Editora: Vozes
ISBN: 978-85-3261-762-0
Tradução e notas: Paulo Perdigão
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 784
Sinopse: Publicado,
em 1943, O ser e o nada dá continuidade a uma reflexão que já se
iniciara no princípio do século com pensadores como Kierkegaard, Jaspers e
Heidegger, exercendo uma incontornável influência sobre as cinco últimas
décadas. Sartre desenvolveu um prodigioso e completo sistema de ‘explicação
total do mundo’ através de um exame detalhado da realidade humana como ela se
manifesta, estudando o abstrato concretamente. Ao ser publicado, O ser e o
nada causou espanto, polêmica, protestos, admiração. Com sua originalidade
transgressora e contestações às verdades eternas da tradição filosófica,
constitui o apogeu da primeira fase da filosofia sartriana.
“Se, de fato, toda metafísica presume uma
teoria do conhecimento, em troca toda teoria do conhecimento presume uma
metafísica. Significa, entre outras coisas, que um idealismo empenhado em
reduzir o ser ao conhecimento que dele se tem deve, previamente, comprovar de
algum modo o ser do conhecimento.”
“A consciência não se produz como exemplar
singular de uma possibilidade abstrata, mas que, surgindo no bojo do ser, cria
e sustenta sua essência, quer dizer, a ordenação sintética de suas
possibilidades. Significa também que o tipo de ser da consciência é o reverso
do que nos revela a prova ontológica: como a consciência não é possível antes
de ser, posto que seu ser é fonte e condição de toda possibilidade, é sua
existência que implica sua essência.”
“Assim, renunciando à primazia do
conhecimento, descobrimos o ser do cognoscente e encontramos o absoluto,
o mesmo absoluto que racionalistas do século XVII tinham definido e constituído
logicamente como objeto de conhecimento. Mas, exatamente por se tratar de
absoluto de existência e não de conhecimento, escapa à famosa objeção de que um
absoluto conhecido não é mais absoluto, por se tornar relativo ao conhecimento
que dele se tem. Realmente, o absoluto, aqui, não é resultado de construção
lógica no terreno do conhecimento, mas sujeito da mais concreta das
experiências. E não é relativo a tal experiência, porque é essa
experiência. É também um absoluto não-substancial. O erro ontológico do
racionalismo cartesiano foi não ver que, se o absoluto se define pela primazia
da existência sobre a essência, não poderia ser substância. A consciência nada
tem de substancial, é pura “aparência”, no sentido de que só existe na medida que
aparece. Mas, precisamente por ser pura aparência, um vazio total (já que o
mundo inteiro se encontra fora dela), por essa identidade que nela existe entre
aparência e existência, a consciência pode ser considerada o absoluto.”
“O nada não pode nadificar-se a não ser sobre
um fundo de ser: se um nada pode existir, não é antes ou depois do ser, nem de
modo geral, fora do ser, mas no bojo do ser, em seu coração, como um verme.”
“Ainda não é possível abordar o problema da
liberdade em toda amplitude. Com efeito, os passos até aqui dados mostram bem
claro que a liberdade não é uma faculdade da alma apta a ser encarada e
descrita isoladamente. Queremos definir o ser do homem na medida em que
condiciona a aparição do nada, ser que nos apareceu como liberdade. Assim,
condição exigida para nadificação do nada, a liberdade não é uma propriedade
que pertença entre outras coisas à essência do ser humano. Por outro lado,
já sublinhamos que a relação entre existência e essência não é igual no homem e
nas coisas do mundo. A liberdade humana precede a essência do homem e torna-a
possível: a essência do ser humano acha-se em suspenso na liberdade. Logo,
aquilo que chamamos liberdade não pode se diferençar do ser da “realidade
humana”. O homem não é primeiro para ser livre depois: não há
diferença entre o ser do homem e seu “ser-livre”.”
“O nada, como vimos, é fundamento da negação
porque a carrega oculta em si, é negação como ser. Portanto, é necessário que o
ser consciente se constitua com relação a seu passado separado dele por um
nada; que seja consciente desta ruptura de ser, não como fenômeno padecido, e
sim como estrutura da consciência que é. A liberdade é o ser humano colocando
seu passado fora de circuito e segregando seu próprio nada.”
“Eis, portanto, nova questão: se a liberdade
é o ser da consciência, a consciência deve existir como consciência de
liberdade. Qual a forma desta consciência? Na liberdade, o ser humano é seu
próprio passado (bem como seu próprio devir) sob a forma de nadificação. Se
nossa análise está no rumo certo, deve haver para o ser humano, na medida que é
consciente de ser, determinada maneira de situar-se frente a seu passado e seu
futuro como sendo esse passado e esse futuro e, ao mesmo tempo, como não os
sendo. Podemos dar uma resposta imediata: é na angústia que o homem toma
consciência de sua liberdade, ou, se se prefere, a angústia é o modo de ser da
liberdade como consciência de ser; é na angústia que a liberdade está em seu
ser colocando-se a si mesma em questão. Kierkegaard, descrevendo a angústia
antes da culpa, caracteriza-a como angústia frente à liberdade. Mas Heidegger,
que, como se sabe, sofreu profundamente a influência de Kierkegaard, considera
a angústia, ao contrário, como captação do nada. Duas descrições da angústia
que não parecem contraditórias, mas, ao contrário, implicam-se mutuamente. Em
primeiro lugar, há que se dar razão a Kierkegaard: a angústia se distingue do
medo porque medo é medo dos seres do mundo, e angústia é angústia diante de mim
mesmo. A vertigem é angústia na medida em que tenho medo, não de cair no
precipício, mas de me jogar nele. Uma situação que provoca medo, pois ameaça
modificar de fora minha vida e meu ser, provoca angústia na medida em que
desconfio de minhas reações adequadas a ela. A armação de artilharia que
precede um ataque pode provocar medo no soldado que sofre um bombardeio, mas a
angústia começará quando ele tentar prever as ações contra o bombardeio e se
perguntar se poderá “suportar”. Igualmente, o convocado que se incorpora a seu
regimento no início da guerra, pode, em certos casos, ter medo da morte; mas,
mais comumente, ele tem “medo de ter medo”, ou seja, angustia-se diante de si
mesmo. Quase sempre as situações perigosas ou ameaçadoras têm facetas: serão
captadas por um sentimento de medo ou de angústia conforme se encare seja a
situação agindo sobre o homem, seja o homem agindo sobre a situação. O homem
que acaba de receber “um rude golpe”, tendo perdido em quebra da bolsa grande
parte de seus bens, pode temer a pobreza que o ameaça. Irá angustiar-se logo
depois, quando, esfregando nervosamente as mãos (reação simbólica à ação que se
impõe mas permanece ainda inteiramente indeterminada), exclama: “Que fazer? Mas
que fazer?” Neste sentido, medo e angústia são mutuamente excludentes, já que o
medo é apreensão irrefletida (irréfléchie) do transcendente e angústia
apreensão reflexiva de si; uma nasce da destruição da outra, e o processo
normal, no caso, é um trânsito constante de uma à outra.”
“Me angustio precisamente porque minhas
condutas não passam de possíveis, e isso significa exatamente: embora
constituindo um conjunto de motivos para repelir a situação, ao mesmo
tempo capto esses motivos como insuficientemente eficazes.”
“Chamaremos precisamente de angústia a
consciência de ser seu próprio devir à maneira de não sê-lo. E exatamente a
nadificação do horror como motivo, que tem por efeito reforçar o horror
como estado, traz como contrapartida positiva a aparição de outras
condutas (em particular, a de lançar-me no precipício) como meus possíveis possíveis.
Se nada me constrange a salvar minha vida, nada me impede de
jogar-me no abismo. A conduta decisiva emanará de um eu que ainda não sou.
Assim, o eu que sou depende em si mesmo do eu que ainda não sou, na medida exata
em que o eu que ainda não sou independe do eu que sou. E a vertigem surge como
captação dessa dependência. Aproximo-me do precipício e meu olhar procura a mim
mesmo lá no fundo. A partir daí, jogo com meus possíveis. Meus olhos,
percorrendo o abismo de alto a baixo, mimetizam minha possível queda,
realizando-a simbolicamente; ao mesmo tempo, a conduta suicida, pelo fato de
converter-se em “meu possível” possível, faz surgir por sua vez motivos
possíveis para adotá-la (o suicídio fará cessar a angústia). Felizmente, tais
motivos, por sua vez, só pelo fato de serem motivos de um possível, mostram-se
ineficazes, não-determinantes: não podem produzir o suicídio, assim como
meu horror à queda não pode me determinar a evitá-la. Em geral, esta contra-angústia
faz cessar a angústia, transformando-a em indecisão. Por sua vez, a indecisão
chama a decisão: afasto-me bruscamente da borda do precipício e retomo o
caminho.”
“O exemplo que acabamos de analisar mostrou o
que se pode chamar de “angústia ante o futuro”. Existe outra: a angústia ante o
passado. É a do jogador que livre e sinceramente decidiu parar de jogar e, ao
aproximar-se do “tapete verde”, vê “naufragarem” suas decisões. Costuma-se
descrever o fenômeno como se a visão da mesa de jogo despertasse uma tendência
que entraria em conflito com nossa decisão anterior e, apesar desta, acabaria
por nos arrastar. Além de constituída por termos coisificantes e de povoar o
espírito de forças antagônicas (por exemplo, a famosa “luta da razão contra as
paixões” dos moralistas), essa descrição não atenta à verdade dos fatos. Na
realidade – e aí estão as cartas de Dostoievski para prová-lo –, nada há em nós
que se assemelhe a um debate interior, como se tivéssemos de pesar
motivos e móveis antes de tomar uma decisão. A resolução anterior de “não jogar
mais” acha-se sempre aí, e, na maioria dos casos, o jogador diante da
mesa de jogo a ela recorre em busca de ajuda: não quer mais jogar, ou melhor,
tendo tomado a decisão na véspera, acredita que continua não querendo mais
jogar, acredita na eficácia da decisão. Mas apreende na angústia exatamente sua
total ineficácia. A resolução passada acha-se aí, sem dúvida, porém congelada,
ineficiente, ultrapassada pelo próprio fato de que tenho consciência dela.
Uma decisão que ainda é minha, na medida em que realizo
perpetuamente minha identidade comigo mesmo através do fluxo temporal; mas que
já não é minha pelo fato de que existe para minha consciência.
Dela me liberto, e ela fracassa na missão que lhe dei. Também aqui, sou essa
decisão à maneira de não sê-lo. Mais uma vez, o que o jogador capta neste
instante é a ruptura permanente do determinismo, o nada que o separa de si
mesmo: eu tinha desejado tanto não jogar mais que, ontem mesmo, tive uma
apreensão sintética da situação (ameaça de ruína, desespero de meus parentes)
como algo que me proíbe de jogar. Parecia-me ter criado assim uma barreira
real entre o jogo e mim, mas eis que – percebo de repente – essa apreensão
sintética não passa de recordação de uma ideia, lembrança de um sentimento:
para que aquela decisão venha de novo me prestar ajuda, é preciso que eu a
refaça ex nihilo e livremente; é apenas um de meus possíveis, assim
como o fato de jogar é outro, nem mais nem menos. O medo de desolar minha
família tem de ser recuperado por mim, recriado como medo vivido, pois
se mantém à minha retaguarda como um fantasma sem ossos, na dependência de que
eu lhe empreste minha carne. Estou só e desnudo, tal como diante da tentação do
jogo, na véspera, e, depois de erguer pacientemente barreiras e muros e me
enfurnado no círculo mágico de uma decisão, percebo com angústia que nada me
impede de jogar. E essa angústia sou eu, porque, só pelo fato de me
conduzir à existência como consciência de ser, faço-me como não sendo mais esse
passado de boas decisões que sou.
Seria inútil objetar que essa angústia
depende da ignorância do determinismo psicológico subjacente: eu ficaria
ansioso por desconhecer os móveis reais e eficazes que, à sombra do
inconsciente, determinam minha ação. Responderemos, em primeiro lugar, que a
angústia não surgiu como prova da liberdade humana, a qual nos aparece
como condição necessária à interrogação. Queríamos apenas mostrar que existe
uma consciência específica de liberdade e esta consciência é angústia. Buscamos
estabelecer a angústia, em sua estrutura essencial, como consciência de
liberdade. Nesse ponto de vista, a existência de um determinismo psicológico
não poderia invalidar os resultados da nossa descrição: ou bem, com efeito, a
angústia é ignorância ignorada desse do transcendente como temível.
A liberdade que se revela na angústia pode
caracterizar-se pela existência do nada que se insinua entre os motivos
e o ato. Não é porque sou livre que meu ato escapa à determinação dos
motivos, mas, ao contrário, a estrutura ineficiente dos motivos é que
condiciona minha liberdade. E se indagar-se que nada é esse que
fundamenta a liberdade, responderemos que não se pode descrevê-lo, posto que
ele não é, mas ao menos podemos captar seu sentido, na medida em que é
tendo sido pelo ser humano em suas relações consigo mesmo. Corresponde à
necessidade que o motivo tem de só aparecer como tal enquanto correlação de uma
consciência de motivo. Em suma, a partir do momento em que renunciamos à
hipótese dos conteúdos de consciência, devemos admitir que não existe motivo na
consciência: existe, sim, para a consciência. E, pelo fato de só
poder surgir como aparição, o motivo constitui-se a si como ineficaz. Sem dúvida,
não tem a exterioridade da coisa espaço-temporal: pertence sempre à
subjetividade e é apreendido como meu, mas, por natureza, é
transcendência na imanência, e a consciência lhe escapa pelo fato mesmo de
designá-lo, pois cabe à consciência, neste momento, conferir-lhe sua
significação e importância. Assim, o nada que separa motivo e
consciência caracteriza-se como transcendência na imanência; ao produzir-se a
si como imanência, a consciência nadifica o nada que a faz existir para si como
transcendência. Mas esse nada, condição de toda negação transcendente, só pode
ser elucidado a partir de duas outras nadificações primordiais: 1 º) a
consciência não é seu próprio motivo, sendo vazia de todo
conteúdo, o que nos remete a uma estrutura nadificadora do cogito
pré-reflexivo: 2º) a consciência está frente a seu passado e futuro tal como
frente a um si-mesmo que ela é à maneira de não sê-lo, e isso leva-nos a uma
estrutura nadificadora da temporalidade.”
“Na angústia, a liberdade se angustia diante
de si porque nada a solicita ou obstrui jamais. (...)
Com efeito, angústia é reconhecimento de uma
possibilidade como minha possibilidade, ou seja, constitui-se quando a
consciência se vê cortada de sua essência pelo nada ou separada do futuro por
sua própria liberdade. Significa que um nada nadificador me deixa sem
desculpas, e, ao mesmo tempo, que o que eu projeto como meu ser futuro está
sempre nadificado e reduzido à categoria de mera possibilidade, porque o futuro
que sou permanece fora de meu alcance. Mas convém notar que, nesses casos,
fizemos uso de uma forma temporal pela qual me aguardo no futuro, “marco
encontro comigo mesmo para além desta hora, dia ou mês”. A angústia é o temor
de não estar nesse encontro, o temor de sequer querer comparecer a ele.”
“O valor só pode revelar-se a uma liberdade
ativa que o faz existir como valor simplesmente por reconhecê-lo como tal. Daí
que minha liberdade é o único fundamento dos valores e nada, absolutamente
nada, justifica minha adoção dessa ou daquela escala de valores. Enquanto ser
pelo qual os valores existem, sou injustificável. E minha liberdade se angustia
por ser o fundamento sem fundamento dos valores. Além disso, porque os valores,
por se revelarem por essência a uma liberdade, não podem fazê-lo sem deixar de ser
“postos em questão”, já que a possibilidade de inverter a escala de valores
aparece, complementarmente, como minha possibilidade. A angústia ante os
valores é o reconhecimento de sua idealidade.”
“Convém sublinhar aqui que a liberdade
manifestada pela angústia se caracteriza por uma obrigação perpetuamente
renovada de refazer o Eu que designa
o ser livre. Quando mostramos, há pouco, que meus possíveis eram angustiantes
porque dependia só de mim, com efeito, mantê-los em sua existência, não
significava que derivavam de um eu – este sim, ao menos – dado de antemão e que
passasse de uma consciência a outra, no fluxo temporal. O jogador que precisa
ter novamente a percepção sintética de uma situação, a qual lhe impediria de
jogar, deve reinventar ao mesmo tempo o eu capaz de apreciar essa situação e
que “está em situação”. Esse eu, como seu conteúdo a priori e histórico, é a essência do homem. E a angústia, como
manifestação da liberdade frente a si, significa que o homem acha-se sempre
separado de sua essência por um nada. Devemos retomar aqui a frase de Hegel: “Wesen
ist was gewesen ist”, ou seja, “a essência é o é tendo sido”. A essência é tudo
que se pode indicar do ser humano por meio das palavras: isso é. Por isso, é a
totalidade dos caracteres que explicam o ato. Mas o ato está sempre além
dessa essência, só é ato humano quando transcende toda explicação que se lhe
dê, precisamente porque tudo que se possa designar no homem pela fórmula “isso
é”, na verdade, por esse fato mesmo, é tendo sido. O homem leva consigo,
continuamente, uma compreensão pré-judicativa de sua essência, mas, por isso,
acha-se separado dela por um nada. A essência é tudo que a realidade humana
apreende de si mesmo como tendo sido. E aqui aparece a angústia como
captação do si-mesmo na medida em que este existe como modo perpétuo de
arrancamento àquilo que é; ou melhor, na medida em que o si-mesmo se faz
existir como tal. Porque jamais podemos captar uma “Erlebnis” como consequência
viva dessa natureza que é a nossa. O fluxo de nossa consciência
constitui, em seu transcurso, essa natureza, que no entanto se mantém sempre à
nossa retaguarda e nos infesta enquanto objeto permanente de nossa compreensão
retrospectiva. Esta natureza, na medida em que é exigência sem ser recurso, é
captada como angustiante.
Na angústia, a liberdade se angustia diante
de si porque nada a solicita ou obstrui jamais. Dir-se-á que a liberdade
está sendo aqui definida como estrutura permanente do ser humano: mas, se a
angústia manifesta tal estrutura, deveria então ser um estado permanente de
minha afetividade. Ora, ao contrário, é totalmente excepcional. Como explicar a
raridade do fenômeno?
Em primeiro lugar, note-se que as situações
mais correntes de nossa vida, em que captamos nossos possíveis como tais na e
pela realização ativa desses possíveis, não se manifestam através da angústia
porque sua estrutura exclui a apreensão angustiada. Com efeito, angústia é
reconhecimento de uma possibilidade como minha possibilidade, ou seja,
constitui-se quando a consciência se vê cortada de sua essência pelo nada ou
separada do futuro por sua própria liberdade. Significa que um nada nadificador
me deixa sem desculpas, e, ao mesmo tempo, que o que eu projeto como meu ser
futuro está sempre nadificado e reduzido à categoria de mera possibilidade,
porque o futuro que sou permanece fora de meu alcance. Mas convém notar que,
nesses casos, fizemos uso de uma forma temporal pela qual me aguardo no futuro,
“marco encontro comigo mesmo para além desta hora, dia ou mês”. A angústia é o
temor de não estar nesse encontro, o temor de sequer querer comparecer a ele.
Mas também posso me ver comprometido em atos que revelam minhas possibilidades
no instante que elas se realizam. No ato de acender este cigarro, capto minha
possibilidade concreta, ou, se preferirmos, meu desejo de fumar; pelo gesto de
aproximar de mim este papel e esta caneta, capto como minha possibilidade mais
imediata a ação de trabalhar neste livro: eis-me comprometido nesta
possibilidade, que descubro no mesmo momento em que a ela me lanço. Sem dúvida,
neste momento continua sendo minha possibilidade, já que posso a qualquer
instante largar o trabalho, afastar o papel, tampar a caneta. Mas tal
possibilidade de interromper a ação é rechaçada a segundo plano porque a ação
que a mim se revela através de meu ato tende a cristalizar-se como forma
transcendente e relativamente independente. A consciência do homem em ação é
consciência irrefletida. É consciência de alguma coisa, e o
transcendente que a ela se revela é de natureza particular: é uma estrutura
de exigência do mundo que, correlativamente, revela em si complexas
relações de utensilidade. No ato de escrever as letras que escrevo, a frase
total, ainda inacabada, revela-se como exigência passiva de ser escrita. A
frase é o sentido mesmo das letras que escrevo e seu poder não é posto em
questão porque, justamente, não posso escrever as palavras sem transcendê-las
até a frase total, que descubro ser a condição necessária do sentido das
palavras que escrevo. Simultaneamente, e na mesma cena do ato, um complexo
indicativo de utensílios revela-se e se organiza
(caneta-tinta-papel-linhas-margem, etc.), complexo esse que não pode ser
captado por si mesmo, mas surge como exigência passiva no bojo da
transcendência por mim descoberta pela frase a ser escrita. Assim, na quase
totalidade dos atos cotidianos, estou comprometido, apostei em meus possíveis e
os descubro realizando-os – e isso no próprio ato de realizá-los como
exigências, algo urgente, utensilidades. E, sem dúvida, em todo ato dessa
espécie, permanece a possibilidade de questionar o ato, na medida em que remete
a fins mais distantes e essenciais, tais como suas significações finais e
minhas possibilidades essenciais. Por exemplo: a frase que escrevo é a
significação das letras escritas, mas o livro inteiro que pretendo concluir é a
significação das frases. E este livro é uma possibilidade que pode me
angustiar: é verdadeiramente meu possível, e não sei se amanhã irei
continuá-lo: amanhã, com relação a ele, minha liberdade pode exercer seu poder
nadificador. Só que esta angústia encerra a apreensão do livro enquanto tal
como minha possibilidade: preciso me colocar diretamente diante dele e
vivenciar minha relação com ele. Significa que não devo fazer apenas perguntas
objetivas a seu respeito – como “devo escrever este livro?” –, porque me levam
apenas a significações objetivas mais amplas, do gênero: “Será oportuno
escrevê-lo neste momento?”, “Não estará repetindo aquele outro livro?”, “O
assunto é de interesse suficiente?”, “Terá sido bastante meditado?”, etc.
Significações que permanecem transcendentes e surgem como pluralidade de
exigências do mundo. Para que minha liberdade venha a se angustiar com este
livro que escrevo, é preciso que ele apareça em sua relação comigo, ou seja,
que eu descubra, por um lado, minha essência como aquilo que fui (fui
um “querer escrever este livro”, pois o concebi, achei de interesse escrevê-lo
e me tornei de tal modo que já não posso ser compreendido sem levar em
conta o fato de que este livro foi meu possível essencial); por outro
lado, que eu descubra o nada que separa minha liberdade dessa essência (fui um “querer
escrever este livro”, mas nada, sequer aquilo que fui, pode me obrigar a
escrevê-lo); e, por fim, que eu descubra o nada que me separa do que serei
(descubro a possibilidade permanente de abandonar o livro como condição mesmo
da possibilidade de escrevê-lo e sentido da minha liberdade). Na própria
constituição do livro como meu possível, é preciso que capte minha liberdade
como possível destruidora daquilo que sou, no presente e futuro. Ou seja,
preciso situar-me no plano da reflexão. Enquanto permaneço no plano da ação, o
livro a escrever não passa da significação remota e pressuposta do ato que
revela meus possíveis, algo subentendido no ato, não tematizado* e designado
para si, algo que “não questiona”. O livro não é concebido como necessário ou
contingente, mas apenas como sentido permanente e longínquo a partir do qual
posso compreender o que agora estou escrevendo. Por isso, é concebido como ser
– quer dizer: somente ao designá-lo como fundo existente sobre o
qual emerge minha frase atual e existente é que posso conferir a esta um
sentido determinado. Pois bem: a cada instante somos lançados no mundo e
ficamos comprometidos. Significa que agimos antes de designar nossos possíveis,
e estes, que se revelam realizados ou em vias de se realizar, remetem a sentidos
que, para serem postos em questão, requerem atos especiais. O despertador que
toca de manhã remete à possibilidade de ir ao trabalho, minha possibilidade.
Mas captar o chamado do despertador como chamado é levantar-se. Assim, o ato de
levantar da cama é tranquilizador, porque evita a pergunta: “Será que o
trabalho é minha possibilidade?” – e, em consequência, não me deixa em
condições de captar a possibilidade do quietismo, da recusa ao trabalho e, em
última instância, da morte e da negação do mundo. Em resumo, na medida em que
apreender o sentido da campainha do despertador já é ficar de pé a seu chamado,
tal apreensão me protege contra a angustiante intuição de que sou eu – eu e
mais ninguém – quem confere ao despertador seu poder de exigir meu despertar.
Da mesma forma, o que se poderia chamar de moralidade cotidiana exclui a
angústia ética. Há angústia ética quando me considero em minha relação original
com os valores. Estes, com efeito, são exigências que reclamam um fundamento.
Mas fundamento que não poderia ser de modo algum o ser, pois todo valor
que fundamentasse sua natureza ideal sobre seu próprio ser deixaria por isso de
ser valor e realizaria a heteronomia de minha vontade. O valor extrai seu ser
de sua exigência, não sua exigência de seu ser. Portanto, não se entrega a uma
intuição contemplativa que o apreenderia como sendo valor e, por isso
mesmo, suprimisse seus direitos sobre minha liberdade. Ao contrário: o valor só
pode revelar-se a uma liberdade ativa que o faz existir como valor simplesmente
por reconhecê-lo como tal. Daí que minha liberdade é o único fundamento dos
valores e nada, absolutamente nada, justifica minha adoção dessa ou
daquela escala de valores. Enquanto ser pelo qual os valores existem, sou
injustificável. E minha liberdade se angustia por ser o fundamento sem
fundamento dos valores. Além disso, porque os valores, por se revelarem por
essência a uma liberdade, não podem fazê-lo sem deixar de ser “postos em
questão”, já que a possibilidade de inverter a escala de valores aparece,
complementarmente, como minha possibilidade. A angústia ante os valores
é o reconhecimento de sua idealidade.
Mas, em geral, minha atitude frente aos
valores é eminentemente tranquilizadora. Estou, de fato, comprometido em um
mundo de valores. A percepção angustiada dos valores como algo sustentado no
ser por minha liberdade é fenômeno posterior e mediatizado. O imediato é o
mundo com seu caráter de urgência, e, neste mundo em que me engajo, meus atos
fazem os valores se erguerem como perdizes: é por minha indignação que me é
dado o antivalor “baixeza”, e, por minha admiração, o valor “grandeza”.
Sobretudo, minha obediência a uma multidão de tabus, que é real, me revela
esses tabus como existentes de fato. Os burgueses que se autodenominam “gente
honesta” não ficam honestos depois de contemplar os valores morais, mas sim
porque, desde que surgem no mundo, são lançados em uma conduta cujo sentido é a
honestidade. Assim, a honestidade adquire um ser e não é questionada; os
valores estão semeados em meu caminho na forma de mil pequenas exigências
reais, similares aos cartazes que proíbem pisar na grama.
Portanto, naquilo que denominaremos mundo do
imediato, que se dá à nossa consciência irrefletida, não aparecemos primeiro
para sermos lançados depois a tal ou qual atividade. Nosso ser está
imediatamente “em situação”, ou seja, surge no meio dessas atividades e
se conhece primeiramente na medida em que nelas se reflete. Descobrimo-nos,
pois, em um mundo povoado de exigências, no seio de projetos “em curso de
realização”: escrevo, vou fumar, tenho encontro com Pedro esta noite, não devo
esquecer de responder a Simão, não tenho direito de esconder a verdade de
Cláudio por mais tempo. Todas essas pequenas esperas passivas pelo real, todos
esses valores banais e cotidianos tiram seu sentido, na verdade, de um projeto
inicial meu, espécie de eleição que faço de mim mesmo no mundo. Mas,
precisamente, esse projeto meu para uma possibilidade inicial, que faz com que
haja valores, chamados, expectativas e, em geral, um mundo, só me aparece para
além do mundo, como sentido e significação abstratos e lógicos de minhas
empresas. De resto, existem concretamente despertadores, cartazes, formulários
de impostos, agentes de polícia, ou seja, tantos e tantos parapeitos de
proteção contra a angústia. Porém, basta que a empresa a realizar se distancie
de mim e eu seja remetido a mim mesmo porque devo me aguardar no futuro,
descubro-me de repente como aquele que dá ao despertador seu sentido, que se
proíbe, a partir de um cartaz, de andar por um canteiro ou gramado, aquele que
confere poder à ordem do chefe, decide sobre o interesse do livro que está
escrevendo – enfim, aquele que faz com que existam os valores, cujas exigências
irão determinar sua ação. Vou emergindo sozinho, e, na angústia frente ao
projeto único e inicial que constitui meu ser, todas as barreiras, todos os
parapeitos desabam, nadificados pela consciência de minha liberdade: não tenho
nem posso ter qualquer valor a recorrer contra o fato de que sou eu quem mantém
os valores no ser; nada pode me proteger de mim mesmo; separado do mundo e de
minha essência por esse nada que sou, tenho de realizar o sentido do
mundo e de minha essência: eu decido, sozinho, injustificável e sem desculpas.
A angústia, portanto, é a captação reflexiva
da liberdade por ela mesma. Nesse sentido, é mediação, porque, embora
consciência imediata de si, surge da negação dos chamados do mundo, aparece se
me desgarro do mundo em que havia me comprometido de modo a me apreender como
consciência dotada de compreensão pré-ontológica de sua essência e de sentido
pré-judicativo de seus possíveis. Opõe-se ao “espírito de seriedade”, que capta
os valores a partir do mundo e reside na substancialização tranquilizadora e
coisista dos valores. Na seriedade, defino-me a partir do objeto, deixando de
lado a priori, como impossíveis, todas as empresas que não vou realizar
e captando como proveniente do mundo e constitutivo de minhas obrigações e meu
ser o sentido que minha liberdade deu ao mundo. Na angústia, capto-me ao mesmo
tempo como totalmente livre e não podendo evitar que o sentido do mundo
provenha de mim.
Contudo, não se deve crer que basta passar ao
plano reflexivo e encarar seus possíveis longínquos ou imediatos para captar-se
em pura angústia. Em cada caso de reflexão, a angústia nasce como
estrutura da consciência reflexiva na medida em que esta leva em consideração a
consciência refletida; mas continua válido o fato de que posso adotar condutas
a respeito de minha própria angústia – em particular, condutas de fuga. Tudo se
passa, com efeito, como se nossa conduta essencial e imediata com relação à
angústia fosse conduta de fuga. O determinismo psicológico, antes de ser uma
concepção teórica, é em primeiro lugar uma conduta de fuga, ou, se preferirmos,
o fundamento de todas as condutas de fuga. É uma conduta refletida com relação
à angústia; afirma existirem em nós forças antagônicas cujo tipo de existência
é comparável ao das coisas; tenta suprimir os vazios que nos rodeiam,
restabelecer os vínculos entre passado e presente, presente e futuro; nos provê
de uma natureza produtora de nossos atos e converte estes mesmos atos em
transcendências, dotando-as de uma inércia e uma exterioridade que atribuem seu
fundamento a algo que não os próprios atos e são eminentemente tranquilizadoras
por constituírem um jogo permanente de desculpas; nega essa
transcendência da realidade humana que a faz emergir na angústia para além de
sua própria essência; ao mesmo tempo, reduzindo-nos a não ser jamais senão o
que somos, reintroduz em nós a positividade absoluta do ser-Em-si, e,
assim, nos reintegra ao seio do ser.
Mas tal determinismo, defesa reflexiva contra
a angústia, não se dá como intuição reflexiva. Nada pode contra a evidência
da liberdade e assim se apresenta como crença de fuga, termo ideal no rumo
do qual podemos fugir da angústia. Isto se manifesta, no terreno filosófico,
pelo fato de os psicólogos deterministas não pretenderem fundamentar sua tese
sobre os puros dados da observação interna. Apresentam-na como hipótese
satisfatória, cujo valor está em dar conta dos fatos – ou como postulado
necessário ao estabelecimento de toda psicologia. Admitem a existência de uma
consciência imediata de liberdade, que seus adversários lhes opõem sob o nome
de “prova por intuição do senso íntimo”. Simplesmente, fazem o debate recair
sobre o valor desta revelação interna. Assim, a intuição que nos permite
captar-nos como causa primeira de nossos estados e atos não é discutida por
ninguém. Continua valendo o fato de estar ao alcance de qualquer um de nós
tentar mediatizar a angústia mantendo-se acima dela e julgando-a como uma
ilusão da nossa ignorância sobre as causas reais de nossos atos. O ágàrâ será o
do grau de crença nessa mediação. Angústia ulgada será angústia desarmada?
Evidentemente, não; contudo, nasce aqui um fenômeno novo, um processo de
alheamento com relação à angústia, o qual, mais uma vez, pressupõe em si um
poder nadificador.
Por si só, o determinismo não bastaria para
fundamentar esse alheamento, já que não passa de postulado ou hipótese. É um
esforço de fuga mais concreto, que se opera no próprio terreno da reflexão. Em
primeiro lugar, é uma tentativa de alheamento quanto aos possíveis contrários
ao meu possível. Quando me constituo como compreensão de um possível
enquanto meu, é preciso que reconheça sua existência no fim do meu
projeto e o apreenda como sendo eu mesmo, lá adiante, aguardando-me no futuro,
separado de mim por um nada. Nesse sentido, capto-me como origem primeira de
meu possível, e isto é o que ordinariamente se denomina consciência de
liberdade; é tal estrutura da consciência e somente ela que têm em vista os
partidários do livre-arbítrio ao se referir à intuição do sentido íntimo. Mas
ocorre que, ao mesmo tempo, esforço-me para me alhear da constituição
dos outros possíveis que contradizem o meu. Para dizer a verdade, não
posso deixar de colocar sua existência pelo mesmo movimento que engendra como
meu o possível escolhido, não posso evitar constituí-los como possíveis viventes,
ou seja, dotados da possibilidade de ser meus possíveis. Mas
esforço-me para vê-los dotados de um ser transcendente e puramente lógico, como
coisas, em suma. Se encaro no plano reflexivo a possibilidade de escrever este
livro como possibilidade minha, faço surgir entre esta possibilidade e
minha consciência um nada de ser que a constitui como possibilidade e que eu
apreendo precisamente na possibilidade permanente de que a possibilidade de não
escrevê-lo seja a minha possibilidade. Mas tento me conduzir com relação
a essa possibilidade de não escrevê-lo como se estivesse diante de um objeto
observável e me compenetro daquilo que quero ver nele: trato de captá-la como
algo que deve ser citado apenas para constar, algo que não me concerne. É
preciso que seja uma possibilidade externa com relação a mim, tal como o
movimento com relação a esta bola imóvel. Se me fosse possível, os possíveis
antagônicos ao meu possível, constituídos como entidades lógicas,
perderiam sua eficácia; já não seriam ameaçadores, pois seriam exterioridades,
cercariam meu possível como eventualidades puramente concebíveis, quer
dizer, concebíveis no fundo por um outro, ou como possíveis de outro
que se encontrasse no mesmo caso. Pertencem à situação objetiva como uma
estrutura transcendente; ou, se preferirmos, para usar a terminologia de
Heidegger: eu escreverei este livro, mas poder-se-ia também não
escrevê-lo. Assim eu dissimularia de mim mesmo o fato de que esses possíveis
são eu mesmo e as condições imanentes da possibilidade de meu possível.
Conservariam apenas suficientes ser para manter em meu possível seu caráter de
gratuidade, de livre possibilidade de um ser livre, mas ficariam desarmados de
seu caráter ameaçador: não me interessariam; o possível elegido
apareceria, devido à eleição, como meu único possível concreto, e, em
consequência, o nada que dele me separa e lhe confere justamente sua
possibilidade seria preenchido.
Mas a fuga da angústia não é apenas empenho
de alheamento ante o devir: tenta, além disso, desarmar a ameaça do passado.
Neste caso, tento escapar de minha própria transcendência, na medida em que
sustenta e ultrapassa minha essência. Afirmo que sou minha essência à maneira
de ser do Em-si. Ao mesmo tempo, todavia, recuso-me a considerar essa essência
como sendo historicamente constituída e como se compreendesse o ato, tal como o
círculo implica em suas propriedades. Capto essa essência ou tento captá-la
como começo primordial de meu possível, e não admito que tenha em si mesma um
começo; afirmo então que um ato é livre quando reflete exatamente minha
essência. Mas, além disso, essa liberdade – que me inquietaria se fosse
liberdade frente ao Eu –, tento reconduzi-la ao seio da minha essência,
quer dizer, de meu Eu. Trata-se de encarar o Eu como um pequeno Deus que me
habitasse e possuísse minha liberdade como uma virtude metafísica. Já não seria
meu ser que seria livre enquanto ser, mas meu Eu que seria livre no seio de
minha consciência. Ficção eminentemente tranquilizadora, pois a liberdade
estaria enterrada no seio de um ser opaco: na medida em que minha essência não
é translucidez e é transcendente na imanência, a liberdade se torna uma de suas
propriedades. Em resumo, trata-se de captar minha liberdade em meu Eu como se
fosse a liberdade de outro.
Veem-se os temas principais desta ficção: meu Eu se converte na origem de seus
atos tal como o outro na origem dos seus, a título de pessoa já constituída.
Decerto, vive e se transforma, até se admite que cada um de seus atos possa
contribuir para transformá-lo. Mas essas transformações harmoniosas e contínuas
são concebidas segundo esse tipo biológico. (...)
Eis, portanto, o conjunto de processos pelos
quais tentamos mascarar a angústia: captamos nosso possível evitando considerar
os outros possíveis, que convertemos em possíveis de um outro indiferenciado;
não queremos ver esse possível sustentado no ser por uma pura liberdade
nadificadora, mas tentamos apreendê-lo como engendrado por um objeto já
constituído, que não é senão o nosso Eu, encarado e descrito como se fosse a pessoa
de um outro. Queremos conservar da intuição primeira aquilo que ela nos
entrega como nossa independência e responsabilidade, mas procurando deixar à
sombra tudo que há nela da nadificação original: sempre prontos, ademais, para
nos refugiar-nos na crença no determinismo, caso tal liberdade nos pese ou
necessitemos de uma desculpa. Assim, escapamos da angústia tentando captar-nos de
fora, como um outro ou como uma coisa. Aquilo que se costuma
chamar de revelação do senso íntimo ou intuição primeira de nossa liberdade
nada tem de original: é um processo já construído, expressamente destinado a
mascarar a angústia, verdadeiro “dado imediato” de nossa liberdade.
Por meio dessas diferentes construções,
logramos sufocar ou dissimular nossa angústia? Certo é que não poderíamos
suprimi-la, porque somos angústia.
Quanto a velá-la, além de que a própria natureza da consciência e sua
translucidez nos impedem de tomar a expressão ao pé da letra, convém observar o
tipo particular de conduta que queremos significar com isso: podemos mascarar
um objeto exterior porque existe independentemente de nós; pela mesma razão,
podemos afastar dele nosso olhar ou nossa atenção, ou seja, fixar simplesmente
os olhos em outro objeto qualquer; a partir desse momento, cada realidade – a
minha e a do objeto – retoma sua vida própria, e a relação acidental que unia a
consciência à coisa desaparece sem alterar por isso nem uma nem outra
existência. Mas se aquilo que quero velar sou
eu, a questão assume outra fisionomia; não posso querer “não ver” certo
aspecto de meu ser, com efeito, salvo se estiver precisamente ciente do aspecto
que não quero ver. Significa que preciso indicá-lo em meu ser para poder
afastar-me dele: melhor dito, é necessário que pense nele constantemente para
evitar pensar nele. Não se deve entender por isso apenas que, por necessidade,
devo levar perpetuamente comigo aquilo de que quero fugir, mas também que devo
encarar o objeto de minha fuga para evitá-lo, o que significa que angústia,
enfoque intencional da angústia e fuga da angústia rumo a mitos
tranquilizadores precisam ser dados na unidade de uma mesma consciência. Em
resumo, fujo para ignorar, mas não posso ignorar que fujo, e a fuga da angústia
não passa de um modo de tomar consciência da angústia. Assim, esta não pode ser,
propriamente falando, nem mascarada nem evitada. Fugir da angústia e ser
angústia, todavia, não podem ser exatamente a mesma coisa: se eu sou minha
angústia para dela fugir, isso pressupõe que sou capaz de me desconcentrar com
relação ao que sou, posso ser angústia sob a forma de “não sê-la”, posso dispor
de um poder nadificador no bojo da própria angústia. Este poder nadifica a
angústia enquanto dela fujo e nadifica a si enquanto sou angústia para dela fugir. É o que se chama de má-fé. Não se trata, pois, de expulsar a
angústia da consciência ou constituí-la em fenômeno psíquico inconsciente;
simplesmente, posso ficar de má-fé na apreensão da angústia que sou, e esta
má-fé, destinada a preencher o nada que sou na minha relação comigo mesmo,
implica precisamente esse nada que ela suprime.”
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