Editora: Boitempo
ISBN: 978-85-7559-213-7
Tradução: Lólio Lourenço de Oliveira e Rogério Bettoni
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 332
Sinopse: Ver Parte
I
“Ironicamente, a idealização amplamente
difundida da ordem reprodutiva estabelecida como um “sistema natural” cuida de
tudo, até mesmo do problema da escassez potencialmente mais destrutiva,
quando a escassez é reconhecida como parte do esquema geral das soluções
difíceis, porém trabalháveis. Pois uma vez que a autoridade suprema da natureza
em si é postulada[571] pelos representantes ideológicos da burguesia como parte
integrante do quadro explicativo universal e justificação dos processos e
relações dados, até mesmo o que à primeira vista poderia parecer como uma
grande contradição pode prontamente desaparecer.
Nesse sentido, a teoria liberal do Estado foi
fundada na contradição autoproclamada entre a assumida harmonia total dos
fins – os fins postos como necessariamente desejados por todos os
indivíduos em virtude de sua “natureza humana” – e a total anarquia
dos meios. E a anarquia dos meios conceitualizada dessa maneira foi a escassez
alegadamente intransponível de bens e recursos que devem induzir os indivíduos
à luta e, em última instância, a destruir uns aos outros, a não ser que tenham
sucesso em estabelecer acima de si mesmos uma ordem superior, na forma do Estado
burguês, como força restritiva permanente de sua beligerância
individual.
Portanto, o Estado foi inventado com o
suposto propósito de “transformar a anarquia em harmonia”. Ou seja, dedicar-se
à tarefa universalmente louvável de harmonizar a anarquia dos meios,
determinada pela natureza, com a harmonia dos fins veleitariamente postulada –
e igualmente determinada pela natureza – ao reconciliar o antagonismo violento
entre esses dois fatores naturais: a “natureza humana” inalterável e a
escassez material eternamente dominante. E, obviamente, essa reconciliação foi
afirmada na forma da permanência absoluta do poder político do Estado imposto
externamente sobre os indivíduos.
Para ser exato, se os fatores assim
salientados fossem realmente as forças inalteráveis da natureza, e
consequentemente não pudessem ser controlados de nenhuma outra maneira, exceto
por uma autoridade política supraindividual externa superimposta sobre os
indivíduos constituídos pela natureza em si como antagonicamente confrontando e
destruindo uns aos outros enquanto indivíduos beligerantes, nesse caso a
autoridade corretiva do Estado, em sua capacidade de tornar realmente possíveis
os intercâmbios societários harmonizáveis, teria sua legitimidade permanente.
Nesse caso, a versão idealista hegeliana dessa ideologia do Estado – segundo a
qual o desígnio originalmente oculto do espírito absoluto, estabelecendo o
Estado como a única superação possível das contradições dos genus-indivíduos
conflitantes na “sociedade burguesa” e sendo o Estado como tal tanto “a
realização completa do espírito na existência” [572] quanto “a imagem e a
efetividade da razão”[573] – seria autoevidentemente verdadeira para sempre.
Dessa forma, não poderia haver absolutamente nenhuma questão sobre almejar o
“fenecimento” do Estado.
Contudo, o fato de que, de um lado, a
estipulada “condição humana”[574] era em si uma suposição autosserviente,
inventada com o propósito de uma plausibilidade circular de sua mera suposição
em virtude do que deveria supostamente “explicar” e justificar, e, do outro, a escassez
realmente existente era uma categoria inerentemente histórica, e
consequentemente sujeita à mudança histórica factível e superação
potencial, teve de permanecer oculto na teoria liberal do Estado e da
“sociedade civil” sob as múltiplas camadas da circularidade característica
dessa teoria. Pois foi esse tipo de circularidade apologética, constituída
sobre um fundamento natural meramente assumido, porém totalmente insustentável,
que permitiu que os representantes intelectuais do liberalismo avançassem e
retrocedessem à vontade das premissas arbitrárias para as conclusões desejadas,
estabelecendo nos fundamentos apriorísticos de sua circularidade ideológica a
“legitimidade eterna” do Estado liberal. Graças a essa circularidade
fundamental entre os indivíduos “determinados pela natureza”, bem como sua
“sociedade civil” apropriadamente conflituosa e o Estado político idealizado –
que supostamente deveria superar as contradições identificadas sem modificar a
ordem reprodutiva material existente em si –, tanto a formação do Estado do
capital quanto seu quadro reprodutivo societal puderam ser assumidos como para
sempre dados em virtude da reciprocidade justificadora e, com isso, da
permanência absoluta projetada de sua inter-relação.
A escassez (ou “anarquia dos meios”)
desempenhou um papel fundamental nesse esquema de coisas. Ela justificou
“racionalmente” tanto a irreconciliabilidade dos indivíduos beligerantes
enquanto “genus-indivíduos” – que, afinal de contas, tiveram de afirmar
seu autointeresse de acordo com sua estipulada “natureza humana” – quanto, ao
mesmo tempo, forneceu a razão eterna para a adoção das medidas corretivas
necessárias pelo Estado político para tornar o sistema como um todo
intransponível pela prevenção de sua destrutiva fragmentação por meio dos
antagonismos perseguidos individualmente. Mas basta retirar dessa cena a “escassez
intransponível” e substituí-la por algo semelhante a uma disponibilidade
sustentável dos recursos produtivos e humanamente gratificantes, aos quais
geralmente nos referimos como “abundância” irrestrita, para testemunhar o
imediato colapso de todo o constructo pseudorracional autojustificatório.
Pois, na ausência da fatídica escassez, os genus-indivíduos supostamente
determinados pela natureza não têm nenhum motivo para se engajar na “luta para
viver ou morrer” entre si para que sobrevivam.
Pela mesma lógica, no entanto, se aceitarmos
a proposição preocupada com a escassez determinada pela natureza – e, portanto,
por definição, existencialmente primária, intransponível e que a tudo justifica
–, estaremos aprisionados por um quadro estrutural no qual as partes
postulam-se reciprocamente/circularmente umas às outras, bloqueando com isso
qualquer possibilidade de sair desse círculo vicioso. Pois, nesse caso,
devemos aceitar até mesmo o postulado fictício da genus-individualidade
determinada pela natureza, tendo como evidência que os seres humanos
indubitavelmente sobreviveram com (e apesar de) seus conflitos até o momento
atual em um mundo de escassez dentro dos confins da “sociedade civil” e do
Estado.
Nesse sentido, se a alternativa socialista
pretende oferecer uma saída dessa armadilha tendenciosa, concebida do ponto de
vista do capital, ela deve desafiar todos os seus constituintes
circularmente engastadores. Isso vale não só para uma concepção viável de
natureza humana historicamente definida e socialmente em mutação – destacada
por Marx em citação anterior como a “verdadeira comunidade dos humanos”[575]
e em outra publicação como o “conjunto de relações sociais”[576] – como também
para todo o resto. Ou seja, para a eternizada ordem reprodutiva material
burguesa da “sociedade civil”, bem como para a sua formação de Estado, de modo
a ser capaz de almejar ao mesmo tempo um modo radicalmente diferente de reprodução
social metabólica. Um modo de reprodução capaz de superar as relações de
classe antagônicas estabelecidas, deturpadas nas concepções burguesas – até
mesmo nas maiores delas – enquanto conflitualidade individual
determinada pelo genus. Pois as mediações de segunda ordem antagônicas
do capital necessariamente carregam consigo a irracionalidade perversa da escassez
eternizada, mesmo quando suas condições materiais originais são
produtivamente superadas no curso do desenvolvimento histórico.”
[571] Isso é feito até mesmo pelo filósofo idealista Hegel, com seu modo
revelador e puramente ideológico de realizá-lo, em defesa das mais iníquas
determinações da ordem estabelecida. Pode-se encontrar uma discussão sobre o
assunto no capítulo 6 do meu A dialética
da estrutura e da história. / [572] G. W. F. Hegel, Filosofia da história (trad. Maria Rodrigues e Hans Harden,
Brasília, UnB, 1995), p. 23. / [573] Idem, Linhas
fundamentais da filosofia do direito: ou direito natural e ciência do Estado em
compêndio (trad. Paulo Meneses et al., São Paulo, Loyola, 2010), p. 313. /
[574] Como Marx deixou bem claro, em sua afiada crítica da abordagem que
postulou a ideia dos indivíduos isolados necessariamente beligerantes e
determinados pela natureza como o fundamento fictício da “natureza humana” de
que a apologética política de uma
ordem do Estado burguês absolutamente permanente poderia ser prontamente
derivada: “A condição humana é a verdadeira comunidade dos humanos. O
funesto isolamento em relação a essa condição é incomparavelmente mais
abrangente, mais insuportável, mais terrível e mais contraditório do que o
isolamento em relação à comunidade política”, Karl Marx, “Glosas críticas ao
artigo ‘O rei da Prússia e a reforma social. De um prussiano’”, em Lutas de classes na Alemanha (São Paulo,
Boitempo, 2010), p. 50. / [575] Idem. / [576] Karl Marx e Friedrich Engels, A
ideologia alemã, cit., p. 538.
“O problema da abundância aparece
muitas vezes contraposto à escassez. Às vezes isso é feito com o propósito de
rejeitar aprioristicamente a possibilidade de superação da escassez em qualquer
momento futuro, não importa quão distante, pois se diz ser totalmente
irrealista almejar a instituição estável da abundância na sociedade humana, em
vista das determinações insuperavelmente conflitantes da “natureza humana”. Não
é preciso mais nenhum comentário em relação a essa posição.
Em outras ocasiões, no entanto, a
possibilidade de superar a escassez pela abundância não é negada a princípio,
mas não obstante é excluída pelo tempo previsível à nossa frente com base no
fundamento de que seriam necessárias algumas condições tecnológicas
produtivamente mais avançadas que talvez se materializassem (ou não) no futuro
distante. E também há uma terceira posição, positivamente assertiva, sobre a
abundância emergente que declara que “a conquista da escassez atualmente
não é só previsível, mas na verdade prevista”[586].
A posição de Marcuse era quase a mesma que as
visões que acabamos de citar de um ensaio escrito pelo canadense C. B.
Macpherson, um proeminente pensador marxista. Marcuse insistiu que as
“possibilidades utópicas” defendidas por ele “são implícitas às forças
técnicas e tecnológicas do capitalismo avançado” na base das quais se
“acabaria com a pobreza e a escassez em um futuro muito previsível”
[587]. Ele continuou repetindo que
o progresso técnico alcançou um
estágio em que a realidade já não precisa ser definida pela extenuante
competição pela sobrevivência e pelos progressos sociais. Quanto mais essas capacidades
técnicas transcendem o quadro de exploração dentro do qual permanecem
confinadas e violentadas, mais elas impulsionam as tendências e
aspirações do homem a um ponto em que as necessidades da vida deixam de
requerer as atuações agressivas de “ganhar o sustento”, e o “não necessário” se
torna um prêmio vital. [588]
E, na mesma obra, escrita bem antes de
afundar no profundo pessimismo dos seus últimos anos de vida, Marcuse postulou
um “fundamento biológico” para a mudança revolucionária, dizendo que tal
fundamento
teria a chance de transformar o progresso
técnico quantitativo em modos de vida qualitativamente diferentes –
precisamente porque seria uma revolução ocorrendo em um alto nível do
desenvolvimento material e intelectual, e que permitiria ao homem conquistar
a escassez e a pobreza. Se essa ideia de uma transformação radical tiver de
ser mais que uma especulação fútil, ela precisa de um fundamento objetivo no
processo de produção da sociedade industrial avançada, em suas capacidades
técnicas e uso. Pois a liberdade de fato depende amplamente do progresso
técnico, do avanço da ciência.[589]
Essa irrealidade generosamente
bem-intencionada foi escrita e publicada por Marcuse há mais de quarenta anos,
e não vimos absolutamente nada apontando na direção de sua realização. Pelo
contrário, testemunhamos recentemente uma crise devastadora da “sociedade
industrial avançada”, com a ocorrência de levantes por falta de alimentos
em nada menos que 35 países reconhecida por um dos pilares ideológicos da ordem
estabelecida – The Economist –, apesar de todo o significativo progresso
técnico indubitavelmente alcançado nas últimas quatro décadas. Nem mesmo a
mais sutil tentativa foi feita para a duradoura “conquista da escassez”.
A grande fraqueza das projeções do tipo das
de Marcuse, compartilhadas por C. B. Macpherson e muitos outros, é que se
espera que os resultados positivos referentes à “conquista de fato prevista da
escassez” surjam da “força propulsora” do progresso técnico/tecnológico e do
avanço produtivo. E isso não poderia acontecer nem mesmo em mil anos, quanto
mais em quarenta ou cem. Pois a tecnologia não é uma “variável independente”.
Ela está profundamente enraizada nas mais fundamentais determinações sociais,
apesar de toda a mistificação em contrário[590], como vimos anteriormente em
diversas ocasiões.
Ninguém pode duvidar de que a simpatia das
pessoas que, desse modo, prenunciam a conquista da escassez está do lado dos
“miseráveis da Terra que combatem o monstro abastado”[591]. Mas seu discurso
moral nem sequer pode tocar as determinações objetivas fundamentais que, de
modo tão bem-sucedido, perpetuam a situação denunciada dos explorados e
oprimidos, que dirá efetivamente alterá-las. Esperar que o avanço produtivo,
que surge do “progresso técnico” na “sociedade industrial avançada”, desloque a
humanidade na direção da eliminação da escassez é rogar pelo impossível. O
mesmo tipo de impossibilidade quanto à espera de que o capitalismo
estabelecesse um limite para o seu apetite pelo lucro sobre a base de que ele
já obteve lucro suficiente. Pois a sociedade da qual Marcuse e outros falam não
é uma sociedade “industrial avançada”, mas somente capitalisticamente
avançada – e, para a humanidade em si, perigosa de maneira suicida. Ela não
pode dar um simples passo na direção de conquistar a escassez enquanto
permanecer sob o domínio do capital, independentemente de suas crescentes
“capacidades técnicas” e do correspondente grau de melhoria na produtividade no
futuro. Por duas importantes razões.
Primeiro, porque até mesmo o maior avanço
produtivo tecnicamente assegurado pode ser – e, sob as condições agora
prevalecentes em nossa sociedade, de fato é e deve ser – dissipado
pelo desperdício lucrativo e pelos canais da produção destrutiva,
incluindo a fraudulência legitimada pelo Estado do complexo
militar/industrial, como vimos anteriormente. E, segundo – o que acaba por
ser mais fundamental aqui –, por causa do caráter objetivo do sistema de
acumulação do capital. Não devemos nos esquecer de que “o capital
personificado, dotado de vontade e consciência”, não pode estar
interessado na conquista da escassez, e na correspondente distribuição
equitativa da riqueza, pela simples razão de que “o valor de uso nunca
deve ser tratado, portanto, como meta imediata do capitalismo; [...] mas apenas
o incessante movimento do ganho”[592]. E, a esse respeito, que é
inseparável do imperativo absoluto da incessante acumulação e expansão do capital,
o impedimento estrutural permanente é que o capital sempre é – e, isso
não pode ser destacado o suficiente, sempre continuará sendo, por uma
questão de determinação sistêmica interna – insuperavelmente escasso,
mesmo quando, sob certas condições, contraditoriamente superproduzido[593].
(...)
Na verdade, algumas qualificações elementares
são necessárias para uma caracterização apropriada da abundância em si,
o que pode ser legitimamente posto no contexto da superação da dominação
histórica da escassez. Pois, num estágio relativamente inicial do
desenvolvimento histórico da humanidade, as “carências naturalmente
necessárias” – que, para nossos ancestrais distantes, estavam em plena
consonância com a dominação material opressora da escassez – na verdade são
superadas por um conjunto de carências muito mais complexo, historicamente
criado, como vimos discutido no meu livro A dialética da estrutura e da
história. Para ser exato, o avanço produtivo em questão não representa o
fim dessa história onerosa, mas, não obstante, significa um importante passo na
direção de conquistar o domínio original da vida humana pela escassez. Nesse
sentido:
O luxo é o contrário do naturalmente
necessário. As necessidades naturais são as necessidades do indivíduo, ele
próprio reduzido a um sujeito natural. O desenvolvimento da indústria abole
essa necessidade natural, assim como aquele luxo – na sociedade burguesa,
entretanto, o faz somente de modo antitético, uma vez que ela própria
repõe uma certa norma social como a norma necessária frente ao luxo. [596]
Por conseguinte, relegar a escassez ao
passado é um processo histórico interminável, mas também contínuo, apesar de
todos os obstáculos e contradições. No entanto, precisamente por causa da forma
antitética na qual esse desenvolvimento histórico deve ser continuado na
sociedade burguesa, a verdadeira questão para o futuro não é a instituição
utópica da “abundância” irrestrita, mas o controle racional do processo
do avanço produtivo pelos indivíduos sociais, possível apenas em uma ordem
reprodutiva socialista. Do contrário, o domínio da escassez (não mais
historicamente justificável) – na forma da produção destrutiva
perversamente perdulária, porém lucrativa em uma variedade de suas formas
capitalisticamente factíveis – permanece conosco de forma indefinida. Na ausência
da requerida autodeterminação racional em escala societal – cuja
ausência, sob as condições atuais, acaba por ser não uma determinação
ontológico-existencial fatídica, mas uma questão de impedimento historicamente
criado e historicamente superável –, até mesmo a maior “abundância”
(abstratamente postulada) seria totalmente impotente e fútil enquanto tentativa
de superar o domínio da escassez.
Portanto, estamos preocupados, a esse
respeito, com uma força social historicamente determinada – mas não
permanentemente determinante da história – e um impedimento à
emancipação social que dominou a vida humana durante tempo demais. É esse
impedimento estrutural/sistêmico que deve ser radicalmente superado por meio da
alternativa hegemônica do trabalho ao modo de controle social metabólico
estabelecido do capital, de acordo com a concepção marxiana da “nova forma
histórica”.”
[590] Devemos bem nos lembrar das visões de
Habermas – um dos maiores mistificadores ecléticos oportunistas em voga no
campo – que postula a “cientificização da tecnologia” quando, na verdade,
muitos danos são gerados pela fetichista tecnologização da ciência a
serviço da produção destrutiva. / [591] Herbert Marcuse, An Essay on Liberation, cit., p. 7. / [592] Karl Marx, O capital, cit., p. 273. / [593] É mais relevante aqui que,
“se o capital cresce de 100 para 1.000, o 1.000 é agora o ponto de partida de
onde o aumento tem de se dar; a decuplicação de 1.000% não conta para nada;
lucro e juro, por seu lado, devêm eles mesmos capital. O que aparecia como mais-valor aparece agora como simples pressuposto
etc., como incorporado à própria existência simples do capital”, Karl Marx, Grundrisse, cit., p. 264. Grifos de
Marx.
“O capitalismo avançado, no que se
refere à consciência de sua própria condição, e a despeito das enormes
disparidades na distribuição de renda, consegue satisfazer as necessidades
elementares da maioria da classe trabalhadora – permanecem, naturalmente, as zonas
marginais, 15% dos trabalhadores nos Estados Unidos, os negros e os imigrantes;
permanecem os idosos; permanece, em escala global, o terceiro mundo. Mas
o capitalismo satisfaz a certas necessidades primárias, e também satisfaz a
certas necessidades que ele criou artificialmente: por exemplo, a
necessidade de um carro. Foi essa situação que me fez revisar minha “teoria
das necessidades”, posto que essas necessidades não estão mais, em uma situação
de capitalismo avançado, em oposição sistemática ao sistema. Ao
contrário, elas parcialmente se tornam, sob o controle do sistema, um
instrumento de integração do proletariado em certos processos
engendrados e dirigidos pelo lucro. O trabalhador esgota-se para produzir um
carro e para ganhar o suficiente para comprar um; essa aquisição lhe dá
a impressão de ter satisfeito uma “necessidade”. Ele é explorado
por um sistema que, ao mesmo tempo, lhe dá um objetivo e uma possibilidade de
realizá-lo. A consciência do caráter intolerável do sistema não deve mais,
portanto, ser buscada na impossibilidade de satisfazer necessidades
elementares, mas, acima de tudo, na consciência da alienação – em outras
palavras, no fato de que esta vida não vale a pena ser vivida e não tem
sentido algum, que esse mecanismo é um mecanismo enganador, que essas
necessidades são criadas artificialmente, que são falsas, que são exaustivas e
só servem ao lucro. Mas unir a classe nesta base é ainda mais difícil.[609]
(...)
Para começar, falar sobre “capitalismo
avançado” – quando o sistema do capital como modo de reprodução social
metabólica encontra-se em sua fase descendente do desenvolvimento histórico
e, portanto, só é avançado de modo capitalista, mas em absolutamente
nenhum outro sentido, e com isso capaz de sustentar-se apenas de um modo ainda
mais destrutivo, e portanto, em última instância, também autodestrutivo
– é extremamente problemático. Outra afirmação: a caracterização da maioria
esmagadora da humanidade – na categoria da pobreza, incluindo os “negros e
os imigrantes”, os “idosos” e, em “escala global, o terceiro mundo” – como
pertencentes às “zonas marginais” (em afinidade com os “excluídos” de
Marcuse), não é menos insustentável. Afinal, na realidade, é o “mundo
capitalista avançado” que constitui a margem privilegiada, há muito
totalmente insustentável, do sistema global, com sua implacável “negação elementar
da necessidade” para a maior parte do mundo, e não o que é descrito por Sartre
na entrevista ao grupo Manifesto como as “zonas marginais”. Mesmo com respeito
aos Estados Unidos, a margem de pobreza é altamente subestimada em meros 15%.
Além disso, a caracterização dos automóveis dos trabalhadores como nada mais do
que “necessidades [puramente] artificiais”, que “só sevem ao lucro”, não
poderia ser mais unilateral. Pois, ao contrário de muitos intelectuais, nem
mesmo os trabalhadores relativamente abastados, sem falar nos membros da classe
dos trabalhadores como um todo, têm o luxo de encontrar seu local de trabalho
ao lado do seu quarto.
Ao mesmo tempo, ao lado das omissões
espantosas, algumas das contradições e falhas estruturais mais graves são
inexistentes na descrição sartriana do “capitalismo avançado”, virtualmente
esvaziando o significado de todo o conceito. Nesse sentido, uma das necessidades
substanciais mais importantes, sem a qual nenhuma sociedade – passada, presente
ou futura – poderia sobreviver, é a necessidade de trabalho. Tanto pelos
indivíduos produtivamente ativos – abarcando todos eles em uma ordem social
plenamente emancipada – quanto pela sociedade em geral, na sua relação
historicamente sustentável com a natureza. O fracasso necessário em resolver
esse problema estrutural fundamental, que afeta todas as categorias de
trabalho, não só no “terceiro mundo”, mas também nos países mais privilegiados
do “capitalismo avançado”, com seu desemprego que cresce perigosamente,
constitui um dos limites absolutos do sistema do capital em sua
totalidade. Outro grave problema que enfatiza a inviabilidade histórica
presente e futura do capital é sua mudança calamitosa em direção aos setores
parasitários da economia – como a especulação aventureira produtora de crise
que assola (como uma questão de necessidade objetiva, frequentemente
deturpada como fracasso pessoal sistemicamente irrelevante) o setor
financeiro e a fraudulência institucionalizada e legalmente fortalecida,
intimamente associada a ele – em oposição aos ramos produtivos da vida
socioeconômica requeridos para a satisfação da necessidade humana genuína. Essa
é uma mudança que se dá em um contraste ameaçadoramente acentuado em relação à
fase ascendente do desenvolvimento histórico do capital, quando o prodigioso
dinamismo expansionista sistêmico (incluindo a revolução industrial) devia-se
predominantemente às realizações produtivas socialmente viáveis e mais
intensificáveis. Temos de acrescentar a tudo isso os fardos econômicos maciçamente
perdulários, impostos à sociedade de maneira autoritária pelo Estado e pelo
complexo militar/industrial – com a permanente indústria de armas e as
guerras correspondentes –, como parte integrante do perverso “crescimento
econômico” do “capitalismo avançado organizado”. E, para mencionar apenas mais
uma das implicações catastróficas do desenvolvimento sistêmico do capital
“avançado”, devemos ter em mente a invasão ecológica global,
proibitivamente perdulária, de nosso modo não mais sustentável de reprodução
metabólica social no mundo planetário finito, com a exploração voraz de
recursos materiais não renováveis e a destruição cada vez mais perigosa da
natureza. Isso não é “ser sábio depois do acontecimento”. No mesmo período em
que Sartre concedeu a entrevista ao Manifesto,
escrevi que
Outra contradição básica do sistema
capitalista de controle é que ele não pode separar “avanço” de destruição,
nem “progresso” de desperdício – por mais catastróficos que sejam os
resultados. Quanto mais ele destrava a força de produtividade, mais deve
desencadear o poder de destruição; e, quanto mais amplia o volume de produção,
mais deve enterrar tudo sob montanhas formadas por sufocante desperdício. O
conceito de economia é radicalmente incompatível com a “economia” de
produção do capital, que, por necessidade, aumenta ainda mais os estragos,
primeiro exaurindo com um desperdício voraz os recursos limitados do
nosso planeta, e depois agravando o resultado poluindo e envenenando o
ambiente humano com seu desperdício e eflúvio produzidos em massa.[611]
Desse modo, as afirmações
problemáticas e as omissões seminalmente importantes da caracterização
de Sartre do “capitalismo avançado” enfraquecem fortemente o poder de negação
do seu discurso emancipatório.”
609: Entrevista concedida por Sartre ao grupo
italiano Manifesto, publicada em The Socialist Register (Pontypool,
Merlin, 1970, v. VII), p. 238-9. / 611: Ver minha conferência em memória de
Isaac Deutscher, The Necessity of Social
Control, proferida na London School of Economics em 26 de janeiro de 1971.
Os grifos são do original. [Esta conferência encontra-se na edição brasileira
de Para além do capital, cit., p.
983-1011. (N. T.)]
“Naturalmente, Sartre estava absolutamente
certo em salientar que “o socialismo não é uma certeza”[631]. Mas é bem
problemático que ele tenha definido o socialismo – é claro, totalmente no
espírito de sua negação moral da ordem existente – como “um valor:
é a liberdade escolhendo a si mesma como objetivo”[632]. Aqui, a questão
não é negar que o socialismo, como elogiada perspectiva geral da emancipação
humana, seja um valor, o que certamente ele é e deve continuar a ser.
Mas é também algo mais, em cuja base se pode afirmar sua validade irreprimível.
Do contrário, o socialismo poderia simplesmente ser ignorado ou cinicamente
rejeitado pela “espadacharia mercenária do capital” como nada mais que um valor
veleitariamente proposto porém fútil, como convém à predominância ideológica da
ordem dominante.
O motivo de tal negação não poder prevalecer
permanentemente é porque, aconteça o que acontecer, o socialismo também é a única
alternativa histórica objetivamente sustentável – e, nesse sentido, objetivamente
necessária – à ordem social metabólica e destrutiva do capital.
Nesse sentido, o socialismo, como alternativa hegemônica da ordem dominante, é
a necessidade histórica – contraditoriamente histórica mas, não
obstante, objetivamente em desdobramento – do nosso tempo. Uma
necessidade outrora indubitavelmente possuída também pela ordem reprodutiva do
capital; em seu próprio tempo histórico – agora fatidicamente anacrônico,
em termos históricos objetivos, por suas determinações destrutivas
incorrigíveis.
A negação radical de Sartre da ordem
estabelecida, com sua influência centrada na dimensão política e moral posta
por ele na base categorial da possibilidade, levou-o a exigir, como
imperativo moral geral, o que não pode ser atingido, em nome da realização da
“sociedade sem poderes” que defendia. Por essa razão, ele insistiu que “é a estrutura
social em si que deve ser abolida, pois ela permite o exercício do poder”[633].
O problema é que a estrutura social em si não pode ser abolida. No caso
da estrutura social desumanizadora do capital, ela pode e deve ser radicalmente
reestruturada em consonância com os requisitos da sustentabilidade
histórica, por meio da constituição e incessante recriação de uma estrutura
social alternativa produtivamente e humanamente viável. Igualmente, a questão
de exercitar o poder só pode ser decidida nos termos de sua
sustentabilidade e especificidade histórica, por meio da determinação comum e
do exercício substancialmente igual do poder em uma ordem socialista global.
Mas o que está em jogo é a constituição de uma ordem global que não pode
concebivelmente funcionar sem a determinação consciente e o exercício
emancipatório do poder pelos indivíduos sociais para si mesmos. Na verdade, é a
medida de viabilidade da estrutura social de maneira que não só permita, mas
também facilite esse tipo de exercício do poder.
Compreensivelmente, considerando a amarga
experiência histórica do século XX, Sartre estava profundamente preocupado com
o que chamou de “singularidade irredutível de todo homem para com a história
que, não obstante, condiciona-o rigorosamente”[634]. Seis anos antes, quando
ainda estava envolvido na tarefa de tentar elaborar sua concepção de história
real em um humor combativo, Sartre escreveu sobre o imperativo vital de
realizar o “concreto universal” nestes termos:
Do mesmo modo nós – ratos sem cerebelos –
somos também feitos de tal modo que devemos ou morrer, ou reinventar o homem.
[...] sem nós a fabricação se daria no escuro, por emendas e remendos, se nós,
os “descerebrados”, não estivéssemos ali para repetir constantemente que
devemos trabalhar segundo princípios, que não é uma questão de remendar,
mas de medir e construir, e, finalmente, que ou a humanidade será o
universal concreto, ou não será.[635]
Quando Sartre ministrou sua conferência sobre
Kierkegaard em Paris, em 1964, ele já havia abandonado a escrita da Crítica
da razão dialética, mas não seu apaixonado engajamento com os difíceis
problemas do “singular universal”. Ele tentou colocar Kierkegaard e Marx
juntos, nesse espírito, no interesse das “tarefas que nos esperam dentro da
dialética histórica”[636]. Portanto, apesar das solenes celebrações
centenárias, ele não tentou esconder as falhas do lado de Kierkegaard,
argumentando que o filósofo dinamarquês,
ao se colocar contra Hegel, ocupou-se
exclusivamente de transmitir sua instituída contingência à aventura humana e,
por conta disso, negligenciou a práxis, que é racionalidade. De um só golpe,
desnaturou o conhecimento, esquecendo-se de que o mundo que conhecemos é
o mundo que fazemos. A ancoragem é um evento fortuito, mas a possibilidade e o
significado racional dessa mudança são dados pelas estruturas gerais de
envolvimento que as fundam, e que são, por si, a universalização das aventuras
singulares pela materialidade na qual estão inscritas.[637]
E ele não parou aí. Depois de destacar o
grande risco prático que surge da exclusão – em nome de um Marx interpretado de
modo unilateral –, “a singularidade humana do concreto universal”[638], Sartre
terminou sua conferência sobre Kierkegaard com estas desafiadoras questões,
formuladas totalmente no espírito de sua própria filosofia:
Como podemos conceber a história e o
trans-histórico de modo a restabelecer para a necessidade transcendente do
processo histórico e para a livre imanência de uma historização incessantemente
renovada sua plena realidade e recíproca interioridade, na teoria e na prática?
Em suma, como podemos descobrir a singularidade do universal e a
universalização do singular, em cada conjuntura, como indissoluvelmente ligadas
uma à outra?[639]
Sartre estava certo ao deixar as questões em
aberto. Pois a tarefa de fornecer-lhes uma resposta apropriada só pode ser
cumprida pelo mais radical movimento emancipatório de massa. Um movimento capaz
de reestruturar qualitativamente a ordem cultural e socioeconômica
hierarquicamente entrincheirada do capital de modo a garantir, em uma base
material historicamente sustentável, a determinação comum e o exercício
substantivo do poder pelos produtores livremente associados em uma base
equitativa plena. Nosso mais extraordinário companheiro de armas, Jean-Paul
Sartre, deu, de muitas maneiras – até mesmo com seus alertas desesperados – uma
imensa contribuição para o desenvolvimento desse movimento.”
[631] Jean-Paul Sartre, Sartre in
the Seventies, cit., p. 84. / [632] Idem. / [633] Ibidem, p. 52. / [634]
Idem, “Kierkegaard: the Singular Universal”, em Between Existentialism and Marxism (Londres, N.L.B., 1974), p. 168.
/ [635] Idem, “Des rats et des hommes”, cit., p. 65-6. / [636] Idem,
“Kierkegaard: the Singular Universal”, cit., p. 169. / [637] Ibidem, p. 168. Grifos de Sartre. / [638] Ibidem, p. 169. / [639] Idem.
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