terça-feira, 22 de maio de 2018

Obra de Sartre: busca da liberdade e desafio da história (Parte III) – István Mészáros

Editora: Boitempo
ISBN: 978-85-7559-213-7
Tradução: Lólio Lourenço de Oliveira e Rogério Bettoni
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 332
Sinopse: Ver Parte I



“Ironicamente, a idealização amplamente difundida da ordem reprodutiva estabelecida como um “sistema natural” cuida de tudo, até mesmo do problema da escassez potencialmente mais destrutiva, quando a escassez é reconhecida como parte do esquema geral das soluções difíceis, porém trabalháveis. Pois uma vez que a autoridade suprema da natureza em si é postulada[571] pelos representantes ideológicos da burguesia como parte integrante do quadro explicativo universal e justificação dos processos e relações dados, até mesmo o que à primeira vista poderia parecer como uma grande contradição pode prontamente desaparecer.
Nesse sentido, a teoria liberal do Estado foi fundada na contradição autoproclamada entre a assumida harmonia total dos fins – os fins postos como necessariamente desejados por todos os indivíduos em virtude de sua “natureza humana” – e a total anarquia dos meios. E a anarquia dos meios conceitualizada dessa maneira foi a escassez alegadamente intransponível de bens e recursos que devem induzir os indivíduos à luta e, em última instância, a destruir uns aos outros, a não ser que tenham sucesso em estabelecer acima de si mesmos uma ordem superior, na forma do Estado burguês, como força restritiva permanente de sua beligerância individual.
Portanto, o Estado foi inventado com o suposto propósito de “transformar a anarquia em harmonia”. Ou seja, dedicar-se à tarefa universalmente louvável de harmonizar a anarquia dos meios, determinada pela natureza, com a harmonia dos fins veleitariamente postulada – e igualmente determinada pela natureza – ao reconciliar o antagonismo violento entre esses dois fatores naturais: a “natureza humana” inalterável e a escassez material eternamente dominante. E, obviamente, essa reconciliação foi afirmada na forma da permanência absoluta do poder político do Estado imposto externamente sobre os indivíduos.
Para ser exato, se os fatores assim salientados fossem realmente as forças inalteráveis da natureza, e consequentemente não pudessem ser controlados de nenhuma outra maneira, exceto por uma autoridade política supraindividual externa superimposta sobre os indivíduos constituídos pela natureza em si como antagonicamente confrontando e destruindo uns aos outros enquanto indivíduos beligerantes, nesse caso a autoridade corretiva do Estado, em sua capacidade de tornar realmente possíveis os intercâmbios societários harmonizáveis, teria sua legitimidade permanente. Nesse caso, a versão idealista hegeliana dessa ideologia do Estado – segundo a qual o desígnio originalmente oculto do espírito absoluto, estabelecendo o Estado como a única superação possível das contradições dos genus-indivíduos conflitantes na “sociedade burguesa” e sendo o Estado como tal tanto “a realização completa do espírito na existência” [572] quanto “a imagem e a efetividade da razão”[573] – seria autoevidentemente verdadeira para sempre. Dessa forma, não poderia haver absolutamente nenhuma questão sobre almejar o “fenecimento” do Estado.
Contudo, o fato de que, de um lado, a estipulada “condição humana”[574] era em si uma suposição autosserviente, inventada com o propósito de uma plausibilidade circular de sua mera suposição em virtude do que deveria supostamente “explicar” e justificar, e, do outro, a escassez realmente existente era uma categoria inerentemente histórica, e consequentemente sujeita à mudança histórica factível e superação potencial, teve de permanecer oculto na teoria liberal do Estado e da “sociedade civil” sob as múltiplas camadas da circularidade característica dessa teoria. Pois foi esse tipo de circularidade apologética, constituída sobre um fundamento natural meramente assumido, porém totalmente insustentável, que permitiu que os representantes intelectuais do liberalismo avançassem e retrocedessem à vontade das premissas arbitrárias para as conclusões desejadas, estabelecendo nos fundamentos apriorísticos de sua circularidade ideológica a “legitimidade eterna” do Estado liberal. Graças a essa circularidade fundamental entre os indivíduos “determinados pela natureza”, bem como sua “sociedade civil” apropriadamente conflituosa e o Estado político idealizado – que supostamente deveria superar as contradições identificadas sem modificar a ordem reprodutiva material existente em si –, tanto a formação do Estado do capital quanto seu quadro reprodutivo societal puderam ser assumidos como para sempre dados em virtude da reciprocidade justificadora e, com isso, da permanência absoluta projetada de sua inter-relação.
A escassez (ou “anarquia dos meios”) desempenhou um papel fundamental nesse esquema de coisas. Ela justificou “racionalmente” tanto a irreconciliabilidade dos indivíduos beligerantes enquanto “genus-indivíduos” – que, afinal de contas, tiveram de afirmar seu autointeresse de acordo com sua estipulada “natureza humana” – quanto, ao mesmo tempo, forneceu a razão eterna para a adoção das medidas corretivas necessárias pelo Estado político para tornar o sistema como um todo intransponível pela prevenção de sua destrutiva fragmentação por meio dos antagonismos perseguidos individualmente. Mas basta retirar dessa cena a “escassez intransponível” e substituí-la por algo semelhante a uma disponibilidade sustentável dos recursos produtivos e humanamente gratificantes, aos quais geralmente nos referimos como “abundância” irrestrita, para testemunhar o imediato colapso de todo o constructo pseudorracional autojustificatório. Pois, na ausência da fatídica escassez, os genus-indivíduos supostamente determinados pela natureza não têm nenhum motivo para se engajar na “luta para viver ou morrer” entre si para que sobrevivam.
Pela mesma lógica, no entanto, se aceitarmos a proposição preocupada com a escassez determinada pela natureza – e, portanto, por definição, existencialmente primária, intransponível e que a tudo justifica –, estaremos aprisionados por um quadro estrutural no qual as partes postulam-se reciprocamente/circularmente umas às outras, bloqueando com isso qualquer possibilidade de sair desse círculo vicioso. Pois, nesse caso, devemos aceitar até mesmo o postulado fictício da genus-individualidade determinada pela natureza, tendo como evidência que os seres humanos indubitavelmente sobreviveram com (e apesar de) seus conflitos até o momento atual em um mundo de escassez dentro dos confins da “sociedade civil” e do Estado.
Nesse sentido, se a alternativa socialista pretende oferecer uma saída dessa armadilha tendenciosa, concebida do ponto de vista do capital, ela deve desafiar todos os seus constituintes circularmente engastadores. Isso vale não só para uma concepção viável de natureza humana historicamente definida e socialmente em mutação – destacada por Marx em citação anterior como a “verdadeira comunidade dos humanos”[575] e em outra publicação como o “conjunto de relações sociais”[576] – como também para todo o resto. Ou seja, para a eternizada ordem reprodutiva material burguesa da “sociedade civil”, bem como para a sua formação de Estado, de modo a ser capaz de almejar ao mesmo tempo um modo radicalmente diferente de reprodução social metabólica. Um modo de reprodução capaz de superar as relações de classe antagônicas estabelecidas, deturpadas nas concepções burguesas – até mesmo nas maiores delas – enquanto conflitualidade individual determinada pelo genus. Pois as mediações de segunda ordem antagônicas do capital necessariamente carregam consigo a irracionalidade perversa da escassez eternizada, mesmo quando suas condições materiais originais são produtivamente superadas no curso do desenvolvimento histórico.”
[571] Isso é feito até mesmo pelo filósofo idealista Hegel, com seu modo revelador e puramente ideológico de realizá-lo, em defesa das mais iníquas determinações da ordem estabelecida. Pode-se encontrar uma discussão sobre o assunto no capítulo 6 do meu A dialética da estrutura e da história. / [572] G. W. F. Hegel, Filosofia da história (trad. Maria Rodrigues e Hans Harden, Brasília, UnB, 1995), p. 23. / [573] Idem, Linhas fundamentais da filosofia do direito: ou direito natural e ciência do Estado em compêndio (trad. Paulo Meneses et al., São Paulo, Loyola, 2010), p. 313. / [574] Como Marx deixou bem claro, em sua afiada crítica da abordagem que postulou a ideia dos indivíduos isolados necessariamente beligerantes e determinados pela natureza como o fundamento fictício da “natureza humana” de que a apologética política de uma ordem do Estado burguês absolutamente permanente poderia ser prontamente derivada: “A condição humana é a verdadeira comunidade dos humanos. O funesto isolamento em relação a essa condição é incomparavelmente mais abrangente, mais insuportável, mais terrível e mais contraditório do que o isolamento em relação à comunidade política”, Karl Marx, “Glosas críticas ao artigo ‘O rei da Prússia e a reforma social. De um prussiano’”, em Lutas de classes na Alemanha (São Paulo, Boitempo, 2010), p. 50. / [575] Idem. / [576] Karl Marx e Friedrich Engels, A ideologia alemã, cit., p. 538.


“O problema da abundância aparece muitas vezes contraposto à escassez. Às vezes isso é feito com o propósito de rejeitar aprioristicamente a possibilidade de superação da escassez em qualquer momento futuro, não importa quão distante, pois se diz ser totalmente irrealista almejar a instituição estável da abundância na sociedade humana, em vista das determinações insuperavelmente conflitantes da “natureza humana”. Não é preciso mais nenhum comentário em relação a essa posição.
Em outras ocasiões, no entanto, a possibilidade de superar a escassez pela abundância não é negada a princípio, mas não obstante é excluída pelo tempo previsível à nossa frente com base no fundamento de que seriam necessárias algumas condições tecnológicas produtivamente mais avançadas que talvez se materializassem (ou não) no futuro distante. E também há uma terceira posição, positivamente assertiva, sobre a abundância emergente que declara que “a conquista da escassez atualmente não é só previsível, mas na verdade prevista”[586].
A posição de Marcuse era quase a mesma que as visões que acabamos de citar de um ensaio escrito pelo canadense C. B. Macpherson, um proeminente pensador marxista. Marcuse insistiu que as “possibilidades utópicas” defendidas por ele “são implícitas às forças técnicas e tecnológicas do capitalismo avançado” na base das quais se “acabaria com a pobreza e a escassez em um futuro muito previsível” [587]. Ele continuou repetindo que
o progresso técnico alcançou um estágio em que a realidade já não precisa ser definida pela extenuante competição pela sobrevivência e pelos progressos sociais. Quanto mais essas capacidades técnicas transcendem o quadro de exploração dentro do qual permanecem confinadas e violentadas, mais elas impulsionam as tendências e aspirações do homem a um ponto em que as necessidades da vida deixam de requerer as atuações agressivas de “ganhar o sustento”, e o “não necessário” se torna um prêmio vital. [588]
E, na mesma obra, escrita bem antes de afundar no profundo pessimismo dos seus últimos anos de vida, Marcuse postulou um “fundamento biológico” para a mudança revolucionária, dizendo que tal fundamento
teria a chance de transformar o progresso técnico quantitativo em modos de vida qualitativamente diferentes – precisamente porque seria uma revolução ocorrendo em um alto nível do desenvolvimento material e intelectual, e que permitiria ao homem conquistar a escassez e a pobreza. Se essa ideia de uma transformação radical tiver de ser mais que uma especulação fútil, ela precisa de um fundamento objetivo no processo de produção da sociedade industrial avançada, em suas capacidades técnicas e uso. Pois a liberdade de fato depende amplamente do progresso técnico, do avanço da ciência.[589]
Essa irrealidade generosamente bem-intencionada foi escrita e publicada por Marcuse há mais de quarenta anos, e não vimos absolutamente nada apontando na direção de sua realização. Pelo contrário, testemunhamos recentemente uma crise devastadora da “sociedade industrial avançada”, com a ocorrência de levantes por falta de alimentos em nada menos que 35 países reconhecida por um dos pilares ideológicos da ordem estabelecida – The Economist –, apesar de todo o significativo progresso técnico indubitavelmente alcançado nas últimas quatro décadas. Nem mesmo a mais sutil tentativa foi feita para a duradoura “conquista da escassez”.
A grande fraqueza das projeções do tipo das de Marcuse, compartilhadas por C. B. Macpherson e muitos outros, é que se espera que os resultados positivos referentes à “conquista de fato prevista da escassez” surjam da “força propulsora” do progresso técnico/tecnológico e do avanço produtivo. E isso não poderia acontecer nem mesmo em mil anos, quanto mais em quarenta ou cem. Pois a tecnologia não é uma “variável independente”. Ela está profundamente enraizada nas mais fundamentais determinações sociais, apesar de toda a mistificação em contrário[590], como vimos anteriormente em diversas ocasiões.
Ninguém pode duvidar de que a simpatia das pessoas que, desse modo, prenunciam a conquista da escassez está do lado dos “miseráveis da Terra que combatem o monstro abastado”[591]. Mas seu discurso moral nem sequer pode tocar as determinações objetivas fundamentais que, de modo tão bem-sucedido, perpetuam a situação denunciada dos explorados e oprimidos, que dirá efetivamente alterá-las. Esperar que o avanço produtivo, que surge do “progresso técnico” na “sociedade industrial avançada”, desloque a humanidade na direção da eliminação da escassez é rogar pelo impossível. O mesmo tipo de impossibilidade quanto à espera de que o capitalismo estabelecesse um limite para o seu apetite pelo lucro sobre a base de que ele já obteve lucro suficiente. Pois a sociedade da qual Marcuse e outros falam não é uma sociedade “industrial avançada”, mas somente capitalisticamente avançada – e, para a humanidade em si, perigosa de maneira suicida. Ela não pode dar um simples passo na direção de conquistar a escassez enquanto permanecer sob o domínio do capital, independentemente de suas crescentes “capacidades técnicas” e do correspondente grau de melhoria na produtividade no futuro. Por duas importantes razões.
Primeiro, porque até mesmo o maior avanço produtivo tecnicamente assegurado pode ser – e, sob as condições agora prevalecentes em nossa sociedade, de fato é e deve serdissipado pelo desperdício lucrativo e pelos canais da produção destrutiva, incluindo a fraudulência legitimada pelo Estado do complexo militar/industrial, como vimos anteriormente. E, segundo – o que acaba por ser mais fundamental aqui –, por causa do caráter objetivo do sistema de acumulação do capital. Não devemos nos esquecer de que “o capital personificado, dotado de vontade e consciência”, não pode estar interessado na conquista da escassez, e na correspondente distribuição equitativa da riqueza, pela simples razão de que “o valor de uso nunca deve ser tratado, portanto, como meta imediata do capitalismo; [...] mas apenas o incessante movimento do ganho”[592]. E, a esse respeito, que é inseparável do imperativo absoluto da incessante acumulação e expansão do capital, o impedimento estrutural permanente é que o capital sempre é – e, isso não pode ser destacado o suficiente, sempre continuará sendo, por uma questão de determinação sistêmica interna – insuperavelmente escasso, mesmo quando, sob certas condições, contraditoriamente superproduzido[593]. (...)
Na verdade, algumas qualificações elementares são necessárias para uma caracterização apropriada da abundância em si, o que pode ser legitimamente posto no contexto da superação da dominação histórica da escassez. Pois, num estágio relativamente inicial do desenvolvimento histórico da humanidade, as “carências naturalmente necessárias” – que, para nossos ancestrais distantes, estavam em plena consonância com a dominação material opressora da escassez – na verdade são superadas por um conjunto de carências muito mais complexo, historicamente criado, como vimos discutido no meu livro A dialética da estrutura e da história. Para ser exato, o avanço produtivo em questão não representa o fim dessa história onerosa, mas, não obstante, significa um importante passo na direção de conquistar o domínio original da vida humana pela escassez. Nesse sentido:
O luxo é o contrário do naturalmente necessário. As necessidades naturais são as necessidades do indivíduo, ele próprio reduzido a um sujeito natural. O desenvolvimento da indústria abole essa necessidade natural, assim como aquele luxo – na sociedade burguesa, entretanto, o faz somente de modo antitético, uma vez que ela própria repõe uma certa norma social como a norma necessária frente ao luxo. [596]
Por conseguinte, relegar a escassez ao passado é um processo histórico interminável, mas também contínuo, apesar de todos os obstáculos e contradições. No entanto, precisamente por causa da forma antitética na qual esse desenvolvimento histórico deve ser continuado na sociedade burguesa, a verdadeira questão para o futuro não é a instituição utópica da “abundância” irrestrita, mas o controle racional do processo do avanço produtivo pelos indivíduos sociais, possível apenas em uma ordem reprodutiva socialista. Do contrário, o domínio da escassez (não mais historicamente justificável) – na forma da produção destrutiva perversamente perdulária, porém lucrativa em uma variedade de suas formas capitalisticamente factíveis – permanece conosco de forma indefinida. Na ausência da requerida autodeterminação racional em escala societal – cuja ausência, sob as condições atuais, acaba por ser não uma determinação ontológico-existencial fatídica, mas uma questão de impedimento historicamente criado e historicamente superável –, até mesmo a maior “abundância” (abstratamente postulada) seria totalmente impotente e fútil enquanto tentativa de superar o domínio da escassez.
Portanto, estamos preocupados, a esse respeito, com uma força social historicamente determinada – mas não permanentemente determinante da história – e um impedimento à emancipação social que dominou a vida humana durante tempo demais. É esse impedimento estrutural/sistêmico que deve ser radicalmente superado por meio da alternativa hegemônica do trabalho ao modo de controle social metabólico estabelecido do capital, de acordo com a concepção marxiana da “nova forma histórica”.”
[590] Devemos bem nos lembrar das visões de Habermas – um dos maiores mistificadores ecléticos oportunistas em voga no campo – que postula a “cientificização da tecnologia” quando, na verdade, muitos danos são gerados pela fetichista tecnologização da ciência a serviço da produção destrutiva. / [591] Herbert Marcuse, An Essay on Liberation, cit., p. 7. / [592] Karl Marx, O capital, cit., p. 273. / [593] É mais relevante aqui que, “se o capital cresce de 100 para 1.000, o 1.000 é agora o ponto de partida de onde o aumento tem de se dar; a decuplicação de 1.000% não conta para nada; lucro e juro, por seu lado, devêm eles mesmos capital. O que aparecia como mais-valor aparece agora como simples pressuposto etc., como incorporado à própria existência simples do capital”, Karl Marx, Grundrisse, cit., p. 264. Grifos de Marx.


“O capitalismo avançado, no que se refere à consciência de sua própria condição, e a despeito das enormes disparidades na distribuição de renda, consegue satisfazer as necessidades elementares da maioria da classe trabalhadora – permanecem, naturalmente, as zonas marginais, 15% dos trabalhadores nos Estados Unidos, os negros e os imigrantes; permanecem os idosos; permanece, em escala global, o terceiro mundo. Mas o capitalismo satisfaz a certas necessidades primárias, e também satisfaz a certas necessidades que ele criou artificialmente: por exemplo, a necessidade de um carro. Foi essa situação que me fez revisar minha “teoria das necessidades”, posto que essas necessidades não estão mais, em uma situação de capitalismo avançado, em oposição sistemática ao sistema. Ao contrário, elas parcialmente se tornam, sob o controle do sistema, um instrumento de integração do proletariado em certos processos engendrados e dirigidos pelo lucro. O trabalhador esgota-se para produzir um carro e para ganhar o suficiente para comprar um; essa aquisição lhe dá a impressão de ter satisfeito uma “necessidade”. Ele é explorado por um sistema que, ao mesmo tempo, lhe dá um objetivo e uma possibilidade de realizá-lo. A consciência do caráter intolerável do sistema não deve mais, portanto, ser buscada na impossibilidade de satisfazer necessidades elementares, mas, acima de tudo, na consciência da alienação – em outras palavras, no fato de que esta vida não vale a pena ser vivida e não tem sentido algum, que esse mecanismo é um mecanismo enganador, que essas necessidades são criadas artificialmente, que são falsas, que são exaustivas e só servem ao lucro. Mas unir a classe nesta base é ainda mais difícil.[609] (...)
Para começar, falar sobre “capitalismo avançado” – quando o sistema do capital como modo de reprodução social metabólica encontra-se em sua fase descendente do desenvolvimento histórico e, portanto, só é avançado de modo capitalista, mas em absolutamente nenhum outro sentido, e com isso capaz de sustentar-se apenas de um modo ainda mais destrutivo, e portanto, em última instância, também autodestrutivo – é extremamente problemático. Outra afirmação: a caracterização da maioria esmagadora da humanidade – na categoria da pobreza, incluindo os “negros e os imigrantes”, os “idosos” e, em “escala global, o terceiro mundo” – como pertencentes às “zonas marginais” (em afinidade com os “excluídos” de Marcuse), não é menos insustentável. Afinal, na realidade, é o “mundo capitalista avançado” que constitui a margem privilegiada, há muito totalmente insustentável, do sistema global, com sua implacável “negação elementar da necessidade” para a maior parte do mundo, e não o que é descrito por Sartre na entrevista ao grupo Manifesto como as “zonas marginais”. Mesmo com respeito aos Estados Unidos, a margem de pobreza é altamente subestimada em meros 15%. Além disso, a caracterização dos automóveis dos trabalhadores como nada mais do que “necessidades [puramente] artificiais”, que “só sevem ao lucro”, não poderia ser mais unilateral. Pois, ao contrário de muitos intelectuais, nem mesmo os trabalhadores relativamente abastados, sem falar nos membros da classe dos trabalhadores como um todo, têm o luxo de encontrar seu local de trabalho ao lado do seu quarto.
Ao mesmo tempo, ao lado das omissões espantosas, algumas das contradições e falhas estruturais mais graves são inexistentes na descrição sartriana do “capitalismo avançado”, virtualmente esvaziando o significado de todo o conceito. Nesse sentido, uma das necessidades substanciais mais importantes, sem a qual nenhuma sociedade – passada, presente ou futura – poderia sobreviver, é a necessidade de trabalho. Tanto pelos indivíduos produtivamente ativos – abarcando todos eles em uma ordem social plenamente emancipada – quanto pela sociedade em geral, na sua relação historicamente sustentável com a natureza. O fracasso necessário em resolver esse problema estrutural fundamental, que afeta todas as categorias de trabalho, não só no “terceiro mundo”, mas também nos países mais privilegiados do “capitalismo avançado”, com seu desemprego que cresce perigosamente, constitui um dos limites absolutos do sistema do capital em sua totalidade. Outro grave problema que enfatiza a inviabilidade histórica presente e futura do capital é sua mudança calamitosa em direção aos setores parasitários da economia – como a especulação aventureira produtora de crise que assola (como uma questão de necessidade objetiva, frequentemente deturpada como fracasso pessoal sistemicamente irrelevante) o setor financeiro e a fraudulência institucionalizada e legalmente fortalecida, intimamente associada a ele – em oposição aos ramos produtivos da vida socioeconômica requeridos para a satisfação da necessidade humana genuína. Essa é uma mudança que se dá em um contraste ameaçadoramente acentuado em relação à fase ascendente do desenvolvimento histórico do capital, quando o prodigioso dinamismo expansionista sistêmico (incluindo a revolução industrial) devia-se predominantemente às realizações produtivas socialmente viáveis e mais intensificáveis. Temos de acrescentar a tudo isso os fardos econômicos maciçamente perdulários, impostos à sociedade de maneira autoritária pelo Estado e pelo complexo militar/industrial – com a permanente indústria de armas e as guerras correspondentes –, como parte integrante do perverso “crescimento econômico” do “capitalismo avançado organizado”. E, para mencionar apenas mais uma das implicações catastróficas do desenvolvimento sistêmico do capital “avançado”, devemos ter em mente a invasão ecológica global, proibitivamente perdulária, de nosso modo não mais sustentável de reprodução metabólica social no mundo planetário finito, com a exploração voraz de recursos materiais não renováveis e a destruição cada vez mais perigosa da natureza. Isso não é “ser sábio depois do acontecimento”. No mesmo período em que Sartre concedeu a entrevista ao Manifesto, escrevi que
Outra contradição básica do sistema capitalista de controle é que ele não pode separar “avanço” de destruição, nem “progresso” de desperdício – por mais catastróficos que sejam os resultados. Quanto mais ele destrava a força de produtividade, mais deve desencadear o poder de destruição; e, quanto mais amplia o volume de produção, mais deve enterrar tudo sob montanhas formadas por sufocante desperdício. O conceito de economia é radicalmente incompatível com a “economia” de produção do capital, que, por necessidade, aumenta ainda mais os estragos, primeiro exaurindo com um desperdício voraz os recursos limitados do nosso planeta, e depois agravando o resultado poluindo e envenenando o ambiente humano com seu desperdício e eflúvio produzidos em massa.[611]
Desse modo, as afirmações problemáticas e as omissões seminalmente importantes da caracterização de Sartre do “capitalismo avançado” enfraquecem fortemente o poder de negação do seu discurso emancipatório.”
609: Entrevista concedida por Sartre ao grupo italiano Manifesto, publicada em The Socialist Register (Pontypool, Merlin, 1970, v. VII), p. 238-9. / 611: Ver minha conferência em memória de Isaac Deutscher, The Necessity of Social Control, proferida na London School of Economics em 26 de janeiro de 1971. Os grifos são do original. [Esta conferência encontra-se na edição brasileira de Para além do capital, cit., p. 983-1011. (N. T.)]


“Naturalmente, Sartre estava absolutamente certo em salientar que “o socialismo não é uma certeza”[631]. Mas é bem problemático que ele tenha definido o socialismo – é claro, totalmente no espírito de sua negação moral da ordem existente – como “um valor: é a liberdade escolhendo a si mesma como objetivo”[632]. Aqui, a questão não é negar que o socialismo, como elogiada perspectiva geral da emancipação humana, seja um valor, o que certamente ele é e deve continuar a ser. Mas é também algo mais, em cuja base se pode afirmar sua validade irreprimível. Do contrário, o socialismo poderia simplesmente ser ignorado ou cinicamente rejeitado pela “espadacharia mercenária do capital” como nada mais que um valor veleitariamente proposto porém fútil, como convém à predominância ideológica da ordem dominante.
O motivo de tal negação não poder prevalecer permanentemente é porque, aconteça o que acontecer, o socialismo também é a única alternativa histórica objetivamente sustentável – e, nesse sentido, objetivamente necessáriaà ordem social metabólica e destrutiva do capital. Nesse sentido, o socialismo, como alternativa hegemônica da ordem dominante, é a necessidade histórica – contraditoriamente histórica mas, não obstante, objetivamente em desdobramento – do nosso tempo. Uma necessidade outrora indubitavelmente possuída também pela ordem reprodutiva do capital; em seu próprio tempo histórico – agora fatidicamente anacrônico, em termos históricos objetivos, por suas determinações destrutivas incorrigíveis.
A negação radical de Sartre da ordem estabelecida, com sua influência centrada na dimensão política e moral posta por ele na base categorial da possibilidade, levou-o a exigir, como imperativo moral geral, o que não pode ser atingido, em nome da realização da “sociedade sem poderes” que defendia. Por essa razão, ele insistiu que “é a estrutura social em si que deve ser abolida, pois ela permite o exercício do poder”[633]. O problema é que a estrutura social em si não pode ser abolida. No caso da estrutura social desumanizadora do capital, ela pode e deve ser radicalmente reestruturada em consonância com os requisitos da sustentabilidade histórica, por meio da constituição e incessante recriação de uma estrutura social alternativa produtivamente e humanamente viável. Igualmente, a questão de exercitar o poder só pode ser decidida nos termos de sua sustentabilidade e especificidade histórica, por meio da determinação comum e do exercício substancialmente igual do poder em uma ordem socialista global. Mas o que está em jogo é a constituição de uma ordem global que não pode concebivelmente funcionar sem a determinação consciente e o exercício emancipatório do poder pelos indivíduos sociais para si mesmos. Na verdade, é a medida de viabilidade da estrutura social de maneira que não só permita, mas também facilite esse tipo de exercício do poder.
Compreensivelmente, considerando a amarga experiência histórica do século XX, Sartre estava profundamente preocupado com o que chamou de “singularidade irredutível de todo homem para com a história que, não obstante, condiciona-o rigorosamente”[634]. Seis anos antes, quando ainda estava envolvido na tarefa de tentar elaborar sua concepção de história real em um humor combativo, Sartre escreveu sobre o imperativo vital de realizar o “concreto universal” nestes termos:
Do mesmo modo nós – ratos sem cerebelos – somos também feitos de tal modo que devemos ou morrer, ou reinventar o homem. [...] sem nós a fabricação se daria no escuro, por emendas e remendos, se nós, os “descerebrados”, não estivéssemos ali para repetir constantemente que devemos trabalhar segundo princípios, que não é uma questão de remendar, mas de medir e construir, e, finalmente, que ou a humanidade será o universal concreto, ou não será.[635]
Quando Sartre ministrou sua conferência sobre Kierkegaard em Paris, em 1964, ele já havia abandonado a escrita da Crítica da razão dialética, mas não seu apaixonado engajamento com os difíceis problemas do “singular universal”. Ele tentou colocar Kierkegaard e Marx juntos, nesse espírito, no interesse das “tarefas que nos esperam dentro da dialética histórica”[636]. Portanto, apesar das solenes celebrações centenárias, ele não tentou esconder as falhas do lado de Kierkegaard, argumentando que o filósofo dinamarquês,
ao se colocar contra Hegel, ocupou-se exclusivamente de transmitir sua instituída contingência à aventura humana e, por conta disso, negligenciou a práxis, que é racionalidade. De um só golpe, desnaturou o conhecimento, esquecendo-se de que o mundo que conhecemos é o mundo que fazemos. A ancoragem é um evento fortuito, mas a possibilidade e o significado racional dessa mudança são dados pelas estruturas gerais de envolvimento que as fundam, e que são, por si, a universalização das aventuras singulares pela materialidade na qual estão inscritas.[637]
E ele não parou aí. Depois de destacar o grande risco prático que surge da exclusão – em nome de um Marx interpretado de modo unilateral –, “a singularidade humana do concreto universal”[638], Sartre terminou sua conferência sobre Kierkegaard com estas desafiadoras questões, formuladas totalmente no espírito de sua própria filosofia:
Como podemos conceber a história e o trans-histórico de modo a restabelecer para a necessidade transcendente do processo histórico e para a livre imanência de uma historização incessantemente renovada sua plena realidade e recíproca interioridade, na teoria e na prática? Em suma, como podemos descobrir a singularidade do universal e a universalização do singular, em cada conjuntura, como indissoluvelmente ligadas uma à outra?[639]
Sartre estava certo ao deixar as questões em aberto. Pois a tarefa de fornecer-lhes uma resposta apropriada só pode ser cumprida pelo mais radical movimento emancipatório de massa. Um movimento capaz de reestruturar qualitativamente a ordem cultural e socioeconômica hierarquicamente entrincheirada do capital de modo a garantir, em uma base material historicamente sustentável, a determinação comum e o exercício substantivo do poder pelos produtores livremente associados em uma base equitativa plena. Nosso mais extraordinário companheiro de armas, Jean-Paul Sartre, deu, de muitas maneiras – até mesmo com seus alertas desesperados – uma imensa contribuição para o desenvolvimento desse movimento.”
[631] Jean-Paul Sartre, Sartre in the Seventies, cit., p. 84. / [632] Idem. / [633] Ibidem, p. 52. / [634] Idem, “Kierkegaard: the Singular Universal”, em Between Existentialism and Marxism (Londres, N.L.B., 1974), p. 168. / [635] Idem, “Des rats et des hommes”, cit., p. 65-6. / [636] Idem, “Kierkegaard: the Singular Universal”, cit., p. 169. / [637] Ibidem, p. 168. Grifos de Sartre. / [638] Ibidem, p. 169. / [639] Idem.

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