Editora: Casa Amarela
ISBN:
978-85-8682-147-9
Opinião:
★★★☆☆
Páginas:
1152
“Max
Beer, na obra História do socialismo e
das lutas sociais (Editorial Lalvino Ltda., Rio de Janeiro, 1944, p. 458, 2°
volume, trad. de Horácio Mello), traz um bom texto de Necker:
Jacques
Necker, ministro das Finanças de Luís XVI (1732-1804), terminou sua obra sobre o
comércio dos cereais com as seguintes palavras;
“Contemplando
a sociedade, é impossível deixar de verificar que todas as leis, todas as
instituições sociais têm por finalidade única a garantia do bem-estar dos
ricos. Se abrirmos um código de leis, ficaremos horrorizados porque iremos
encontrar, em cada página, a confirmação dessa verdade. Compulsando as leis,
tem-se a impressão de que uma ínfima minoria, um punhado de homens, dividiram a
terra e fizeram as leis para se defender contra a massa de indivíduos que nada
possuem. (...) As leis, para esses homens, têm a mesma utilidade que as cercas
que se levantam para proteger as florestas das incursões de animais ferozes.
De
fato, “as leis” e “as instituições sociais” liberais (capitalistas) têm como
finalidade primária defender os interesses dos ricos (do latifúndio e do
capital, especialmente do capital monopolista, dos trustes e cartéis). No
entanto, tais “leis” e "instituições" podem e devem ser alteradas,
para abolir essas formas jurídicas arcaicas e servis aos ricos (a empresa
capitalista e o latifúndio), substituindo-as por formas jurídicas cooperativas
que realizem o bem comum.
A
propriedade quiritária, absoluta, somente beneficia os ricos. Na verdade, nem
mesmo a esses, pois mergulham os capitalistas num terrível vazio existencial
(cf. Viktor Frankl, Louis Lavelle e outros) e, por isso, vivem embriagados,
drogados, etc. Livrar os ricos dos bens supérfluos (e das formas jurídicas
concentradoras de bens) é libertar os ricos do mal, proporcionando a estes a
chance de se regenerarem.”
“O
padre Sieyès nasceu em 1748 e estudou em Saint Sulpice. Até 1799, não teve
paróquia. Depois, com a ajuda do Lubersac, bispo de Treguier, foi nomeado
vigário-geral. Participou da Assembleia provincial de Orleans. De novembro de
1788 a janeiro de 1789, publicou Vista
sobre os meios de execução que os representantes da França poderão dispor em
1789, Ensaio sobre os privilégios e
O que é o terceiro Estado?. Escreveu
textos como:
É,
portanto, uma verdade eterna (...) que a ação pela qual o poderoso manténs sob
seu jugo o mais fraco não poderá jamais transformar-se em direito; por outro
lado, é sempre um direito aquilo que o mais fraco faz para escapar do jugo do
poderoso, além de ser um dever no que toca a si próprio.”
“Sobre
a relação dos socialistas com o clero e os erros do anticlericalismo, vejamos
dois textos de Luis Carlos Prestes, publicados na revista Divulgação Marxista, n.° 1, de 1/7/1946 (Editorial Calvino Limitada,
Rio de Janeiro, pp. 89-92), que explicitou a posição do PCB (expressa por
Prestes), sobre a proibição — devido à tolice — do anticlericalismo:
Numa
sabatina realizada entre os ferroviários, uma das perguntas dirigidas a Prestes
foi sobre posição do Partido Comunista do Brasil em face da religião. Eis, em
síntese, a resposta de Prestes:
“Há
clero e há clero.
Existem
realmente padres reacionários ligados aos exploradores do povo e aos fascistas.
(...) Fazem parte do alto clero, que vive na pompa e na abastança, alheio aos
padecimentos do povo e indiferente aos seus justos anseios e aspirações.
Mas
existem também os padres que vivem ligados às massas mais desprotegidas, que
participam da vida dos trabalhadores e conhecem de perto a sua luta, o seu
esforço para vencer as condições adversas da sua vida. Esses não nos atacam, e
são sacerdotes amigos do povo, como o foram o padre Miguelino, o padre Roma,
frei Caneca e tantos outros vigários que, nos subúrbios e no interior, vivem
com o povo, amparando-o e ajudando-o. (...)
As
portas do Partido Comunista estão abertas para todos os que queiram vir lutar
conosco ao lado do povo. Temos, entre nós, católicos, protestantes, espíritas,
homens de todas as crenças, que são, antes de mais nada, democratas convictos e
honestos. O Partido Comunista sempre contou em suas fileiras com grandes
lutadores católicos, democratas honestos e verdadeiros antifascistas que, ao
lado do nosso povo, vieram lutar pela democracia. Hoje, os católicos nas
fileiras do Partido são em número muito maior ainda. (...)
Aqui,
centenas e centenas de católicos integram as fileiras do Partido Comunista e,
conosco, lutam na vanguarda do proletariado e pelo engrandecimento de nossa
Pátria, pela liquidação total do fascismo e pelo fortalecimento da democracia.
Na
Europa, os católicos lutaram com grande heroísmo contra o nazifascismo que
escravizou suas Pátrias até a libertação trazida pelas armas das nações aliadas.
Na
França e na Itália, por exemplo, lutam ao lado dos comunistas e demais democratas,
que não aceitaram a dominação nazista ou fascista”. (...)
Numa
sabatina realizada em Belo Horizonte, respondendo a uma pergunta sobre qual deve
ser a conduta de comunistas que foram anticlericais antes de entrarem para o
PCB, Prestes esclareceu:
“Nenhum
comunista pode ser anticlerical, e muito menos quando ocupar um cargo de
direção no Partido.
Se
o companheiro que fez essa pergunta é um dirigente do Partido e já foi
anticlerical, nesse caso deverá fazer uma autocrítica pública, escrevendo um artigo
num jornal, por exemplo, explicando que não é mais anticlerical, porque isso é
lutar contra o Partido.
O
anticlerical é uma deformação pequeno-burguesa uma manifestação de caráter
anarquista. E nós não somos anarquistas, somos marxistas. Os comunistas, e
principalmente os marxistas não podem combater a religião, de acordo com a própria
natureza da doutrina que abraçam.
Os
fascistas e reacionários sustentam sua campanha principalmente sobre dois
pontos a que dão uma falsa interpretação. (...)
Com
efeito, a linguagem usada pelas religiões e pelos padres, quando dizem que o
pobre deve ter pena dos ricos e deve rezar por eles porque eles irão para o
inferno, e que “é mais fácil um camelo passar pelo fundo de uma agulha do que
um rico entrar nos reinos dos céus”, a nosso ver justifica o ponto de vista de
Marx.
Com
isso, entretanto, Marx não procura ofender nenhum crente, nenhuma religião, nem
aconselha ninguém a lutar contra nenhuma crença.”
“No livro G. Babeuf, o tribuno do povo (editado
pela Iniciativas Editoriais, Lisboa, 1977, p. 48), foi possível colher os
seguintes textos de Babeuf, repletos de ideias religiosas:
(…) Assentamos em
que a perfeita igualdade decorre do direito primitivo.
que o pacto social, longe de atentar contra este
direito natural, apenas deve dar a cada indivíduo a garantia de que tal direito
jamais será violado, que a partir de então jamais deveria ter havido
instituições que favorecessem a desigualdade, a cupidez, que permitissem que o
necessário de uns pudesse ser invadido para formar o supérfluo de outros. (...)
Verificamos, todavia, que tinha acontecido o
contrário; que convenções absurdas se tinham introduzido na sociedade e haviam
protegido a desigualdade, permitido a espoliação da maioria pela minoria;
que houve épocas em que as derradeiras
consequências dessas mortíferas regras sociais consistiram em que a
universalidade das riquezas de todos se encontrava concentrada nas mãos de
alguns;
em que a paz, natural quando todos são felizes,
se encontrava então necessariamente ameaçada; em que a massa do povo,
impossibilitada de sobreviver, desapossada de tudo, reencontrava na casta que
tudo açambarcou apenas corações desapiedados; todos estes efeitos provocaram o
aparecimento da época das grandes revoluções, dos períodos memoráveis, profetizados
no Livro dos tempos e do destino,
quando uma subversão geral de todo o sistema de propriedade se torna
inevitável, quando a revolta dos pobres contra os ricos é de uma necessidade
invencível.
(...) É mais do que tempo. É tempo de o povo,
espezinhado e assassinado, manifestar, de uma maneira mais imponente, mais
solene, mais geral, que jamais se cumpriu a sua vontade, para que, não somente
os sinais, os adereços da miséria, mas a realidade, a própria miséria, seja
eliminada. Que o povo proclame o seu Manifesto. Que nele defina a democracia
como considera que a deve ter e tal como, segundo os puros princípios, deve
existir. Que prove que a democracia consiste na obrigação de satisfazer, pelos
que têm demasiado, tudo quanto falta aos que de modo algum possuem o
suficiente! Que todo o deficit que se encontra na fortuna desses apenas provém
do que aqueles lhe roubaram.
Roubo legal, se assim se quer, isto é, graças a
leis de salteadores que, sob os regimes mais recentes como sob os mais antigos,
permitiram todos os latrocínios; graças a leis iguais a todas as que existem
presentemente; graças a leis segundo as quais sou forçado, para viver, a
desfazer-me todos os dias de mais um pouco da minha casa, de levar a todos os
ladrões que tais leis protegem até ao último farrapo que me cobre! Que o povo
declare que exige a restituição de todos roubos, dessas vergonhosas
confiscações dos ricos sobre os pobres. Tal restituição será tão legítima, sem
dúvida, quanto a que é feita a emigrados. Através do restabelecimento da
democracia, queremos, em primeiro lugar, que os nossos farrapos e os nossos
velhos móveis nos sejam devolvidos e que esses que deles se apropriaram fiquem
no futuro impossibilitados de recomeçar semelhantes atentados. Queremos,
depois, isso a que temos direito e de acordo com o que se tem por justo.
(...) Explicaremos claramente em que consiste a
felicidade comum, fim da sociedade.
Demonstraremos que o destino de qualquer homem
não devia piorar com a passagem do estado natural ao estado social.
Definiremos a propriedade.
Provaremos que a terra não pertence a quem quer
que seja, mas sim a todos.
Provaremos que tudo quanto um indivíduo se
apropria além do que lhe é suficiente para o sustentar constitui um roubo
social.
Provaremos que tudo quanto um membro do corpo
social possui abaixo do que lhe basta para satisfazer as suas necessidades de
todo o gênero e de todos os dias resulta de uma espoliação da sua propriedade
natural individual realizada pelos espoliadores dos bens comuns.
(...) Que, na mesma ordem de consequência, tudo
quanto um membro do corpo social possui acima do que lhe basta para satisfazer
as suas necessidades, de todo o gênero e de todos os dias, resulta de um roubo
realizado aos outros coassociados, que necessariamente priva um número maior ou
menor da sua cota-parte nos bens comuns.
Que quaisquer raciocínios, por mais sutis que
sejam, não podem prevalecer contra estas inalteráveis verdades.
Que foi assim que, no estado social, se destruiu,
se arruinou, o equilíbrio do bem-estar, uma vez que nada se prova melhor do que
a nossa grande máxima: não se consegue possuir demasiado sem fazer com que
outros não possuam o suficiente.
Que é claro, pelo que precede, que tudo quanto
possuem os que têm haveres para além da sua cota-parte individual nos bens da
sociedade constitui roubo e usurpação.
Que, por consequência, é justo reavê-lo.
Que, mesmo quem provasse que, por efeito
unicamente das suas forças naturais, seria capaz de fazer tanto quanto quatro e
que, por conseguinte, exigisse a retribuição de quatro, nem por isso seria
menos um conspirador contra a sociedade porque, por esse único meio, lhe
destruiria o equilíbrio e, assim, a preciosa igualdade.
(...) Que não existe
verdade mais importante do que a que (...) um filósofo proclamou nos seguintes
termos: discorrei tanto quanto vos apeteça acerca da melhor forma de governo,
nada conseguireis enquanto não destruirdes os germes da cupidez e da ambição.
Que é preciso, portanto, que as instituições
sociais consigam suprimir em todo o indivíduo a esperança de se tornar alguma
vez mais rico, mais poderoso, mais culto do que qualquer dos seus iguais.
Que, para precisar melhor isto, importa conseguir
acorrentar a sorte, tornar a de cada parceiro social independente dos acasos e
das circunstâncias felizes e infelizes, assegurar a cada qual e à sua
posteridade, por mais numerosa que seja, a suficiência, mas nada mais do que a
suficiência, e fechar para quem quer que seja todas as vias possíveis para que
jamais obtenha além da cota-parte individual nos produtos da natureza e do
trabalho.
(...)
Dominadores culpados! No momento em que julgais poder, sem perigo, descarregar
os vossos braços de ferro sobre este povo virtuoso, ele far-vos-á sentir a sua
superioridade, libertar-se-á de todas as vossas usurpações e das vossas
algemas, readquirirá os seus direitos primitivos e sagrados. Desde há demasiado
tempo que beneficiais da sua magnanimidade, há demasiado tempo que insultais a
sua agonia.
(...) Repitamo-lo ainda: todos os
males atingiram o auge, já não podem piorar, apenas podem interromper-se
através de uma subversão total. Que então tudo se confunda (...), que todos os
elementos se misturem, se embaralhem, se entrechoquem! (...) Que tudo mergulhe
no caos e que do caos saia um mundo novo e regenerado! (O Tribuno do Povo, n° 35, 30 de novembro de 1795). (...)
Quanto charlatanismo, quanta
astúcia, quantas grosseiras mentiras, quantos desajeitados sofismas, quantas
calúnias vulgares, quantas frases banais nessa proclamação do Diretório acerca
dos escritos, discursos e reuniões pretensamente sediciosos!
Pretendeu-se
com isso fazer crer que pedíamos a pilhagem
da mais pequena loja e da mais
modesta habitação, como se não pertencesse apenas ao governo ter sabido
realizar habilmente tal pilhagem.
Como
se, pelo seu regime de fome, não tivesse encontrado o segredo de fazer
transportar para a casa do agiota e de todos os tratantes endinheirados, pelos
próprios infelizes, tudo quanto possuíam nas suas modestas habitações e nas
suas pequenas lojas.
Como
se ainda lá se encontrasse alguma coisa para pilhar. Como se, diferentemente do
que procura o governo, não tivéssemos sempre claramente anunciado que queríamos
restabelecer, fortificar as pequenas lojas e as modestas habitações, fazendo lá
entrar pelo menos o equivalente do que a ladroeira legal delas fez sair. Como
se todas as fortunas comuns não devessem ficar absolutamente garantidas pelas
nossas francas declarações. Como se não tivéssemos dito sempre que pretendíamos
demolir apenas as fortunas colossais e melhorar todas as outras.”
“Babeuf,
com Buonarotti, considerava como sinônimos os termos “bem comum” e “comunidade
de bens”, como está claro no “Manifesto dos iguais” e também no “Manifesto dos
plebeus”. Como foi demonstrado neste livro, o bem comum era o mesmo conceito
usado pelos Santos Padres, o princípio da destinação universal dos bens, ou
seja, Deus fez tudo para todos. Os bens devem ser usados de acordo com as
necessidades das pessoas (conforme o direito a uma existência digna, como
ensinou Paulo VI, na “Pacem in Terris”),
seguindo o princípio bíblico (duas vezes expresso no livro “Atos dos Apóstolos”,
para descrever as comunidades modelares do cristianismo primitivo): “a cada um
de acordo com suas necessidades” (que Marx e Engels, e também Lênin e Stalin, consideravam
como o princípio fundamental do comunismo).
Praticamente
nessa linha, São Tomás de Aquino, no livro Summa teológica, 11-11, Questão 47, X, 2,
escreveu: “quem busca o bem comum da multidão busca também como consequência o
próprio bem por duas razões: 1°.) porque o bem próprio não pode existir sem o
bem comum, seja da família, seja da cidade ou do reino, por isso Valério Máximo
disse dos antigos romanos que “preferiam ser pobres em um império rico, que
ricos em um império pobre”; 2°.) porque, sendo o homem parte da casa ou da
cidade, deve considerar como bem próprio o que considera prudente para o bem da
multidão”, do povo, da sociedade, da comunidade.
A
sociedade — ao estruturar o Estado e o ordenamento jurídico positivo, para se
organizar juridicamente e obter o constrangimento (e os impulsos positivos)
necessário para conter vícios e animar virtudes — deve proporcionar a cada
pessoa ou grupo as condições (bens) que necessitam para realizar o bem pessoal
de cada um. A justiça social exige a regulamentação estatal (planejamento
participativo) dos bens para a promoção do bem comum, ponto totalmente
esquecido pelo liberalismo econômico, que não tem nem compaixão e nem senso de
justiça.
Logo,
quando os primeiros cristãos (o cristianismo primitivo, considerado
revolucionário e comunista por Engels) se reuniam nas primeiras igrejas (tendo
tudo em comum, distribuindo os bens de acordo com as necessidades de cada um e
com ampla cooperação social), não significa que estatizavam (dando atribuições
exclusivas a uma pessoa jurídica abstrata e alienada do povo, verniz para burocratas)
todos os bens, e sim que distribuíam (davam o controle, atribuições, poder
efetivo, ao povo) largamente, reduzindo a propriedade a uma mera administração (gestão,
uso) com muitos deveres sociais (sujeição ao bem comum, à soberania da
sociedade). Usavam os bens para satisfazer as necessidades básicas, que distribuíam
largamente, atentos aos deveres sociais (no fundo, formas de planificação participativas,
consensuais). Até mesmo aceitavam pagar tributos e respeitavam as propriedades
públicas, somente exigindo que o Estado estivesse submetido ao direito (no
fundo, subordinação à soberania do povo), que chamavam de “vontade Deus”, pois
Deus fala pelos movimentos naturais das consciências, da razão.
Não
era permitido o supérfluo individual (o luxo) e nem a miséria. O ideal buscado era,
assim, o de igualdade social, a mediania, como recomenda o Antigo Testamento
(ver “Provérbios”, capítulo 32, os textos de Moisés, profetas e outros) e o
Novo Testamento.”
“(William)
Godwin teve o avô, o pai e um tio ligados à igreja, como pregadores. O próprio Godwin
foi pregador, o que basta para demonstrar as fontes cristãs de seu pensamento.
No livro Investigações sobre a justiça
política e sua influência na virtude e na felicidade geral, tradução de J.
Prince, publicada em Buenos Aires pela Americalee, ele é claríssimo quanto ao
fato de amparar suas ideias no Evangelho (o mesmo hábito de Fourier e
Saint-Simon):
A
doutrina da injustiça da propriedade monopolizada se acha nos fundamentos de
toda moral religiosa. Esta incita os homens a reparar tal injustiça, mediante o
exercício da virtude individual. Os mais zelosos pregadores da religião se hão
visto obrigados a pronunciar rigorosas verdades a esse respeito.
Ensinaram
aos ricos que deviam considerar-se simples depositários dos bens de que
dispunham, sentindo-se responsáveis até pela menor porção da riqueza gasta, ao
modo de administradores e não de amos absolutos. Mas o defeito de tal doutrina
consiste precisamente em que somente incita a diminuir o mal, em vez de
extirpá-lo de raiz.
Encerra
essa doutrina, no entanto, uma verdade essencial. Não há ação humana e,
sobretudo, não há ação relativa a propriedade que não esteja sujeita às noções
do bem e do mal, a cujo respeito a moral e a razão não possam prescrever normas
específicas de conduta.
O
que reconhece que os demais homens são de igual natureza que ele mesmo e seja
capaz de imaginar o juízo que sua conduta possa merecer aos olhos de um
observador imparcial, terá a sensação clara e precisa de que o dinheiro que
inverte na aquisição de objetos fúteis ou desnecessários é um dinheiro injustamente
desperdiçado, posto que poderia empregar-se na obtenção de coisas substanciais
e indispensáveis para a existência de outros homens. Seu espírito equânime lhe
dirá que cada chelin deve ser investido de acordo com as exigências da justiça.
Mas sofrerá por sua ignorância sobre o modo de cumprir os mandamentos da
justiça e de servir à utilidade geral.
Há
alguém que ponha em dúvida a verdade dessas observações? Não se admitirá acaso
que quando emprego qualquer soma de dinheiro, pequena ou grande, na compra de
um objeto supérfluo, incorro em uma injustiça? É tempo já que tudo isso seja
plenamente compreendido. É tempo já que ou desprezemos por completo os termos
de virtude e justiça ou bem reconheçamos de uma vez que não nos autorizam a
acumular luxo enquanto nossos semelhantes carecem do indispensável para sua
vida e sua felicidade. (...)
Se
a religião nos ensina que todos os homens devem receber o necessário para a
satisfação de suas necessidades, devemos concluir por nossa conta que uma
distribuição gratuita realizada pelos ricos constitui um modo muito indireto e
sumamente ineficaz de conseguir aquele objetivo. A experiência de todas as
idades nos demonstra que semelhante método produz resultados muito precários.”
“O
livro Os grandes escritos anarquistas
(Editores L&PM, Porto Alegre, 1998, pp. 118-122) traz um texto de William
Godwin sobre a propriedade, colhido de outro livro Inquérito sobre a justiça política, 1793, — que merece ser
transcrito.
A
propriedade é a base que completa o sistema de justiça social. Segundo o erro
ou acerto das ideias que tivermos sobre o tema, seremos capazes de entender as
consequências de uma forma simples de sociedade sem governo, eliminando os
preconceitos que nos mantêm presos à complexidade. Não há nada que possa distorcer
tanto o nosso julgamento e as nossas opiniões do que as ideias erradas que
tivermos sobre os benefícios da fortuna. Finalmente, o período que deverá pôr
um fim no sistema de coerção e castigo está intimamente ligado às
circunstâncias que colocarão a distribuição da propriedade em bases mais
equitativas.
Há
três tipos de propriedade.
O
primeiro e mais simples deles é aquele que garante o meu direito permanente
sobre determinadas coisas, as quais, ao me ser atribuído o seu uso, poderão
proporcionar-me uma soma muito maior de benefícios e prazeres do que ocorreria
caso pertencessem a qualquer outro. Nesse caso não importa saber como cheguei à
posse dessas coisas, sendo a única condição necessária para tal a grande
utilidade que possam ter para mim e o fato de que meu direito a elas é aceito
unanimemente pelos membros da comunidade em que vivo. E será injusto todo
aquele que, com respeito a tais coisas, se conduzir de forma a infringir, em
qualquer grau, a minha capacidade de desfrutá-las no momento em que seu uso for
realmente importante para mim.
Já
vimos que um dos direitos essenciais do homem é aquele que me garante a
compreensão dos meus semelhantes; não apenas o meu direito a que evitem fazer
qualquer coisa que, como consequência direta, possa vir a afetar a minha vida
ou a posse dos meus poderes, mas que evitem interferir na minha compreensão dos
fatos, concedendo-me uma determinada esfera de ação para que eu possa exercitar
a minha própria capacidade de julgamento. É preciso que seja assim, em primeiro
lugar porque, assim como eu posso errar, eles também poderão fazê-lo; em
segundo, porque o exercício da compreensão é essencial ao desenvolvimento do
ser humano e, finalmente, porque, mesmo que a interferência de outrem em
assuntos que são de real importância para mim exista apenas na minha
imaginação, a dor e o desconforto que eu vier a sentir diante dessa interrupção
serão tão reais como se ela tivesse realmente existido. Segue-se ao acima exposto
que, em circunstâncias normais, nenhum homem poderá fazer uso dos meus aposentos,
móveis, roupas e alimentos, seja por empréstimo ou por troca, sem que meu
primeiro tenha obtido o meu consentimento.
O
segundo grau de propriedade é o império que todo o homem deve ter sobre o
produto do seu próprio trabalho, mesmo daquela parte dele cujo uso não lhe for
atribuído. Ele não tem direito de escolha na disposição geral de qualquer coisa
que lhe venha a cair nas mãos. Cada centavo que lhe pertença, e até mesmo cada
produto do seu esforço por menor que seja, já receberam um destino determinado
pelas medidas da justiça. Ele é apenas o administrador, mas, ainda assim, um
administrador. Todas as coisas devem ser confiadas a sua decisão, controlada
apenas pelo poder de censura e pela opinião favorável ou contrária do grupo em
que ele vive. Quando é impedido de agir segundo os ditames da sua inteligência,
todo homem se transforma, de indivíduo capaz e dotado de infinitas qualidades,
na pior e mais desprezível coisa que a imaginação seria capaz de criar.
Logo
se poderá perceber que este segundo tipo de propriedade é, a rigor, mais
importante do que o primeiro. Ele é, sob um determinado ponto de vista, uma
usurpação, pois confere a mim a preservação daquilo que, por direito, pertence
a outro.
O
terceiro tipo de propriedade é aquele que recebe as maiores atenções dos
Estados civilizados da Europa. É o sistema, estabelecido seja de que modo for,
pelo qual um determinado homem passa a ter o direito de dispor sobre o produto
do trabalho de outro homem. Não há quase nenhuma forma de riqueza, consumo ou
luxo em qualquer país civilizado que não seja, de alguma forma, consequência do
trabalho manual e do esforço conjunto dos homens que nele vivem. Os recursos
naturais de um país são quase sempre poucos e em quase nada contribuem para o aumento
da riqueza, do consumo e do luxo.
Basta
que cada homem calcule, a cada cálice de vinho que bebe ou diante de cada
objeto que usa como adorno, quantos indivíduos foram condenados à escravidão,
ao suor, a uma labuta incessante, a uma vida de dificuldades permanentes, má
alimentação, ignorância e à mais brutal insensibilidade para que ele pudesse
dispor desses luxos. Uma das grandes imposturas que os homens costumam lançar
sobre si mesmos é falar nos bens que lhes foram legados por seus antepassados,
pois na verdade esses bens são resultado do trabalho diário de seres que vivem
no presente. Seus antepassados deixaram-lhes apenas um papel embolorado que
eles apresentam como um título que lhes concede o direito de extorquir dos seus
semelhantes tudo aquilo que estes produziram com seu próprio esforço. Fica
portanto claro que o terceiro grau de propriedade contradiz frontalmente o
segundo.
Pois
o fato de que um determinado homem possa desfrutar dos confortos mais
rudimentares enquanto esses mesmos confortos permanecem inacessíveis à maioria
dos membros da comunidade é, em termos absolutos, um erro. Todos os
refinamentos, todos os luxos supérfluos, todas as inovações que exijam o
emprego de um grande número de trabalhadores são diretamente contrários à propagação
da felicidade. Cada novo imposto criado, cada nova forma encontrada para
aumentar os gastos do erário público — a menos que sejam compensados (o que
raramente acontece) por uma diminuição proporcional da riqueza das classes
privilegiadas — é um pouco mais que se acrescenta ao capital da ignorância,
servidão e sofrimento (...)
Uma
das fontes inesgotáveis do crime consiste no fato de que um homem possa ter em
abundância tudo aquilo de que um outro carece. Antes que possamos impedir que a
mente seja poderosamente influenciada quando colocada diante dessa situação,
seria preciso mudar a sua natureza. Seria necessário que o homem esquecesse os
sentidos, os prazeres da gula, a vaidade, antes que pudesse assistir sem
revolta ao monopólio desses prazeres. Seria preciso que deixasse de ter o
sentido da justiça antes que pudesse aceitar sem reservas o mundo em que vive,
misto de miséria e supérfluo. E, se é certo que a melhor forma de curar essa
desigualdade seria através da razão e não da violência, a tendência instintiva
dos governantes é convencer os homens de que a razão é impotente. A injustiça,
contra a qual tanto reclamam, é sustentada pela força e eles se deixam induzir
por ela com demasiada facilidade para que sequer pensem em lançar mão dela para
corrigir as injustiças do mundo em que vivem. Limitam-se apenas a tentar
corrigir parcialmente essas injustiças que a educação lhes diz serem
necessárias, mas que a razão, mais poderosa, afirma serem tirânicas.
A
força tem origem no monopólio. Isso poderia ter acontecido pela primeira vez
acidentalmente entre os selvagens cujos apetites excedessem as provisões de que
dispunham, ou cujas paixões tivessem sido demasiado inflamadas pelo objeto de
seus desejos. Mas logo teria desaparecido gradualmente à medida que a razão e a
civilização avançassem. Porém a propriedade acumulada fixou o poder supremo e,
a partir de então, tudo se resume numa competição, na luta aberta entre a força
e a astúcia de outro. Sendo assim, as lutas violentas e prematuras que possam
surgir entre os necessitados serão sempre um erro, pois, na maior parte das
vezes, acabarão provocando a derrota das causas que mais de perto os
interessam, contribuindo para adiar o triunfo da justiça. Mas o verdadeiro
crime estará sempre na predisposição que todo o homem tem para o egoísmo e a parcialidade,
para pensar apenas em si mesmo, desprezando as necessidades do outro. E é de
homens iguais a esse que são feitas as classes privilegiadas.
A
opressão, o servilismo e a fraude são os frutos imediatos da atual forma de
administração da propriedade, tão hostis ao progresso moral quanto ao
desenvolvimento intelectual do ser humano. Outros males tais como a inveja, a
malícia e a vingança são seus companheiros inseparáveis.
Numa
sociedade em que todos vivessem em meio à abundância, compartilhando igualmente
as riquezas que a natureza oferece, esses sentimentos desapareceriam
inevitavelmente. Se nenhum homem fosse obrigado a guardar o pouco que lhe
pertence, ou tivesse que prover, com sofrimento e angústia, todas as necessidades
incessantes, cada um deixaria de pensar apenas em si para pensar no bem comum.
Nenhum homem seria o inimigo do seu vizinho, pois não teriam razões de disputa
e, em consequência, a filantropia voltaria a ocupar o lugar supremo que lhe foi
concedido pela razão. Liberta da angústia permanente de prover o sustento
físico, a mente estaria livre para exercer as funções para as quais foi criada.
Cada homem poderia responder às indagações de todos”.”
“Benoit
Malon, na obra O socialismo integral,
historia das theorias e tendências geraes (impresso em Lisboa — TYE, pelo
Instituto Geral das Artes Gráficas, em 1899 traduzido por Heliodoro Salgado),
trouxe boas informações sobre Buret:
Buret
especialmente elevou-se até ao mais generoso socialismo:
Todos
o repetem, todos têm disso o pressentimento, nós assistimos a um mundo novo,
isto não pode durar mais, o deixar-correr compra a riqueza à custa da miséria,
não sabe aumentar a produção senão à custa daqueles que a produzem; não tem
melhor meio de aumentar o capital do que reduzir de cada vez mais a parte que
compete ao trabalho (...)
Enfim,
o estado miserável das populações industriais é incompatível não só com as
esperanças da civilização mas ainda com a sua existência.
Chegou
um momento na história em que a escravidão se tornou um crime, justamente
imputável à classe que dela tirava proveito (...) Da mesma sorte o fato da
miséria nos há de ser severamente imputado, desde o momento em que, sendo
conhecidas as verdadeiras causas, nós não trabalharmos em combatê-las”.
Depois,
os processos capitalistas não têm feito senão cavar o inferno do salariato e F.
Engels viu-se autorizado a dizer do capitalismo: “É a concorrência vital
darwiniana transplantada da natureza para a sociedade com uma violência
potenciada. A selvageria animal apresenta-se como último termo do
desenvolvimento humano (em sistema capitalista). O antagonismo entre produção
social e apropriação individual capitalista tomou a forma de antagonismo na
organização da produção em cada fábrica particular e de anarquia da produção na
sociedade inteira.”
“Aloísio
Teixeira, no livro Utópicos, heréticos e
malditos (Editora Rio de Janeiro, 2002, pp. 196-228) traz alguns bons
textos de Louis Blanc:
Organização
do Trabalho (1839)
Mas
será que o que é verdadeiro no plano das ideias filosóficas deixará de sê-lo no
plano das ideias econômicas? Ah! Graças a Deus, não há para as sociedades nem
progresso parcial nem queda parcial. Toda a sociedade se eleva ou toda a
sociedade regride. São as leis da justiça melhor compreendidas? Todas as
condições sociais saem ganhando. Recaem no obscurantismo as nações onde há
justiça? Todas as condições sociais saem perdendo. Uma nação na qual uma classe
é oprimida assemelha-se a um homem que tem uma ferida na perna: a perna doente
impede a perna sadia de fazer qualquer exercício. Por isso, por mais paradoxal
que essa proposição possa parecer, opressores e oprimidos ganharão igualmente
se a opressão for eliminada; e perdem igualmente se ela for mantida. Querem uma
prova gritante? A burguesia estabeleceu sua dominação com base na concorrência
ilimitada, que é um princípio de tirania. Muito bem! É pela concorrência
ilimitada que vemos hoje a burguesia perecer. Por exemplo: se tenho dois
milhões e meu rival apenas um, eu o arruinarei, com toda a certeza, no campo
aberto da indústria e com o exército dos preços baixos. Homem débil e
insensato! Não compreendeis que amanhã, armando-se contra vós com vossas
próprias armas, algum impiedoso Rothschild vos arruinará? Tereis então cara
para vos lastimar: Nesse abominável sistema de lutas cotidianas, a indústria
média devora a pequena indústria. Vitória de Pirro! Porque ela será devorada
por sua vez pela grande indústria, a qual, ela mesma, obrigada a perseguir até
a extremidade do globo consumidores desconhecidos, participará em breve apenas
de um jogo de azar que, como todos os jogos de azar, acabará para uns em
ladroeira, para outros em suicídio. A tirania não é somente odiosa, ela é
estúpida. Não ha inteligência onde não há entranhas (misericórdia, compaixão, amor ao
próximo). (...)
A humanidade tem estado muito afastada de sua finalidade
para que nos seja dado atingi-la em um dia. A civilização corruptora da qual
sofremos ainda o jugo confundiu todos os espíritos e envenenou as fontes da inteligência
humana. A iniquidade tornou-se justiça, mentira tornou-se verdade, e os homens
vêm-se entredevorando em meio às trevas.
Muitas
ideias falsas devem ser destruídas; elas desaparecerão, não devemos duvidar.
Chegará, assim, o dia, por exemplo, em que será reconhecido que, quem recebeu
de Deus mais força ou mais inteligência, deve mais a seus semelhantes. Será
então um gênio, constatando, o que é digno dele, seu legítimo poder não pela
importância do tributo que imporá à sociedade, mas pela grandeza dos serviços
que lhe prestará. Porque não é para a desigualdade de direitos que a
desigualdade de talentos deve conduzir, e sim para a desigualdade de deveres
(p. 228).”
“Dizia Marx em 1844:
“Weitling,
conhecedor de Rousseau, referia-se ao estado natural de felicidade do passado:
“O homem, fruto do amor de Deus e da natureza, no primeiro período da criação
sentiu felicidade e gozou no paraíso desta bela terra.”
Mas
o egoísmo e a cobiça de uns, que queriam ter mais do que os outros, fizeram
mudar o estado primitivo e começaram a aparecer os conceitos de meu, de
propriedade, que por sua vez, produziram os de direito e de troca (isto é, de
comércio). A propriedade, inconcebível nos primórdios da existência do homem,
afirmou-se e a terra, que era livre e estava à disposição de todos, foi
“murada”, tornou-se gozo exclusivo de um indivíduo ou de alguns poucos, e mais,
aquilo que ao princípio fora um simples estado de fato foi depois “santificado”
por leis que puniam severamente aqueles que contra isso se revoltavam. A
propriedade teve como consequência a herança, isto é, prefiguração de uma
relação válida não apenas no presente, mas também no futuro; mais ainda,
pensava Weitling, reportando-se às teorizações do livre-cambismo e sobretudo às
do liberalismo, extensivo a toda a coletividade humana e para toda a
eternidade. As consequências da propriedade foram a luta por ela, a guerra e,
derivada desta, a escravatura, isto é, não a luta pela sobrevivência mas sim
por um poder econômico a exercer sobre as coisas e sobre os homens.
O
discurso de Weitling nesta altura ampliava-se muito e ultrapassava as
concepções iniciais de Rousseau, até por influência das críticas mais violentas
à sociedade fundada sobre a “propriedade privada”, especialmente as de Fourier.
Passou efetivamente do exame da escravatura na antiguidade ao da escravatura
presente, concluindo que “outrora se tornava um homem escravo pela força; hoje
este vende-se espontaneamente, juntamente com a sua saúde, a sua juventude, o
seu sangue”. Essa alienação era possível porque aqueles que se haviam apoderado
da propriedade tinham um verdadeiro direito de vida e de morte sobre todos,
isto é, podiam aproveitar-se da sua posição, eram “privilegiados” que miravam
obter cada vez mais à custa da restante parte do gênero humano.
Os
detentores da propriedade eram os ricos, que eram, ao mesmo tempo, poderosos e
injustos e tinham a possibilidade de gozar mais do que o necessário porque, na
sua avidez e no seu egoísmo, não empregavam apenas as suas forças, mas também
as dos outros que trabalhavam para eles, transformando-se assim em
exploradores. A diferenciação do trabalho fora a primeira ação impor à
discriminação; na sociedade atual, os ricos possuíam o supérfluo, enquanto aos
operários faltavam os bens necessários para a sua sobrevivência.
Portanto,
Weitling deduzia: “A causa de tudo isso é a desigual divisão do trabalho e dos
bens produzidos pelo trabalho. Com o trabalho geraram-se a pobreza e a riqueza.
[...] Ser rico e poderoso significa ser injusto. Contai os ricos e os poderosos
e achareis um número igual de pessoas injustas. O reino do Céu é apenas
destinado aos justos”.”
“Gian
Mário Bravo, no livro História do
socialismo (vol. I, coleção Saber, Publicação Europa-América), expõe as
fontes religiosas do “socialismo alemão” (chamado de “verdadeiro socialismo).
(...)
“O
máximo representante do “verdadeiro” socialismo, o expoente mais coerente do
grupo (a liga dos justos), foi Moses Hess (1812-1875), judeu, o qual, no
decurso da sua vida, passou por experiências intelectuais e políticas de gênero
vário e, se bem que o seu pensamento possa ser sempre ligado ao socialismo, na
verdade tratou-se de um socialismo de formas diferentes conforme as épocas.
(...)
Hess
levanta o problema da passagem do humanismo teórico de Feuerbach a um humanismo
prático (...), recusando, juntamente com a “liberdade de iniciativa”, também a
“mútua exploração, a sede de dinheiro”, que não era outra coisa senão “a sede
de sangue do animal social rapace”. O homem, o indivíduo, o trabalhador, era separado
na sociedade burguesa do seu próprio produto e “alienado” na civilização
capitalista, regida apenas pela economia, onde a lei única e dominante era a da
opressão, da exploração, do lucro, do egoísmo. (...)
Como
fundamento desta relação falseada encontrava-se justamente o dinheiro: por um
lado, ele apresentava a avaliação objetiva desse, os males que dele derivavam
(“a existência da escravidão humana, porque ele não é mais do que o sinal da
escravidão humana, representando em números o valor humano”), e, por outro
lado, a variação dominada pela paixão e no fundo, retórica (“o dinheiro é
sangue que escorre, suado pelos pobres, que levam ao mercado a sua própria
riqueza inalienável, a sua pessoalíssima capacidade, a sua própria atividade
vital”).”
“Na
revista Encontro com a Civilização
Brasileira, n° 17, de novembro de 1979 (da Editora Civilização Brasileira),
há um bom artigo de Albert Einstein, intitulado “Por que o socialismo?” (Einstein, A., “Ideas and Opinions”. New York, Bonanza
Books, 1954). Vejamos os trechos principais, que coincidem, em muitos pontos,
com as ideias de Gandhi e dos teólogos da libertação:
Indivíduo
e sociedade
O
homem é, ao mesmo tempo, um ser solitário e um ser social.
Como
ser solitário, procura proteger sua própria existência e a dos que estão mais
próximos dele, para satisfazer seus desejos pessoais e para desenvolver suas
habilidades inatas.
Como
ser social, procura ganhar o reconhecimento e afeto dos outros seres humanos,
participar dos seus prazeres, confortá-los nos seus sofrimentos e melhorar suas
condições de vida.
Apenas
a existência destes diversos e, frequentemente, conflitivos esforços explica o
caráter especial do homem e numa combinação específica determina a extensão na
qual pode conseguir um equilíbrio interno e contribuir para o bem-estar da
sociedade. (...)
O
conceito abstrato de “sociedade” significa para o ser humano individual a soma
total de suas relações diretas e indiretas com seus contemporâneos e com todas
as pessoas de gerações anteriores.
O
indivíduo pode pensar, sentir, lutar e trabalhar por si mesmo, mas depende
tanto da sociedade — na sua existência física, intelectual e emocional —, que é
impossível pensar nele ou compreendê-lo fora da estrutura da sociedade. É a sua
“sociedade” que fornece casa, comida, roupas, ferramentas de trabalho,
linguagem, as formas de pensamento e a maior parte do conteúdo do mesmo; sua
vida deve-se ao trabalho e aos talentos de muitos milhões de seres passados e
presentes, escondidos atrás da pequena palavra “sociedade”. (...)
A fonte do mal
Cheguei
ao ponto onde quero indicar brevemente qual é, para mim, a essência da crise do
nosso tempo: a relação dos indivíduos com a sociedade. O indivíduo tornou-se
mais consciente do que nunca da sua dependência da sociedade. Entretanto, ele
não vivencia essa dependência como valor positivo, como um laço orgânico, mas,
pelo contrário, como uma ameaça aos seus direitos naturais ou mesmo à sua
existência econômica. Além disso, sua posição na sociedade é tal que a direções
egoístas da sua constituição estão se acentuando constantemente, ao passo que
as suas direções sociais, que por sua natureza são mais débeis, se deterioram
progressivamente. Todos os seres humanos, independentemente da sua posição na
sociedade estão sofrendo desse processo de deterioração. Prisioneiros sem
sabê-lo de seu próprio egoísmo, sentem-se inseguros, sós e desprovidos das
ingênuas, simples e tolas alegrias da vida. O homem pode encontrar significado
na vida, curta e perigosa como ela é, apenas dedicando-se à sociedade. (...)
A anarquia econômica da sociedade
capitalista, tal como existe hoje, é, na minha opinião, fonte real do mal.
(...)
Propriedade de
trabalho
Para
simplificar as coisas, na discussão que se segue, chamarei de “trabalhadores”
todos que não participam da propriedade dos meios de produção – embora isso não
corresponda totalmente ao uso costumeiro do termo. O proprietário dos meios de
produção reúne condições para comprar a força de trabalho do trabalhador.
Mediante o emprego dos meios de produção, o trabalhador produz novos bens, que
se convertem em propriedade do capitalista. O ponto essencial desse processo é
a relação entre o que o trabalhador produz e o que recebe como pagamento, ambos
medidos em termos de valor real. Enquanto a contratação de mão-de-obra é
“livre”, o que o trabalhador recebe não é determinado pelo valor real dos bens
que produz, mas sim pelo valor mínimo que o capitalista pode pagar para a força
de trabalho – o que tem relação direta com o número de trabalhadores que
compete pelos empregos. É importante compreender que, mesmo na teoria, o
pagamento ao trabalhador não é determinado pelo valor de seu produto.
O
capital privado tende a concentrar-se em poucas mãos, em parte pela
concorrência entre capitalistas e em parte porque o crescente desenvolvimento
tecnológico e a crescente divisão de trabalho fomentam a formação de grandes
unidades de produção às expensas das pequenas. O resultado desses desenvolvimentos
é uma oligarquia de capital privado, cujo enorme poder não pode ser contido nem
sequer mediante uma sociedade política organizada democraticamente. Isso é
verdade na medida em que os membros dos organismos legislativos são escolhidos
por partidos políticos, amplamente financiados ou influenciados de uma ou de
outra forma pelos capitalistas privados, que devido a um objeto prático,
separam o eleitorado de seus representantes no parlamento. A consequência disso
é que os representantes do povo realmente não protegem suficientemente os
interesses das camadas desamparadas da população. Além disso, sob as condições
existentes, os capitalistas privados controlam inevitavelmente, direta ou
indiretamente, as principais fontes de informação (imprensa, rádio, educação).
Dessa forma, é extremamente difícil, e na verdade na maioria dos casos quase
impossível, para o cidadão individual chegar a conclusões objetivas e fazer uso
inteligente de seus direitos políticos.
Os princípios do
capitalismo
Assim,
a situação predominante em uma economia baseada na propriedade privada do
capitalismo se caracteriza por dois princípios fundamentais: primeiro, os meios
de produção (capital) são propriedade privada e os seus proprietários dispõem
deles de acordo com a sua conveniência; segundo, a contratação de mão-de-obra é
livre. Certamente não existe uma sociedade capitalista pura neste sentido.
Particularmente, podemos observar que os trabalhadores, através de amplas e
amargas (encarniçadas) lutas políticas, conseguiram obter melhores formas de
“livre contratação de mão-de-obra” para certas categorias de trabalhadores. No
entanto, considerada em seu conjunto, a economia atual não difere muito do
capitalismo “puro”.
A produção é orientada para o lucro,
não para o uso. Nada garante que todos aqueles indivíduos capazes e desejosos
de trabalhar terão sempre condições de encontrar emprego; há quase
permanentemente um “exército de desempregados”. O trabalhador está
constantemente temeroso de perder o seu trabalho. Visto que os desempregados e
os trabalhadores mal-pagos não proporcionam um amplo mercado consumidor, a
produção de bens de consumo fica restrita, o que acarreta graves consequências.
O progresso tecnológico frequentemente se traduz antes em um maior desemprego
do que em uma redução de trabalho para todos. A motivação do lucro, juntamente
com a concorrência entre capitalistas, é responsável por uma instabilidade na
acumulação e por uma utilização do capital que leva a depressões cada vez
maiores. A concorrência ilimitada leva a uma grande desvalorização da
mão-de-obra, prejudicando a consciência social dos indivíduos que eu mencionava
antes.
Esse
prejuízo para os indivíduos parece ser o pior mal do capitalismo. Nosso sistema
educacional global sofre desse mal. Uma exagerada atitude competitiva é
inculcada no estudante, o qual é estimulado a supervalorizar a acumulação de
bens de materiais como preparação para sua carreira futura.
Planificação não é
socialismo
Estou
convencido de que há apenas uma forma de eliminar esses grandes males, que é o
estabelecimento de uma economia socialista, aliada a um sistema educacional
orientado para metas sociais. Nessa economia, os meios de produção são
propriedade da sociedade e utilizados de forma planejada. Uma economia
planejada, que ajusta sua produção às necessidades da comunidade, distribuiria
o trabalho de tal forma que todos poderiam trabalhar, e garantiria uma vida
para cada homem, mulher e criança. A educação do indivíduo, além de estimular
suas próprias habilidades inatas, procuraria desenvolver nele um sentido de
responsabilidade para com o próximo, em vez de incentivar a glorificação do
poder e do êxito como acontece em nossa atual sociedade.
Sem
dúvida, é necessário lembrar que uma economia planejada não é sinônimo de
socialismo. Uma economia planejada pode ser seguida da total escravização do
indivíduo. A realização do socialismo requer a solução de alguns problemas
sócio-políticos extremamente difíceis: como é possível, diante da centralização
de grande alcance do poder político e econômico, evitar que a burocracia se
torne toda poderosa e arrogante? Como é possível proteger os direitos dos
indivíduos, para assegurar, dessa forma, um contrapeso democrático ao poder da
burocracia?”
(Traduzido por Marcia Lamarão do original em espanhol da revista Nexos, n. 17, Cidade do México, maio de
1979.)
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