Editora:
Jorge Zahar
ISBN: 978-85-3780-066-9
Tradução:
Carlos Alberto Medeiros
Opinião:
★★★★☆
Páginas:
200
“Os
conceitos de responsabilidade e escolha responsável, que antes residiam no
campo semântico do dever ético e da preocupação moral pelo Outro,
transferiram-se ou foram levados para o reino da auto-realização e do cálculo
de riscos. Nesse processo, “o Outro” como desencadeador, alvo e critério de uma
responsabilidade reconhecida, assumida e concretizada, praticamente desapareceu
de vista, afastado ou sobrepujado pelo eu do próprio ator. “Responsabilidade”
agora significa, no todo, responsabilidade
em relação a si próprio (“você deve isso a si mesmo”, “você merece”, como
dizem os corretores do “alívio da responsabilidade”), enquanto “escolhas
responsáveis” são, no geral, os gestos que atendem aos nossos interesses e
satisfazem os desejos do eu. (...)
O
resultado não é muito diferente dos efeitos “adiaforizantes” do estratagema
praticado pela burocracia sólido-moderna, que substituía a “responsabilidade por” (o bem-estar e a dignidade do
Outro) pela “responsabilidade perante”
(o superior, a autoridade, a causa e seus porta-vozes). Os efeitos
adiaforizantes (ou seja, que declaram certas ações impregnadas de escolhas
morais “eticamente neutras” e as isentam de avaliação e censura éticas) tendem,
contudo, a ser atingidos em nossos dias principalmente por meio da substituição
da “responsabilidade pelos outros”
pela “responsabilidade perante si próprio”
e pela “responsabilidade para consigo
mesmo” reunidas numa só. A vítima colateral do salto para a versão
consumista da liberdade é o Outro como objeto de responsabilidade ética e
preocupação moral.”
“Se,
como afirma Alain Ehrenberg de maneira convincente,6 os sofrimentos humanos mais
comuns nos dias de hoje tendem a se desenvolver a partir de um excesso de possibilidades, e não de uma profusão de
proibições, como ocorria no passado,
e se a oposição entre possível e impossível superou a antinomia do permitido e
do proibido como arcabouço cognitivo e critério essencial de avaliação e
escolha da estratégia de vida, deve-se apenas esperar que a depressão nascida
do terror da inadequação venha
substituir a neurose causada pelo horror da culpa
(ou seja, da acusação de inconformidade
que pode se seguir à quebra das regras) como a aflição psicológica mais
característica e generalizada dos habitantes da sociedade de consumidores.”
6.
Ver Alain Ehrenberg, La fatigue d’étre
soi, Odile Jacobs, 1998.
“Nos
dias de hoje, a prática gerencial de provocar uma atmosfera de urgência, ou
apresentar um estado de coisas comum como um estado de emergência, é cada vez
mais reconhecida como um método bastante eficaz, e preferido por muitos
executivos, de persuadir os gerenciados a aceitarem placidamente até mesmo as
mudanças mais drásticas que atingem no âmago suas ambições e expectativas – ou,
na verdade, sua própria vida. “Declare estado de emergência – e continue
governando” parece ser a receita gerencial cada vez mais popular para a
dominação incontestada e para se prosseguir impune com os ataques intoleráveis
e insidiosos ao bem-estar dos empregados; ou para se livrar da mão-de-obra
indesejada tornada redundante nos sucessivos rounds de “racionalização” ou
venda de ativos.
Nem
o aprendizado ou o esquecimento podem escapar do impacto da “tirania do
momento”, auxiliada e instigada pelo contínuo estado de emergência, e do tempo
dissipado numa série de “novos começos” heterogêneos e aparentemente (embora de
forma enganosa) desconectados. A vida de consumo não pode ser outra coisa senão
uma vida de aprendizado rápido, mas também precisa ser uma vida de esquecimento
veloz.
Esquecer
é tão importante quanto aprender – se não for mais. Há um “não deve” para cada
“deve”, e qual dos dois revela o verdadeiro objetivo do ritmo assombroso da
renovação e da remoção, e qual deles é apenas uma medida auxiliar para garantir
que o objetivo seja atingido é uma questão irremediavelmente discutível e
cronicamente insolúvel. O tipo de informação/instrução capaz de aparecer em
maior profusão no “manual de moda” que citei e numa série de outros manuais
semelhantes é da variedade “o destino neste
outono é a Carnaby Street da década
de 1960” ou “a atual tendência gótica é perfeita para este mês”. Este outono, é evidente, é de todo diferente do
último verão, e este mês não se parece nem um pouco com os últimos meses. E
assim o que era perfeito para o mês passado é tudo menos isso neste mês, da
mesma forma que o destino do último verão está a anos-luz do destino deste
outono. “Sapatilhas de balé? É hora de se livrar delas.”; “Alças espaguete? Não
há lugar para elas nesta estação.”; “Esferográficas? O mundo fica melhor sem
elas.” O apelo a “abrir sua nécessaire
e dar uma olhada lá dentro” deve ser seguido pela exortação de que “a próxima estação tem a ver com cores
muito fortes”, por sua vez seguida de perto pela advertência de que “o bege e
seus parentes seguros, mas monótonos, já tiveram a vez deles…. Jogue-os fora agora mesmo”. O “monótono
bege”, é claro, não pode ser passado no rosto em simultâneo com as “cores muito
fortes”. Uma das paletas tem de ceder sua vez. Tornar-se redundante. Outro
resíduo, ou “vítima colateral”, do progresso. Algo a ser descartado. E
depressa.”
“O
PIB, índice oficial do bem-estar de uma nação, não é medido pela quantidade de
dinheiro que troca de mãos? O crescimento econômico não é impulsionado pela
energia e atividade dos consumidores?
E o consumidor que não é ativo em se livrar de propriedades usadas e obsoletas
(na verdade, do que tenha sobrado das compras de ontem) é um paradoxo – como um
vento que não sopre ou um rio que não corra.”
“A
vida do consumidor, a vida de consumo, não se refere à aquisição e posse.
Tampouco tem a ver com se livrar do que foi adquirido anteontem e exibido com
orgulho no dia seguinte. Refere-se, em vez disso, principalmente e acima de
tudo, a estar em movimento. Se Max Weber estava certo e o princípio ético da
vida produtiva era (e sempre precisou ser se o propósito era uma vida
produtiva) o atraso da satisfação,
então a orientação ética da vida de consumo (se é que a ética desse tipo de
vida pode ser apresentada na forma de um código de comportamento prescrito) tem
de ser evitar estar satisfeito. Para
um tipo de sociedade que proclama que a satisfação do consumidor é seu único
motivo e seu maior propósito, um consumidor satisfeito
não é motivo nem propósito – e sim a ameaça mais apavorante.
O
que se aplica à sociedade de consumidores também se aplica a seus membros
individuais. A satisfação deve ser apenas uma experiência momentânea, algo que,
se durar muito tempo, deve-se temer, e não ambicionar – a satisfação duradoura,
de uma vez por todas, deve parecer aos consumidores uma perspectiva bem pouco
agradável. Na verdade, uma catástrofe.”
“O
poderoso fluxo de informação não é um afluente do rio da democracia, mas um
insaciável canal de ingestão que intercepta seus conteúdos e os canaliza para
um conjunto de lagos artificiais magnificamente grandes, porém malcheirosos e
estagnados. Quanto mais poderoso é o fluxo, maior a ameaça de que o leito do
rio venha a secar. Os servidores do mundo armazenam informações para que a nova
cultura líquido-moderna possa substituir o aprendizado pelo esquecimento como
maior força motriz das atividades de vida dos consumidores. Os servidores
engolem e armazenam as marcas de dissensão e protesto para que a política
líquido-moderna possa ir em frente sem sofrer influências nem interrupções –
substituindo o confronto e a argumentação por frases descontextualizadas e
oportunidades para fotos.
As
correntes que se afastam do rio não são revertidas e levadas de volta ao leito
principal com facilidade: Bush e Blair puderam ir à guerra sob falsos
pretextos, ainda que não faltassem sites denunciando o blefe deles.”
“No
jogo carnavalesco das identidades, a socialização offline é revelada pelo que
de fato é no mundo dos consumidores: um fardo bastante incômodo e não
particularmente agradável, tolerado e sofrido porque inevitável, já que o
reconhecimento da identidade escolhida precisa ser alcançado num esforço longo
e possivelmente interminável – com todos os riscos de anúncio ou imputação de
blefes que os encontros face a face necessariamente implicam. Eliminar esse
aspecto incômodo das batalhas por reconhecimento é a qualidade mais atraente do
baile de máscaras e do jogo de confiança da internet. A “comunidade” de
internautas que busca um reconhecimento substituto não obriga à tarefa da
socialização, e portanto é relativamente livre de risco, esse veneno notório e
amplamente temido das batalhas offline por reconhecimento.
Outra
revelação é a redundância do “outro” em qualquer papel que não o de símbolo de
endosso ou aprovação. No jogo de identidades da internet, o “outro” (o
destinatário ou remetente das mensagens) é reduzido a seu núcleo duro de
instrumento de autoconfirmação um tanto manipulável, despido da maioria ou de
todas as partes desnecessárias e irrelevantes para a tarefa ainda tolerada
(embora com rancor e relutância) na interação offline. Para citar Jauréguiberry
mais uma vez:
Na
busca da auto-identificação bem-sucedida, os indivíduos automanipuladores
mantêm uma relação bastante instrumental com seus interlocutores. Estes últimos
só são admitidos para certificar a existência do manipulador – ou, mais
exatamente, para permitir que os manipuladores façam seus “eus virtuais” caírem
na realidade. Os outros são procurados com o único propósito de atestar,
estimular e bajular os eus virtuais dos internautas.
No
jogo de identificação mediado pela internet, o Outro é, por assim dizer,
desarmado e desintoxicado. É reduzido pelo internauta ao que de fato conta: à
condição de instrumento de autoconfirmação pessoal. A necessidade pouco
atraente de garantir a autonomia e a originalidade do Outro, e de aprovar suas
reivindicações a uma identidade própria, para não mencionar a repugnante
necessidade de vínculos e compromissos duradouros, inevitáveis nas batalhas
offline por reconhecimento, é eliminada ou pelo menos mantida fora dos limites
enquanto durar a conexão. A socialização virtual segue o padrão do marketing, e
as ferramentas eletrônicas desse tipo de socialização são feitas sob medida
para as técnicas mercadológicas.
A
grande atração é o puro prazer do fazer-crer, com a parte insípida do “fazer”
quase eliminada da lista de preocupações daqueles que fazem, já que permanece
invisível para os que “creem”.”
“Nas
palavras de J. Livingstone, “a forma mercadoria penetra e transforma dimensões
da vida social até então isentas de sua lógica, até o ponto em que a própria
subjetividade se torna uma mercadoria a ser comprada e vendida no mercado, como
a beleza, a limpeza, a sinceridade e a autonomia”.3 E, como afirma
Colin Campbell, a atividade de consumir
tornou-se
uma espécie de padrão ou modelo para a maneira como os cidadãos das sociedades
ocidentais contemporâneas passaram a encarar todas as suas atividades. Já que…
cada vez mais áreas da sociedade contemporânea são assimiladas por um “modelo
de consumo”, talvez não seja surpreendente que a metafísica subjacente ao
consumismo tenha se transformado, nesse processo, em uma espécie de
filosofia-padrão de toda a vida moderna.4
Arlie
Russell Hochschild resume o principal “dano colateral” perpetrado no curso da
invasão consumista numa expressão tão penetrante quanto sucinta: a
“materialização do amor”.
O
consumismo atua para manter a reversão emocional do trabalho e da família.
Expostos a um bombardeio contínuo de anúncios graças a uma média diária de três
horas de televisão (metade de todo o seu tempo de lazer), os trabalhadores são
persuadidos a “precisar” de mais coisas. Para comprar aquilo de que agora
necessitam, precisam de dinheiro. Para ganhar dinheiro, aumentam sua jornada de
trabalho. Estando fora de casa por tantas horas, compensam sua ausência do lar
com presentes que custam dinheiro. Materializam o amor. E assim continua o
ciclo.5
Podemos
acrescentar que a nova separação espiritual e a recente ausência física do
cenário do lar tornam os trabalhadores, homens e mulheres, impacientes com os
conflitos, sejam eles grandes, pequenos ou simplesmente minúsculos e insignificantes,
que se misturar sob um mesmo teto inevitavelmente provoca.
Como
as habilidades necessárias para conversar e buscar entendimento estão
diminuindo, o que costumava ser um desafio a ser confrontado de maneira direta
e encarado se transforma cada vez mais num pretexto para romper a comunicação,
fugir e queimar pontes atrás de si. Ocupados em ganhar mais dinheiro em função
de coisas de que creem precisar para serem felizes, homens e mulheres têm menos
tempo para a empatia mútua e para negociações intensas, por vezes tortuosas e
dolorosas, mas sempre longas e desgastantes. E ainda menos para resolver seus
mútuos desentendimentos e discordâncias. Isso aciona outro círculo vicioso:
quanto mais obtêm êxito em “materializar” a relação amorosa (como o fluxo contínuo
de mensagens publicitárias os estimula a fazer), menores são as oportunidades
para o entendimento mutuamente compassivo exigido pela notória ambiguidade
poder/carinho do amor. Os membros da família são tentados a evitar o confronto
e procurar uma pausa (ou, melhor ainda, um abrigo permanente) na briga
doméstica. E então o impulso de “materializar” o amor e os cuidados amorosos
adquire ímpeto ainda maior à medida que alternativas mais demoradas e
desgastantes ficam menos alcançáveis num momento em que são cada vez mais
necessárias por causa do número sempre crescente de pontos de atrito, rancores
a serem aplacados e desentendimentos que exigem solução.”
3. Ver J. Livingstone, “Modern subjectivity and
consumer culture”, in S. Strasser, C. McGovern e M. Judt (orgs.), Consuming
Desires: Consumption, Culture and the Pursuit of Happiness, Cambridge
University Press, 1998, p.416. Aqui citado de Belk, “The human consequences of
consumer culture”, p.71. / 4. Campbell,
“I shop therefore I know that I am”, p.41-2. / 5. Ver Hochschild, The
Commercialization of Intimate Life, p.208ss.
““Inutilidade”
e “perigo” pertencem à grande família dos “conceitos essencialmente
contestados” de W. B. Gallie. Quando empregados como ferramentas de
identificação, exibem a flexibilidade que torna as classificações resultantes
excepcionalmente adequadas para acomodar todos os demônios mais sinistros entre
os muitos que assombram uma sociedade atormentada por dúvidas sobre a
durabilidade de qualquer tipo de utilidade, assim como por medos difusos e
não-fundeados, mas ambientes. O mapa mental do mundo traçado com sua ajuda
fornece um playground infinitamente amplo para sucessivos “pânicos morais”. As
divisões obtidas podem ser ampliadas com facilidade para absorver e domesticar
novas ameaças, ao mesmo tempo em que permitem que terrores difusos se
concentrem num alvo que só é tranquilizador por ser específico e tangível.
Esse
é comprovadamente um uso muito importante que a inutilidade da subclasse
oferece a uma sociedade em que nenhum ofício ou profissão pode continuar certo
de sua utilidade a longo prazo e, portanto, de seu valor de mercado. Sua
periculosidade oferece um serviço igualmente importante a uma sociedade
sacudida por ansiedades bastante numerosas para que ela possa dizer, com algum
grau de confiança, o que há para se temer e o que deve ser feito para aliviar o
medo.”
“Quanto
maior a demanda de consumo (ou seja, quanto mais eficaz for a sedução de
potenciais clientes), mais segura e próspera será a sociedade de consumo. Ao
mesmo tempo, mais larga e profunda se tornará a lacuna entre os que desejam e podem satisfazer seus desejos (os que
foram seduzidos e prosseguem agindo da maneira pela qual o estado de ser
seduzido os estimula a agir) e os que foram seduzidos de forma adequada mas são
incapazes de agir da forma como se
espera que ajam. Louvada como um grande equalizador, a sedução de mercado
também é um divisor singular e incomparavelmente eficaz.”
“Para
ser eficaz, a tentação de consumir, e de consumir mais, deve ser transmitida em
todas as direções e dirigida indiscriminadamente a todos que se disponham a
ouvir. No entanto, o número de pessoas capazes de ouvir é maior do que o
daquelas que podem reagir da maneira pretendida pela mensagem sedutora. Os que
não podem agir de acordo com os desejos induzidos são apresentados todos os
dias ao olhar deslumbrado daqueles que podem. O consumo excessivo, aprendem
eles, é sinal de sucesso, uma autoestrada que conduz ao aplauso público e à
fama. Eles também aprendem que possuir e consumir certos objetos e praticar
determinados estilos de vida são a condição necessária para a felicidade. E uma
vez que “estar feliz”, como se estivéssemos seguindo tardiamente as premonições
de Samuel Butler, transformou-se na marca da decência e na garantia do respeito
humano, isso também tende a se tornar condição necessária para a dignidade e a autoestima.”
“Um
Estado é “social” quando promove o princípio do seguro coletivo, endossado de
modo comunitário, contra o infortúnio individual e suas consequências. É
basicamente esse princípio – declarado, posto em operação e que se acredita
estar em funcionamento – que remodela a ideia, de outra forma abstrata, de
“sociedade” na experiência de uma comunidade sentida e vivida, substituindo a
“ordem do egoísmo” (para empregar os termos de John Dunn), que tende a gerar
uma atmosfera de desconfiança e suspeita mútuas, pela “ordem da igualdade”, que
inspira confiança e solidariedade. É o mesmo princípio que eleva os membros da
sociedade à condição de cidadãos, ou
seja, que os torna depositários, além de acionistas: beneficiários, mas também
atores – os guardiões e vigias do sistema de “benefícios sociais”, indivíduos
com um interesse agudo no bem comum entendido como uma rede de instituições
compartilhadas em que se pode confiar, e ter uma expectativa realista, para
garantir a solidez e fidedignidade da “política de seguro coletivo” promulgada
pelo Estado.
A
aplicação desse princípio pode proteger, o que com frequência faz, homens e
mulheres da praga da pobreza; e ainda mais importante, contudo, é que pode se
tornar uma abundante fonte de
solidariedade, capaz de reciclar a “sociedade” num bem comum,
compartilhado, de propriedade comum e conjuntamente cuidado, graças à defesa
que fornece contra os horrores gêmeos da miséria
e da indignidade – ou seja, os
horrores de ser excluído, cair ou ser empurrado para fora do veículo do
progresso em rápida aceleração, ser condenado à “redundância social”, sendo-lhe
negado o respeito merecido pelos seres humanos, e ser designado como “dejeto
humano”.
O
“Estado social” deveria ser, segundo sua intenção original, um arranjo
destinado a servir exatamente a esses propósitos. Lorde Beveridge, a quem
devemos o projeto do “Estado de bem-estar social” britânico no pós-guerra,
acreditava que sua visão de um seguro abrangente e coletivamente endossado para
todo mundo era a consequência
inevitável, ou melhor, o complemento indispensável da ideia liberal de
liberdade individual, assim como condição necessária da democracia liberal. A declaração de guerra ao medo de Franklin
Delano Roosevelt se baseou no mesmo pressuposto. Era um pressuposto razoável:
afinal de contas, a liberdade de escolha tende a ser acompanhada de incontáveis
riscos de fracasso, e muitas pessoas vão considerar esses riscos insuportáveis,
temendo que possam exceder suas capacidades pessoais de enfrentá-los. Para
muitos cidadãos, a liberdade de escolha continuará sendo um espectro evasivo e
um sonho infundado, a não ser que o medo da derrota seja aliviado por uma
política de seguros promulgada em nome da comunidade, uma política em que
possam confiar e com a qual possam contar em caso de um fracasso pessoal ou de
um golpe caprichoso do destino.
Se
a liberdade de escolha é garantida na teoria mas inatingível na prática, a dor
da desesperança com certeza será
superada pela ignomínia da infelicidade
– pois a habilidade, testada todos os dias, de enfrentar os desafios da vida é
a própria oficina em que a autoconfiança, o senso de dignidade humana e a
autoestima dos indivíduos são formados ou fundidos. Além disso, sem seguro
coletivo dificilmente haverá muito estímulo ao engajamento político – e com
certeza nenhum estímulo à participação no ritual democrático das eleições, já
que é provável que a salvação não virá de um Estado político que não seja, e se
recuse a ser, um Estado social. Sem direitos sociais para todos, um número grande e provavelmente crescente de pessoas
vai achar que seus direitos políticos são inúteis ou indignos de atenção. Se os
direitos políticos são necessários para estabelecer os direitos sociais, estes são indispensáveis para
manter os direitos políticos em
funcionamento. Os dois tipos de direito precisam um do outro para que
sobrevivam.
O
Estado social é a derradeira encarnação moderna da ideia de comunidade: ou seja,
a encarnação institucional de tal ideia em sua forma moderna de totalidade
abstrata, imaginada, construída pela dependência, pelo compromisso e pela
solidariedade. Os direitos sociais – direito ao respeito e à dignidade – ligam
essa totalidade imaginada às realidades diárias de seus membros e fundamentam
essa imaginação no terreno sólido da experiência de vida; esses direitos
certificam ao mesmo tempo a veracidade e o realismo da confiança mútua e da confiança na rede institucional
compartilhada que endossa e corrobora a solidariedade coletiva.
O
sentimento de “pertença” se traduz em confiança nos benefícios da solidariedade
humana e nas instituições que nascem desta e prometem servi-la e garantir sua
fidedignidade. Todas essas verdades foram proclamadas no Programa
Socialdemocrata sueco de 2004:
Todo
mundo é frágil em algum ponto do tempo. Precisamos uns dos outros. Vivemos
nossas vidas no aqui e agora, juntamente com outros, envolvidos de forma
involuntária pelas mudanças que ocorrem. Seremos mais ricos se todos pudermos
participar e ninguém for deixado de fora. Seremos todos mais fortes se houver
segurança para todo mundo e não apenas para uns poucos.
Assim
como o poder de sustentação de uma ponte não é medido pela força média de seus
pilares, mas pela força de seu pilar mais fraco, e cresce junto com esta, a
confiança e a engenhosidade de uma sociedade são medidas pela segurança,
engenhosidade e autoconfiança de seus setores mais fracos, e cresce junto com
estas. De maneira contrária ao pressuposto dos defensores da “terceira via”, a
justiça social e a eficiência econômica, a lealdade à tradição do Estado social
e à capacidade de se modernizar com rapidez (e, o que é mais importante, com
pouco ou nenhum dano à coesão e à solidariedade sociais) não estão nem precisam
estar em desacordo. Pelo contrário, como a prática socialdemocrata dos países
nórdicos demonstra e confirma, “a busca de uma sociedade socialmente mais coesa
é a precondição necessária para a modernização por consentimento”. (...)
Para
evitar incompreensões, é necessário ficar claro que o “Estado social” na
sociedade de consumidores não é projetado nem praticado como alternativa ao
princípio da escolha do consumidor – assim como não era pensado nem funcionava
como alternativa à “ética do trabalho” na sociedade de produtores. Os países
com os princípios e as instituições de um Estado social firmemente
estabelecidos também são aqueles que apresentam níveis de consumo elevados, da
mesma forma que os países com os princípios e as instituições de um Estado
social firmemente estabelecidos nas sociedades de produtores eram aqueles em
que a indústria prosperava…
O
significado do Estado social na sociedade de consumidores, tal como era na
sociedade de produtores, é defender a sociedade dos “danos colaterais” que o
princípio orientador da vida social iria causar se não fosse monitorado,
controlado e restringido. Seu propósito é proteger a sociedade da multiplicação
das fileiras de “vítimas colaterais” do consumismo: os excluídos, os
proscritos, a subclasse. Sua tarefa é evitar a erosão da solidariedade humana e
o desaparecimento dos sentimentos de responsabilidade ética.”
“Entre
as muitas ideias, umas brilhantes e outras nem tanto, pelas quais Margaret
Thatcher será lembrada está sua descoberta da inexistência da sociedade: “Não
há algo como uma ‘sociedade’ … Existem apenas indivíduos e famílias”, declarou
ela. Mas foi preciso muito mais esforço, dela e de seus sucessores, para
transformar esse produto da fantasiosa imaginação de Thatcher numa descrição razoavelmente
precisa do mundo real, tal como visto a partir de dentro da experiência de seus habitantes.
O
triunfo do consumismo desenfreado, individual e individualizante sobre a
“economia moral” e a solidariedade social, não foi uma conclusão precipitada.
Uma sociedade pulverizada em indivíduos solitários e famílias (em fragmentação)
não poderia ter sido construída sem que primeiro Thatcher esvaziasse por
completo o local de construção. Não teria sido estabelecida sem os êxitos dela
em desabilitar as associações de autodefesa daqueles que precisavam de uma
defesa coletiva; em privar os desabilitados da maior parte dos recursos que
poderiam usar para recuperar coletivamente a força que lhes fora negada ou que
eles tinham perdido individualmente; em reduzir de modo drástico as porções do
“auto” e do “governo” na prática local do autogoverno; em transformar muitas
expressões de solidariedade desinteressada em crimes passíveis de punição; em
“desregulamentar” o pessoal que trabalha em fábricas e escritórios, que antes
eram estufas da solidariedade social, transformando-o num agregado de
indivíduos mutuamente suspeitosos competindo ao estilo “cada um por si e o
diabo contra todos”, do Big Brother ou
The weakest link, ou completando o
trabalho de transformar os direitos universais de cidadãos altivos em estigmas
de indolentes ou proscritos acusados de viver “à custa do contribuinte”. As
inovações de Thatcher não apenas sobreviveram a anos de governos sucessivos –
elas permaneceram pouco questionadas e quase intactas. (...)
Para
os aplausos de alguns observadores entusiastas das novas tendências, o vácuo
deixado atrás de si por cidadãos que se retiram em massa dos campos de batalhas
políticas da atualidade para reencarnarem como consumidores é preenchido por um
“ativismo de consumo” aparentemente apartidário e um tanto apolítico.
O
problema, porém, é que esse tipo de substituição não amplia as fileiras dos
homens e mulheres “socialmente interessados”, envolvidos e engajados em
assuntos públicos (ou seja, portadores das qualidades que são consideradas os
traços definidores dos cidadãos da pólis). A nova variedade de ativismo envolve
uma parcela menor do eleitorado do que aquela que os partidos políticos
ortodoxos – dos quais não mais se espera, muito menos se confia, que
representem os interesses de seus eleitores, e que assim estão perdendo a
simpatia do público – podem mobilizar, hoje, no calor das campanhas eleitorais.
E, como adverte Frank Furedi, “o ativismo de consumo prospera numa condição de
apatia e descompromisso social”. Mas será que ele reage à crescente apatia
política? Será que fornece algum antídoto contra a nova indiferença do público
a coisas antes consideradas causas comuns e compartilhadas? Deve-se perceber,
diz Furedi, que
a
crítica consumista da democracia representativa é fundamentalmente
antidemocrática. Baseia-se na premissa de que indivíduos não eleitos dotados de
um altíssimo propósito moral têm maior direito de agir no interesse do público
do que políticos eleitos por um processo político imperfeito. Os militantes
ambientalistas, cujo mandato vem de uma rede selecionada de grupos de
interesses, representam um eleitorado bem mais estreito do que um político
eleito. A julgar por esse registro, a resposta do ativismo de consumo ao
problema genuíno da responsabilidade democrática é evitá-lo por completo em
favor do lobby de grupos de interesses.18”
18.
Frank
Furedi, “Consuming Democracy: activism, elitism and political apathy”,
em www.geser.net/furedi.html.
“O
site Guardian Student informou em 23
de março de 2004 que “3/4 (77%) dos alunos do primeiro ano universitário não se
interessam em participar de protestos políticos … e 67% deles acreditam que o
protesto estudantil não é eficaz nem faz diferença alguma, segundo o Lloyds TSB/Financial Mail sobre o Painel Estudantil de
Domingo”. A matéria diz que Jenny Little, editor da página estudantil do Financial Mail on Sunday, declarou o
seguinte:
Os
estudantes de hoje têm de lidar com muitas coisas – a pressão para tirar uma
boa nota, a necessidade de trabalhar em tempo parcial para se sustentarem e
obterem uma experiência de trabalho para garantir que seus currículos se
destaquem na multidão…. Não surpreende que a política esteja na base da pilha de
prioridades para esta geração, embora, em termos reais, ela nunca tenha sido
mais importante.
Num
estudo dedicado ao fenômeno da apatia política, Tom DeLucca sugere que esta não
constitui um tema por direito próprio, sendo “mais uma pista sobre os outros,
acerca de nosso grau de liberdade, o poder que de fato temos, o que realmente
nos pode ser imputado, se estamos sendo bem atendidos … Ela implica uma
condição sob a qual alguém sofre”.21 A apatia política “é um estado mental ou destino político provocado
por forças, estruturas, instituições, ou por uma manipulação da elite sobre a
qual se tem pouco controle e talvez pouco conhecimento”. (...)
Seria
preciso recordar o significado inicial de “democracia” que no passado fez dela
um grito de batalha das mesmíssimas “massas despossuídas e sofredoras” que hoje
se afastam do exercício de direitos eleitorais obtidos com dificuldade. São, em
primeiro lugar, consumidores. Apenas num longínquo segundo plano são cidadãos
(se é que chegam a ser). Tornar-se consumidor exige um nível de vigilância e
esforço constantes que dificilmente deixa tempo para as atividades que
tornar-se cidadão demanda.”
21. Ver Tom DeLucca, The Two Faces of
Political Apathy, Temple University Press, 1995.
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