Editora: Boitempo
ISBN: 978-85-7559-213-7
Tradução: Lólio Lourenço de Oliveira e Rogério Bettoni
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 332
Sinopse: Publicado
originalmente em 1979, o livro A obra de Sartre: busca da liberdade
deveria ter tido um segundo volume intitulado O desafio da história, o
qual analisaria a concepção sartriana de história. Devido a outros projetos,
entre os quais a obra-prima Para além do capital, István Mészáros pôde
retomar essa análise somente na presente edição, ampliada e atualizada, que a
Boitempo disponibiliza ao leitor de língua portuguesa antes mesmo de seu
lançamento em inglês. O livro tem o mérito de situar Jean-Paul Sartre em
relação ao pensamento do século XX e abordar sua trajetória em todas as suas
manifestações – como romancista, dramaturgo, filósofo e militante político.
Escritor algum foi alvo de tantos ataques, de origens as
mais variadas e poderosas, quanto Sartre: “Em 1948, nada menos do que o governo
soviético de Stalin assume posição oficial contra o filósofo e, no mesmo ano,
um decreto especial do Santo Ofício coloca no Index a totalidade de suas
obras”, lembra Mészáros. Quais as razões disso? E como é possível que um
indivíduo sozinho, tendo a caneta como única arma, seja tão eficiente como
Sartre numa época que tende a tornar o indivíduo completamente impotente? Os
escritos do filósofo marxista buscam não apenas as respostas, como também
formulam novos questionamentos sobre a vida e a obra de Sartre, elucidando sua
contribuição para o mundo.
Quando interrogado recentemente sobre o motivo que o
levou a escrever sobre Sartre, Mészáros respondeu: “Sempre senti que os
marxistas deviam muito a ele, pois vivemos numa era em que o poder do capital é
dominador, uma era em que, significantemente, a ressonante platitude dos
políticos é que ’não há alternativa‘. [...] Sartre foi um homem que sempre
pregou exatamente o oposto: há uma alternativa, deve haver uma alternativa;
como indivíduos, devemos nos rebelar contra esse poder. Os marxistas, de modo
geral, não conseguiram dar voz a isso”.
Ao afirmar tão categoricamente a importância de Sartre
para a formação das novas gerações, Mészáros não defende sua escolha
filosófica, ou seja, o existencialismo, mas compartilha plenamente de sua meta:
a necessidade de uma rebelião contra o saber do “não há alternativa”. “Este
livro pode ser visto como o encontro de duas atitudes que convivem num mesmo
autor e o vinculam àquele que é o seu objeto de estudo: a profunda afinidade
política e a enorme discordância filosófica que se podem constatar na relação
entre Mészáros e Sartre. O que se eleva acima das controvérsias conceituais é a
defesa de uma causa, o resgate de esperanças e expectativas maiores do que os
instrumentos doutrinais que utilizamos para tentar realizá-las”, ressalta o
professor de filosofia da Universidade de São Paulo Franklin Leopoldo e Silva
na orelha do livro.
Para Mészáros, a importância da mensagem intransigente de
Sartre sobre a necessária alternativa é maior hoje do que já foi anteriormente.
O filósofo francês não viveu para ver grande parte das pessoas engajadas
daquela época se render aos poderes da repressão em nome do privatismo e do
individualismo. Por esse motivo, Sartre é hoje uma lembrança terrível e ao
mesmo tempo imprescindível.
“A verdadeira individualidade é inconcebível
sem uma comunidade com a qual possamos nos relacionar e nos definir.”
“Eis como Sartre encara a tarefa do escritor:
O mais belo livro do mundo não salvará da dor
uma criança: não se redime o mal, luta-se
contra ele. O mais belo livro do mundo redime-se a si mesmo; redime também
o artista. Não redime, porém, o homem. Tanto quanto o homem não redime o
artista. Queremos que o homem e o artista construam juntos sua salvação,
queremos que a obra seja ao mesmo tempo um ato; queremos que seja expressamente
concebida como uma arma na luta que os homens travam contra o mal. [21] (...)
Não é fácil trancar Sartre dentro de alguma
coisa, muito menos dentro da cela da excelência literária atemporal. Sua visão
do engajamento do escritor é uma visão total:
Se a literatura não é tudo, ela não vale nada.
Isso é o que quero dizer com “engajamento”. Este definha se é reduzido à
inocência, ou a canções. Se uma frase escrita não ecoa em todos os níveis do
homem e da sociedade, então ela não tem nenhum sentido. O que é a literatura de
uma época se não a época apropriada por
sua literatura? [...] Deve-se aspirar a tudo para ter esperança de fazer
alguma coisa. [26] (...)
Desafiar a opinião estabelecida, com todas as
suas instituições e valores institucionalizados, exige não apenas um conjunto
de crenças firmemente mantidas, mas também um ego muito forte. E Sartre, sem dúvida, possui ambos. A articulação
da obra de toda sua vida caracteriza-se por um orgulho e uma dignidade imensos.
Pois o que ele poderia ter realizado com humildade em um ambiente hostil? “É
preciso um orgulho insano para escrever – só é possível permitir-se ser modesto
depois de ter enterrado o orgulho em sua obra”[28], escreve Sartre. E, nisso,
ele não está só. Sua visão do compromisso total lembra-nos as palavras de um
grande poeta húngaro:
Afastando as Graças intrusas,
Não vim para ser um “artista”,
Mas para ser tudo,
Fui o Senhor;
O poema: escravo fantasioso. [29]
Na opinião de Sartre, “A arte está totalmente
engajada na atividade de um único homem,
à medida que ele põe à prova os limites dela e os faz recuar. Mas a escrita não
pode ser crítica sem levantar questões a respeito de tudo: esse é seu conteúdo.
A aventura de escrever, empreendida por cada escritor, desafia a humanidade como um todo” [30]. Não é uma decisão nada
fácil assumir a carga desse desafio e fazê-lo conscientemente, como é o caso de
Sartre. Porém, uma vez que o projeto fundamental do escritor se define nesses
termos, ele não pode esquivar-se à magnitude de sua tarefa sem perder a própria
integridade (ou autenticidade). Aconteça o que acontecer, tem de articular as
preocupações de sua época como um todo e não se afastar delas.
Sua visão do todo traz consigo a
lembrança permanente de sua própria responsabilidade por isso tudo.
Mesmo que se queira absolvê-lo dessa responsabilidade, ele deve, questionando todas
as coisas, afirmar e reafirmar seu direito inalienável de assumir a carga
da responsabilidade total. Por “sua época como um todo” e pela “humanidade como
um todo”. Eis por que ele não pode deixar de ser intransigente numa era
dominada pela evasão e pelo subterfúgio, pela acomodação e pela fuga; em suma,
pela autossegurança institucional reificada, em vez de enfrentar e atracar-se
com as contradições que, em sua irresolução crônica, fazem antever finalmente a
perspectiva de um suicídio coletivo. E uma vez que essa verdade desagradável
não consegue penetrar ouvidos ensurdecidos pelo ruído autocomplacente da
acomodação confortável, a não ser mediante o grito mais alto possível da voz da
intransigência, a intransigência moral e intelectual não acomodada (que não se
deve confundir com a busca facciosa de um estreito interesse pessoal) torna-se
a virtude fundamental da época, um sine
qua non de realização significativa.”
[21] Jean-Paul Sartre, “Writing for One’s Age” (1946), em What is
Literature? (trad. Bernard Frechtman, Londres, Methuen,
1950), p. 233. [Ed. bras.: Que é a literatura?, trad. Carlos Felipe
Moisés, São Paulo, Ática, 1993. O ensaio em questão não consta da edição
brasileira.] / [26] Jean-Paul Sartre, “The Purposes of Writing” (1959), Between
Existentialism and Marxism (trad. John Matthews, Londres, NLB, 1974), p. 13-4. / [29] De um poema de Endre
Ady (1877-1919). / [30] Jean-Paul Sartre, “The
Purposes of Writing”, cit, p. 26.
“O mesmo se aplica a Heidegger. Não se deve
superestimar o papel desse autor na formação da estrutura de pensamento de
Sartre. Seria inútil especular sobre o que teria acontecido se Sartre tivesse
tido a experiência de um campo de prisioneiros de guerra russo, em vez de um
nazista, com prateleiras ostentando as obras de Marx e Lenin. Inútil não apenas
devido à esterilidade inerente de hipóteses contrafactuais, mas também porque
sua primeira relação com os escritos de Heidegger, embora sem muita profundidade,
antecede em cerca de dez anos sua experiência de guerra. De todo modo, Sartre
pôs Heidegger a seu serviço. Seria tão incorreto ler Sartre pelos olhos de
Heidegger quanto fazer o inverso. Não obstante, não se constrói um castelo de
cristal com pedras. Assim, embora Sartre esteja correto em defender-se contra
ataques sectários por causa do passado nazista de Heidegger, seus argumentos a
respeito da verdadeira questão não são nada convincentes. Diz ele: “Então
Heidegger, e daí? Se descobrimos nosso próprio pensamento por causa de outro
filósofo, se dele extraímos técnicas e métodos suscetíveis de nos fazer chegar
a novos problemas, isso quer dizer que esposamos todas as suas teorias? Marx
emprestou de Hegel sua dialética. Dir-se-ia, por isso, que O capital [53] é uma obra prussiana?”[54]. A questão é não apenas
que Sartre toma de Heidegger muito mais do que “técnicas e métodos”, mas também
– o que é bem mais importante – que jamais
submete a obra de Heidegger àquele “acerto de contas radical” que caracteriza a
relação de Marx com Hegel.
O que se percebe em todos esses casos é que,
em certo sentido, a contingência é “superada” [superseded]. Não que o escritor possa fazer tudo quanto lhe agrade.
(Aliás, Sartre tem de pagar um alto preço por adotar grande parte da ontologia
truncada de Heidegger, que só pode descobrir a si mesma e, por isso, retornar
em círculos para dentro de si própria.)”
[53] Trad. Rubens Enderle, São Paulo,
Boitempo, no prelo. (N. E.) / [54] Jean-Paul Sartre, “À propos de
l’existentialisme: mise au point”, Action,
29 de dezembro de 1944; reproduzido em C/R, cit., p. 653-8 (a citação é da p.
654).
“Certamente, a vida de Sartre não é muito
cheia de aventuras. De fato, a maior parte dela se consome numa demoníaca
dedicação ao trabalho. O volume de sua produção é desconcertante. Cinco ou seis
milhões de palavras já publicados, e talvez outros dois ou três milhões sumidos
em manuscritos perdidos, abandonados ou ainda a publicar: mais do que o
bastante para manter meia dúzia de escribas ocupados por toda a vida durante a
Idade Média, apenas para copiar tudo isso. Indagado a respeito da
extraordinária riqueza de sua produção, ele explica, numa semiapologia:
“Pode-se ser produtivo sem muito trabalho. Três horas pela manhã, três horas à
noite: essa é minha única norma. Mesmo em viagens. Vou executando pouco a pouco
um plano de trabalho meticuloso”[58].
É espantoso ouvir que seis horas de trabalho
intenso, todos os dias, “mesmo em viagens”, seja considerado “pouco a pouco”. A
verdade completa, porém, é ainda mais espantosa, pois sabemos por outras fontes
(principalmente pelas memórias de Simone de Beauvoir) que ele frequentemente
escreve “dia e noite” e dispõe-se a consumir 28 horas, sem parar, na revisão de
um único artigo[59]. E tal intensidade não está apenas reservada para ocasiões
raras. Ao contrário, parece que essa é a regra, não a exceção. Muitas das obras
literárias de Sartre são escritas em poucos dias ou semanas. Ainda mais
surpreendente, suas duas obras teóricas monumentais, O ser e o nada e Crítica da
razão dialética[60], foram escritas, cada uma delas, em poucos meses[61].
Além disso, relata-me François Erval, muitas vezes capítulos inteiros foram
reescritos do começo ao fim, apenas porque Sartre não estava satisfeito com
alguns pormenores. Se a tudo isso se acrescentar o infindável número de horas
dedicadas a discussões, correspondência, entrevistas, ensaios de peças de
teatro, conferências, reuniões políticas e editoriais e assim por diante, é
evidente que não pode ter sobrado muito tempo para “experiências pessoais”.
Autores de um livro só, como Sagan, podem permitir-se grande número delas; não
Sartre, que simplesmente “não pode parar para levar a vida como ela vier: tem
de estar em ação o tempo todo”[62].
De todo modo, o significado da experiência
pessoal de um escritor é dialético; não pode ser transformado num fetiche
cristalizado. Sartre não insistiu sempre, acertadamente, que “a obra constrói
seu próprio autor ao mesmo tempo que ele cria a obra”? Esse intercâmbio
dialético entre obra e experiência não poderia encontrar manifestação mais
clara do que em Sartre.”
[58] Entrevista a Gabriel d’Aubarède, Les
Nouvelles Littéraires, 1o de fevereiro de 1951. / [59] Simone de Beauvoir, Force of Circumstance (Harmondsworth,
Penguin, 1968), p. 466. [Ed. bras.: A
força das coisas, trad. Maria Helena Franco Martins, Rio de Janeiro, Nova
Fronteira, 1995.] / [60] Rio de Janeiro, DP&A, 2002. (N. E.) / [61] Para
poder manter um ritmo exaustivo de trabalho enquanto escrevia sua Crítica da razão dialética, ele consumia
todo um tubo de Corydrane por dia. Simone de Beauvoir, Force of Circumstance, cit., p. 407. / [62] Simone de Beauvoir,
“Jean-Paul Sartre: Strictly Personal”, Harper’s
Bazaar, janeiro de 1946; grande parte foi reproduzida em C/R, cit., p.
418-20.
“Por maior que seja a minha admiração por
Proust, ele é o oposto de mim: ele se compraz na análise, ao passo que eu tendo
apenas à síntese”.
(Entrevista a Pierre Lorquet, Mondes
Nouveaux, 21 de dezembro de 1944.)
“As relações de Sartre com as pessoas, obras
de arte, objetos do dia a dia e assim por diante são descritas em suas obras,
tanto quanto na vida real, com cores dramáticas. Ele não gosta ou desgosta,
simplesmente, do que vê no Museu do Prado, mas abomina e detesta Ticiano e
admira Hieronymus Bosch. Um simples passar de olhos por uma assembleia numa
faculdade de Oxford é o bastante para fazê-lo detestar o esnobismo da sociedade
oxfordiana e jamais voltar a pôr os pés naquela cidade. Faz parte da economia
de vida que ele tenha de resolver-se a respeito de tudo com grande rapidez e
intensidade, sempre buscando uma avaliação geral que possa ser integrada em sua
busca totalizadora. O mesmo se dá com as relações pessoais, e até mesmo algumas
de suas amizades mais íntimas acabam terminando dramaticamente (por exemplo, as
de Camus e Merleau-Ponty), assim que ele percebe que o prosseguimento da
relação irá interferir na concretização de suas metas. Ele comanda todas as
suas relações pessoais, inclusive as mais íntimas, de modo a nunca se dispersar
de sua decidida dedicação às preocupações centrais de sua vida. Exatamente por
essa razão, recusa-se a aceitar a responsabilidade e os encargos da vida de
família. Nega-se a ficar preso às condições do conforto burguês e procura
eliminar de sua vida pessoal o dinheiro e as posses.”
“Hoje em dia, penso que a filosofia é
dramática pela própria natureza. Foi-se a época de contemplação da imobilidade
das substâncias que são o que são, ou da revelação das leis subjacentes a uma
sucessão de fenômenos. A filosofia preocupa-se com o homem – que é ao mesmo tempo um agente e um ator, que cria e
representa seu drama enquanto vive as contradições de sua situação, até que se
fragmente sua individualidade, ou seus conflitos se resolvam.”
(Jean-Paul Sartre, “The Purposes
of Writing”, cit, p. 11-2.)
“A profundidade de qualquer conceito
específico, bem como o seu campo de irradiação, é determinada pela totalidade
de interconexões que o conceito pode evocar toda vez que aparece sozinho. A diferença
entre um pensador profundo e um pensador superficial é que aquele sempre
trabalha com toda uma malha de conceitos organicamente integrados, enquanto
este se satisfaz com expressões isoladas e definições unilaterais. Assim, o
primeiro estabelece conexões, mesmo quando tem de escolher contextos
específicos e traçar linhas de demarcação, enquanto o segundo deixa escapar até
mesmo as conexões mais óbvias, ao sacrificar a complexidade à precisão
analítica e à clareza unívoca da supersimplificação, em lugar da
sobredeterminação.
Consideremos brevemente o campo do conceito
de “invenção” de Sartre. Citamos anteriormente um dos contextos em que ele
sugere que “o leitor nos inventa: utiliza nossas palavras para armar para si
mesmo as próprias armadilhas”. Isso não é um paradoxo pelo paradoxo. Acentua a
firme crença de que “inventar” não é uma atividade soberana, levada a cabo a
uma distância segura, mas sim uma relação complexa de estar simultaneamente
dentro e fora, como o homem que se faz e se reinventa, estando, ao mesmo tempo,
de acordo com seus próprios projetos e a certa distância deles.”
A expressão “um futuro vedado ainda é um futuro” (que se tornou o modelo de
muitos dos paradoxos de Sartre, como “a recusa a engajar-se é uma forma de
engajamento” ou “deixar de escolher é por si só uma escolha”) pouco ou nada
significa, em si e por si. O que irradia vida dentro dessa tautologia formal
abstrata é o contexto (ou situação) em que está inserida. O subjetivismo da
concepção heideggeriana de temporalidade ajuda-o a negar o “futuro vedado” de
uma época dilacerada pela contradição inerente entre a necessidade de mudança e
a impossibilidade de revoluções. Contudo – e eis o que decide a questão –, se
as revoluções são ou não impossíveis é uma questão de temporalidade real que se está decidindo na arena sócio-histórica concreta. Assim, enquanto a
temporalidade abstrata de “um futuro vedado ainda é um futuro” nega a
temporalidade real da inércia social (determinada pelas condições
temporais-históricas de alienação e reificação), essa temporalidade
subjetivista da possibilidade abstrata também
está sendo negada pela possibilidade real
de revoluções concretas.”
“Escrever sobre alguém é conjugar duas
“temporalizações” sócio-históricas diferentes, mesmo que seja Lenin escrevendo
sobre Marx. Tal empreendimento parte da premissa de que o segundo é
significativo para o primeiro, contanto que o processo de investigação – que,
ao mesmo tempo, é também uma forma de autorreflexão esclarecedora – possa
servir como intermediário para o presente daqueles traços da temporalização
original que contribuem objetivamente para a solução de determinadas tarefas e
problemas. A reflexão sobre o passado só pode originar-se do significado que o
próprio presente oferece – bem dentro do espírito da “projeção” sartriana para
o futuro: ou seja, para a solução das tarefas atuais –, mas o ato mesmo de
reflexão, pelo fato de estabelecer determinadas relações com o passado, também
determina inevitavelmente sua própria orientação. Assim, a reflexão e a investigação
crítica tornam-se autorreflexão e autodefinição críticas. O significado do
presente é utilizado como uma chave para revelar o significado do passado que
conduz ao presente, o qual, por sua vez, revela dimensões anteriormente não
identificadas do presente que conduzem ao futuro, não sob a forma de
determinações mecânicas rígidas, mas como antecipações de objetivos vinculados
a um conjunto de motivações interiores. Desse modo, estamos envolvidos num
movimento dialético que conduz do presente para o passado e do passado para o
futuro. Nesse movimento, o passado não está em algum lugar lá, em sua remota finalidade e “clausura”, mas bem aqui, “aberto” e situado entre o
presente e o futuro, por mais paradoxal que isso possa parecer a quem pense em
termos da “ordem intelectual” da cronologia mecânica. Pois o fato é que o
presente não pode ter senão uma mediação entre ele próprio e o futuro: não o
vazio momento infinitesimal que o separa do que vem a seguir, mas sim a grande
riqueza e intensidade de um passado trazido à vida no tempo de exposição da
reflexão penetrante e do autoexame crítico.
Assim, a história não é simplesmente
inalterável, mas inesgotável. Isso é o que dá sentido à preocupação que se tem
com o passado e determina a necessidade de constantes reinterpretações. Nada
mais absurdo do que a ideia de “história definitiva”, de “tratamento
definitivo” deste ou daquele período, ou de uma “biografia definitiva” etc., a
qual teria como corolário a antecipação de um estágio em que, dada a acumulação
abundante de grande quantidade de coisas definitivas, não haverá mais
necessidade de reexame constante da história. Caso ocorresse esse tipo de “definitividade”,
não seria apenas o historiador que poria de lado sua atividade, mas o próprio
homem, que só pode ignorar ou rotinizar seu passado à custa da decapitação do
próprio futuro.”
“Na verdade, o único Deus relevante para a
história humana é feito à imagem do homem vivo tridimensional e, assim, os
dados dessa história decididamente não são equidistantes dele. Alguns são mais
significativos do que outros, e alguns são mais significativos a dada época do
que a outra. A objetividade da história não é a objetividade de um prego, muito
menos de uma pedra, pois “o homem não é um prego pensante”, como Sartre muitas
vezes nos lembra. A objetividade histórica é dinâmica e mutável, como o é a vida, não em si e por si – pois isso
ainda se poderia reduzir a um conjunto de leis naturais mais ou menos
simplificadas –, mas à medida que evolui, sobre uma base natural radicalmente
modificada pelo trabalho e pela autorreflexão, dentro da esfera social. A objetividade da própria busca é determinada pelas
condições de uma dada temporalidade, a qual, obviamente, implica antecipações e
avaliações de tendências futuras de desenvolvimento. Não obstante, em sua
objetividade dinâmica, toda pesquisa está sujeita a critérios de avaliação com
respeito tanto aos seus determinantes sociais (inclusive suas limitações)
quanto à natureza (realista ou de outro tipo) do que prevê.
Analogamente, dentro do próprio passado,
preocupamo-nos com temporalizações concatenadas e não com algum tipo de
retroprojeção arbitrária sobre uma tela vazia. Pois, embora o passado seja
inesgotável, por certo não é desprovido de caráter. Não pode ser simplesmente
moldado, de qualquer modo que se queira, de acordo com fantasia e capricho
arbitrários: o peso e a lógica interna de sua evidência estabelecem limites
objetivos a possíveis reinterpretações. O passado é inesgotável não em si e por
si, mas sim em virtude do fato de estar objetivamente vinculado ao futuro que
nunca está completado. À medida que o homem constrói a própria história, com
base em determinações temporais e estruturais – preservando-as e superando-as
–, certas características do passado, antes não visíveis, passam para o
primeiro plano. Eram invisíveis não porque as pessoas fossem cegas ou
enxergassem mal (embora, é claro, haja também inúmeros desses casos), mas
porque não existiam da mesma forma antes da articulação objetiva de relações determinadas. O solo tem certas
características, antes de se construir a casa sobre ele; em determinadas
condições (das quais a casa também é parte integrante), as trincas nas paredes
revelam, de maneira desagradável, que tais características eram de
assentamento. O futuro não inventa nem cria as características do passado, mas
as sistematiza no decorrer de sua própria autorrealização. Isso cria a
necessidade de reinterpretações constantes e, ao mesmo tempo, estabelece
limites objetivos que definem muito bem que curso elas devem tomar e até onde
podem ir.”
“Você tem um passado que não pode repudiar.
Mesmo que tente fazê-lo, jamais poderá repudiá-lo totalmente, porque ele é
parte de você mesmo tanto quanto seu esqueleto [...]. A longo prazo, você não
mudou muito, uma vez que não pode jamais pôr de lado a totalidade de sua
infância.”
(Sartre citando Isaac Deutscher em “A
Friend of the People”, cit., p. 293-5.)
“Evidentemente, no desenvolvimento de um
escritor, o fator essencial é a maneira como ele reage aos conflitos e mudanças
do mundo social em que está situado. Isso pode ser discriminado em dois
elementos básicos: sua própria constituição (estrutura de pensamento, caráter,
gostos, personalidade) e o grau relativo de dinamismo com que as forças sociais
de sua época se confrontam umas com as outras, arrastando-o de um modo ou de
outro para dentro de seus confrontos. Descrever os intercâmbios entre um
escritor e sua época em termos de “rupturas” é, na melhor das hipóteses,
extremamente ingênuo em ambos os casos, pois nem o desenvolvimento
sócio-histórico, nem o individual caracterizam-se apenas por “rompimentos”, mas
por uma configuração complexa de mudanças e continuidades. Em certas épocas
(como a Revolução Francesa) as descontinuidades estão em primeiro plano, e em
outras (como o período entre 1871 e 1905) predominam as continuidades. Mas há
sempre mudanças sob a superfície de continuidades, e algumas continuidades
básicas persistem, por mais radicais que sejam os rompimentos em determinadas
regiões (a Revolução Russa e as condições de produção agrícola por décadas a
partir de então, por exemplo).
Uma sociedade compõe-se de múltiplas camadas
de instrumentos e práticas sociais coexistentes, cada qual com seu ritmo
específico próprio de temporalidade: fato esse que acarreta implicações de
longo alcance para o desenvolvimento social como um todo. Esse é um problema da
maior importância que deve ser tratado em seu cenário adequado, ou seja, no
quadro de uma teoria de transformação e transição sociais. No presente
contexto, o que interessa é que, até na mesma esfera (produção material, por
exemplo), práticas que remontam à Idade da Pedra coexistem mais ou menos
prazerosamente com atividades que requerem as mais avançadas formas de
tecnologia. Isso não se limita de modo algum a sociedades como a Índia, onde a
agricultura primitiva de subsistência é, ironicamente, complementada pela
tecnologia da produção de armas nucleares. Podemos encontrar exemplos
semelhantes em nossas próprias sociedades (muito embora o peso relativo das
práticas sociais mais antigas seja, naturalmente, muito diferente na vida
econômica de nossa sociedade como um todo). Afinal, um Stradivarius numa linha
de montagem é uma contradição em termos. Os melhores cinzéis para escultores
são feitos hoje em dia por um velho ferreiro de Londres que trabalha com
ferramentas e técnicas de milhares de anos atrás; não obstante, ele é capaz de
humilhar as mais avançadas técnicas computadorizadas japonesas, alemãs e
norte-americanas de produção de cinzéis, temperando o aço de tal modo que este
associa, no mais perfeito grau, as qualidades de dureza e elasticidade que,
juntas, constituem o cinzel mais desejável, como afirmou o próprio Henry Moore.
Agora, se procurarmos pensar em todas as esferas sociais combinadas, com suas
múltiplas variedades, graus diversos de complexidade, fases de “desenvolvimento
desigual” (Marx) e diferenças naquilo que se poderia chamar de inércia
estrutural, bem como em suas interações, conflitos, entrechoques, e até mesmo
contradições antagônicas sob determinadas condições históricas, é óbvio que a
redução dessa impressionante complexidade à simplificação voluntarista (por
exemplo, stalinista) de “rupturas” imediatas que resultam num “rompimento
radical” com o passado, em que todos os problemas são causados pelo “inimigo”,
só poderá produzir dolorosas hérnias sociais que, para serem curadas, podem
levar gerações.
Mutatis mutandis, as mesmas considerações se
aplicam ao desenvolvimento do indivíduo. Por um lado, sua necessidade e sua
capacidade de mudar não coincidem necessariamente com o dinamismo (ou, se for o
caso, estagnação social) de sua época e podem ser gerados conflitos em ambas as
direções. (Isso é que produz o indivíduo “defasado” de sua época.) Além disso,
certas dimensões de seu ser complexo são estruturalmente
menos prontamente receptivas à mudança do que outras. O paladar, por exemplo:
em algumas culturas, comer pimenta constitui o deleite supremo; em outras, uma
forma de tortura. O problema que precisa ser explicado não é apenas a teimosa
persistência do paladar adquirido no indivíduo, mesmo quando se transfere para
uma cultura marcadamente diferente, mas também o fato de que os dois extremos
se formam a partir da base comum da experiência inicial de sugar o leite
materno. Ambos os problemas são explicáveis apenas por alguma configuração
específica de continuidade e descontinuidade, com a predominância relativa de
uma ou de outra – incomparavelmente mais quando levamos em conta a complexidade
global de uma “individualidade singular”. O modo pelo qual as diversas
dimensões se associam em um todo coerente (e, quando não o fazem, temos os
problemas de uma personalidade transtornada), a despeito das diferenças
estruturais e das tensões entre os respectivos ritmos temporais (pois,
felizmente, um homem não envelhece em bloco, uniformemente; se não fosse assim,
envelheceria na velocidade autoacelerada de uma bola de aço rolando por um
plano de forte declive), só pode ser compreendido mediante a dialética da
continuidade e descontinuidade.
A estrutura de pensamento de um indivíduo
forma-se em idade relativamente precoce, e todas as suas modificações
subsequentes, sejam elas grandes ou pequenas, só podem ser explicadas como
alterações da estrutura original, ainda que a distância transposta seja tão
grande quanto a que vai do leite materno à pimenta. No entanto, não podem ser
explicadas simplesmente como a “ruptura” da estrutura – a qual, em si e por si,
não é nada, e por isso não explica absolutamente nada: “ruptura” só tem sentido
como uma interação bem definida entre forças determinadas – ou como a invenção
de uma estrutura nova em folha, seja a partir do nada, seja mediante uma
transferência mecânica das determinações de uma época para a misteriosa tabula rasa (outro nome para nada) de
uma “individualidade” rupturalmente esvaziada (o que é uma contradição em
termos). A obra global de um intelectual apresenta muitas camadas de
transformações estruturais, que só são inteligíveis como preservações
substitutivas (ou substituições preservadoras), cada vez mais complexas, da
estrutura original.”
““A
questão é que sabemos que seremos julgados, e não pelos critérios que
utilizamos para julgar a nós mesmos. Há algo de terrível nesse
pensamento”*. Desse modo, há sempre algo de ameaçador,
de sinistro, de trágico no horizonte. Mesmo quando Sartre declara ter “sido
sempre um otimista, na verdade, demasiadamente otimista”, ele o faz juntamente
com alguns pronunciamentos metafísicos sombrios: “O Universo continua escuro. Somos animais sinistros”. E muito embora insista, nessa mesma entrevista, que a alienação, a
exploração e a fome são os males com que devemos nos preocupar porque “relegam
a segundo plano o mal metafísico”, este último continua ameaçadoramente fazendo
sua aparição, ao fundo, no “Universo escuro” sartriano”.
*: Robert Kanters, L’Express, 17 de setembro de 1959. / **: Entrevista a Jacqueline
Piatier, Le Monde, 18 de abril de 1964).”
““A unidade prodigiosa desta vida é sua intransigência na
busca do absoluto”, escreve Sartre a respeito de seu grande
amigo, Giacometti[200]. Não há melhor maneira de resumir o movimento e a
direção de sua própria obra global. Essa busca do absoluto não é algo
misterioso e transcendental. Ao contrário, é muito precisa e palpável.
Significa uma definição radical de um projeto fundamental do homem num sentido
que implica necessariamente ir até o limite, independentemente do que pareça
ser o limite para o indivíduo em questão, em qualquer um dos momentos no
decorrer de seu desenvolvimento.
Os heróis de Sartre – Mallarmé, Genet, Nizan,
Fucik, Giacometti, Hikmet e, na ficção, Julien Sorel – são homens que exploram
a própria condição até o limite. Analogamente, seus anti-heróis – entre os
quais Baudelaire e Flaubert – são os que se recusam a fazê-lo, condenando-se
assim às consequências de sua escolha fundamental: uma fuga no imaginário e a
aceitação da alienação. “O que me interessa em Flaubert é que ele se recusou a ir até o limite”[201], escreve Sartre, indicando claramente o sentido moral de seu
envolvimento dolorosamente prolongado no tema. Sartre opta por “ir até o
limite” e luta por isso com determinação e intransigência obstinadas,
insistindo que a questão é: “o que você fez da própria vida?”[202]. O sucesso
se mede pela capacidade de alguém em estabelecer “a conexão real com os outros, consigo mesmo e com a morte”[203], em oposição ao “mundo
seguro e estéril do inautêntico”[204], em que os homens são apanhados por “um
alvoroço de evasões de múltiplos
tentáculos flácidos”[205].
O que quer que se pense sobre o que Sartre
conseguiu realizar, ninguém pode acusá-lo de evasões. Explorar os limites,
independentemente das consequências: esta é a característica fundamental de sua
obra global. O caminho que trilhou, desde a subjetividade auto-orientada até a
individualidade problemática do “universal singular”, passa por territórios
plenos de dilemas explosivos que ele descreve da forma mais paradoxal. “Há uma
moralidade da política – tema difícil, jamais tratado com clareza – e, quando a
política tem de trair sua moralidade, escolher a moralidade é trair a política.
Encontre sua saída disso! Particularmente quando a política assumiu como meta
realizar o reino do humano.”[206] Grande parte de toda a obra de Sartre é gasta
na identificação desse tipo de dilemas e paradoxos, mesmo quando ele não pode
apresentar soluções para eles. Pois, ainda uma vez, a natureza mais profunda
desses dilemas e paradoxos é que encarar os limites é a condição básica de sua
identificação e possível solução. A busca apaixonada dos limites, por parte de
Sartre, é que determina a continuidade fundamental de sua obra global através
de todas as suas transformações.”
[201] Entrevista a Michel-Antoine Burnier,
cit., p. 99. / [202] Jean-Paul Sartre, “La question” (1965), Théâtre Vivant,
setembro de 1965. / [203] Prefácio para Portrait of a Man Unknown, de
Nathalie Sarraute (1948), traduzido por Maria Jolas, em Situations,
cit., p. 139. / [204] Ibidem, p. 141. / [205] Ibidem, p. 139. / [206] Jean-Paul
Sartre, “Merleau-Ponty” (1961), em Situations, cit., p. 185.
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