Editora: Casa Amarela
ISBN:
978-85-8682-147-9
Opinião:
★★★☆☆
Páginas:
1152
“Adam
Schaff, um pensador polonês escreveu no livro O marxismo e o indivíduo (Ed. Civ. Brasileira, 1967, p. 190):
O
ponto de partida do socialismo — de todo socialismo — é o homem e o protesto
contra a desumanização da vida e, por conseguinte, o seu ponto de partida é o
amor aos homens, a solidariedade em face da desumanização, da humilhação, da
desgraça. Socialismo é, em certo sentido, idêntico a amar aos homens. O
socialismo é a doutrina do amor ao próximo, tanto em relação ao ponto de
partida como em relação ao objetivo.
No
jornal alternativo, Versus, n.º 21,
de maio/junho de 1978, há uma entrevista com Dom Tomás Balduíno, um frei
dominicano, bispo de Goiás Velho e Presidente da Comissão da Pastoral da Terra,
em que diz:
P.
Existe algum antagonismo entre os ideais de fraternidade, de justiça, da
ideologia cristã e as bandeiras do socialismo?
R
— Não há contradição. Elas convergem para uma visão cada vez mais pura, tendo
como referencial o homem. As coisas, as estruturas, são relativas. Eu vejo a
Igreja aberta a todas as perspectivas de solidariedade, de comunidade, de
fraternidade, de colocar os bens a partir das necessidades do homem, e fazer
com que o homem supere os tabus do capitalismo, que consagra e diviniza o
dinheiro.
Esse
capitalismo é um mal, é o próprio pecado. Nefasto, inimigo do homem, a
alternativa será uma comunhão cada vez maior e uma valorização daquilo que o
povo tem como identidade sua. Até mesmo valores culturais e religiosos devem ser
assumidos, como expressão de algo muito profundo que é necessário ao seu viver.
P
— Essa descoberta do homem passaria pela coletivização dos meios de produção?
R
— Sim, eu acho que terá necessariamente de haver uma mudança profunda na
estrutura da produção e de apropriação da terra, sem o que haverá uma
continuação dessa injustiça.”
“No seu Catecismo socialista, Luis
Blanc começa com esta pergunta: “O que é o socialismo?” E responde: “É o
evangelho em ação”.” (Padre José Comblin, O
Povo de Deus)
“A
participação dos cristãos no movimento revolucionário justifica-se a partir do
amor aos pobres. Supõe-se que os cristãos não são os pobres que não teriam a
necessidade de amar os pobres. Assim dizia um dos porta-vozes mais dos cristãos
comprometidos com a revolução sandinista (o padre Comblin, no citado O Povo de Deus):
A
revolução como mediação concreta do amor às multidões podia converter-se no
valor máximo para um cristão verdadeiro (...). O processo revolucionário podia
converter-se no máximo valor cristão, porque representava a única aproximação
ao valor máximo e absoluto do Reino. Em suma, a revolução era a versão
histórica do pão que se dá ao faminto e da água que se dá ao que tem sede.
Nesse sentido, a revolução, como caminho voltado para o homem novo e para a
nova sociedade, transforma-se na causa que dá sentido à vida.
Falou-se
muito, naquele tempo, da irrupção dos pobres. Foi um dos grandes temas de
Gustavo Gutiérrez. “Esta presença do pobre se faz sentir, em primeiro lugar,
nas lutas populares e na nova consciência histórica que as acompanha”. (...)
Depois
de Medellín, durante aproximadamente 20 anos, houve a esperança de uma Igreja
dos pobres, uma Igreja popular. O tema foi repetido muitas vezes e chegou a ser
usado por membros da hierarquia. Foi muito debatido no tempo de Puebla. Não
chegou a ser adotado pela Conferência porque o papa o vetou no seu discurso
inaugural (1,8). O texto de Puebla retomou as advertências do papa e, sem
condenar a fórmula, fez tantas reservas que praticamente a desautorizou.
Apesar
disso, os herdeiros de Medellín ainda continuaram lembrando o ideal ou a utopia
de uma Igreja dos pobres. “A questão da Igreja que nasce do povo, ou, em sua
fórmula breve, a Igreja popular, segundo Puebla, teria que se compreender ‘como
Igreja que busca encarnar-se nos meios populares do continente, e, por isso
mesmo, surge da resposta de fé que estes grupos dão ao Senhor’. Em Oaxtepec, um
dos conferencistas, falando da Igreja, disse que a sua ‘opção pelos pobres é o
que garante sua vigência na história. A Igreja empenhou sua própria vida e seu
futuro nesta opção’. A Igreja popular é a vocação de toda a Igreja chamada a
renascer constantemente a partir dos pobres, os privilegiados do Reino. Não se
trata, por isso, de Igreja paralela à Igreja institucional, mas que responde às
exigências evangélicas mais fundamentais”.
Dadas
as restrições de Puebla depois do discurso do papa, o tema que prevaleceu foi o
da conversão da Igreja aos pobres. O tema do povo de Deus, dos pobres,
permaneceu vigente desde Medellín durante mais ou menos 20 anos e depois foi
pouco a pouco restringido. A opção preferencial pelos pobres fica muito aquém
da esperança dos pobres. Não torna a igreja dos pobres.
Faz-se
necessário reconhecer que uma conversão global ou mesmo majoritária da Igreja
aos pobres é inconcebível na atualidade. Se consideramos quais são os católicos
que constituem o público frequentador das igrejas, parece evidente que a imensa
maioria é feita de pessoas que não são pobres ou de pobres que continuam inseridos
na antiga mentalidade rural, e ainda pertencem mentalmente à cristandade. O que Medellín e Puebla queriam era um
início, um movimento de virada na direção de uma Igreja dos pobres. (...)
Houve
um tempo em que alguns achavam que as CEBs forneceriam o modelo da futura
Igreja. Algumas dioceses foram reorganizadas na base das CEBs, dando a
impressão de que a Igreja toda seria uma constelação de CEBs. Essa ideia estava
nas mentes e nas aspirações de muitos.
Como
era de prever, esse projeto era prematuro. Continuavam existindo as paróquias
tradicionais. Religiosos e religiosas, na sua maioria, continuavam trabalhando
a serviço das classes altas nos colégios ou faculdades. Os chamados
“movimentos”, também de cultura burguesa, estavam em plena ascensão. Durante os
anos 90 os movimentos de classe média ultrapassaram a pastoral Popular no
interesse do clero, praticamente em todos os países da América Latina.
As
CEBs apareceram como eram de fato: uma minoria popular diante de uma Igreja
predominantemente ligada às classes médias, ainda que conservasse por algum
tempo o discurso da prioridade da opção preferencial pelos pobres. No sínodo
americano de 1997 essa referência desapareceu. Os pobres voltaram a ocupar o
lugar que foi deles durante tantos séculos, o de objeto da caridade da Igreja
reunida em torno da sua base burguesa. O sonho não desaparece. Frequentemente
os próprios movimentos têm má consciência e querem introduzir na sua ideologia
e nas suas atividades o serviço aos pobres. Pode ser um sinal positivo e um
anúncio de conversão. Até agora, no entanto, esse aspecto permanece bastante
secundário nas suas preocupações.
Para
concluir este capítulo, registramos que desde que João XXIII falou da Igreja
dos pobres não foi fácil, e não será fácil no futuro, reprimir essa aspiração a
uma conversão total da Igreja. Ela ficou abafada nos últimos tempos pela
prioridade dada ao fortalecimento da instituição nas suas formas tradicionais,
mas a consciência despertada pelo Vaticano II permanece latente e pode reaparecer
a qualquer momento. É preciso que haja grupos que sigam afirmando essa
verdadeira essência da igreja para alimentar a inquietação.
A
Igreja dos pobres subsiste. Ela é minoritária mas resiste. Já não ocupa a
preocupação da maioria do clero nem dos movimentos. Mas ela está presente. A história mostra que a Igreja não pode ser
povo de Deus se não é Igreja dos pobres. Os dois temas estão
indissoluvelmente unidos. Sem a realização de uma Igreja como povo, os pobres
não são nada, além de objetos da caridade de outros. Somente existem realmente
no mundo se formarem um povo. Somente existem coletivamente. Sem teologia do
povo de Deus não há teologia dos pobres.
Historicamente
isso foi comprovado. Quando foi banida a teologia do povo de Deus, desapareceu
também o tema da opção pelos pobres. Como já assinalamos, o documento mais
claro nesse sentido é o do Sínodo da
América Ecclesia in América. Aí foi excluída a teologia do povo de Deus e
não se faz mais menção à opção pelos pobres. Já em Santo Domingo os dois temas
foram solidariamente banidos.
O
tema do povo de Deus leva ao tema dos pobres. Ainda não foi suficiente o
desenvolvimento do Vaticano II, mas Medellín e Puebla prolongaram
conscientemente o Vaticano II, e estavam bem conscientes de interpretá-lo
corretamente. O povo de Deus é povo de pobres, e o privilégio dos pobres é que
formam o povo de Deus: eles são chamados e o integram. Os ricos somente são
admitidos se põem a sua riqueza à disposição dos pobres. (pp. 276-281).”
“Karl
Marx, no texto Sobre James Mill, diz
que “a natureza humana é a verdadeira natureza comunitária do homem”, que
“enquanto o homem não se tiver reconhecido como homem e não tiver organizado o
mundo de uma maneira humana, essa natureza comunitária aparece na forma de
alienação.”
“A necessidade que serve de medida aos
direitos subjetivos (e aos valores, etc.) é a necessidade social (o bem comum).
Pio XI dizia que o critério fundamental (para regulamentar todas as
instituições e normas) deve ser o bem comum (ou seja, o bem das pessoas, os
bens suficientes para atender às necessidades fundamentais das pessoas). Por
isso, definiu o bem comum como o conjunto das condições sociais que permitam a
todos satisfazer suas necessidades fundamentais e ter uma vida digna.
São
Bernardino de Siena escreveu: “não há nada de mais injusto que prejudicar o bem
comum e universal” para atender “vantagens particulares e privadas” (por exemplo,
manter o capital monopolista e o latifúndio).”
“A
produção e a reprodução das condições de existência ocorre mediante “o trabalho
(relação com a natureza)”, a “divisão do trabalho (relação de intercâmbio e de
cooperação entre os homens)” e “a procriação (sexualidade e família)”, como
resumiu Marilena Chauí. O trabalho e a natureza constituem “o conjunto das
forças produtivas”. O termo “o trabalho” significa as pessoas, que são a
principal força produtiva e nesse ponto há perfeita unidade entre cristianismo
e marxismo.
As
condições do trabalho são controladas por meio de formas jurídicas que regem o
uso (no fundo, o trabalho) dos bens. Estas formas emanam da sociedade e do
Estado, são protegidas pelo Estado (daí a propriedade asiática, a clássica/escravista,
a feudal, a capitalista etc.).
Marx
definiu o capital do seguinte modo:
(...)
o capital não é uma coisa, mas uma relação de produção definida, pertencente a
uma formação histórica particular da sociedade, que se configura em uma coisa e
lhe empresta um caráter social específico (...)
São
os meios de produção monopolizados por um certo setor da sociedade, que se
confrontam com a força de trabalho viva enquanto produtos e condições de
trabalho tornados independentes dessa mesma força de trabalho, que são
personificados, em virtude dessa antítese, no capital.
Não
são apenas os produtos dos trabalhadores transformados em forças independentes
— produtos que dominam e compram de seus produtores —, mas também, e sobretudo,
as forças sociais e a (...) forma desse trabalho, que se apresentam aos
trabalhadores como propriedades de seus produtos. Estamos, portanto, no caso,
diante de uma determinada forma social, à primeira vista muito mística, de um
dos fatores de um processo de produção social historicamente produzido (O capital, III, cap. XLVIII.).
Marx,
no texto Trabalho assalariado e capital,
escrito no final de 1847, quando rascunhava o Manifesto comunista, escreveu que o “capital” é “uma relação social
de produção” (uma relação entre os que controlam os meios de produção, os
produtores imediatos e a sociedade), “uma relação de produção burguesa”, “da
sociedade burguesa" (tendo inerente um ordenamento jurídico capitalista,
que mantém a reprodução social). O capital tem como base a propriedade capitalista
(o controle sobre os bens produtivos pelos capitalistas, controle assegurado
pelo Estado capitalista). É uma forma de divisão do trabalho (uma relação
social de trabalho, de produção). Sendo uma relação de produção da sociedade
burguesa, pressupõe uma relação do proprietário com a sociedade (especialmente
com os produtores diretos) e com o Estado.
O
Estado dá proteção (judiciária, policial, militar, etc.) ao proprietário quando
este necessita. Por isso, Bakunin apontava, corretamente, que todo latifundiário
e capitalista depende do Estado, pois controlam o Estado justamente para que
este atue como guarda-noturno e diurno da propriedade concentrada dos ricos.
Além disso, os ricos vampirizam o Estado, com o mecanismo torpe da dívida
pública, corno explicou Cobbett (Marx usou essas ideias em várias obras,
especialmente na análise sobre o regime de Napoleão III). Com a ciranda
financeira, os ricos aplicam em títulos da dívida pública, com juros
pré-fixados e multiplicam suas fortunas, sem riscos e sem nenhum suor (exceto o
que derramam nas quadras de tênis, para tentar superar o vazio existencial de
suas vidas). Também multiplicam seus imensos patrimônios com a prática
difundida da corrupção.
A
propriedade é um elemento em uma forma específica de divisão do trabalho,
denominando-se proprietário quem tem o direito subjetivo positivo de controle
(de poder, de decisão) sobre os meios de produção, ou seja, quem exerce o
trabalho intelectual de gestão, de controle dos bens, com a proteção do
ordenamento jurídico positivo, do Estado (por isso, o Brasil tem quase um
milhão de vigilantes, cerca de um milhão de policiais e militares, etc., para
defender as propriedades positivas, os capitais e os latifúndios). (...)
A
propriedade capitalista se desenvolve e se mantém por meio (se movimenta
dentro) de uma forma jurídica capitalista de uso dos bens com base em relações
jurídicas específicas, tendo como suporte normas jurídicas capitalistas (ou
seja, com a proteção e o amparo do Estado, controlado pelos capitalistas). A
estrutura econômica não existe por si só, tem uma superestrutura jurídica e
política e também formas de consciência social, como mostrou Marx, em uma nota
de rodapé de O capital.
Marx,
no prefácio ao livro Contribuição à
crítica da economia política (Livraria Martins Fontes, São Paulo, 1977),
distinguiu na sociedade vários níveis: primeiro, “as forças produtivas”, que se
desenvolvem numa “estrutura econômica” composta de “relações de produção”;
segundo, uma “superestrutura jurídica e política” (“relações jurídicas” e
“formas de Estado”); e, em terceiro lugar, “formas de consciência social”. Na
sequência do texto, diz que “as relações de propriedade” são a “expressão
jurídica” das “relações de produção existentes”, o que mostra a relação
intrínseca entre essas duas relações. Diz, também, que as relações de produção
se movem dentro do âmbito das relações de propriedade, ou seja, o movimento
ocorre em moldes, que são as relações de propriedade.
Quando
as “forças produtivas” evoluem e entram em atrito com as relações de produção
(de propriedade) por essas se tornarem “entraves” (deixando de ser trilhos),
ocorrem as revoluções, precedidas de crises. No texto, Marx recomenda
“distinguir” entre as “condições econômicas de produção” e “as formas
jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas”. A distinção é
importante, mas é importante lembrar que são partes abstratas de um todo real e
que a sociedade é formada pelos três níveis. (...)
Para
superarmos as relações capitalistas é necessária a mudança dessas normas
jurídicas positivas, o que implica a mudança das relações econômicas, das
formas de divisão do trabalho hoje existentes. Enfim, é preciso organizar de
forma distinta o trabalho, tendo em conta o primado do bem comum e do próprio
trabalho (no fundo, das pessoas sobre as coisas).
Os
critérios para a classificação das pessoas em classes sociais, segundo Marx e
mesmo Lênin, são a posse (ou a falta da posse) dos meios de produção e a
posição da pessoa na organização social da produção, no processo produtivo. Na
realidade, trata-se do mesmo critério, pois a “posse” dos meios de produção é,
no fundo, o controle sobre os mesmos (com a proteção estatal, como
superestrutura jurídica e política), ou seja, o trabalho intelectual de
controle (quem toma as decisões, quem controla o processo decisório). Os
trabalhadores, que não têm esse controle, ficam com o mero trabalho braçal, na
posição de oprimidos, na classe oprimida. (...)
Marx,
no Grundrisse, completa esse
raciocínio:
Originalmente
[antigamente, no início], propriedade
não significava mais que a relação de um ser humano com suas condições naturais de produção como pertencentes a ele, como suas, e
pressupostas junto com o seu próprio ser;
relações com tais condições como pressupostos naturais de seu eu, que formam,
apenas, por assim dizer, seu corpo
ampliado. Ele realmente não se relaciona com suas condições de produção,
mas antes tem uma dupla existência,
tanto subjetivamente, como ele
próprio, como objetivamente nessas condições naturais não-orgânicas de sua
existência (...)
Propriedade
originalmente significava — em sua forma asiática, eslava, clássica antiga e
germânica — a relação do sujeito que
trabalha (produtor ou auto-reprodutor) com as condições de sua produção ou reprodução enquanto pertencentes a ele.
Ela
terá diferentes formas, portanto, dependendo das condições de sua reprodução” [os itálicos significam palavras
que o próprio Marx sublinhou, frisando-as).
István
Mészáros, no livro Para além do capital
(Editora Boitempo junto com a Editora da Unicamp, São Paulo, 1ª edição, maio de
2002, p. 611), comenta a frase acima transcrita do seguinte modo:
O
modo capitalista de reprodução social não poderia estar mais distante dessa
determinação original de propriedade.
Sob
o comado do capital, o sujeito que trabalha não mais pode considerar as
condições de sua produção e reprodução como sua própria propriedade. Elas
não mais são os pressupostos auto-evidentes e socialmente salvaguardados do seu
ser, nem os pressupostos naturais do
seu eu como constitutivos da
“extensão externa de seu corpo”. Ao contrário, elas agora pertencem a um “ser
estranho” reificado que confronta os produtores com suas próprias demandas e os
subjuga aos imperativos materiais de sua própria constituição.
Assim,
a relação original entre o sujeito e o objeto da atividade produtiva é
completamente subvertida, reduzindo o ser humano ao status desumanizado de uma mera “condição material de produção”. O
“ter” domina o “ser” em todas as esferas da vida.”
“Para Marx e para a maioria dos
comunistas pré-marxistas, o comunismo teria como base a propriedade comum dos
meios de produção. Não seria a estatização, e sim a propriedade comum, de
todos. Afinal, Marx e Engels diziam que o Estado cessaria de existir. Seria a
volta da propriedade comum de forma renovada, elevada (o esquema bíblico é
claro e esse esquema está também nos textos dos Santos Padres, especialmente
Santo Ambrósio). Ou seja, Marx queria relações de trabalho em que os
trabalhadores controlariam o processo produtivo (as condições sociais de vida e
trabalho), sem reificação, em que os trabalhadores seriam os sujeitos
conscientes que planejariam seus movimentos de forma participativa e fraterna.
Esse ideal é exatamente o que a doutrina da Igreja defende, sendo um dos sinais
da ampliação do Reino de Deus, da libertação das pessoas.”
“O
padre José Maria Díez Alegria S. J. também defendeu uma forma de socialismo
democrático e participativo. Esse jesuíta defendeu a socialização, atacou
duramente o culto sacrílego ao “capital idolatrado” e escreveu que
“reconhecendo a dignidade do trabalho e do trabalhador, colocamos o problema de
estabelecer na sociedade estruturas dentro das quais sejam plenamente
reconhecidos e assegurados os direitos inerentes a essa dignidade do homem que
trabalha”. Maritain defendeu basicamente as mesmas ideias.
O
padre Gonzáles Ruiz escreveu, lá por 1965/1966, as frases seguintes:
(...)
o segundo nível no qual se deve desenvolver o diálogo católico marxista é o
terreno sociológico, intimamente ligado ao campo religioso: o sentido humano do
trabalho, a condenação do sistema capitalista, a supressão das classes
privilegiadas, a construção do socialismo. (...)
A
posição, portanto, da Igreja como tal, diante do socialismo, é de estimular
claramente os cristãos a criar o caminho que conduza mais eficazmente a essas
situações de superação da estrutura da “exploração institucionalizada”, isto é,
do capitalismo”.”
“As pessoas que padecem por
necessidades ordinárias (também chamadas de comuns, quando a falta dos bens
causa dano leve) têm direito aos bens supérfluos dos ricos. E as pessoas que
têm necessidades extremas (a falta dos bens enseja perigo de vida ou de outro
bem de estima semelhante) têm direito aos bens necessários. Essa é a doutrina
do cardeal Cajetano, um dos melhores intérpretes de São Tomás de Aquino. As
necessidades graves (quando a pessoa está exposta ao risco de um mal absoluto
ou relativamente grave) geraram uma polêmica entre os teólogos. As necessidades
graves são intermediárias, entre as ordinárias ou comuns e as extremas. No caso
das necessidades extremas, há também causa excludente de culpabilidade. O
brocardo quod non est licitum, necessitas
facit licitum (“o que não é lícito, a necessidade faz lícito”) se aplica às
leis humanas e, por vezes, às leis positivas divinas e naturais.
Os
atos de misericórdia (esmolas) recomendados pela Igreja são voluntários ou
podem ser impostos pela sociedade. Impõe, assim, a supressão da riqueza e da
miséria, ou seja, a mediania, a igualdade social. A esmola (distribuir os bens)
é uma exigência ética e jurídica, decorrente do princípio da destinação
universal dos bens. (...)
Na
encíclica Centesimus annus, no
capítulo 10, foi bem dito que a justiça “ordena que todas as pessoas recebam o que
lhes é devido”. Ou seja, que todos recebam os bens necessários e suficientes
para uma vida digna e feliz, porque a justiça – geral (social) e distributiva –
tem como finalidade maior o bem comum, atender à destinação universal dos bens.
Na
mesma encíclica, no capítulo 46, há a exigência de “estruturas de participação
e de responsabilidade compartilhada” para garantir a subjetividade da
sociedade. Essas estruturas (co-gestão, gestão participativa, cooperativismo,
autogestão, distributismo e planejamento participativo) devem existir na
economia, na sociedade, no Estado e na Igreja. A Igreja sempre lutou pela
difusão dos bens, uso por todos dos bens, criados para todos. A parábola de
Lázaro e o rico demonstra que a Igreja sempre rejeitou a desigualdade, a existência
de ricos ao lado de miseráveis. Para salvar os ricos do inferno, a doutrina da
Igreja defende que não haja ricos. As frases de Cristo – “ai de vós, ricos” e
“é mais fácil um camelo passar pelo fundo de uma agulha que um rico entrar no
céu” – têm o mesmo espírito revolucionário.”
“Vale
a pena lembrar da famosa teoria do bolo. Delfim Netto a popularizou quando
dizia, cinicamente, que era importante deixar crescer o bolo antes de
distribuí-lo. Franklin Roosevelt, em um discurso de campanha eleitoral, em
Detroit, em 2 de outubro de 1932, já refutara essa mentira assassina, quando
deixou bem claro que a justiça social exige a distribuição de rendas e bens, a
destinação universal dos bens:
Há
duas teorias sobre a prosperidade e o bem-estar. De acordo com a primeira
teoria, se fizermos os ricos mais ricos eles, de algum modo, deixarão uma parte
de sua prosperidade escoar-se para os outros.
A
segunda teoria — e creio que ela remonta aos tempos de Noé (não direi Adão e
Era porque eles tinham uma situação menos complicada) ou pelo menos aos dias do
dilúvio — é a teoria segundo a qual, se a média da humanidade obtiver conforto
e segurança, sua prosperidade crescerá, como o fermento. A filosofia da justiça
social sobre a qual vou falar, a filosofia da justiça social por meio da ação
social, exige positiva e claramente a eliminação da pobreza” [texto colhido do livro O pensamento de Roosevelt, org. por E.
Taylor Parks e Lois F. Parks, trad. port. , São Paulo, 1966].
“A mediania decorre do princípio da
igualdade social. Para isso, o principal é eliminarmos os latifúndios e o
capital monopolista. Especialmente as multinacionais (umas 35 mil, com mais de
200 mil filiais, embora umas 700 multinacionais tenham imenso poder, sendo as
piores sanguessugas celeradas do planeta), que devem, numa fórmula de
transição, ter o direito de remessa de lucros drasticamente controlado, como
queria Sérgio Magalhães e outros da antiga Frente Parlamentar Nacionalista (o
direito de remessa foi cerceado por Getúlio alguns meses antes de ser levado ao
suicídio, tal como foi cerceado por João Goulart, razão do golpe militar de
1964). Da mesma forma, as multinacionais devem ficar sujeitas a formas de
planejamento público participativo. Essas monstruosidades — o capital
monopolista e o latifúndio — são intoleráveis no prisma ético e devem ser
abolidas mesmo, pois é inadmissível que existam esses monopólios privados
(latifundiários, trustes e cartéis privados, especialmente multinacionais)
ainda mais apoiados por governos estrangeiros (CIA, Agência de Segurança
Nacional, etc.), corrompendo os servidores públicos e a cultura nacional. E
ainda por cima explorando nossos recursos naturais e os trabalhadores, pagando
aos mesmos quantias dez vezes menor que as pagas por esses mesmos trabalhos nos
países de origem das multinacionais. (...)
Abolir as grandes fortunas privadas,
bater-se pela igualdade, são pontos essenciais para que, como pessoas, sujeitos
conscientes, participemos do processo produtivo, controlando-o, controlando
nosso destino, nossa vida. Para não sermos controlados, como títeres, por
grandes milionários ou bilionários que venderam suas almas (consciências) ao
Diabo (a Mamon, adorando o bezerro de ouro), em formas de idolatria da mercadoria,
do dinheiro ou do capital (bem descritas por Hugo Assmann e outros).”
“A situação considerada boa para a
maioria dos filósofos da Igreja é a de igualdade social, nem rico nem
miserável. Ter os bens suficientes para uma vida digna e para ajudar o próximo
e a sociedade.
As
ideias de equilíbrio, de harmonia, de limites, de concerto, de proporções têm
implícitas as ideias de contrários. Harmonia, equilíbrio, limites, ou seja, a
medida certa entre contrários, entre polos. Toda medida pressupõe contrários,
sendo os polos (falta ou plenitude) os contrários. A virtude está no meio, no
meio termo. (...)
A
Idade Média cunhou a expressão in medio
et in culmine virtus (no meio e no ápice está a virtude), justamente para
evitar confundir mediania com mediocridade. Cristo foi incisivo na crítica aos
mornos e tíbios. Entre a covardia e a temeridade, por exemplo, há a coragem, a
posição média, elevada e árdua, a boa medida. Todas as virtudes são posições
entre dois vícios, entre dois extremos. (...)
Esse
mesmo senso de medida, de equilíbrio entre opostos, deve ser aplicado para
evitar dois polos, entre “o aspecto social e político” dos direitos subjetivos
e o aspecto individual, pessoal, como lembrava a encíclica Quadragesimo anno, capítulo 16. A mediania também se aplica nesse
aspecto, devendo ser considerada a sociedade e a pessoa, pois o bem comum
pressaupõe o bem de todos, de cada pessoa e da sociedade. Afinal, a sociedade
foi constituída para proteger e promover os direitos naturais de cada pessoa e
não destruí-los. Direitos naturais exigidos, limitados e medidos pelo bem
comum; frise-se. E não latifúndios e o capital monopolista, que vivem do sangue
e do suor dos pobres.”
“A
desigualdade social gera (e é gerada, num circulo vicioso) a exploração dos
pobres e a corrupção do Estado, em outras palavras, o controle dos ricos sobre
o Estado. Mesmo o governo Lula ainda não mudou essa situação horrível e ainda
não rompeu os grilhões sociais.
Há
alguns bilionários e uns poucos milionários ao lado de proletários em situação
de escravos de fato. Há milhões de analfabetos, subnutridos, sem teto e sem
terra, doentes sem tratamento, trabalho infantil e escravo e milhões de meninas
se prostituindo e fazendo abortos forçados pela miséria. Mais da metade da
população economicamente ativa está fora do mercado formal do trabalho.
O
Brasil é também o maior paraíso fiscal do globo, um dos campeões em corrupção,
em lavagem de dinheiro, em acidentes de trabalho, em mortes pela polícia, em
tortura, em prisão ilícita de pobres, em doenças decorrentes de situações
infra-humanas, etc.
Nosso
país também é um dos países campeões em usar bilhões do orçamento nacional para
concentrar ainda mais o capital dos capitalistas, pelo mecanismo torpe da dívida
pública, multiplicada por mais de dez nos oitos anos de governo tucano. É possível
que o Brasil seja a maior colônia do mundo em grau de domínio das
multinacionais em nossa economia e pelo controle fortíssimo dessas empresas
sobre nossa vida política, cultural, etc. Há bancadas inteiras de deputados e
senadores ligadas às multinacionais, às firmas de cigarro, aos bancos, etc. O
IBAD, na década de 60, foi apenas um ensaio.
Essa
situação é inadmissível e a consciência religiosa não aceita situação tão
escandalosa, em total, desacordo com a vontade de Deus por negar os direitos
sagrados do povo. Para superar essas opressões, é importante o trabalho conjunto
com outras lideranças operárias, (muitas com influência marxista, outras
protestantes, espíritas, com religiosidade africana, etc.). Por isso, o diálogo
com essas correntes é tão importante e um bom diálogo pressupõe o resgate das
fontes comuns, como recomendava Hans Küng.”
“A história não se repete, sem dúvida,
mas opera em ziguezague, em avanços e recuos, em inovações que apresentam
traços análogos e reencarnações de ideias, que não a tornam nem puramente
linear, nem puramente cíclica.” (Alceu Amoroso Lima)
“(...)
A quinta e última oposição é a da cooperação contra o comando. Chegamos assim
ao ponto em que a racionalidade abstrata transforma-se completamente no seu
avesso, ou seja, em racionalidade do concreto. Com efeito, a cooperação é a
pulsação viva e produtiva da multitude.
A
cooperação é a articulação de um número infinito de singularidades que entram
em composição como essência produtiva do novo. Cooperação é inovação, é
riqueza, é a base daquele surplus
criador que define a expressão da multidão. É sobre a abstração, a alienação, a
expropriação da criação cooperativa que se constrói o comando. Ele é a
apropriação privilegiada, fixada, uniformizada do poder constituinte — é poder
constituído, constituição, comando. O mundo é então subvertido: o comando precede
a cooperação.
Contudo,
essa subversão, a racionalidade e a lógica que a exaltam são contraditórias e
limitadas em si mesmas, pois elas não detêm a força da própria reprodução.
Produção e reprodução do mundo da vida residem somente na multidão, no conjunto
processual das relações de liberdade e de singularidade, na convergência
criadora de suas diferenças.
A
cooperação é a forma pela qual as singularidades produzem o novo, o rico, o
potente, a única forma de reprodução da vida. A cooperação define a sua
racionalidade por meio da potência. No terreno político, toda definição de
democracia que não assuma a cooperação como sua chave de leitura e conto seu
tecido concreto é falsa. O comando é esta falta de verdade.
A
cooperação é, ao contrário, o valor central da nova racionalidade, a sua
verdade.
Não
é mais possível uma definição que arrebate a sequência
liberdade-igualdade-cooperação à sua fundação ontológica no interior da
potência: toda definição que as separe é falsa. Em sua verdade, este processo é
inovação do ser. A nova nacionalidade é adequada à construção do mundo novo.” (Antonio Negri – O poder constituinte, DP&A Editora, 2002,
RJ)
“Noam
Chomsky, na obra Novas e velhas ordens
mundiais (Editora Scritta, São Paulo, 1996, pp. 112-114), esboça algumas
ideias que amparam as conclusões deste livro: (…)
Isso não significa, claro, que o ideal democrático tenha
entrado em colapso; sem dúvida, foi marginalizado, embora permanecesse vivo nos
movimentos populares e fosse articulado por alguns intelectuais, entre os quais
o mais proeminente deles, talvez, o principal filósofo dos Estados Unidos no
século XX, John Dewey.
Dewey
reconheceu em seus últimos anos que “a política é a sombra projetada sobre a
sociedade pelos grandes negócios” e, já que tem sido assim, “a atenuação da
sombra não mudará a substância”.
As
reformas são de utilidade limitada; a democracia requer que a fonte da sombra
seja removida, não somente por causa de seu domínio na arena política, mas
porque as verdadeiras instituições de poder privado minam a democracia e a
liberdade.
Dewey
foi explícito sobre o poder antidemocrático que tinha em mente: “O poder, hoje,
reside no controle dos meios de produção, câmbio, publicidade, transporte e
comunicação. Quem quer que os detenha governa a vida do país”, mesmo se as
formas democráticas permanecem: “negócios para lucros privados por meio do
controle privado de operações bancárias, terra, indústria, reforçados pelo
controle da imprensa, agentes da imprensa e outros meios de publicidade e
propaganda” – esse é o sistema de poder atual, a fonte de coerção e controle,
e, até que ele seja desembaraçado, não podemos falar seriamente sobre
democracia e liberdade. Em uma sociedade democrática e livre, os trabalhadores
deveriam ser “os senhores de seu próprio destino industrial”, não instrumentos
alugados pelos empregadores, uma posição esboçada anteriormente nas principais
ideias do liberalismo clássico articulado por Wilhelm von Humboldt e Adam
Smith, entre outros. É “antiliberal e imoral” treinar crianças para o trabalho,
“não de modo livre e inteligente, mas em benefício do trabalho obtido”, caso em
que sua atividade “não é livre porque não é livremente compartilhada”. Por
conseguinte, a indústria deve ser mudada “de uma ordem feudal a uma ordem
social democrática”, baseada no controle por parte dos trabalhadores e na
organização federada ao estilo do socialismo de guilda de G. D. H Cole e em
muito do pensamento anarquista e da esquerda marxista. Já para a produção, seu
“objetivo último” não é a produção de bens, mas “a produção de seres humanos
livres associados um ao outro em termos de igualdade”, uma concepção
incompatível com o industrialismo moderno em suas variedades de socialismo de
Estado e de capitalismo de Estado, e de novo com raízes nos ideais liberais
clássicos.”
“O sintoma mais claro da brutal
iniquidade da economia brasileira, além do índice de Gini superior a 6,0
(praticamente o segundo pior do mundo em mais de 230 países), é a concentração
urbana. As grandes cidades são o fruto do êxodo rural, causado pelo latifúndio
(em geral, grilagem criminosa), com base na pecuária extensiva, no desmatamento
criminoso e no sistema plantation,
(extroversão criminosa). Em quase todos as unidades federativas do Brasil, a
metade ou mais da população reside nas capitais.”
“A socialização é uma mistura de
intervenção social e estatal, mais participação associativa, e tem como
finalidade a autodeterminação da sociedade (e das pessoas) e o combate à
reificação. Por isso, não elimina a pequena propriedade Pessoal fundada no
trabalho pessoal (controle pessoal e com base no trabalho pessoal sobre alguns
bens, sendo esse controle sujeito ao bem comum, ao domínio eminente da
sociedade) e sim a difunde (difunde o controle efetivo sobre os bens), tal como
a limita drasticamente (sujeição ao bem comum), justamente para difundir os
bens, para concretizar o direito natural das pessoas ao uso comum dos bens. A
socialização foi devidamente abençoada por João XXIII e outros.
A
comunhão tem vários conceitos correlatos, que muitas vezes coincidem no âmbito
da extensão lógica. Comunhão, comunidade, bem comum, são termos quase
sinônimos, com muitos significados (conteúdos) comuns.
Deus
fez tudo para todos e a destinação universal dos bens é a regra de direito
natural. O bem comum ou a comunidade (commonwealth)
é a base do plano de Deus. Cada um de nós tem um direito subjetivo natural e
fundamental aos bens necessários. E o ideal é que, quanto mais os bens forem
necessários, mais sejam gratuitos ou baratos, como ocorre com o ar, a luz do
sol, etc. Da mesma forma, há o direito de participarmos do processo da criação
(da produção) como sujeitos conscientes e ativos, participando do controle
efetivo dos bens (e do processo produtivo) com nosso trabalho pessoal, sem
opressão, sem reificação, sem extração de mais-valia (sem roubo). Esses
direitos naturais devem ser concretizados, amparados, promovidos pelo
ordenamento jurídico positivo, para que o mesmo seja legítimo e digno de
obediência.
O
ordenamento jurídico positivo deve estabelecer as regras, normas jurídicas,
para a realização da comunidade de bens, de direitos. A pequena propriedade
regrada e limitada não é oposta à comunidade natural, pois a unidade do povo (e
com Deus) não anula a personalidade de cada pessoa e sim a realiza. A natureza
humana é social, comunitária e pessoal. As leis e o Estado têm como finalidade
primária realizar e promover o bem comum. Estabelecer regras para a gestão
comum (autogestão, cogestão e planejamento democrático). Regras racionais para
ordenar as condutas (a liberdade consiste em agir de acordo com a natureza, ou
seja, de forma inteligente), por isso, devem existir os impostos para a
partilha e também o imposto negativo (garantir renda básica para todos).”
“Essa luta pela restrição legal das
horas de trabalho desencadeou-se tanto mais furiosamente quanto, ao mesmo tempo
que aterrorizava a avareza, intervinha na grande querela entre a lei cega da
oferta e da procura, que constitui a base da economia política da burguesia, e
a produção social dirigida pela previsão social, que constitui a base da
economia política da classe operária. É por isso que o bill das dez horas não foi apenas um sucesso prático; foi a vitória
dum princípio. Pela primeira vez, a economia política da burguesia sucumbia, à
vista de todos, perante a economia da classe operária.
Mas
estava a preparar-se urna vitória ainda maior da economia política do
trabalhoso sobre a economia política do capital. Referimo-nos ao movimento
cooperativo e sobretudo às manufaturas cooperativas, montadas com muito esforço
e sem qualquer auxílio por uns quantos “braços” audaciosos. Qualquer exaltação
do valor dessas grandes experiências sociais não poderá nunca ser exagerada.
Por atos, e não por palavras, provaram que a produção em grande escala, e
segundo as exigências da ciência moderna, pode processar-se sem que uma classe
de senhores empregue uma classe de “braços”; que os meios de trabalho, para
darem fruto, não têm necessidade de ser monopolizados para domínio e exploração
do trabalhador; e que o trabalho assalariado, assim como a escravatura, como a
servidão, é apenas uma forma transitória e inferior, destinada a desaparecer
perante os trabalhadores associados, os quais passarão a dedicar-se às suas
tarefas com braços ágeis, espírito atento e coração alegre. Em Inglaterra, a
semente do sistema cooperativo foi lançada por Robert Owen. Os trabalhadores do
continente tentaram experiências que davam uma conclusão prática a teorias que,
não tendo sido inventadas em 1848, foram nessa altura preconizadas bem alto.
Essas
experiências, levadas a cabo entre 1848 e 1864, provaram indubitavelmente uma
outra coisa: por excelente que seja nos seus princípios e por mais útil que se
revele na prática, a cooperação dos trabalhadores, enquanto permanecer limitada
a um círculo reduzido, enquanto apenas alguns operários se esforçarem suceda o
que suceder no que lhes pertence, então essa cooperação não será nunca capaz de
travar os monopólios que crescem em proporção geométrica; ela não será capaz de
libertar as massas, nem mesmo de aliviar de modo sensível o fardo da sua
miséria. (...)
Para
que as massas trabalhadoras fossem libertadas, a cooperação deveria revestir-se
de uma amplitude nacional, e, consequentemente, seria necessário reforçá-la com
meios, nacionais.
Mas
aqueles que reinam sobre a terra e sobre o capital usarão sempre dos
respectivos privilégios políticos para defender e perpetuar os seus monopólios
econômicos. Longe de fazer progredir a emancipação do trabalho, continuarão a
semear no seu caminho todos os obstáculos possíveis. É necessário recordar a
ironia de lord Palmerston, quando rebateu os defensores do bill sobre os direitos dos rendeiros irlandeses, na última sessão
do Parlamento: “A Câmara dos Comuns, exclamou ele, é uma câmara de
proprietários rurais”. Assim, a grande tarefa das classes trabalhadoras é a de
conquistar o poder político. Parece que elas o compreenderam, porque na
Inglaterra, na Alemanha, na Itália, na França, se assistiu a um despertar
simultâneo; e estão-se a fazer esforços simultâneos para reorganizar o partido
dos operários.
Eles
têm nas mãos um elemento de triunfo: o número. Mas o número só pesa na balança
se estiver unido pelo acordo e guiado pelo conhecimento. A experiência do
passado mostrou que deve existir um elo de fraternidade entre os trabalhadores
dos diferentes países e incitá-los a resistir, ombro a ombro, em todas as suas
lutas pela emancipação, e que, menosprezando-se este elo, o castigo será o
fracasso comum destes esforços sem coesão.
Foi
esse pensamento que numa assembleia pública, a 28 de setembro de 1864, em St.
Martin’s Hall, decidiu os trabalhadores dos diferentes países a fundar a
Associação Internacional.”
(Karl Marx – Mensagem Inaugural da Associação
Internacional dos Trabalhadores, de 1864)
“Primitivamente, o lucro da empresa e o salário de direção
confundiam-se em virtude da forma contraditória que assume o excedente do lucro
sobre juro. A confusão aumentou por causa das tentativas apologéticas para
apresentar o lucro como o salário do trabalho levado a cabo pelo capitalista, e
não como mais-valia, quer dizer, trabalho não pago. Os socialistas ripostaram,
exigindo que o lucro fosse efetivamente reduzido ao que pretendia ser em
teoria, a saber, um simples salário de direção. Essa exigência chocou tanto
mais os defensores dos embelezamentos teóricos quanto era certo que o salário
de direção, assim como qualquer outro salário, atingia o seu nível e o seu
preço corrente determinados em consequência da formação duma classe numerosa de
managers industriais e comerciais; e
isso tanto mais quanto aquele salário diminuía, assim como o salário de
qualquer trabalho qualificado em consequência do progresso geral (...).
O
desenvolvimento da cooperação, pelo lado dos trabalhadores, e das sociedades
por ações, pelo lado da burguesia, fez desaparecer o último pretexto para
confundir o lucro de empresa e o salário de direção e o lucro revelou-se na
prática tal como era incontestavelmente em teoria: como simples mais-valia,
como valor para o qual nenhum equivalente é pago, como trabalho gratuito
compreendeu-se que é o capitalista em atividade que explora realmente o
trabalho, e que se aquele trabalha com capital emprestado, então o fruto dessa
exploração divide-se em juro e lucro de empresa, esse último um excedente do
lucro sobre o juro.”
(Karl Marx – O Capital, livro III, capítulo XV)
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