Editora: Boitempo
ISBN: 978-85-7559-213-7
Tradução: Lólio Lourenço de Oliveira e Rogério Bettoni
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 332
Sinopse: Ver Parte
I
“O que se quer salientar agora é que a
identificação, por um pensador, de um aspecto problemático da própria obra não
significa, automaticamente, que tenha encontrado uma solução para ele. Tampouco
significa que a autocrítica retrospectiva seja necessariamente válida e deva
ser aceita por seu significado manifesto. Em ambos os casos, estamos diante de
afirmações que carecem de fundamentação e de provas, para que se possa chegar a
uma conclusão em um sentido ou em outro. Dar-se conta de um problema pode propiciar
a possibilidade de uma solução, mas
ela não deve ser confundida com a própria solução, que deve ser estabelecida em
bases objetivas e não apenas em autoafirmações críticas, por mais que estas
possam ser sentidas como autênticas.”
“Felizmente, porém, há outros modos de
produzir mudanças radicais no mundo social. As pré-condições necessárias de uma
mudança social importante são (1) a identificação e utilização das
contradições, forças e instituições historicamente dadas e (2) a adequação do
sujeito da ação à tarefa. Se, contudo, concebe-se o sujeito como um indivíduo
isolado, ele está fadado a permanecer prisioneiro da série infinita. Pois a
realidade social só é uma totalidade estruturada em relação a um sujeito que é,
ele mesmo, um todo complexo: o indivíduo social integrado (por meio de sua
classe ou, numa sociedade sem classes, de algum outro modo) na comunidade a que
pertence. Aos olhos do indivíduo isolado, a totalidade social tem de parecer,
naturalmente, o agregado misterioso de passos específicos que ele não pode
concebivelmente controlar para além de um ponto extremamente limitado, se
tanto. Assim, esse indivíduo isolado que se contrapõe – dentro do espírito da
dupla dicotomia sartriana – não só ao mundo dos objetos, mas também aos seres
humanos do dado mundo social caracterizado como “o outro”, nada mais pode fazer
do que admitir a impotência de suas ações pessoais no “mundo das coisas
utilizáveis” e deixar-se levar pelas curiosas estratégias do “mundo mágico”. É
aqui que a herança heideggeriana mais pesa sobre os ombros de Sartre. A
concepção não dialética do mundo como uma totalidade não estruturada e a
caracterização, a ela intimamente ligada, do sujeito da ação humana como
indivíduo isolado, transmutam-se em “estruturas existenciais” a-históricas, e o
mundo social é subsumido pelo mundo da magia: o mundo da emoção.
[...] na emoção a consciência se degrada e
transforma bruscamente o mundo determinado em que vivemos num mundo
mágico. Mas há uma recíproca: é o próprio mundo que às vezes se revela à
consciência como mágico quando o esperávamos determinado. Com efeito, não se
deve pensar que o mágico seja uma qualidade efêmera que colocamos no mundo ao
sabor de nossos humores. Há uma estrutura existencial do mundo que é
mágica. [...] a categoria “mágica” rege as relações interpsíquicas dos homens
em sociedade e, mais precisamente, nossa percepção de outrem. O mágico,
diz Alain, é “o espírito arrastando-se entre as coisas”, isto é, uma síntese
irracional de espontaneidade e de passividade. É uma atividade interna,
uma consciência apassivada. Ora, é precisamente dessa forma que outrem nos
aparece, e isto não por causa de nossa posição em relação a ele, não pelo
efeito de nossas paixões, mas por necessidade de essência. De fato, a
consciência só pode ser objeto transcendente ao sofrer a modificação de
passividade. [...] Assim o homem é sempre um feiticeiro para o homem, e o
mundo social é primeiramente mágico.[257]
Chamaremos emoção uma queda brusca da
consciência no mágico. Ou, se preferirem, há emoção quando o mundo dos
utensílios desaparece bruscamente e o mundo mágico aparece em seu lugar.
Portanto, não se deve ver na emoção uma desordem passageira do organismo e do
espírito que viria perturbar de fora a vida psíquica. Ao contrário, trata-se do
retorno da consciência à atitude mágica, uma das grandes atitudes que lhe são
essenciais, com o aparecimento de um mundo correlativo, o mundo mágico.
A emoção não é um acidente, é um modo de existência da consciência, uma das
maneiras como ela compreende (no sentido heideggeriano de “verstehen”)
seu “ser-no-mundo”.[258]
Embora algumas partes dessas citações sejam
muito esclarecedoras quanto à natureza da própria emoção, a utilização da
emoção como chave para a compreensão do mundo social (como mágico) é
extremamente problemática. Pois o homem pode ser “um feiticeiro para o homem” –
mas não sabemos, todos nós, que feiticeiros são uma “invenção” do homem, no
sentido sartriano do termo? E, se os homens se comportam como se fossem feiticeiros, não é devido a alguma necessidade
ontológica essencial, que brota de uma estrutura existencial permanente e que
para sempre se manifesta como síntese irracional inevitável de espontaneidade e
passividade, mas sim devido a condições sócio-históricas determinadas – e, pelo
menos em princípio, removíveis. Empenhar-se na tarefa de remover essas
condições pela reestruturação do
mundo social em que vivemos, de acordo com os autênticos fins humanos e em
oposição ao poder autopropulsor de instituições “magicamente” reificadas, é
precisamente o que confere sentido ao empreendimento humano no estágio atual da
história. E não há “mágica” que ajude nisso.”
[257] Jean-Paul Sartre, Emoções, p. 84-5. / [258] Ibidem, p. 90.
“Os princípios metodológicos de uma filosofia
são inseparáveis das proposições básicas pelas quais se pode definir toda
orientação abrangente do pensamento em direção à realidade. Naturalmente, para
fins analíticos, as regras metodológicas podem ter de ser tratadas em separado.
Porém, elas não são inteligíveis por si sós nem têm a capacidade de
proporcionar justificação para si mesmas. Tentar explicar princípios e regras
metodológicos por si mesmos só pode ter como resultado o retrocesso infinito da
meta-meta – ...meta-metodologia, ou em circularidade, ou numa combinação dos
dois (como em certa “filosofia analítica” neopositivista que se esgota na
produção de uma metodologia pela metodologia que se consome a si mesma, afiando
obsessivamente seu facão até que a lâmina desapareça por inteiro na poeira de
limalhas da autoperfeição e o filósofo fique segurando apenas o cabo).
Os problemas de método nascem do que se faz,
e a compreensão filosófica da experiência determina seu próprio método –
explícito ou latente. Todo conjunto específico de regras metodológicas
apresenta-se como um modo específico de exame e seleção dentre todos os dados
disponíveis com vistas a construir um todo coerente. Especificar como proceder,
o que incluir ou excluir, como definir a relação entre o conhecimento
filosófico e a totalidade do conhecimento disponível (inclusive científico e
vulgar), como relacionar a atividade filosófica com a totalidade da práxis
humana, e assim por diante – nada disso teria sentido se não pudesse se
justificar pela natureza do próprio empreendimento filosófico da maneira como
se desenvolveu no curso da história. (Afinal, por que se prestaria menor
atenção às regras de determinado método filosófico, a não ser que se quisesse
participar do desenvolvimento ulterior desse empreendimento humano coletivo?)
Além disso, as regras de um determinado método seriam arbitrárias se não
pudessem ser justificadas por seus resultados em comparação aos obtidos pela
adoção de métodos alternativos. A redução fenomenológica, por exemplo, é inteiramente
fora de propósito sem as referências críticas, explícitas ou implícitas, às
supostas deficiências da “atitude natural” e, assim, a todo o complexo de temas
controversos – em epistemologia e ontologia – que deram origem à elaboração do
método fenomenológico nas duas primeiras décadas do século XX.
As regras e princípios metodológicos são
elaborados no decorrer da sistematização de uma dada filosofia como um todo.
Essa é a razão por que não podem ser simplesmente transferidos de um cenário
para outro, sem todas as modificações necessárias que homogeneízem as regras
metodológicas e os princípios temáticos da filosofia em questão. Modificações
ontológicas requerem mudanças metodológicas significativas até mesmo em
filosofias que, explicitamente, professam sustentar as mesmas regras.”
“[...] Filosofia é uma questão de tomar
emprestado e inventar conceitos que, progressivamente, mediante uma espécie de
dialética, levam-nos a uma percepção mais ampla de nós mesmos ao nível da
experiência. Em última análise, a filosofia sempre se destina a anular-se.
[...] Isto resulta que a filosofia deve estar continuamente se destruindo e
renascendo. A filosofia é pensamento na medida em que pensamento já é
invariavelmente o momento inerte da práxis, uma vez que, no momento em que
ocorre, a práxis já está formada. Em outras palavras, a filosofia vem atrás,
embora não obstante sempre olhando para a frente. Ela não deve permitir-se
dispor de nada mais do que conceitos, isto é, palavras. Ainda assim, porém, o
que conta em favor da filosofia é o fato de que essas palavras não são
completamente definidas. A ambiguidade da
palavra filosófica antes de mais nada oferece algo que pode ser utilizado
para ir mais além. Pode ser utilizada para mistificar, como muitas vezes faz
Heidegger, mas pode também ser utilizada para fins exploratórios, como ele
também utiliza.”
(“The Writer and His Language”,
cit., p. 110-1.”)
“Em sua filosofia, estamos envolvidos
diretamente com o homem que se interroga a respeito de seu próprio projeto, o
qual tenta ocultar de si mesmo, com todas as ambiguidades, subterfúgios,
estratégias de má-fé e circularidades implicadas. Por isso é que a “ontologia
fenomenológica” sartriana deve ser concebida como uma antropologia existencial
que se funde com preocupações morais e psicanalíticas práticas nesse “novo
tratado das paixões” e, assim, “circularmente”, enrosca-se em si mesma,
fundamentando-se precisamente nas mesmíssimas dimensões existenciais que afirma
fundamentar. Em consequência, tentar eliminar a antropologia existencial da
ontologia fenomenológica de Sartre, a fim de torná-la “formalmente
consistente”, seria equivalente à futilidade e ao absurdo de tentar a
quadratura do círculo.”
“Vemos, assim, uma singular fusão de
determinações pessoais com dada postura teórica, e essa fusão torna-se o núcleo
organizador da síntese de O ser e o nada.
Como tal, ela determina, em última análise, não só a atitude de Sartre para com
outros pensadores, relegando a questão das considerações acadêmicas a um status realmente sem importância
nenhuma, como também seu vínculo ao tratamento da experiência como evidência
interpretativa. A esmagadora subjetividade de Sartre, tal como incorporada ao
quadro estrutural de sua concepção, é que determina inteiramente e de modo cortante que tipo de evidência é
admissível à consideração e que espécie de uso se deve fazer dos dados
admitidos. (De fato, a palavra “dados” é bastante inadequada. Pois, no momento
em que são enfocadas pela generalização teórica, as informações empíricas são
fundamentalmente transformadas através da descrição eidética e da especificação
caleidoscópica.)
Marx consome a maior parte de sua vida
trancado no Museu Britânico, empenhado em desenterrar as provas que não apenas
dão base à sua concepção teórica como também a ampliam, modificam e
intensificam, exibindo, assim, uma relação inerentemente dialética entre teoria
e pesquisa. Nada poderia ser mais alheio do que isso ao modo de proceder de
Sartre. (Não é, pois, de admirar que ele tenha de interromper o projeto de
estudo da história precisamente no momento em que as permutações mais ou menos
autogeradoras das “estruturas formais da história” estavam delineadas e em que
se impunha de modo inevitável a necessidade de evidências sob a forma de uma
pesquisa histórica continuada.) Ele mantém para com seus relatos de pormenor a
mesma espécie de atitude do monarca absoluto para com seus súditos: trata-os
como bem lhe apraz; e isso de maneira muito legítima, uma vez que, sendo o
fundamento categoricamente autoafirmado da própria legalidade, ele os constitui
de tal modo que eles devem a própria existência como súditos à estrutura
constitutiva da concepção global em que lhes é permitido surgir. E, do mesmo
modo que a busca consciente da originalidade fora teorizada e autenticada
existencialisticamente como o projeto único de uma aventura estritamente
individual, agora a atitude soberana para com a experiência empírica é elevada
a um status teórico no espírito da
“hermenêutica da existência”, que declara seu interesse apenas pelo significado
simbólico que ela mesma gera, cria e
inventa.
O que vemos, então, é uma singular integração
de determinações subjetivas e objetivas em um tipo específico de síntese que
mantém permanentemente a soberania da concepção global sobre os detalhes
específicos de sua sistematização. O modo caleidoscópico de desenvolvimento é
das mais adequadas formas de manifestação desse tipo de síntese, por ser ao
mesmo tempo aberto e fechado. É surpreendentemente aberto com respeito às
possibilidades de transformações parciais
autogeradoras, e é rigidamente fechado no que concerne à estrutura fundamental
e ao esquema categorial do todo. Por
essa razão é que cada nova fase do desenvolvimento de Sartre sempre traz
consigo um novo modo de apresentar os pormenores, associado à pretensão de que
isso importa em uma síntese radicalmente nova.”
“Do modo como as coisas estão em O ser e o
nada, o círculo existencial-ontológico define o caráter e os limites do
empreendimento humano:
Trabalha-se para viver e vive-se para
trabalhar. A questão do sentido da totalidade “vida-trabalho” – “Por que
trabalho, eu que vivo?”, “Por que viver, se é para trabalhar?” – só pode ser
posta no plano reflexivo, já que encerra uma descoberta do Para-si por si mesmo.
(266)
Essa passagem segue-se à descrição do uniforme
de um operário que conserta telhados, como exemplo de como o “ser-Para-outro”
reporta-nos à “remissão ao infinito dos complexos de utensilidade”, retratada
como uma cadeia da qual o “para quem” é meramente um elo incapaz de romper a
cadeia. É compreensível, pois, que a determinação ontológica das estruturas de
reificação restringe a busca do sentido ao nível reflexivo de uma
descoberta da própria “incomparável singularidade”. E é aqui que as limitações
da postura individualista se tornam penosamente visíveis. Pois, obviamente, a
cadeia da reificação capitalista deve ser rompida se eu quero constituir um
significado que me é recusado dentro do círculo, embora, por certo, seja
impossível conceber a realização dessa tarefa por meio de uma ação puramente
individual.
Sartre é, naturalmente, um pensador grande
demais para estabelecer uma solução tão absurdamente individualista que
elevaria Dom Quixote à estatura de todos os heróis positivos da literatura
mundial combinados em um só, de Hércules e El Cid a Figaro e Julien Sorel. O
senso de realismo de Sartre não só especifica a inseparabilidade necessária de
Dom Quixote (liberdade absoluta) e Sancho Pança (contingência e facticidade
absolutas), mas também produz uma fusão completa dos dois na identidade
estipulada de “escolha autêntica” e “ação radical”: um vigoroso
Dom Quixote que traz em si, e não apenas consigo, o seu Sancho
Pança. (Não há, pois, perigo de uma colisão frontal com o moinho de vento da
sociedade. Nosso herói fundido não se interessa pelo êxito da liberdade, mas
pela possibilidade da ação. E ele pode ser sempre bem-sucedido no agir, pois o
que quer que faça ou não faça é necessariamente ação, até mesmo quando tudo
importe em nada mais do que a escolha de recusar-se a escolher.)
Mesmo assim, porém, o empreendimento
permanece problemático. Pois a autodescoberta individual de alguém, não importa
quão autêntica seja a escolha, não pode afetar significativamente as estruturas
compactas da dominação, com todos os seus antagonismos e complexos instrumentais.
Por isso é que a busca do significado não pode se tornar inteligível “no nível reflexivo”:
o terreno da individualidade isolada. “Trabalha-se para viver e vive-se para
trabalhar” não é apenas um círculo, mas o mais vicioso de todos os círculos
viciosos concebíveis nas circunstâncias do trabalho alienado, precisamente
porque, como circularidade de um “existente em bruto”, constitui a base
material de toda dominação, logo é radicalmente incompatível com uma vida plena
de significado. Assim, a busca de significado é idêntica a romper o círculo
vicioso da auto-objetificação alienada, a qual implica não uma
“autodescoberta do Para-si”, mas o rompimento prático e a reestruturação
radical de toda a imensa cadeia de complexos instrumentais, em relação à qual o
indivíduo isolado, em toda a sua “incomparável singularidade”, nada mais é do
que uma vítima indefesa. E, dado o tamanho do empreendimento, para não falar em
seu caráter inerente, isso significa que a efetivação da tarefa envolvida só
pode ser concebida como uma intervenção radical ao nível da práxis social,
com o objetivo de submeter ao controle social consciente as determinações
materiais cruciais, humanas, institucionais e instrumentais: tarefa que implica
uma viável consciência social responsável pela situação, em contraste
com a autoconsciência puramente individual concernente à sua própria
autodescoberta autêntica no nível reflexivo-contemplativo.
Contudo, o mundo de O ser e o nada é
radicalmente incompatível com essa consciência social. Partindo da “solidão
ontológica do Para-si”, a existência do Outro é estabelecida às custas de
identificar objetividade com alienação e estipulando a insuperabilidade
absoluta dessa alienação:
Meu pecado original é a existência do outro
[...]. Capto o olhar do outro no próprio cerne de meu ato, como solidificação
e alienação de minhas próprias possibilidades (338). [...] minha possibilidade
se converte, fora de mim, em probabilidade (341). Assim, o
ser-visto constitui-me como um ser sem defesa para uma liberdade que não é a
minha liberdade. [...] esta escravidão não é o resultado – histórico e
susceptível de ser superado (344). Meu ser Para-outro é uma queda
através do vazio absoluto em direção à objetividade (352). A vergonha é
o sentimento de pecado original [...] simplesmente pelo fato de [eu] ter
“caído” no mundo, em meio às coisas, e necessitar da mediação do outro
para ser o que sou (369). [...] pelo fato da existência do outro, existo em uma
situação que tem um lado de fora, e que, por esse mesmo fato, possui uma
dimensão de alienação que não posso remover de forma alguma, do
mesmo modo como não posso agir diretamente sobre ela. Este limite à minha
liberdade, como se vê, é colocado pela pura e simples existência do
outro (644). Assim, o sentido mesmo de nossa livre escolha consiste em fazer
uma situação que exprime tal escolha e da qual uma característica essencial
é ser alienada, ou seja, existir como forma em si para o outro. Não
podemos escapar a esta alienação, pois seria absurdo sequer sonhar em
existir de outro modo que não em situação. (644-5)
Como se poderia escapar do círculo pela
solidariedade que se ergue sobre o fundamento de uma condição compartilhada, se
a “pura e simples existência’’ do Outro converte a objetividade em escravidão
permanente pela definição da “essência” de toda situação como alienação? Como
se poderia sequer conceitualizar a possibilidade de uma luta social contra a
objetividade reificada, se é atribuída à reificação a dignidade ontológica de
“solidificação” e “petrificação”, tal como contida no “sentido profundo do mito
de Medusa”[373]? E como se poderia almejar um fim do desamparo da
individualidade isolada mediante uma reciprocidade dialética e uma mediação
com outros, se a dialética da reciprocidade é convertida em uma circularidade
autodestrutiva e a mediação é a priori condenada como o domínio do Outro
em meu próprio ser, depois de ter eu caído miticamente pelo “vácuo absoluto” na
objetividade-alienação-petrificação da minha situação?
Ao adotar o ponto de vista do individualismo
anarquista, Sartre impõe a si mesmo as características limitações desse quadro
como uma série de conceitualizações para a exclusão de outras: uma abordagem
cujo traço mais saliente é a rejeição a priori da possibilidade de uma
supressão histórica da alienação, desvinculando a objetividade da reificação,
em uma reversão radical do processo histórico original de vinculação
correspondente à “condição inconsciente” do desenvolvimento humano até o
presente momento. A postura individualista de Sartre, contudo, priva-o das
ferramentas conceituais exigidas para visualizar uma solução de tais problemas.
No quadro conceitual de O ser e o nada, a possibilidade de uma
consciência coletiva genuína é um falimento a priori, uma vez que a
autoconsciência é, por definição, puramente individual, e a ideia de um
inconsciente é categoricamente rejeitada já no nível da consciência individual.
Assim, podemos ver de novo que Sartre caminha em direção diametralmente oposta
ao desenvolvimento dado por Marx a esses problemas. Embora adote a
identificação hegeliana entre alienação e objetividade, que é
inerentemente a-histórica, ele vai muito mais longe, liquidando até mesmo os
resquícios de historicidade dessas relações ao declarar a vacuidade do conceito
de uma humanidade historicamente em desenvolvimento.”
[373] O fato de que o mito de Medusa (531)
tenha sido virado “do avesso” para ajustar-se à teoria (pois originalmente não
é o mítico olhar do Outro sobre mim que causa minha petrificação, mas sim meu
próprio olhar proibido para a Medusa) não nos deve preocupar demais. Muito
mais importante é o uso geral feito das relações simbólicas apresentadas. Em
última análise, todas elas se prendem à questão da apropriação: o
individualismo de Sartre o impede de conceber a apropriação senão em termos
simbólicos, uma vez que uma plena apropriação em relação ao indivíduo isolado é
claramente inconcebível. Essa posição é projetada miticamente a um passado que
precede a divisão do trabalho, e aí encontramos a versão existencialista de
Sartre da “robinsonada”, que se destina a alinhar produção e apropriação
como individualistas e, como tais, ontologicamente fundamentais. Estamos diante
de uma fictícia antropologia de gabinete, em nome de uma descrição ontológica
das relações fundamentais, e terminamos com uma conclusão perversa que
identifica o “luxo” como mais próximo da propriedade original: “Originariamente
[...], eu mesmo faço para mim o objeto que quero possuir. Meu arco,
minhas flechas [Sexta-feira chega depois] [...] A divisão do trabalho
obscureceu essa relação primordial sem eliminá-la. O luxo é uma
degradação da relação; na forma primitiva do luxo, possuo um objeto que fiz
fazer [fait faire] para mim, por pessoas minhas (escravos, criados
nascidos na casa). O luxo é, pois, a forma de propriedade mais próxima da
propriedade primitiva” (720).
“Os perigos políticos/militares devastadores
do imperialismo – um sistema de determinações internas e correspondentes
relações inter-Estados extremamente iníquas que podem mudar sua especificidade
histórica, mas não sua substância estruturalmente arraigada – não podem
ser relegados ao passado sem superar radicalmente a dimensão reprodutiva
material do sistema do capital como um todo integrado.
A incurável centrifugalidade do
sistema do capital só pode intensificar suas contradições e aumentar os perigos
necessariamente associados a elas numa era de interesses próprios globalmente
conflitantes afirmados pelas forças monopolistas dominantes, correspondentes ao
estágio hoje prevalecente da articulação do modo de reprodução social
metabólica do capital. (...)
O verdadeiro significado das palavras citadas
sobre “a emancipação econômica da classe trabalhadora” é a emancipação
da humanidade do poder cegamente prevalecente do determinismo econômico,
sob o qual nenhum ser humano pode ter controle genuíno do metabolismo social,
nem mesmo as personificações mais dispostas do capital. Somente por meio da
transformação qualitativa do trabalho – deixando de ser a classe
social alienada e estruturalmente subordinada, porém necessariamente
recalcitrante, do processo de reprodução para ser o princípio regulador
universal do intercâmbio da humanidade com a natureza e entre seus membros
individuais, livremente adotado enquanto sua atividade vital significativa por
todos os membros da sociedade – a real emancipação humana pode ser realizada no
curso do desenvolvimento histórico com fim aberto.
É por essa razão que Marx contrastava ao que
chamou de “pré-história” não algum tipo de “fim da história” messiânico –
embora costume ser cruelmente acusado de fazê-lo –, mas sim o processo dinâmico
da “história real” de fato em desdobramento e conscientemente controlada. Ou
seja: a história não mais governada pelas determinações econômicas
antagônicas, mas vivida de acordo com seus objetivos e fins escolhidos
pelos indivíduos sociais enquanto produtores livremente associados. (...)
A questão decisiva concerne à
controlabilidade e restringibilidade racional de qualquer ordem reprodutiva
societal em relação à efetividade histórica e disponibilidade de suas condições
necessárias de reprodução. E a verdade mais desconfortável da questão a esse
respeito é que a ordem reprodutiva socioeconômica, a ordem societal agora
estabelecida, cuja viabilidade depende da infindável expansão do capital,
deve gerar constantemente não só expectativas subjetivas (em grande
medida manipuláveis ou até mesmo repreensíveis), mas também expectativas
objetivas irrepreensíveis – tanto para os outros quanto para si mesma – que
ela possivelmente não pode suprir.
Nesse sentido, em contraste com a ordem
existente do capital, somente uma forma qualitativamente diferente de
gerir o metabolismo social, dos processos materiais elementares aos mais altos
níveis de produção e apreciação artística, poderia fazer uma real diferença a
esse respeito. E isso implicaria uma orientação radicalmente diferente dos
indivíduos sociais para a coerência coletiva conscientemente buscada de
suas atividades, no lugar da centrifugalidade hoje prevalecente e
potencialmente desintegradora de suas condições de existência. Isso acontece
porque, enquanto as mediações de segunda ordem antagônicas do
sistema do capital permanecerem dominantes, elas estão fadadas a clamar por
algum tipo de superimposição social em vez de militar contra ela no espírito do
desiderato anarquista da “sociedade sem poderes”.
Não pode haver “uma sociedade sem poderes”.
Especialmente não na era da reprodução societal e de produção em desdobramento
global. A ordem reprodutiva estabelecida hoje é inseparável de suas mediações
de segunda ordem antagônicas pela simples razão de serem necessárias
para a busca irracional da expansão infindável do capital, independentemente de
suas consequências. No entanto, esse sistema está fadado a gerar recalcitrância
(nos indivíduos que produzem), a superimposição do controle extrínseco
(para derrotar a recalcitrância, se necessário pela violência) e, ao mesmo
tempo, também a irresponsabilidade institucionalizada (por causa da
ausência de racionalidade factível e controle aceitável). (...)
De modo compreensível, portanto, a única
forma de sustentar uma ordem reprodutiva globalmente coordenada no nosso
horizonte é almejando um poder político e material cooperativamente
compartilhado, determinado e administrado sobre a base não só da igualdade
simplesmente formal, mas também substantiva (uma necessidade
absoluta como condição de possibilidade de uma ordem societal futura viável) e
o correspondente planejamento racional de suas atividades vitais pelos produtores
livremente associados.
Naturalmente, isso é inconcebível sem a forma
apropriada de mediação dos indivíduos sociais entre si e na sua relação
combinada, enquanto humanidade real (embora não “como quiserem”), com a
natureza. No entanto, não há nada de misterioso ou proibitivamente difícil
sobre defender um sistema qualitativamente diferente de mediação reprodutiva
societal. As condições de seu estabelecimento podem ser explicitadas de forma
tangível, envolvendo um esforço determinado e historicamente sustentado para
romper a pressão do valor de troca sobre o valor de uso
humanamente adotado e gratificante, correspondendo não à carência humana
formalmente equalizável e substantivamente incomensurável, bem como
insensivelmente ignorada, mas sim à carência humana diretamente significativa
dos indivíduos como livremente associados.
O princípio organizador básico do tipo de
atividade reprodutiva societal que é orientado para tal ordem social metabólica
qualitativamente diferente foi descrito por Marx em termos bem simples, com
referência ao intercâmbio coletivo da atividade vital dos indivíduos,
quando ele escreveu que
O caráter coletivo da produção faria do
produto, desde o início, um produto coletivo, universal. A troca que
originalmente tem lugar na produção – que não seria uma troca de valores de
troca, mas de atividades que seriam determinadas pelas necessidades
coletivas, por fins coletivos – incluiria, desde o início, a participação
do indivíduo singular no mundo coletivo dos produtos.[517]
Obviamente, a regulação e a livre coordenação
de suas atividades vitais pelos indivíduos implicam ajustes positivos
contínuos. Os necessários ajustes positivos genuínos em uma ordem
socialista tornam-se possíveis graças à remoção dos interesses próprios estruturalmente
arraigados da existência alienante de classe do passado, com sua
irresponsabilidade institucionalizada sob o sistema do capital. Por
conseguinte, a atividade produtiva e distributiva dos indivíduos pode ser
promovida e mantida não pela postulação de uma “sociedade sem poderes”, mas
pelos poderes plenamente compartilhados dos membros da sociedade,
inseparáveis da adoção de sua responsabilidade plenamente compartilhada.
Essa é a única alternativa historicamente viável para a destrutividade crescente
do “capitalismo avançado” e do “capitalismo organizado”.
[517] Karl Marx, Grundrisse: manuscritos econômicos de 1857-1858: esboços da crítica da
economia política (trad. Mario Duayer e Nélio Schneider, São Paulo,
Boitempo, 2011), p. 118.
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