [com outros
que cada] indivíduo tem os meios de desenvolver suas faculdades em todos os
sentidos; somente na comunidade, portanto, a liberdade pessoal torna-se
possível. Nosc sucedâneos da comunidade existentes até aqui, no
Estado etc., a liberdade pessoal existia apenas para os indivíduos
desenvolvidos nas condições da classe dominante e somente na medida em que eram
indivíduos dessa classe. A comunidade aparente, em que se associaram até agora
os indivíduos, sempre se autonomizou em relação a eles e, ao mesmo tempo,
porque era uma associação de uma classe contra outra classe, era, para a classe
dominada, não apenas uma comunidade totalmente ilusória, como também um novo
entrave. Na comunidade real, os indivíduos obtêm simultaneamente sua liberdade
na e por meio de sua associação.
Os
indivíduos partiram sempre de si mesmos, mas, naturalmente, de si mesmos no
interior de condições e relações históricas dadas, e não do indivíduo “puro”,
no sentido dos ideólogos. Mas no decorrer do desenvolvimento histórico, e
justamente devido à inevitável autonomização das relações sociaisd
no interior da divisão do trabalho, surge uma divisão na vida
de cada indivíduo, na medida em que há uma diferença entre a sua vida pessoal e
a sua vida enquanto subsumida a um ramo qualquer do trabalho e às condições a
ele correspondentes. (Não se deve entender isso como se, por exemplo, o
rentista, o capitalista etc. deixassem de ser pessoas, mas sim no sentido de
que sua personalidade é condicionada e determinada por relações de classe bem
definidas; e a diferença torna-se evidente apenas na oposição a uma outra
classe e, para os próprios indivíduos, somente quando entram em bancarrota.) No
estamento (e mais ainda na tribo) esse fato permanece escondido; por exemplo,
um nobre continua sempre um nobre e um roturier[1] continua um roturier,
abstração feita de suas demais relações; é uma qualidade inseparável de sua
individualidade. A diferença entre o indivíduo pessoal e o indivíduo de classe,
a contingência das condições de vida para o indivíduo aparecem apenas
juntamente com a classe que é, ela mesma, um produto da burguesia. Somente a
concorrência e a luta dos indivíduos entre si é que engendram e desenvolvem
essa contingência enquanto tal.
Por
conseguinte, na representação, os indivíduos são mais livres sob a dominação da
burguesia do que antes, porque suas condições de vida lhes são contingentes; na
realidade eles são, naturalmente, menos livres, porque estão mais submetidos ao
poder das coisas. A diferença com o estamento aparece sobretudo na oposição da
burguesia ao proletariado. Quando o estamento dos burgueses urbanos, as
corporações etc., surgiu diante da nobreza rural, sua condição de existência –
a propriedade mobiliária e o trabalho artesanal, que já existiam de forma
latente antes de sua separação dos laços feudais – apareceu como algo positivo,
que se impunha contra a propriedade feudal da terra e, por isso, assumiu
primeiramente, a seu modo, uma forma feudal.
Sem
dúvida, os servos fugitivos consideraram sua servidão anterior como algo
acidental à sua personalidade. Mas, com isso, apenas fizeram o que faz toda
classe que se liberta de um entrave e, então, libertaram-se não como classe,
mas isoladamente. Além disso, eles não saíram do âmbito do sistema de
estamentos, mas apenas formaram um novo estamento e conservaram, em sua nova
situação, o seu modo de trabalho anterior, elaborando-o na medida em que o
libertavam de seus entraves anteriores, que não correspondiam mais ao
desenvolvimento já alcançado.
Entre
os proletários, ao contrário, suas próprias condições de vida, o trabalho e,
desse modo, todo o conjunto das condições de existência da sociedade atual
tornaram-se para eles algo acidental, sobre o qual os proletários isolados não
possuem nenhum controle e sobre o qual nenhuma organização social pode
lhes dar algum controle, e a contradição entre [...] a personalidade do
proletário singular e sua condição de vida que lhe foi imposta, o trabalho, é revelada para ele mesmo, sobretudo porque ele é sacrificado desde
a juventude e porque, no interior de sua classe, é desprovido da chance de
alcançar as condições que o coloquem na outra classe.”
a
(Feuerbach: ser e essência).
b e
sem o pleno e livre desenvolvimento dos indivíduos que ela implica.
c
aparentes.
d
históricas.
[1]
retalheiro, vulgar
“Todas
as apropriações revolucionárias anteriores foram limitadas; os indivíduos, cuja
autoatividade estava limitada por um instrumento de produção e por um
intercâmbio limitados, apropriavam-se desse instrumento de produção limitado e
chegavam, com isso, apenas a uma nova limitação. Seu instrumento de produção
tornava-se sua propriedade, mas eles mesmos permaneciam subsumidos à divisão do
trabalho e ao seu próprio instrumento de produção. Em todas as apropriações
anteriores, uma massa de indivíduos permanecia subsumida a um único instrumento
de produção; na apropriação pelos proletários, uma massa de instrumentos de
produção tem de ser subsumida a cada indivíduo, e a propriedade subsumida a
todos. O moderno intercâmbio universal não pode ser subsumido aos indivíduos
senão na condição de ser subsumido a todos.
A
apropriação é, ainda, condicionada pelo modo como tem de ser realizada. Ela só
pode ser realizada por meio de uma união que, devido ao caráter do próprio
proletariado, pode apenas ser uma união universal, e por meio de uma revolução
na qual, por um lado, sejam derrubados o poder do modo de produção e de
intercâmbio anterior e o poder da estrutura social e que, por outro, desenvolva
o caráter universal e a energia do proletariado necessária para a realização da
apropriação; uma revolução na qual, além disso, o proletariado se despoje de
tudo o que ainda restava de sua precedente posição social.
Somente
nessa fase a autoatividade coincide com a vida material, o que corresponde ao
desenvolvimento dos indivíduos até se tornarem indivíduos totais e à perda de
todo seu caráter natural; e, assim, a transformação do trabalho em
autoatividade corresponde à transformação do restrito intercâmbio anterior em
intercâmbio entre os indivíduos como tais. Com a apropriação das forças
produtivas totais pelos indivíduos unidos, acaba a propriedade privada.
Enquanto na história anterior uma condição particular aparecia sempre como
acidental, agora se tornou acidental o isolamento dos próprios indivíduos, a
aquisição privada particular de cada um.
Os
indivíduos que não estão mais subsumidos à divisão do trabalho foram
representados pelos filósofos como um ideal sob o nome “o homem”, e todo esse
processo que aqui expusemos foi apreendido como o processo de desenvolvimento
“do homem”, de modo que “o homem” foi, em cada fase histórica, furtivamente
introduzido por sob os indivíduos precedentes e apresentado como a força motriz
da história. O processo inteiro foi, então, apreendido como processo de
autoalienação “do homem”, e isso ocorreu essencialmente porque o indivíduo
médio da fase posterior foi sempre introduzido sub-repticiamente na fase
anterior e a consciência posterior nos indivíduos da fase anterior.a Com essa inversão, que desde o início abstrai
das condições reais, foi possível transformar a história inteira num processo
de desenvolvimento da consciência.”
“A
burguesia, por ser uma classe, não mais um estamento, é forçada a
organizar-se nacionalmente, e não mais localmente, e a dar a seu interesse
médio uma forma geral. Por meio da emancipação da propriedade privada em
relação à comunidade, o Estado se tornou uma existência particular ao lado e
fora da sociedade civil; mas esse Estado não é nada mais do que a forma de
organização que os burgueses se dão necessariamente, tanto no exterior como no
interior, para a garantia recíproca de sua propriedade e de seus interesses. A
autonomia do Estado tem lugar atualmente apenas naqueles países onde os estamentos
não se desenvolveram completamente até se tornarem classes, onde os estamentos
já eliminados nos países mais avançados ainda exercem algum papel e onde existe
uma mistura; daí que, nesses países, nenhuma parcela da população pode chegar à
dominação sobre as outras. Este é especialmente o caso da Alemanha. O exemplo
mais acabado do Estado moderno é a América do Norte. Todos os modernos
escritores franceses, ingleses e americanos declaram que o Estado existe apenas
em função da propriedade privada, de tal modo que isso também foi transmitido
para o senso comum.
Como
o Estado é a forma na qual os indivíduos de uma classe dominante fazem valer
seus interesses comuns e que sintetiza a sociedade civil inteira de uma época,
segue-se que todas as instituições coletivas são mediadas pelo Estado, adquirem
por meio dele uma forma política. Daí a ilusão, como se a lei se baseasse na
vontade e, mais ainda, na vontade separada de sua base real, na vontade livre.
Do mesmo modo, o direito é reduzido novamente à lei.”
“Não se pode esquecer que o direito, tal como a religião, não tem uma
história própria.”
“Conhecemos
uma única ciência, a ciência da história. A história pode ser examinada de dois
lados, dividida em história da natureza e história dos homens. Os dois lados
não podem, no entanto, ser separados; enquanto existirem homens, história da
natureza e história dos homens se condicionarão reciprocamente. A história da
natureza, a assim chamada ciência natural, não nos diz respeito aqui; mas,
quanto à história dos homens, será preciso examiná-la, pois quase toda a
ideologia se reduz ou a uma concepção distorcida dessa história ou a uma
abstração total dela. A ideologia, ela mesma, é apenas um dos lados dessa
história.”
“Os pressupostos de que partimos não são pressupostos arbitrários, dogmas, mas pressupostos reais, de que
só se pode abstrair na imaginação. São os indivíduos reais, sua ação e suas
condições materiais de vida, tanto aquelas por eles já encontradas como as produzidas
por sua própria ação. Esses pressupostos são, portanto, constatáveis por via
puramente empírica.
O
primeiro pressuposto de toda a história humana é, naturalmente, a existência de
indivíduos humanos vivos. O primeiro fato a constatar é, pois, a organização
corporal desses indivíduos e, por meio dela, sua relação dada com o restante da
natureza. Naturalmente não podemos abordar, aqui, nem a constituição física dos
homens nem as condições naturais, geológicas, oro-hidrográficas, climáticas e
outras condições já encontradas pelos homens.b Toda historiografia
deve partir desses fundamentos naturais e de sua modificação pela ação dos
homens no decorrer da história.
Pode-se
distinguir os homens dos animais pela consciência, pela religião ou pelo que se
queira. Mas eles mesmos começam a se distinguir dos animais tão logo começam a produzir
seus meios de vida, passo que é condicionado por sua organização corporal.
Ao produzir seus meios de vida, os homens produzem, indiretamente, sua própria
vida material.
O
modo pelo qual os homens produzem seus meios de vida depende, antes de tudo, da
própria constituição dos meios de vida já encontrados e que eles têm de
reproduzir. Esse modo de produção não deve ser considerado meramente sob o
aspecto de ser a reprodução da existência física dos indivíduos. Ele é, muito
mais, uma forma determinada de sua atividade, uma forma determinada de
exteriorizar sua vida, um determinado modo de vida desses
indivíduos. Tal como os indivíduos exteriorizam sua vida, assim são eles. O que
eles são coincide, pois, com sua produção, tanto com o que produzem como
também com o modo como produzem. O que os indivíduos são,
portanto, depende das condições materiais de sua produção.”
b Essas condições implicam não apenas a
organização originária, natural, dos homens, em particular as diferenças entre
as raças, mas também todo o seu ulterior desenvolvimento ou não desenvolvimento
até os dias de hoje.
“O
fato é, portanto, o seguinte: indivíduos determinados (em determinadas relações
de produção), que são ativos na produção de determinada maneira, contraem entre
si estas relações sociais e políticas determinadas. A observação empírica (que
se atém simplesmente aos fatos reais) tem de provar, em cada caso particular,
empiricamente e sem nenhum tipo de mistificação ou especulação, a conexão entre
a estrutura social e política e a produção. A estrutura social e o Estado
provêm constantemente do processo de vida de indivíduos determinados, mas
desses indivíduos não como podem aparecer na imaginação própria ou alheia, mas
sim tal como realmente são, quer dizer, tal como atuam, como produzem
materialmente e, portanto, tal como desenvolvem suas atividades sob
determinados limites, pressupostos e condições materiais, independentes de seu
arbítrio.c
A
produção de ideias, de representações, da consciência, está, em princípio,
imediatamente entrelaçada com a atividade material e com o intercâmbio material
dos homens, com a linguagem da vida real. O representar, o pensar, o
intercâmbio espiritual dos homens ainda aparecem, aqui, como emanação direta de
seu comportamento material. O mesmo vale para a produção
espiritual, tal como ela se apresenta na linguagem da política, das leis, da
moral, da religião, da metafísica etc. de um povo. Os homens são os produtores
de suas representações, de suas ideias e assim por diantea, mas os
homens reais, ativos, tal como são condicionados por um determinado
desenvolvimento de suas forças produtivas e pelo intercâmbio que a ele
corresponde, até chegar às suas formações mais desenvolvidas. A consciência não
pode jamais ser outra coisa do que o ser consciente, e o ser dos homens é o seu
processo de vida real. Se, em toda ideologia, os homens e suas relações
aparecem de cabeça para baixo como numa câmara escura, este fenômeno resulta do
seu processo histórico de vida, da mesma forma como a inversão dos objetos na
retina resulta de seu processo de vida imediatamente físico.
Totalmente
ao contrário da filosofia alemã, que desce do céu à terra, aqui se eleva da
terra ao céu. Quer dizer, não se parte daquilo que os homens dizem, imaginam ou
representam, tampouco dos homens pensados, imaginados e representados para, a
partir daí, chegar aos homens de carne e osso; parte-se dos homens realmente
ativos e, a partir de seu processo de vida real, expõe-se também o
desenvolvimento dos reflexos ideológicos e dos ecos desse processo de vida.
Também as formações nebulosas na cabeça dos homens são sublimações necessárias
de seu processo de vida material, processo empiricamente constatável e ligado a
pressupostos materiais. A moral, a religião, a metafísica e qualquer outra
ideologia, bem como as formas de consciência a elas correspondentes, são privadas,
aqui, da aparência de autonomia que até então possuíam. Não têm história, nem
desenvolvimento; mas os homens, ao desenvolverem sua produção e seu intercâmbio
materiais, transformam também, com esta sua realidade, seu pensar e os produtos
de seu pensar. Não é a consciência que determina a vida, mas a vida que
determina a consciência. No primeiro modo de considerar as coisas, parte-se da
consciência como do indivíduo vivo; no segundo, que corresponde à vida real,
parte-se dos próprios indivíduos reais, vivos, e se considera a consciência
apenas como sua consciênciab.
Esse
modo de considerar as coisas não é isento de pressupostos. Ele parte de
pressupostos reais e não os abandona em nenhum instante. Seus pressupostos são
os homens, não em quaisquer isolamento ou fixação fantásticos, mas em seu
processo de desenvolvimento real, empiricamente observável, sob determinadas
condições. Tão logo seja apresentado esse processo ativo de vida, a história
deixa de ser uma coleção de fatos mortos, como para os empiristas
ainda abstratos48, ou uma ação imaginária de sujeitos imaginários,
como para os idealistas.
Ali
onde termina a especulação, na vida real, começa também, portanto, a ciência
real, positiva, a exposição da atividade prática, do processo prático de
desenvolvimento dos homens. As fraseologias sobre a consciência acabam e o
saber real tem de tomar o seu lugar. A filosofia autônoma perde, com a
exposição da realidade, seu meio de existência. Em seu lugar pode aparecer, no
máximo, um compêndio dos resultados mais gerais, que se deixam abstrair da
observação do desenvolvimento histórico dos homens.
Se
separadas da história real, essas abstrações não têm nenhum valor. Elas podem
servir apenas para facilitar a ordenação do material histórico, para indicar a
sucessão de seus estratos singulares. Mas de forma alguma oferecem, como a
filosofia o faz, uma receita ou um esquema com base no qual as épocas
históricas possam ser classificadas. A dificuldade começa, ao contrário,
somente quando se passa à consideraçãoa2 e à ordenação do material,
seja de uma época passada ou do presente, quando se passa à exposição real.
A
eliminação dessas dificuldades é condicionada por pressupostos que não podem
ser expostos aqui, mas que resultam apenas do estudo do processo de vida real e
da ação dos indivíduos de cada época.”
c As
representações que esses indivíduos produzem são representações, seja sobre sua
relação com a natureza, seja sobre suas relações entre si ou sobre sua própria
condição natural. É claro que, em todos esses casos, essas representações são
uma expressão consciente – real ou ilusória – de suas verdadeiras relações e
atividades, de sua produção, de seu intercâmbio, de sua organização social e
política. A suposição contrária só seria possível no caso de, além do espírito
dos indivíduos reais e materialmente condicionados, pressupor-se ainda um
espírito à parte. Se a expressão consciente das relações efetivas desses
indivíduos é ilusória, se em suas representações põem a sua realidade de cabeça
para baixo, isto é consequência de seu modo limitado de atividade material e
das suas relações sociais limitadas que daí derivam.
a e,
na verdade, os homens tal como são condicionados pelo modo de produção de sua
vida material, por seu intercâmbio material e por seu desenvolvimento ulterior
na estrutura social e política.
b a
consciência desses indivíduos práticos, atuantes.
48 O empirismo idealista (Berkeley,
Hume, Mach, Avenarius etc.) sustenta, em oposição ao empirismo materialista (Bacon,
Hobbes, Locke, os materialistas franceses do século XVIII etc.), que a natureza
(cognoscível) constitui a origem da experiência. (N. T.)
a2 do material histórico, à pesquisa da estrutura real,
fática, das diferentes camadas.
“A ignorância não é um argumento.” (Spinoza)
“A atitude do burguês para com as instituições de seu regime é como a atitude do judeu para com a lei; ele as transgride sempre que isso é possível em cada caso particular, mas quer que todos os outros as observem. Se todos os burgueses, em massa e ao mesmo tempo, transgredissem as instituições burguesas, eles deixariam de ser burgueses – um comportamento que, naturalmente, eles não pensam em adotar e que de forma alguma é algo que dependa de seu querer ou de seu proceder. O burguês corrompido transgride as leis do casamento e secretamente comete o adultério; o comerciante transgride a instituição da propriedade quando, pela especulação, pela falência etc., priva outrem da propriedade; o jovem burguês, quando o pode, torna-se independente de sua própria família e abole praticamente a família para si; mas o casamento, a propriedade, a família permanecem intocados na teoria porque constituem, na prática, as bases sobre as quais a burguesia erigiu seu domínio, porque essas instituições, em sua forma burguesa, são as condições que fazem do burguês um burguês, assim como a lei constantemente transgredida faz do judeu religioso um judeu religioso. Essa relação do burguês com suas condições de existência adquire uma de suas formas universais na moralidade burguesa. Não se pode absolutamente falar de “a” família. Historicamente, a burguesia dá à família o caráter da família burguesa, que tem o tédio e o dinheiro como elementos unificadores e que já traz em si a dissolução burguesa da família, dissolução que não impede a própria família de continuar a existir. À sua imunda existência corresponde, na fraseologia oficial e na hipocrisia geral, o seu conceito sagrado. Onde a família é realmente dissolvida, como no proletariado, dá-se justamente o contrário do que diz “Stirner”. Aí não existe absolutamente o conceito de família, sendo possível, porém, nele encontrar ocasionalmente uma inclinação para a vida familiar que se baseia em relações extremamente reais. No século XVIII, o conceito de família foi dissolvido pelos filósofos porque a família realmente existente estava já em vias de dissolução nos estágios mais elevados da civilização. Dissolveu-se o vínculo interno da família, as partes que formam o conceito de família, por exemplo: a obediência, a piedade, a fidelidade conjugal etc.; mas o corpo real da família, a relação de propriedade, a atitude de exclusão em relação a outras famílias, a coabitação forçada – relações determinadas pela existência dos filhos, pela estrutura das cidades modernas, pela formação do capital etc. – continuaram a existir, embora com muitas alterações, porque a existência da família é tornada necessária por sua conexão com o modo de produção, o qual é independente da vontade da sociedade burguesa.”