Editora: Casa Amarela
ISBN:
978-85-8682-147-9
Opinião:
★★★☆☆
Páginas:
1152
“Em
vez de buscarem pontos de discordância, os cristãos e os marxistas deveriam
buscar consensos, pontos consensuais e de síntese que permitiriam um combate
mais acirrado contra o capitalismo, o latifúndio e o imperialismo.”
“Até agora, os Estados políticos mais
não têm sido do que a continuação do regime de conquista que presidiu ao
estabelecimento da autoridade e à opressão das massas. O que sempre tem
existido é a autoridade encarregada de manter as populações no respeito da lei
estabelecida em benefícios de alguns. Essa autoridade pode ser mais ou menos
rígida, mais ou menos arbitrárias, mas isso não altera a base das relações
econômicas e os trabalhadores continuam sempre na dependência dos detentores do
capital.
Para
ser definitiva, a revolução que se avizinha não deve limitar-se a unia simples
mudança do rótulo governamental e a algumas reformas de detalhe. A sociedade
não pode continuar a deixar a riqueza pública à disposição dos privilégios
arbitrários do nascimento ou do êxito. Produto do trabalho coletivo, a riqueza
pública só pode ser empregada em proveito da coletividade. Mas essa riqueza
social só pode assegurar o bem-estar da humanidade se estiver nas mãos do
trabalho.” (Louis-Eugène Varlin)
“A subjetividade (a intersubjetividade,
pela natureza social, comunitária e política do ser humano) é a base da
personalidade. A pessoa é naturalmente comunitária, cooperativa e política.
Lèvinas apontou corretamente que a subjetividade é intersubjetividade. Por
isso, estruturas comunitárias são estruturas cooperativas, combinando o
controle do trabalhador sobre os bens e o domínio eminente das comunidades. A
sociedade deve ser formada por diversas comunidades interligadas, sob o
controle dos membros. Ninguém nasceu para viver sozinho e sim destinado a viver
em comunhão, com Deus e com a humanidade. A libertação é social e pessoal.
A
Igreja defende uma forma social onde sejam respeitados a subjetividade, os
direitos humanos fundamentais, a liberdade, a pessoa, o trabalho (a atividade
da pessoa), a sociedade, etc. A subjetividade é a base da liberdade, da
autodeterminação, do primado do sujeito. A Igreja defende, assim, o controle
social e popular, a participação, a afirmação da pessoa como sujeito e não como
objeto (por isso, defende a difusão das relações cooperativas e o planejamento
participativo). Defende, ainda, a cidadania (os direitos humanos), a mediania,
a igualdade social. (...)
Segundo
Michael Löwy, no livro A guerra dos
deuses (Ed. Vozes, 2000, p. 173), o leitmotiv
(a ideia fundamental) da teologia da libertação é a auto-emancipação dos
pobres, “o topos principal da
teologia da libertação”. Lowy transcreve a homilia de dom Oscar Romero: “a
libertação só chegará quando os Pobres forem os donos e os protagonistas de sua
própria luta e libertação”. Os donos e protagonistas significa quando tiverem o
controle sobre suas próprias vidas, sobre as relações sociais, as condições
sociais, a sociedade em que vivem.
A
teologia da libertação, segundo Enrique Dussel, tem como núcleo maior as frases
ditas por Cristo, em Nazaré, ao anunciar a missão: libertar os oprimidos,
assegurar a todos a libertação, a liberdade.”
“Liberdade
é agir de acordo com nossa natureza, que é intelectual (e também comunitária,
social, política, afetiva, fraterna, boa, instintiva e afetiva). Daí a
importância da frase “conhecereis a verdade e esta vos libertará”. Agir de
acordo com a natureza é agir de acordo com a razão, com a inteligência, com o
direito, com a ética, com base em boas ideias comunitárias. Como escreveu São
Tomás, agir segundo a razão (logo, com a verdade, pois a verdade é a adequação
das ideias com a realidade) é agir virtuosamente, com virtude. E agir assim é a
fonte fundamental de felicidade, de alegria, como demonstrou São Francisco de
Assis, Santa Terezinha do Menino Jesus ou São Filipe de Néri.
Liberdade
é controlar-se a si mesmo, ordenando os instintos, os afetos e as paixões, em
planos participativos (comunitários, sociais), de comunhão e amor. Ordenar não
é desprezar os sentimentos, como defendiam os estoicos e os kantianos. A pessoa
é formada de tal forma que há uma estrutura organizada (harmonia
preestabelecida, cf. Leibniz), em que nossos melhores instintos e sentimentos
movimentam-se em consonância com nossas melhores ideias.”
“Vejamos
uma pequena coletânea de textos de Santos Padres (sendo muitos Doutores da
Igreja) sobre a comunhão ou bem comum:
Doutrina
dos Doze Apóstolos, 1, 5:
“A quem te pedir, dá e não exijas restituição; pois o Pai quer que todos
participem de seus bens”.
Doutrina
dos Doze Apóstolos, IV, 7-8: “Não enxotarás o pobre, mas participarás de todas as coisas com o teu
irmão, e não dirás que são coisas tuas; de fato, se participais em comum dos
bens eternos, com mais razão deveis fazê-lo com os que passam”.
Clemente
de Alexandria na obra O Pedagogo II,
12: “Deus fez todas
as coisas para todos; portanto, todas as coisas são comuns. Deus nos deu
somente o uso das coisas. É injusto, pois, que uns vivam luxuosamente, enquanto
os demais são pobres”.
São
Crisóstomo na obra Omelie, passim: “Deus, no início, não fez uns
ricos e outros pobres, mas deu a todos a mesma terra. (...) E então os frutos
da terra devem ser comuns a todos. As palavras ‘meu’ e ‘teu’ são motivo de
discórdia. A comunhão é muito mais conveniente à ordem natural do que a propriedade.
(...)
São
Basílio na obra O rico insensato:
E
o que não veste quem está nu quando pode fazê-lo, merece por acaso outro nome?
O pão que guardas para ti é do faminto, o manto que conservas no guarda-roupa é
do despido, os sapatos que apodrecem em tua casa são do descalço, o dinheiro
que escondes embaixo da terra é do necessitado.
São
Justino Mártir na obra A Primeira
Apologia, XIV: “Nós,
que outrora amávamos e procurávamos o outro e a propriedade, agora colocamos
tudo em comum”.
Hermas,
na obra O pastor: faz o bem, e aquilo que Deus te dá
pelos teus esforços dá aos pobres com simplicidade, sem ficar indeciso a quem
dar ou a quem não dar. Dá a todos, pois a todos Deus quer que se dê os seus
bens”.
São
Gregório de Nissa na obra Omélia: “Quem tem demais não é irmão e,
sim, ladrão”. “Quem importa que o rico faça um pouco de esmola: esse dinheiro custa as lágrimas de cem
pobres”.
Santo
Ambrósio na obra A história de Nabot de
Jezrael: “Mais do
que o próprio, os ricos comem o pão dos outros, habituados que estão a viver de
rapina e a sustentar as próprias despesas com fraudes”.
São
João Crisóstomo na obra Omelie. “Meu e teu não são senão palavras”.
“Não
ajudar os pobres é roubar, o que possuímos não nos pertence, mas a todos”.
Esses
são dos primeiros anos do cristianismo, bem próximos de Cristo e exprimem as
ideias da Tradição da Igreja conectadas com as ideias bíblicas.
Valdir
Gambin, no livro Ensino social da Igreja
e o destino comum dos bens (Ed. Voz Petrópolis, 1992, pp. 13-17), apresenta
uma excelente coletânea de textos de Santos da Igreja sobre a questão social:
Teodoreto
de Cirro, no Ensino sobre a Providência,
diz: “E assim que os que vivem como malvados em razão de sua riqueza contraem
as sobrancelhas, incham as bochechas, montam sobre seus cavalos com os quais
varrem a praça. Desprezam os outros na mesma medida que merecem ser
desprezados, cometem iniquidades, mostram-se, ávidos de possuir cada vez mais,
apropriam-se do que não lhes pertence, cobiçam o que não têm, arrebatam os bens
do seu próximo, desfrutam a vida à custa dos bens alheios, traficam com a
desgraça dos pobres e fazem isso apoiados na força e no poder da riqueza”.
Com
ironia, Clemente de Alexandria no ensino O
Pedagogo, diz: “Por outro lado, é uma coisa totalmente estúpida e digna de
zombaria o fato de haver homens que usam urinóis de prata e latrinas de vidro:
e as mulheres, tão ricas como loucas, mandam fazer recipientes de prata para seus
excrementos, como se esse pessoal rico até para defecar precisasse fazer de uma
forma orgulhosa. Suplico a Deus que eu sempre tenha ao ouro o apreço que tenho
ao lixo.
Santo
Astério de Amasséia, no Ensino sobre o
rico e Lázaro diz. “Aquele que não se compadece nem se comove diante da
fome e da enfermidade de seu próximo é um animal irracional, que não tem o direito
de ter aspecto de homem, pois contradiz ou desmente sua natureza.
São
Gregório de Visa diz: “Se alguém pretende apoderar-se de tudo e a negar a seus
irmãos a terça ou a quinta parte, tal pessoa é um tirano duríssimo, bárbaro
impecável, fera saciável, que deseja o banquete só para si, é mais feroz que as
próprias feras”.
Comentando
o Evangelho de São Mateus, São João Crisóstomo diz: (...) são os que possuem campos
e tiram sua riqueza da terra. Pode haver alguém mais iníquo do que estes homens?
Se analisarmos como tratam os míseros e esforçados lavradores, concluiremos que
são mais cruéis que os bárbaros. Impõem exigências contínuas e insuportáveis
aos que estão consumidos pela fome e passam a vida trabalhando, sendo obrigados
a suportar os mais penosos trabalhos. Seus corpos se assemelham aos dos asnos
ou burros ou, melhor dizendo, são como se fossem pedra, pois não lhes concedem
sequer um momento para respirar. Que a terra
produza ou não, são oprimidos da mesma forma, nada lhes sendo perdoado”.
4. Os mecanismos de exploração
para os Santos Padres
Os
Santos Padres tinham consciência de que a sociedade do seu tempo era injusta e
desigual. Para eles a riqueza e a pobreza não são frutos do acaso. Os ricos
acumulam riquezas por mecanismos bem conhecidos.
Em
primeiro lugar, destaca-se a usura que possibilita a expropriação do patrimônio
alheio. Por trás de um alívio passageiro, os pobres descobrem que os juros se
reproduzem à custa de seu patrimônio e aumentam o capital do avarento. Como
exemplo citamos o ensino de São Basílio na homilia sobre o Salmo 14: “Não se
junte com uma fera tão fecunda. As coelhas acabam de parir e ficam prenhes logo
a seguir. É dessa forma que os usuários veem o dinheiro: produz e se multiplica
ao mesmo tempo. Tão logo você toma o empréstimo e já lhe cobram os juros deste
mês. Esse empréstimo gera, por sua vez, outro mal que gera outro e assim até o
infinito. (...) Usura sobre usura é prole má de maus pais. Essas crias de juros
devem se chamar filhotes de serpentes. Dizem que durante a gestação as
serpentes devoram o ventre de sua mãe. O mesmo se dá com os juros que, apenas
nascidos, começam a corroer e a consumir o patrimônio do devedor. (...) Os
animais perdem sua força geradora quando suas crias chegam à maturidade, mas a
usura, os juros e o capital não param de se reproduzir: Livre-se, pois, do
perigo desta besta monstruosa”.
O
segundo mecanismo de espoliação e acumulação da riqueza, para os Santos Padres,
é a exploração do trabalho. É pelo trabalho do pobre que o rico fica cada vez
mais rico.
Santo
Ambrósio, no livro sobre Nabot e Jezrael ensina: “São os pobres que escavam o
ouro que depois lhes é negado. Padecem fadigas para procurar e descobrir o que
depois jamais poderão possuir”. São João Crisóstomo, na Homilia sobre o Evangelho
de São Mateus, diz: “Que espetáculo
miserável! Depois de trabalharem durante todo o inverno, depois do gelo, das
chuvas e das vigílias, têm que se retirar com as mãos vazias e, ainda por cima,
cheios de dívidas. Quem poderá descrever os negócios que se fazem com eles, os
tráficos vilipendiosos a que são submetidos, enquanto seus amos enchem lagares
e celeiros à custa do trabalho daqueles infelizes, não lhes sendo consentido
levar para casa nem uma parte ínfima”.
O
terceiro mecanismo de acumulação de riquezas, para os Santos Padres, é o
comércio.
Santo
Ambrósio, no livro sobre Nabot e Jezrael, diz: “O avarento se sente arruinado
pela abundância das colheitas, ao considerar o baixo preço dos alimentos. A
fecundidade é um bem para todos, mas a má colheita só é vantajosa para o
avarento. Sente maior prazer com o preço elevado do que com a abundância de
produtos e prefere que só ele tenha algo para vender a todos. O rico reclama só
para si o produto das terras, não porque deseja usá-lo, mas para negá-lo aos
outros”.
São
Zenão de Verona, no Terceiro Tratado
sobre a justiça, diz: “Por causa da avareza os celeiros de uns poucos estão
cheios de trigo e o estômago de muitos, vazio; por causa dela, a elevação dos
preços é pior do que a falta de produtos. Através dela surgem a fraude, a rapina,
as discussões e a guerra. A avareza procura os lucros à custa dos gemidos
alheios. Ela converte o confisco das bens em indústria”.
5. Os santos padres de da
propriedade privada
Para
os Santos Padres, a ideia de que a propriedade privada existe desde sempre não
é verdadeira. Esta não é adequada à condição humana. Para eles, o regime de
propriedade privada não permite que se cumpra a função social dos bens. Vamos a
alguns exemplos:
Tertuliano,
no livro sobre a Paciência, diz: “A
avareza não consiste tanto na concupiscência do alheio. O que parece que é
nosso é alheio, pois nada é nosso, porque todas as coisas são de Deus, a quem
também nós pertencemos”.
Lactâncio,
nas Instituições Divinas, falando dos
primeiros cristãos, diz: “Contentando-se com pouco, preferiam religiosamente,
como narra Ciro, o que é próprio da nossa religião. Não era lícito demarcar o
campo. Possuíam tudo em comum. Com efeito, Deus entregou a terra
indistintamente a todos os homens, a fim de que desfrutem de todos os bens que
produzem em abundância Não a entregou para que cada um, com avareza furiosa,
reivindique tudo para si nem para que alguém se veja privado do que a terra
produz para todos”. (...)
São
Cirilo de Alexandria, no Comentário ao
Evangelho de Mateus, diz: “E não nos apoderemos do que foi dado para o
proveito comum de nossos irmãos, pois tornaríamos a riqueza iníqua pelo fato de
retê-la, sendo, como é, coisa alheia. E é coisa alheia primeiro porque pertence
realmente aos pobres. O ato de enriquecer é coisa totalmente alheia a todo
homem.
6. Não somos donos, mas
administradores.
Desde
o início do cristianismo se difundiu o ensinamento de que os bens são
considerados dons de Deus. Com isso, se reconhecia que os bens são dados
gratuitamente por Deus e também Deus é único dono. A partir dessa verdade os
Santos Padres ensinavam a partilha gratuita do que foi recebido de Deus e a
tarefa de administrar os bens em nome de Deus, em favor do próximo. Essa é uma
verdade fundamental na pregação dos Santos Padres. Citemos alguns exemplos:
Santo
Astério de Amasséia, na Homilia sobre o
administrador infiel, diz: “É uma ideia pensar que o que temos para usar
durante a vida, possuímo-lo como donos e senhores. Porque pensamos assim,
lutamos ardentemente por essas coisas, fazemos guerra entre nós, recorremos aos
tribunais e, como se se tratasse de bens fundamentais, abraçamo-nos a eles com
toda força”.
São
João Crisóstomo, na Homilia sobre a
Primeira epístola aos tessalonicenses, ensina: “Isso não é verdadeira
possessão e propriedade; destina-se apenas ao uso. Como falar de propriedade
se, uma vez tendo expirado, queira você ou não, outros se apoderarão de todos
os seus bens? Eles, por sua vez, os doarão a outros, e estes a outros. Todos
nós somos estrangeiros (...) A propriedade não passa de um nome. Na realidade,
somos todos donos de bens alheios”.
Falando
ao povo de Antioquia, diz: “Não me digam que vocês passaram anos e anos
acumulando fortuna, que possuem milhares de talentos de ouro e que seus lucros
têm aumentando dia após dia. Tudo que vocês disserem sobre esse assunto será
mera questão de palavra (...) As Escrituras estão repletas de textos que
ensinam isto. O rico de hoje, amanhã é pobre. Daí, que, muitas vezes, tenho
achado graça, ao ler em certos testamentos: Deixo para fulano minha casa e
minhas casas e para o outro o usufruto”. A verdade é que todos nos temos
somente o usufruto e ninguém possui nada.
7. Destino comum dos bens
Seguindo
a ideia de que não somos donos, mas administradores dos bens, os Santos Padres
ensinam que os bens têm um destino comum. Daí a orientação de que a posse dos
bens deve ser comum. Os Santos Padres não apontam formas concretas de
propriedade coletiva ou socializada, mas seu ensinamento aponta nessa direção.
Vamos a alguns textos:
São
Clemente de Alexandria, no texto O
pedagogo, ensina: “Logo, tudo é comum e não pretendam os ricos possuir mais
do que os outros. Portanto, aquela afirmação de que “tenho de sobra, por que
não hei de desfrutar?”, não é humana nem própria da comunhão de bens. (...) Sei
muito bem que Deus deu a faculdade do uso, mas apenas dentro dos limites do
necessário e quis que o uso fosse comum. É um absurdo que apenas um viva entre
as delícias, enquanto os outros se acham na miséria”.
São
Gregário de Nissa, no escrito Sobre o
Eclesiastes, diz: “Meu e teu, palavras funestas, não tinham o mínimo
sentido nos primórdios da vida. Como são comuns o sol e o ar, e tudo o que vem
de Deus é graça e bênção comum, assim, do mesmo modo, oferecia-se voluntariamente
a qualquer um a participação do bem e não se conhecia a paixão da avareza”.
São
João Crisóstomo, na Homilia sobre a
Primeira epístola a Timóteo, afirma: No início Deus não criou um pobre e
outro rico, nem mostrou a um grandes tesouros e privou a outro deste achado.
Deus pôs a mesma terra diante de todos. Como, pois, sendo comum, vocês possuem
grandes vastidões e o outro não tem nem sequer um torrão?”
Santo
Ambrósio, falando dos deveres dos
ministros, diz: Julgaram os filósofos pagãos como forma de justiça que o
bem público pertencia ao público e o bem privado ao cidadão particular. Isso,
sem dúvida, não está de conformidade com a natureza, porque esta deu a todos
todas as coisas em comum. Deus dispôs a criação de tal forma que tudo
constituísse alimento comum para todos e a terra pertencesse a todos em comum.
A natureza engendrou, pois, o direito comum e a usurpação fez o direito privado”.
Santo
Agostinho, no seu Comentário sobre os
Salmos, diz: “Muitos não dão lugar ao Senhor. Procuram e amam o seu, ficam
satisfeitos com o seu poder. Quem quiser dar lugar ao Senhor deve se alegrar
não no privado, mas no comum. Os primeiros cristãos transformaram em comuns
seus bens privados (...) Por isso, bem-aventurados os que dão lugar ao Senhor,
de modo a não se alegrar por sua propriedade privada”.”
“O
frade franciscano Olírio Plínio Colombo, no livro A doutrina de Santo Ambrósio sobre o uso dos bens temporais (Editora
Sulina, Porto Alegre RS, 1974, pp. 100-108), demonstra que a concepção
histórica de Karl Marx sobre o comunismo primitivo era inspirada nos Santos
Padres. E que o cristianismo primitivo foi principal fonte do movimento
socialista: (...)
“No oriente, Gregário Nazianzeno (330-390) também utiliza
o mito supracitado. Esse autor acha não ser intenção de Deus que o homem
dominasse seu irmão. Para Gregário Nazianzeno, de fato, antes do pecado não
havia nem escravo nem senhor. Somente quando entrou a “pleonexia” (avareza),
que destruiu a harmonia da natureza e criou leis para proteger a injustiça e a
opressão é que desapareceu a igualdade primitiva. Somente depois do pecado é
que apareceram os governantes.” (...)
“Para Ambrósio, as abelhas constituem um exemplo de
república perfeita. Aí tudo é comum: trabalho, habitação, alimentos e
responsabilidade. Todavia, existe a máxima ordem e eficiência. Os peixes também
não têm limites prescritos, nem leis e nem chefes. São governados pela lei da natureza.
A república dos grús é descrita com uma finalidade clara; a responsabilidade e
a liberdade seriam as bases mais vantajosas para um Estado. Onde há
responsabilidade, a doação é maior e mais profunda e a realização do indivíduo
é mais completa. Na república dos grús não existem leis, chefes e coerções, mas
serviço voluntário.
Porém,
o que mais nos interessa é a descrição que Ambrósio fazia, num sermão
pronunciado em 387, da república primitiva dos homens. Aí os homens viviam em
liberdade e igualdade. O poder estava dividido entre todos e não havia inveja
nem opressão.
“Ninguém sabia exigir do companheiro de
natureza os obséquios da escravidão”.
“Hic erat pulcherrimus renum status...”,
exclama Ambrósio. Certo dia entrou a “libido
dominandi” (sede de poder) e o homem começou a usurpar e assegurar-se
poderes indevidos e não mais aceitou desfazer-se dos mesmos. Assim o poder não
era mais ordem e não estava mais endereçado ao bem comum. O trabalho tomou-se
escravidão e, por isso, surgiu a negligência. (...)
Na
prática Ambrósio, como os outros padres supracitados, aceitou a autoridade
civil como qualquer bom cidadão. Somente que, como bispo, nunca se conformou
com as injustiças cometidas pela autoridade política. Sempre afirmava que essa
autoridade estava para servir e não para enriquecer e, por isso, os governantes
deviam estar isentos de avareza. O poder, para Ambrósio, tem sua origem com o
pecado e, por isso, é perigoso. Em muitos casos é acompanhado da vontade de
dominar e de escravizar os mais fracos. (...)
Uma das características, talvez a
mais importante, do Século do Ouro era a comunidade de bens. Isso já vimos
quando expusemos esse mito na cultura clássica. Agora veremos como os Padres da
Igreja concluíram pela comunidade de bens nessa era mítica. (...)
Também
outros padres, embora mais vagamente, indicam a possibilidade de uma comunidade
de bens primitiva. É o caso de Basílio. Ele supõe que os mais fortes, em
determinado momento da história, apoderaram-se dos bens temporais. Agora não
permitem aos pobres o uso desses bens, que, segundo a intenção de Deus, estão
destinados ao uso comum de todos. É ainda o caso de S. Jerônimo (344-420),
quando afirma:
“Dives aut iniquus aut iniqui baeres”.
Também
João Crisóstomo (344-407) parece ver no sistema da propriedade um defeito
inicial.
Mas
é de Ambrósio que devemos falar. (...) Depois de, no seu De Officiis, ter falado que conforme à natureza tudo devia ser
comum, ele afirma: “Quem não desejaria possuir esta virtude (a justiça) no seu
mais alto grau se a primeira avareza não tivesse diminuído e enfraquecido sua
força? Porque pelo desejo de aumentar nossas riquezas, acumular dinheiro,
estender nossas propriedades..., perdemos a justiça. (...)
Os
padres da Igreja perceberam esse problema. Além daquilo que já vimos no parágrafo
anterior é necessário acrescentar ainda Clemente de Alexandria que também
afirma que, conforme à natureza, a propriedade é injusta.
Santo
Agostinho justifica a propriedade e, logo, o direito das nações. Isso, em
virtude do pecado, o que revela uma solução de emergência.
Mais
tarde Isidoro de Sevilha (entre o VI e VII século) repetia que conforme o
direito natural tudo devia ser comum. E no século XII um monge camaldulense de
nome Graciano, o qual reuniu todas as leis eclesiásticas do tempo num único compêndio,
o famoso Decretum Gratiani, repropõe
as mesmas ideias. Identificando o direito natural com o Sermão da Montanha ele
fala da comunidade de bens como algo conforme à natureza. (...)
Importante
é que Ambrósio, ao escrever a famosa passagem do De Officiis, tem diante de si o texto de Cícero, segundo o qual a
propriedade é lícita em virtude do direito das nações. Cícero dizia:
“Pela
natureza não existem bens privados; a propriedade inicia ou pela primeira
ocupação como o caso daqueles que chegaram (por primeiro) a um país deserto; ou
pela vitória como os que se apoderaram de algo pela guerra; ou pela lei,
convenção, cláusula, sorte”.
Ambrósio
não está de acordo. A propriedade, o direito das nações são frutos da avareza,
da usurpação e do pecado. Segundo a natureza e a vontade de Deus tudo devia ser
comum. Ambrósio assim se manifesta em várias ocasiões. Apresentamos dois textos
principais para que o leitor possa perceber melhor aquilo que pretendemos
dizer. O primeiro provém do seu De
Officiis Ministrorum, escrito em 386 e endereçado a seu clero, onde ele
contradiz Cícero. O segundo provém de seu Comentário ao Salmo 118 e foi
pronunciado, provavelmente, num sermão dominical em 389. Vejamos os textos.
De Officiis Ministr 1,132.
“Os
filósofos (Ambrósio se refere a Cícero) creram que a justiça consistiria em
considerar as coisas públicas como públicas e as privadas como privadas. Mas
também esse princípio não é segundo a natureza A natureza, na verdade, doou a
todos seus dons; isso porque Deus ordenou que tudo fosse produzido para o comum
benefício de todos e que a terra fosse, de certa maneira, posse de todos. A
natureza, portanto, gerou o direito comum, a usurpação fez o direito privado”.
Expos ps CXVIII 8,22;
“O
Senhor nosso Deus quis que esta terra fosse posse comum de todos os homens e
que seus frutos fossem ministrados a todos, mas a avareza distribuiu os
direitos de propriedade. Justo é, portanto que, se te atribuis algo como
próprio daquilo que fora destinado para o uso comum de todo o gênero humano (...)
pelo menos, com tais bens privados faças esmolas aos pobres, diante dos quais,
tens obrigações de consórcio (...)”.”
“No
livro Basílio de Cesaréia (Paulus, São
Paulo, 1999, pp. 26-37) há textos de São Basílio ensinando que o direito de
propriedade (dos bens), previsto pela Igreja, refere-se apenas a uma quantidade
(o controle desses bens), cuja medida é a necessidade de cada um para uma vida
digna. (...)
Vejamos
o texto de São Basílio:
A generosidade de Deus
Eis
quanto provém de Deus: fertilidade do solo, condições atmosféricas propícias,
abundância das sementes, a ajuda dos bois e outros elementos que contribuem
para o incremento da agricultura. E da parte do homem? Dureza de coração,
misantropia e avareza: é dessa maneira que o homem agradece ao próprio
benfeitor. Não se recordou da comunhão de natureza, não pensou que precisava
dividir o supérfluo entre os indigentes, não levou em conta o mandamento: “Não
negues um benefício ao necessitado” (Pr 3,27). “A caridade e a confiança não te
abandonem” (Pr 3,3). “Reparte o pão com o faminto” (Is 58,7). Permaneceu surdo
ao grito de todos os profetas e de todos os mestres. (p. 26). (...)
O homem é administrador dos dons
divinos
Reconhece,
ó homem, o teu doador. Recorda-te de ti mesmo: quem sou, que coisa administra,
de quem recebeste, porque foste preferido entre muitos. És servidor da bondade
de Deus, administrador dos teus companheiros de servidão. Não creias que tudo
seja destinado a teu ventre. Considera os bens que estão nas tuas mãos como
coisa de outros: por breve tempo alegram-te, depois deslizam e desaparecem
rapidamente; deles deverás prestar contas pormenorizadas.
Embora
tenhas tudo bem fechado com portas trancadas, amarrado e selado, todavia as
preocupações te impedem o sono. Ruminas dentro de ti, estulto conselheiro de ti
mesmo: “Que farei?”. Seria, ao invés, ocasião de dizer: saciarei quem tem fome,
abrirei meus celeiros e chamarei todos os indigentes. Imitarei o benéfico edito
de José: “Quantos não tenham pão, vinde a mim, tome cada um o suficiente do dom
concedido por Deus, como de uma fonte comum” (Gn 47,13-26).
Por
que não és assim também tu? Tens medo de que outros tirem proveito desses bens
e, ruminando na alma sentimentos maus, meditas, não tanto como distribuir a
cada um segundo a necessidade, mas como ajuntar ainda mais bens e tirar de
todos os proventos para ti.
Já
haviam chegado aqueles que lhe pediriam a alma (cf. Lc 12,20) e ele confabulava
consigo sobre alimentação; naquela mesma noite o levariam deste mundo (cf. Lc
12,20) e ele fantasiava gozar ainda por muitos anos. Foi-lhe deixado desejar
tudo, expressar seu pensamento, para que seu propósito sofresse a sentença que
merecia. (p. 26-28).
Participação dos bens privados
“O
que faço de errado, diz ele, guardando o que é meu?”
Dize-me,
de que modo é teu? Donde tiraste, tomando-o para teu sustento? É como alguém
que, indo ao teatro, se apoderasse do espetáculo e quisesse excluir os que
entrassem depois, pretendendo ser só seu aquilo que é comum a todos os que se
apresentam, conforme lhes parece bem. Assim são os ricos. Por se haverem
apoderado do que é comum, tomam posse dele a dado de ocupação primeira. Se
alguém se apoderasse apenas do suficiente para satisfazer suas necessidades e
deixasse o supérfluo para os necessitados, ninguém seria rico, mas também
ninguém seria pobre. Não saíste nu do útero e não retornarás nu para a terra? (Jó
1,21) Os bens que possuis, de onde vêm? Se dizes que provêm do acaso, és ímpio,
não reconhecendo o Criador e não dando graças ao doador. Se, ao invés, admites
que são de Deus, dize-me por que os recebeste. É talvez injusto Deus, que nos
distribui os meios de subsistência de modo desigual? Por que tu és rico e
aquele é pobre? Certamente para que tu pudesses receber a recompensa da bondade
da fiel administração e aquele pudesse conseguir o magnífico prêmio da
paciência. E tu, enquanto procuras abarcar tudo nos insaciáveis ventres da avareza,
julgas não fazer injustiça a ninguém, privando tanta gente do necessário? Quem
é o avarento? Aquele que não se contenta com aquilo que lhe é suficiente. Quem
é o ladrão? Quem tira aquilo que é de outro. Não és avaro? Não és ladrão, tu
que fazes tua a propriedade que recebeste para administrar? Quem espolia alguém
que está vestido é tido como ladrão; e quem, podendo fazê-lo, não reveste quem
está nu merecerá outro nome? O pão que tu reténs pertence ao faminto, o manto
que guardas no armário é de quem está nu; os sapatos que apodrecem em tua casa
pertencem ao descalço; o dinheiro que tens enterrado é do necessitado. Porque
tantos são aqueles aos quais fazes injustiças, quanto aqueles que poderias
socorrer.
Juízo de Deus
“Belas
palavras”, dirás, “mas o ouro é ainda mais belo!” (...) De que modo te porei
sob os olhos os sofrimentos do pobre, para que te convenças com quantos gemidos
acumulas riquezas? Como te parecerá justa, no dia do juízo, esta bela frase:
“Vinde, benditos de meu Pai, tomai posse do Reino preparado para vós desde a
criação do mundo: porque tiveste fome e me destes de comer, tive sede e me
destes de beber, estava nu e me vestistes” (Mt 25, 34-36).
Quanto
terror para ti, quanto suor! Quais trevas te envolverão, se ouvires a
condenação: “Afastai-vos de mim, malditos, nas trevas exteriores, preparadas
para o Diabo e para os seus anjos: porque tive fome e não me destes de comer,
tive sede e não me destes de beber, estive nu e não me vestiste (Mt 25,
41-42.30). Naquele momento não é julgado o ladrão, mas é condenado o egoísta.
Disse
tudo quanto julgo útil. Se me deres razão, e evidente que, segundo as
promessas, te são reservados tais bens; se, ao contrário, ignorai-os, está
escrita para ti a condenação, que te desejo não experimentá-la, para que tuas
riquezas te sejam preço de resgate e tu estejas seguro de alcançar os bens
celestes, por graça daquele que nos chamou todos ao seu Reino. A ele a glória e
o poder pelos séculos dos séculos. Amém” (pp., 35-37).”
“No
documento “Igreja e problemas da terra”, aprovado na 18ª Assembleia da CNBB, em
14 de fevereiro de 1980, há a mesma ideia:
1. A terra é um dom de Deus a
todos os homens
(...)
58.
A Igreja, na sua doutrina social, tratou muitas vezes do problema da
propriedade e, explicitamente, da propriedade da terra.
59.
Essa doutrina, a Igreja não a formulou apenas em resposta aos desafios que o
problema levanta em nossa sociedade, mas também em consonância com uma longa
tradição que tem suas raízes na Bíblia, na mensagem de Jesus, no pensamento dos
Santos Padres e Doutores. Com amor e fidelidade, ela meditou nestes textos e
deles soube extrair as suas implicações sociais para a sociedade em que
vivemos. (...)
62.
Formulando hoje sua doutrina social, a Igreja conserva a lembrança das severas
advertências dos Profetas de Israel, que denunciavam a iniquidade dos que
usavam a terra como instrumento de espoliação e opressão dos pobres e dos
humildes. Não se esquece do desígnio de Deus de que a terra devia ser o suporte
material da vida de uma comunidade fraterna e serviçal.
63.
Mas é especialmente nos ensinamentos de Jesus que ela vai procurar as fontes de
sua doutrina social.
64.
Jesus, o Filho de Deus, inaugura a Nova Aliança e constitui o novo Povo de Deus
e a nova fraternidade pela participação em sua vida divina. Ele nos reconcilia
com o Pai, realiza a libertação total da escravidão do pecado e nos faz a todos
herdeiros de Deus e seus co-herdeiros.
65.
Todo o Novo Testamento, a Nova Aliança de Deus com seus filhos, irmãos de
Jesus, nos orienta no sentido da partilha e da prática da Justiça na
distribuição dos bens materiais, como condição necessária da fraternidade dos
filhos do mesmo Pai, conforme o ensinamento do Sermão da Montanha (Mt 5; 6; 7).
A conversão sincera encontra logo a expressão do gesto do dom e do restabelecimento
da Justiça, tão bem retratada no episódio de Zaqueu (Lc 19,1-3). O apego
exagerado aos bens materiais, a recusa a reparti-los com os pobres, podem
significar uma barreira para o seguimento radical ao Senhor (Mt 19,16-18).
66.
O ideal evangélico a ser atingido, a prefiguração na terra do reino definitivo,
quando Deus será tudo em todos, é a construção de uma sociedade fraterna,
fundada na Justiça e no amor. Para o Evangelho, os bens materiais não devem ser
causa de separação, de egoísmo e de pecado, mas de comunhão e de realização de
cada pessoa na comunidade dos filhos de Deus.
67.
A Igreja tem presente a experiência da primitiva comunidade de Jerusalém,
quando a fraternidade em Cristo, vencendo as barreiras do egoísmo, exprimia-se
em gestos de partilha: “Todos os fiéis tinham tudo em comum; vendiam suas
propriedades e seus bens e dividiam-nos por todos segundo a necessidade de cada
um” (At 2,44-45).
68.
Na elaboração de sua doutrina, a Igreja, hoje, procura aprender da experiência
dos Santos Padres Antigos, que procuravam traduzir, para as suas sociedades, as
lições da Sagrada Escritura. Ela ouve ainda o eco das expressões de grande
vigor com que eles também denunciavam a iniquidade dos poderosos.
69.
“Foi a avareza que repartiu os pretensos direitos de posse” (Sto. Ambrósio,
P.L. Vol. A 2, Coluna 1046). “A terra foi dada a todos e não apenas aos ricos”
(Sto. Ambrósio, Apud Populorum Progressio,
nº 23, De Nabuthe, C. 12, nº 53 P. L.
14,747).
70.
“Pelo direito das gentes, implantou-se a distinção das propriedades e o regime
de servidão. Pelo direito natural, porém, vigorava a posse comum de todos e de
todos a mesma liberdade” (Decr. de Graciano, L.II, D.13). Texto particularmente
expressivo pelo fato de associar à apropriação individual o regime de servidão.
O egoísmo provoca os fortes a se apropriarem não só das coisas, mas também das
pessoas dos mais fracos.
71.
Ainda hoje a Igreja vai procurar luz e orientação no pensamento dos grandes
Doutores que tentavam também fazer a síntese entre a fidelidade à Tradição e as
novas realidades sociais com que se defrontavam.
Ela
consulta com especial atenção o pensamento de Santo Tomás de Aquino que já vira
na propriedade particular não um obstáculo à comunhão dos bens, mas um
instrumento para a realização de sua destinação social: “A comunidade dos bens
é atribuída ao direito natural, não no sentido de que o direito natural
prescreva que tudo deva ser possuído em comum e nada seja possuído como
próprio, mas no sentido que, segundo o direito natural, não existe distinção de
posses, que é o resultado da convenção entre os homens e decorre do direito
positivo.
Daí
se conclui que a apropriação individual não é contrária ao direito natural, mas
se acrescenta a ele por invenção da razão humana” (Summa Theologica, II, IIae q. 66 art. 2, ad 1). Assim a apropriação
individual seria, para Santo Tomás, um dos meios de realizar a destinação
social dos bens a todos. É o que ele mesmo explicita no mesmo texto, com maior
precisão: “Quanto à faculdade de administrar e gerir, é lícito que o homem
possua coisas como próprias; quanto ao uso, não deve o homem ter as coisas
exteriores como próprias, mas como comuns, a saber, de maneira a comunicá-las
aos outros”.
72.
Com a evolução da Sociedade, o direito positivo teve também de evoluir e explicitar
normas jurídicas para regulamentar a crescente complexidade da vida em
sociedade e especificamente com relação ao problema da propriedade, da posse e
do uso da terra.
73.
A Igreja, embora respeitando sempre a justa autonomia das ciências jurídicas e
do direito positivo, considera de seu dever pastoral a missão de proclamar as
exigências fundamentais da justiça.”
“Tudo,
não apenas a terra, mas tanto o trabalho, a personalidade, a consciência, o
amor do homem, como a ciência, tudo se torna inevitavelmente subornável
enquanto dura o poder do capital.” (Lênin)
“Mesmo São Bento foi bastante
influenciado por Santo Agostinho, e queria uma sociedade fraternal, sem
injustiças, sem miséria e sem ricos. Vejamos um texto deste santo, que mostra
bem seu pensamento favorável à igualdade social:
Não
devemos desejar a existência de míseros para que possamos exercer as obras de
misericórdia. Dás pão ao que tem fome: melhor seria que ninguém tivesse fome e
a ninguém tivesses que dar. Vestes ao que não tem roupa: oxalá todos andassem
vestidos e não houvesse tal necessidade! Dás sepultura ao morto: oxalá chegue
enfim aquela vida em que ninguém morre!
Pacificas
aos que brigam: oxalá venha enfim aquela paz eterna de Jerusalém, onde ninguém
discorde — Todos esses são misteres da necessidade. Acabemos com os míseros:
cessarão as obras de misericórdia. Sim, cessarão as obras de misericórdia:
porventura ficará extinto o ardor da caridade? Mais fraternalmente amas ao
homem feliz, ao qual não tens o que dar. Tal amor será mais puro e muito mais
sincero. Pois se socorres ao mísero, talvez te queres exaltar perante ele, e o
queres submeter, com motivo do teu benefício. Ele precisou, tu contribuíste.
Porque assim contribuíste, pareces maior do que ele.
Deseja
o igual, para que ambos estejais sob Aquele a quem nada se pode dar”. (In Epist.
Jo. Ad Parthos, tract 8° n. 5, M. L. 35, col. 2038).”
“O
livro de Vergilio Gamboso, Vida de santo
Antônio (editora Santuário Aparecida, São Paulo, 1979, pp. 139-145),
apontou claramente que os ricos exploram os pobres e os necessitados, “a modo
de prensa”, “esmagam”, “espremem”, arrancam a pele e os ossos dos
trabalhadores. Santo Antônio considerava os ricos como “animais ferozes”, “pérfidos
usurários”, “ladrões”, “prontos para roubar, esmagar e devorar os bens dos
pobres, dos órfãos, das viúvas”. Vejamos os textos de um dos Doutores da Igreja
e considerado também como grande orador da Igreja:
Os
soberbos e os avaros deste mundo, a modo de prensa, esmagam e espremem os
pobres e os necessitados. Sobre eles falou o profeta (Miquéias 3,2-3):
Arrancais violentamente e lentamente a pele (ao povo) e a carne de cima de seus
ossos. Comeram a carne do meu povo, e arrancaram-lhe a pele, e quebraram-lhe os
ossos.
Estes
tais não merecem que lhes anunciemos a palavra de Deus, nem devemos chorar por
eles, porque nem a palavra dobra a dureza de seus corações, nem as lágrimas
conseguem extinguir o fogo da sua cobiça.
As
riquezas são espinhos que ferem e provocam perda de sangue; são animais ferozes
os pérfidos usurários, que rapinam e devoram (...) Este mundo, cheio de
amargura, está repleto de riquezas, de delícias; é bem larga a estrada que leva
à perdição. É ampla, não para os pobres de Cristo, que entram pela porta
estreita, mas para os usurários que já se apoderam do mundo todo com mãos
rapaces (...) Raça maldita, cresceram fortes e incontáveis sobre a terra, têm
dentes de leão. O usurário não respeita
nem o Senhor, nem os homens; seus dentes sempre em movimento, prontos para
roubar, esmagar e devorar os bens dos pobres, dos órfãos, das viúvas (...).
E
vejam só, que mãos ousam fazer esmolas, mãos gotejando o sangue dos pobres.
Existem usurários que exercem a sua profissão às escondidas; outros,
abertamente, mas não em grande estilo, para parecer misericordiosos; outros,
enfim, pérfidos, desesperados, o fazem do modo mais escancarado possível, em
plena luz do sol. Estes infelizes nem percebem a realidade da vida, como nela
entraram e como dela sairão: entrando nus — saindo envoltos numa roupa velha.
De
onde lhes vêm, pois, tantos haveres? Das roubalheiras e fraudes.
O
escaravelho recolhe muito esterco, e com muito trabalho o transforma numa bola
(na qual a fêmea esconde o ovo); mas de repente passa um asno que mete seu
casco em cima do escaravelho e sua imunda bolinha, esmagando, em um instante,
um e outro. De modo semelhante o avaro e o fraudador, com todas as forças
acumulam o esterco do dinheiro e nisto se empenham sem parar, mas, à traição,
chega o demônio e os estrangula.
Então,
a alma fica com os demônios, a carne com os vermes, as riquezas com os
parentes.
E
o que é pior ainda: a tais miseráveis, não basta eles mesmos rejeitar e sufocar
a boa Inspiração de Deus, mas tudo fazem para expulsá-la também do coração da
mulher e dos filhos. Se um pobre filho, tocado pelo temor do juízo de Deus e do
inferno, se propõe viver honestamente, e o Pai vem a sabê-lo, com todo o seu
poder tenta afastar essa graça. Quantos males perpetram esses homicidas! Matam
em si mesmos e nos outros o arrependimento e a recordação da paixão de Cristo.
Aos
15 de março de 1231, exatamente no fim da última quaresma, a comuna de Pádua
emanou um estatuto “por solicitação do venerável Frei Antônio, da Ordem dos
menores”, em favor dos devedores insolventes, que, segundo bárbara usança do
tempo, estavam encarcerados.
Quem
possui bens, descontado o necessário para o alimento e o vestido, o que sobrar,
deve dá-lo ao irmão necessitado, pelo qual Cristo morreu. Se não dá, se fecha o
seu coração ao irmão pobre, digo que peca mortalmente, que a caridade de Deus
não está nele; se a tivesse, daria de boa vontade ao irmão pobre. Ai daqueles
que têm a cantina e o celeiro cheios e os guarda-roupas bem fornidos, enquanto
os pobres de Cristo, esfaimados e nus, gritam à sua porta. Aos quais se dá de má
vontade e pouco, e não do melhor, mas os restos. Virá, virá, sim, a hora em que
também os gozadores da vida hão de gritar, parados à porta: — Senhor, Senhor,
abre-nos! — e ouvirão o que não quereriam ouvir: — Em verdade vos digo, não vos
conheço (...)” (Mt 7,22-23).
Os
ricos deste mundo, que amontoam riquezas da iniquidade, ou seja,
aproveitando-se das desigualdades, não têm amigos mais vizinhos do que as mãos
dos pobres.
Ó
rico, dá a Cristo aquilo que ele mesmo te deu. Dá o que recebeste. Estende a
tua mão que a avareza ressecou e em virtude da esmola ela há de reflorir. E não
basta oferecer com a mão, mas é preciso unir o afeto do coração. Como o
gafanhoto entorpece durante o inverno e perde suas forças, mas depois,
retornado o calor, salta de alegria, assim também o pobre, no tempo da fome e
no gelo da necessidade, perde as forças, treme de frio, tem o olhar macilento.
Mas, chegando a esmola, logo se revigora, e agradece a Deus e ao benfeitor o
benefício recebido.
A
natureza nos gera pobres-dizia-nus nós vimos ao mundo e nus morremos. Foi a
malícia que criou os ricos e quem deseja tornar-se rico tropeça nas tramas
preparadas pelo demônio.”
“O livro História das ideologias – decadência do feudalismo e revoluções
burguesas, dirigido por V. S. Pokrovski (Editorial Estampa, São Paulo,
1977, pp. 116-127), resume o pensamento de Morelly e de Mably: (...)
“Morelly retrata a sociedade como uma espécie de “autômato
maravilhoso” em que tudo está ajustado, equilibrado e previsto, “tudo tende
para um fim comum”. Ao descrever os principais recursos dessa “admirável
máquina”, criada pela natureza, assinala que esta última deixou aos homens em
propriedade indivisível o campo que dá os seus frutos, deixou a todos e a cada
um o uso das suas generosidades. O mundo é uma mesa em que há alimentos
suficientes para todos os homens. (...)” Portanto, ninguém tem o direito de se
considerar seu dono absoluto.
Opondo
ao regime existente na propriedade privada o estado natural em que governam as
leis da natureza, o pensador afirma que, naquela ordem natural, os homens
viviam agrupados em famílias, sem Estado, reinando entre eles o acordo e a
unidade, a benevolência recíproca e o respeito aos velhos e aos indivíduos que
se distinguiam pela sua inteligência e arte.
Essa
ordem natural foi violada pela implantação da propriedade privada, que destrói
a honestidade natural e gera nos homens a cobiça, vício fundamental, de que
todos os restantes são variedades. Os homens começam por opor o seu bem
particular ao geral, quando o primeiro é um mero efeito do segundo. Perseguem o
seu interesse particular, essa “peste universal”, essa febre extenuante, essa
sensível doença de qualquer sociedade. (...)
Também
as obras de Mably traduzem as ideias do socialismo utópico.
O
abade Gabriel Bonnot de Mably (1709-1785) foi autor de grande número de obras
sobre temas históricos, filosóficos e políticos. Há que mencionar entre elas,
sobretudo, Dos direitos e deveres do
cidadão (escrita em 1758 e publicada em 1789) e Da legislação ou princípios das leis (1776). (...)
A
implantação da propriedade privada trouxe aos homens todas as calamidades e deu
origem aos vícios. A imoralidade é a fonte de nossos vícios. “A ambição e a
cobiça não são as mães, passe a expressão, mas as filhas da desigualdade”. Esta
dá também origem ao despotismo e à escravidão.
Considera
que a riqueza e a moralidade são incompatíveis. A sua ideia oral está
totalmente impregnada de ascetismo: o seu modelo é a sóbria e simples vida dos
espartanos. Faz notar que a igualdade de bens que une todos os homens,
eleva-lhes o espírito e educa-os nos sentimentos de benevolência e amizade
recíprocas. Por isso, o legislador deve concentrar a sua atenção na instauração
da igualdade de bens e das situações dos cidadãos. “A desigualdade de bens e de
estados perverte, por assim dizer, o homem e modifica as atrações naturais do
seu coração” e “os desejos inúteis à sua verdadeira felicidade levam-no a
pensar nos preconceitos e desregramentos mais injustos e absurdos”. “Num
Estado, quanto menor for a igualdade, tanto maiores são a vaidade, a baixeza, a
ferocidade, a cobiça e a tirania”. (...)
Mably
formula uma hipótese sobre o caráter da classe do direito. A desigualdade de
estados é, em sua opinião, um travão à imparcialidade das leis. “Nós criamos
duas espécies de pesos e medidas e, para vergonha da nossa razão, – os
abastados sentenciam a morte por roubo perante o medo de serem roubados e
aprovam as conquistas, por serem eles mesmos que saqueiam os povos”. (...)
Mably
formula uma hipótese sobre o caráter da classe do direito. A desigualdade de
estados é, em sua opinião, um travão à imparcialidade das leis. “Nós criamos
duas espécies de pesos e medidas e, para vergonha da nossa razão, – os
abastados sentenciam a morte por roubo perante o medo de serem roubados e
aprovam as conquistas, por serem eles mesmos que saqueiam os povos”. (...)
Animado
por princípios de um rigoroso ascetismo, considera necessário “reduzir as
necessidades e facilitar os hábitos modestos”. Projeta leis contra o luxo, que
devem tornar-se extensivas a móveis, casas, comida e vestuário. “Quanto mais
rigorosos forem as leis, tanto menor será o perigo da desigualdade de bens”.
Considera
necessário restringir o comércio que traz, segundo ele, inerente o “espírito da
cobiça”, e que dá origem a toda a espécie de excessos e vícios.”
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