domingo, 20 de maio de 2018

Socialismo: uma utopia cristã (Parte II) – Luiz Francisco F. de Souza

Editora: Casa Amarela
ISBN: 978-85-8682-147-9
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 1152 

“Adam Schaff, um pensador polonês escreveu no livro O marxismo e o indivíduo (Ed. Civ. Brasileira, 1967, p. 190):
O ponto de partida do socialismo — de todo socialismo — é o homem e o protesto contra a desumanização da vida e, por conseguinte, o seu ponto de partida é o amor aos homens, a solidariedade em face da desumanização, da humilhação, da desgraça. Socialismo é, em certo sentido, idêntico a amar aos homens. O socialismo é a doutrina do amor ao próximo, tanto em relação ao ponto de partida como em relação ao objetivo.
No jornal alternativo, Versus, n.º 21, de maio/junho de 1978, há uma entrevista com Dom Tomás Balduíno, um frei dominicano, bispo de Goiás Velho e Presidente da Comissão da Pastoral da Terra, em que diz:
P. Existe algum antagonismo entre os ideais de fraternidade, de justiça, da ideologia cristã e as bandeiras do socialismo?
R — Não há contradição. Elas convergem para uma visão cada vez mais pura, tendo como referencial o homem. As coisas, as estruturas, são relativas. Eu vejo a Igreja aberta a todas as perspectivas de solidariedade, de comunidade, de fraternidade, de colocar os bens a partir das necessidades do homem, e fazer com que o homem supere os tabus do capitalismo, que consagra e diviniza o dinheiro.
Esse capitalismo é um mal, é o próprio pecado. Nefasto, inimigo do homem, a alternativa será uma comunhão cada vez maior e uma valorização daquilo que o povo tem como identidade sua. Até mesmo valores culturais e religiosos devem ser assumidos, como expressão de algo muito profundo que é necessário ao seu viver.
P — Essa descoberta do homem passaria pela coletivização dos meios de produção?
R — Sim, eu acho que terá necessariamente de haver uma mudança profunda na estrutura da produção e de apropriação da terra, sem o que haverá uma continuação dessa injustiça.


         “No seu Catecismo socialista, Luis Blanc começa com esta pergunta: “O que é o socialismo?” E responde: “É o evangelho em ação”.” (Padre José Comblin, O Povo de Deus)


“A participação dos cristãos no movimento revolucionário justifica-se a partir do amor aos pobres. Supõe-se que os cristãos não são os pobres que não teriam a necessidade de amar os pobres. Assim dizia um dos porta-vozes mais dos cristãos comprometidos com a revolução sandinista (o padre Comblin, no citado O Povo de Deus):
A revolução como mediação concreta do amor às multidões podia converter-se no valor máximo para um cristão verdadeiro (...). O processo revolucionário podia converter-se no máximo valor cristão, porque representava a única aproximação ao valor máximo e absoluto do Reino. Em suma, a revolução era a versão histórica do pão que se dá ao faminto e da água que se dá ao que tem sede. Nesse sentido, a revolução, como caminho voltado para o homem novo e para a nova sociedade, transforma-se na causa que dá sentido à vida.
Falou-se muito, naquele tempo, da irrupção dos pobres. Foi um dos grandes temas de Gustavo Gutiérrez. “Esta presença do pobre se faz sentir, em primeiro lugar, nas lutas populares e na nova consciência histórica que as acompanha”. (...)
Depois de Medellín, durante aproximadamente 20 anos, houve a esperança de uma Igreja dos pobres, uma Igreja popular. O tema foi repetido muitas vezes e chegou a ser usado por membros da hierarquia. Foi muito debatido no tempo de Puebla. Não chegou a ser adotado pela Conferência porque o papa o vetou no seu discurso inaugural (1,8). O texto de Puebla retomou as advertências do papa e, sem condenar a fórmula, fez tantas reservas que praticamente a desautorizou.
Apesar disso, os herdeiros de Medellín ainda continuaram lembrando o ideal ou a utopia de uma Igreja dos pobres. “A questão da Igreja que nasce do povo, ou, em sua fórmula breve, a Igreja popular, segundo Puebla, teria que se compreender ‘como Igreja que busca encarnar-se nos meios populares do continente, e, por isso mesmo, surge da resposta de fé que estes grupos dão ao Senhor’. Em Oaxtepec, um dos conferencistas, falando da Igreja, disse que a sua ‘opção pelos pobres é o que garante sua vigência na história. A Igreja empenhou sua própria vida e seu futuro nesta opção’. A Igreja popular é a vocação de toda a Igreja chamada a renascer constantemente a partir dos pobres, os privilegiados do Reino. Não se trata, por isso, de Igreja paralela à Igreja institucional, mas que responde às exigências evangélicas mais fundamentais”.
Dadas as restrições de Puebla depois do discurso do papa, o tema que prevaleceu foi o da conversão da Igreja aos pobres. O tema do povo de Deus, dos pobres, permaneceu vigente desde Medellín durante mais ou menos 20 anos e depois foi pouco a pouco restringido. A opção preferencial pelos pobres fica muito aquém da esperança dos pobres. Não torna a igreja dos pobres.
Faz-se necessário reconhecer que uma conversão global ou mesmo majoritária da Igreja aos pobres é inconcebível na atualidade. Se consideramos quais são os católicos que constituem o público frequentador das igrejas, parece evidente que a imensa maioria é feita de pessoas que não são pobres ou de pobres que continuam inseridos na antiga mentalidade rural, e ainda pertencem mentalmente à cristandade. O que Medellín e Puebla queriam era um início, um movimento de virada na direção de uma Igreja dos pobres. (...)
Houve um tempo em que alguns achavam que as CEBs forneceriam o modelo da futura Igreja. Algumas dioceses foram reorganizadas na base das CEBs, dando a impressão de que a Igreja toda seria uma constelação de CEBs. Essa ideia estava nas mentes e nas aspirações de muitos.
Como era de prever, esse projeto era prematuro. Continuavam existindo as paróquias tradicionais. Religiosos e religiosas, na sua maioria, continuavam trabalhando a serviço das classes altas nos colégios ou faculdades. Os chamados “movimentos”, também de cultura burguesa, estavam em plena ascensão. Durante os anos 90 os movimentos de classe média ultrapassaram a pastoral Popular no interesse do clero, praticamente em todos os países da América Latina.
As CEBs apareceram como eram de fato: uma minoria popular diante de uma Igreja predominantemente ligada às classes médias, ainda que conservasse por algum tempo o discurso da prioridade da opção preferencial pelos pobres. No sínodo americano de 1997 essa referência desapareceu. Os pobres voltaram a ocupar o lugar que foi deles durante tantos séculos, o de objeto da caridade da Igreja reunida em torno da sua base burguesa. O sonho não desaparece. Frequentemente os próprios movimentos têm má consciência e querem introduzir na sua ideologia e nas suas atividades o serviço aos pobres. Pode ser um sinal positivo e um anúncio de conversão. Até agora, no entanto, esse aspecto permanece bastante secundário nas suas preocupações.
Para concluir este capítulo, registramos que desde que João XXIII falou da Igreja dos pobres não foi fácil, e não será fácil no futuro, reprimir essa aspiração a uma conversão total da Igreja. Ela ficou abafada nos últimos tempos pela prioridade dada ao fortalecimento da instituição nas suas formas tradicionais, mas a consciência despertada pelo Vaticano II permanece latente e pode reaparecer a qualquer momento. É preciso que haja grupos que sigam afirmando essa verdadeira essência da igreja para alimentar a inquietação.
A Igreja dos pobres subsiste. Ela é minoritária mas resiste. Já não ocupa a preocupação da maioria do clero nem dos movimentos. Mas ela está presente. A história mostra que a Igreja não pode ser povo de Deus se não é Igreja dos pobres. Os dois temas estão indissoluvelmente unidos. Sem a realização de uma Igreja como povo, os pobres não são nada, além de objetos da caridade de outros. Somente existem realmente no mundo se formarem um povo. Somente existem coletivamente. Sem teologia do povo de Deus não há teologia dos pobres.
Historicamente isso foi comprovado. Quando foi banida a teologia do povo de Deus, desapareceu também o tema da opção pelos pobres. Como já assinalamos, o documento mais claro nesse sentido é o do Sínodo da América Ecclesia in América. Aí foi excluída a teologia do povo de Deus e não se faz mais menção à opção pelos pobres. Já em Santo Domingo os dois temas foram solidariamente banidos.
O tema do povo de Deus leva ao tema dos pobres. Ainda não foi suficiente o desenvolvimento do Vaticano II, mas Medellín e Puebla prolongaram conscientemente o Vaticano II, e estavam bem conscientes de interpretá-lo corretamente. O povo de Deus é povo de pobres, e o privilégio dos pobres é que formam o povo de Deus: eles são chamados e o integram. Os ricos somente são admitidos se põem a sua riqueza à disposição dos pobres. (pp. 276-281).


“Karl Marx, no texto Sobre James Mill, diz que “a natureza humana é a verdadeira natureza comunitária do homem”, que “enquanto o homem não se tiver reconhecido como homem e não tiver organizado o mundo de uma maneira humana, essa natureza comunitária aparece na forma de alienação.”


         “A necessidade que serve de medida aos direitos subjetivos (e aos valores, etc.) é a necessidade social (o bem comum). Pio XI dizia que o critério fundamental (para regulamentar todas as instituições e normas) deve ser o bem comum (ou seja, o bem das pessoas, os bens suficientes para atender às necessidades fundamentais das pessoas). Por isso, definiu o bem comum como o conjunto das condições sociais que permitam a todos satisfazer suas necessidades fundamentais e ter uma vida digna.
São Bernardino de Siena escreveu: “não há nada de mais injusto que prejudicar o bem comum e universal” para atender “vantagens particulares e privadas” (por exemplo, manter o capital monopolista e o latifúndio).”


“A produção e a reprodução das condições de existência ocorre mediante “o trabalho (relação com a natureza)”, a “divisão do trabalho (relação de intercâmbio e de cooperação entre os homens)” e “a procriação (sexualidade e família)”, como resumiu Marilena Chauí. O trabalho e a natureza constituem “o conjunto das forças produtivas”. O termo “o trabalho” significa as pessoas, que são a principal força produtiva e nesse ponto há perfeita unidade entre cristianismo e marxismo.
As condições do trabalho são controladas por meio de formas jurídicas que regem o uso (no fundo, o trabalho) dos bens. Estas formas emanam da sociedade e do Estado, são protegidas pelo Estado (daí a propriedade asiática, a clássica/escravista, a feudal, a capitalista etc.).
Marx definiu o capital do seguinte modo:
(...) o capital não é uma coisa, mas uma relação de produção definida, pertencente a uma formação histórica particular da sociedade, que se configura em uma coisa e lhe empresta um caráter social específico (...)
São os meios de produção monopolizados por um certo setor da sociedade, que se confrontam com a força de trabalho viva enquanto produtos e condições de trabalho tornados independentes dessa mesma força de trabalho, que são personificados, em virtude dessa antítese, no capital.
Não são apenas os produtos dos trabalhadores transformados em forças independentes — produtos que dominam e compram de seus produtores —, mas também, e sobretudo, as forças sociais e a (...) forma desse trabalho, que se apresentam aos trabalhadores como propriedades de seus produtos. Estamos, portanto, no caso, diante de uma determinada forma social, à primeira vista muito mística, de um dos fatores de um processo de produção social historicamente produzido (O capital, III, cap. XLVIII.).
Marx, no texto Trabalho assalariado e capital, escrito no final de 1847, quando rascunhava o Manifesto comunista, escreveu que o “capital” é “uma relação social de produção” (uma relação entre os que controlam os meios de produção, os produtores imediatos e a sociedade), “uma relação de produção burguesa”, “da sociedade burguesa" (tendo inerente um ordenamento jurídico capitalista, que mantém a reprodução social). O capital tem como base a propriedade capitalista (o controle sobre os bens produtivos pelos capitalistas, controle assegurado pelo Estado capitalista). É uma forma de divisão do trabalho (uma relação social de trabalho, de produção). Sendo uma relação de produção da sociedade burguesa, pressupõe uma relação do proprietário com a sociedade (especialmente com os produtores diretos) e com o Estado.
O Estado dá proteção (judiciária, policial, militar, etc.) ao proprietário quando este necessita. Por isso, Bakunin apontava, corretamente, que todo latifundiário e capitalista depende do Estado, pois controlam o Estado justamente para que este atue como guarda-noturno e diurno da propriedade concentrada dos ricos. Além disso, os ricos vampirizam o Estado, com o mecanismo torpe da dívida pública, corno explicou Cobbett (Marx usou essas ideias em várias obras, especialmente na análise sobre o regime de Napoleão III). Com a ciranda financeira, os ricos aplicam em títulos da dívida pública, com juros pré-fixados e multiplicam suas fortunas, sem riscos e sem nenhum suor (exceto o que derramam nas quadras de tênis, para tentar superar o vazio existencial de suas vidas). Também multiplicam seus imensos patrimônios com a prática difundida da corrupção.
A propriedade é um elemento em uma forma específica de divisão do trabalho, denominando-se proprietário quem tem o direito subjetivo positivo de controle (de poder, de decisão) sobre os meios de produção, ou seja, quem exerce o trabalho intelectual de gestão, de controle dos bens, com a proteção do ordenamento jurídico positivo, do Estado (por isso, o Brasil tem quase um milhão de vigilantes, cerca de um milhão de policiais e militares, etc., para defender as propriedades positivas, os capitais e os latifúndios). (...)
A propriedade capitalista se desenvolve e se mantém por meio (se movimenta dentro) de uma forma jurídica capitalista de uso dos bens com base em relações jurídicas específicas, tendo como suporte normas jurídicas capitalistas (ou seja, com a proteção e o amparo do Estado, controlado pelos capitalistas). A estrutura econômica não existe por si só, tem uma superestrutura jurídica e política e também formas de consciência social, como mostrou Marx, em uma nota de rodapé de O capital.
Marx, no prefácio ao livro Contribuição à crítica da economia política (Livraria Martins Fontes, São Paulo, 1977), distinguiu na sociedade vários níveis: primeiro, “as forças produtivas”, que se desenvolvem numa “estrutura econômica” composta de “relações de produção”; segundo, uma “superestrutura jurídica e política” (“relações jurídicas” e “formas de Estado”); e, em terceiro lugar, “formas de consciência social”. Na sequência do texto, diz que “as relações de propriedade” são a “expressão jurídica” das “relações de produção existentes”, o que mostra a relação intrínseca entre essas duas relações. Diz, também, que as relações de produção se movem dentro do âmbito das relações de propriedade, ou seja, o movimento ocorre em moldes, que são as relações de propriedade.
Quando as “forças produtivas” evoluem e entram em atrito com as relações de produção (de propriedade) por essas se tornarem “entraves” (deixando de ser trilhos), ocorrem as revoluções, precedidas de crises. No texto, Marx recomenda “distinguir” entre as “condições econômicas de produção” e “as formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas”. A distinção é importante, mas é importante lembrar que são partes abstratas de um todo real e que a sociedade é formada pelos três níveis. (...)
Para superarmos as relações capitalistas é necessária a mudança dessas normas jurídicas positivas, o que implica a mudança das relações econômicas, das formas de divisão do trabalho hoje existentes. Enfim, é preciso organizar de forma distinta o trabalho, tendo em conta o primado do bem comum e do próprio trabalho (no fundo, das pessoas sobre as coisas).
Os critérios para a classificação das pessoas em classes sociais, segundo Marx e mesmo Lênin, são a posse (ou a falta da posse) dos meios de produção e a posição da pessoa na organização social da produção, no processo produtivo. Na realidade, trata-se do mesmo critério, pois a “posse” dos meios de produção é, no fundo, o controle sobre os mesmos (com a proteção estatal, como superestrutura jurídica e política), ou seja, o trabalho intelectual de controle (quem toma as decisões, quem controla o processo decisório). Os trabalhadores, que não têm esse controle, ficam com o mero trabalho braçal, na posição de oprimidos, na classe oprimida. (...)
Marx, no Grundrisse, completa esse raciocínio:
Originalmente [antigamente, no início], propriedade não significava mais que a relação de um ser humano com suas condições naturais de produção como pertencentes a ele, como suas, e pressupostas junto com o seu próprio ser; relações com tais condições como pressupostos naturais de seu eu, que formam, apenas, por assim dizer, seu corpo ampliado. Ele realmente não se relaciona com suas condições de produção, mas antes tem uma dupla existência, tanto subjetivamente, como ele próprio, como objetivamente nessas condições naturais não-orgânicas de sua existência (...)
Propriedade originalmente significava — em sua forma asiática, eslava, clássica antiga e germânica — a relação do sujeito que trabalha (produtor ou auto-reprodutor) com as condições de sua produção ou reprodução enquanto pertencentes a ele.
Ela terá diferentes formas, portanto, dependendo das condições de sua reprodução” [os itálicos significam palavras que o próprio Marx sublinhou, frisando-as).
István Mészáros, no livro Para além do capital (Editora Boitempo junto com a Editora da Unicamp, São Paulo, 1ª edição, maio de 2002, p. 611), comenta a frase acima transcrita do seguinte modo:
O modo capitalista de reprodução social não poderia estar mais distante dessa determinação original de propriedade.
Sob o comado do capital, o sujeito que trabalha não mais pode considerar as condições de sua produção e reprodução como sua própria propriedade. Elas não mais são os pressupostos auto-evidentes e socialmente salvaguardados do seu ser, nem os pressupostos naturais do seu eu como constitutivos da “extensão externa de seu corpo”. Ao contrário, elas agora pertencem a um “ser estranho” reificado que confronta os produtores com suas próprias demandas e os subjuga aos imperativos materiais de sua própria constituição.
Assim, a relação original entre o sujeito e o objeto da atividade produtiva é completamente subvertida, reduzindo o ser humano ao status desumanizado de uma mera “condição material de produção”. O “ter” domina o “ser” em todas as esferas da vida.”


         “Para Marx e para a maioria dos comunistas pré-marxistas, o comunismo teria como base a propriedade comum dos meios de produção. Não seria a estatização, e sim a propriedade comum, de todos. Afinal, Marx e Engels diziam que o Estado cessaria de existir. Seria a volta da propriedade comum de forma renovada, elevada (o esquema bíblico é claro e esse esquema está também nos textos dos Santos Padres, especialmente Santo Ambrósio). Ou seja, Marx queria relações de trabalho em que os trabalhadores controlariam o processo produtivo (as condições sociais de vida e trabalho), sem reificação, em que os trabalhadores seriam os sujeitos conscientes que planejariam seus movimentos de forma participativa e fraterna. Esse ideal é exatamente o que a doutrina da Igreja defende, sendo um dos sinais da ampliação do Reino de Deus, da libertação das pessoas.”


“O padre José Maria Díez Alegria S. J. também defendeu uma forma de socialismo democrático e participativo. Esse jesuíta defendeu a socialização, atacou duramente o culto sacrílego ao “capital idolatrado” e escreveu que “reconhecendo a dignidade do trabalho e do trabalhador, colocamos o problema de estabelecer na sociedade estruturas dentro das quais sejam plenamente reconhecidos e assegurados os direitos inerentes a essa dignidade do homem que trabalha”. Maritain defendeu basicamente as mesmas ideias.
O padre Gonzáles Ruiz escreveu, lá por 1965/1966, as frases seguintes:
(...) o segundo nível no qual se deve desenvolver o diálogo católico marxista é o terreno sociológico, intimamente ligado ao campo religioso: o sentido humano do trabalho, a condenação do sistema capitalista, a supressão das classes privilegiadas, a construção do socialismo. (...)
A posição, portanto, da Igreja como tal, diante do socialismo, é de estimular claramente os cristãos a criar o caminho que conduza mais eficazmente a essas situações de superação da estrutura da “exploração institucionalizada”, isto é, do capitalismo”.”


         “As pessoas que padecem por necessidades ordinárias (também chamadas de comuns, quando a falta dos bens causa dano leve) têm direito aos bens supérfluos dos ricos. E as pessoas que têm necessidades extremas (a falta dos bens enseja perigo de vida ou de outro bem de estima semelhante) têm direito aos bens necessários. Essa é a doutrina do cardeal Cajetano, um dos melhores intérpretes de São Tomás de Aquino. As necessidades graves (quando a pessoa está exposta ao risco de um mal absoluto ou relativamente grave) geraram uma polêmica entre os teólogos. As necessidades graves são intermediárias, entre as ordinárias ou comuns e as extremas. No caso das necessidades extremas, há também causa excludente de culpabilidade. O brocardo quod non est licitum, necessitas facit licitum (“o que não é lícito, a necessidade faz lícito”) se aplica às leis humanas e, por vezes, às leis positivas divinas e naturais.
Os atos de misericórdia (esmolas) recomendados pela Igreja são voluntários ou podem ser impostos pela sociedade. Impõe, assim, a supressão da riqueza e da miséria, ou seja, a mediania, a igualdade social. A esmola (distribuir os bens) é uma exigência ética e jurídica, decorrente do princípio da destinação universal dos bens. (...)
Na encíclica Centesimus annus, no capítulo 10, foi bem dito que a justiça “ordena que todas as pessoas recebam o que lhes é devido”. Ou seja, que todos recebam os bens necessários e suficientes para uma vida digna e feliz, porque a justiça – geral (social) e distributiva – tem como finalidade maior o bem comum, atender à destinação universal dos bens.
Na mesma encíclica, no capítulo 46, há a exigência de “estruturas de participação e de responsabilidade compartilhada” para garantir a subjetividade da sociedade. Essas estruturas (co-gestão, gestão participativa, cooperativismo, autogestão, distributismo e planejamento participativo) devem existir na economia, na sociedade, no Estado e na Igreja. A Igreja sempre lutou pela difusão dos bens, uso por todos dos bens, criados para todos. A parábola de Lázaro e o rico demonstra que a Igreja sempre rejeitou a desigualdade, a existência de ricos ao lado de miseráveis. Para salvar os ricos do inferno, a doutrina da Igreja defende que não haja ricos. As frases de Cristo – “ai de vós, ricos” e “é mais fácil um camelo passar pelo fundo de uma agulha que um rico entrar no céu” – têm o mesmo espírito revolucionário.”


“Vale a pena lembrar da famosa teoria do bolo. Delfim Netto a popularizou quando dizia, cinicamente, que era importante deixar crescer o bolo antes de distribuí-lo. Franklin Roosevelt, em um discurso de campanha eleitoral, em Detroit, em 2 de outubro de 1932, já refutara essa mentira assassina, quando deixou bem claro que a justiça social exige a distribuição de rendas e bens, a destinação universal dos bens:
Há duas teorias sobre a prosperidade e o bem-estar. De acordo com a primeira teoria, se fizermos os ricos mais ricos eles, de algum modo, deixarão uma parte de sua prosperidade escoar-se para os outros.
A segunda teoria — e creio que ela remonta aos tempos de Noé (não direi Adão e Era porque eles tinham uma situação menos complicada) ou pelo menos aos dias do dilúvio — é a teoria segundo a qual, se a média da humanidade obtiver conforto e segurança, sua prosperidade crescerá, como o fermento. A filosofia da justiça social sobre a qual vou falar, a filosofia da justiça social por meio da ação social, exige positiva e claramente a eliminação da pobreza” [texto colhido do livro O pensamento de Roosevelt, org. por E. Taylor Parks e Lois F. Parks, trad. port. , São Paulo, 1966].


         “A mediania decorre do princípio da igualdade social. Para isso, o principal é eliminarmos os latifúndios e o capital monopolista. Especialmente as multinacionais (umas 35 mil, com mais de 200 mil filiais, embora umas 700 multinacionais tenham imenso poder, sendo as piores sanguessugas celeradas do planeta), que devem, numa fórmula de transição, ter o direito de remessa de lucros drasticamente controlado, como queria Sérgio Magalhães e outros da antiga Frente Parlamentar Nacionalista (o direito de remessa foi cerceado por Getúlio alguns meses antes de ser levado ao suicídio, tal como foi cerceado por João Goulart, razão do golpe militar de 1964). Da mesma forma, as multinacionais devem ficar sujeitas a formas de planejamento público participativo. Essas monstruosidades — o capital monopolista e o latifúndio — são intoleráveis no prisma ético e devem ser abolidas mesmo, pois é inadmissível que existam esses monopólios privados (latifundiários, trustes e cartéis privados, especialmente multinacionais) ainda mais apoiados por governos estrangeiros (CIA, Agência de Segurança Nacional, etc.), corrompendo os servidores públicos e a cultura nacional. E ainda por cima explorando nossos recursos naturais e os trabalhadores, pagando aos mesmos quantias dez vezes menor que as pagas por esses mesmos trabalhos nos países de origem das multinacionais. (...)
         Abolir as grandes fortunas privadas, bater-se pela igualdade, são pontos essenciais para que, como pessoas, sujeitos conscientes, participemos do processo produtivo, controlando-o, controlando nosso destino, nossa vida. Para não sermos controlados, como títeres, por grandes milionários ou bilionários que venderam suas almas (consciências) ao Diabo (a Mamon, adorando o bezerro de ouro), em formas de idolatria da mercadoria, do dinheiro ou do capital (bem descritas por Hugo Assmann e outros).”


         “A situação considerada boa para a maioria dos filósofos da Igreja é a de igualdade social, nem rico nem miserável. Ter os bens suficientes para uma vida digna e para ajudar o próximo e a sociedade.
As ideias de equilíbrio, de harmonia, de limites, de concerto, de proporções têm implícitas as ideias de contrários. Harmonia, equilíbrio, limites, ou seja, a medida certa entre contrários, entre polos. Toda medida pressupõe contrários, sendo os polos (falta ou plenitude) os contrários. A virtude está no meio, no meio termo. (...)
A Idade Média cunhou a expressão in medio et in culmine virtus (no meio e no ápice está a virtude), justamente para evitar confundir mediania com mediocridade. Cristo foi incisivo na crítica aos mornos e tíbios. Entre a covardia e a temeridade, por exemplo, há a coragem, a posição média, elevada e árdua, a boa medida. Todas as virtudes são posições entre dois vícios, entre dois extremos. (...)
Esse mesmo senso de medida, de equilíbrio entre opostos, deve ser aplicado para evitar dois polos, entre “o aspecto social e político” dos direitos subjetivos e o aspecto individual, pessoal, como lembrava a encíclica Quadragesimo anno, capítulo 16. A mediania também se aplica nesse aspecto, devendo ser considerada a sociedade e a pessoa, pois o bem comum pressaupõe o bem de todos, de cada pessoa e da sociedade. Afinal, a sociedade foi constituída para proteger e promover os direitos naturais de cada pessoa e não destruí-los. Direitos naturais exigidos, limitados e medidos pelo bem comum; frise-se. E não latifúndios e o capital monopolista, que vivem do sangue e do suor dos pobres.”


“A desigualdade social gera (e é gerada, num circulo vicioso) a exploração dos pobres e a corrupção do Estado, em outras palavras, o controle dos ricos sobre o Estado. Mesmo o governo Lula ainda não mudou essa situação horrível e ainda não rompeu os grilhões sociais.
Há alguns bilionários e uns poucos milionários ao lado de proletários em situação de escravos de fato. Há milhões de analfabetos, subnutridos, sem teto e sem terra, doentes sem tratamento, trabalho infantil e escravo e milhões de meninas se prostituindo e fazendo abortos forçados pela miséria. Mais da metade da população economicamente ativa está fora do mercado formal do trabalho.
O Brasil é também o maior paraíso fiscal do globo, um dos campeões em corrupção, em lavagem de dinheiro, em acidentes de trabalho, em mortes pela polícia, em tortura, em prisão ilícita de pobres, em doenças decorrentes de situações infra-humanas, etc.
Nosso país também é um dos países campeões em usar bilhões do orçamento nacional para concentrar ainda mais o capital dos capitalistas, pelo mecanismo torpe da dívida pública, multiplicada por mais de dez nos oitos anos de governo tucano. É possível que o Brasil seja a maior colônia do mundo em grau de domínio das multinacionais em nossa economia e pelo controle fortíssimo dessas empresas sobre nossa vida política, cultural, etc. Há bancadas inteiras de deputados e senadores ligadas às multinacionais, às firmas de cigarro, aos bancos, etc. O IBAD, na década de 60, foi apenas um ensaio.
Essa situação é inadmissível e a consciência religiosa não aceita situação tão escandalosa, em total, desacordo com a vontade de Deus por negar os direitos sagrados do povo. Para superar essas opressões, é importante o trabalho conjunto com outras lideranças operárias, (muitas com influência marxista, outras protestantes, espíritas, com religiosidade africana, etc.). Por isso, o diálogo com essas correntes é tão importante e um bom diálogo pressupõe o resgate das fontes comuns, como recomendava Hans Küng.”


         “A história não se repete, sem dúvida, mas opera em ziguezague, em avanços e recuos, em inovações que apresentam traços análogos e reencarnações de ideias, que não a tornam nem puramente linear, nem puramente cíclica.” (Alceu Amoroso Lima)


“(...) A quinta e última oposição é a da cooperação contra o comando. Chegamos assim ao ponto em que a racionalidade abstrata transforma-se completamente no seu avesso, ou seja, em racionalidade do concreto. Com efeito, a cooperação é a pulsação viva e produtiva da multitude.
A cooperação é a articulação de um número infinito de singularidades que entram em composição como essência produtiva do novo. Cooperação é inovação, é riqueza, é a base daquele surplus criador que define a expressão da multidão. É sobre a abstração, a alienação, a expropriação da criação cooperativa que se constrói o comando. Ele é a apropriação privilegiada, fixada, uniformizada do poder constituinte — é poder constituído, constituição, comando. O mundo é então subvertido: o comando precede a cooperação.
Contudo, essa subversão, a racionalidade e a lógica que a exaltam são contraditórias e limitadas em si mesmas, pois elas não detêm a força da própria reprodução. Produção e reprodução do mundo da vida residem somente na multidão, no conjunto processual das relações de liberdade e de singularidade, na convergência criadora de suas diferenças.
A cooperação é a forma pela qual as singularidades produzem o novo, o rico, o potente, a única forma de reprodução da vida. A cooperação define a sua racionalidade por meio da potência. No terreno político, toda definição de democracia que não assuma a cooperação como sua chave de leitura e conto seu tecido concreto é falsa. O comando é esta falta de verdade.
A cooperação é, ao contrário, o valor central da nova racionalidade, a sua verdade.
Não é mais possível uma definição que arrebate a sequência liberdade-igualdade-cooperação à sua fundação ontológica no interior da potência: toda definição que as separe é falsa. Em sua verdade, este processo é inovação do ser. A nova nacionalidade é adequada à construção do mundo novo.” (Antonio Negri – O poder constituinte, DP&A Editora, 2002, RJ)


“Noam Chomsky, na obra Novas e velhas ordens mundiais (Editora Scritta, São Paulo, 1996, pp. 112-114), esboça algumas ideias que amparam as conclusões deste livro: (…)
            Isso não significa, claro, que o ideal democrático tenha entrado em colapso; sem dúvida, foi marginalizado, embora permanecesse vivo nos movimentos populares e fosse articulado por alguns intelectuais, entre os quais o mais proeminente deles, talvez, o principal filósofo dos Estados Unidos no século XX, John Dewey.
Dewey reconheceu em seus últimos anos que “a política é a sombra projetada sobre a sociedade pelos grandes negócios” e, já que tem sido assim, “a atenuação da sombra não mudará a substância”.
As reformas são de utilidade limitada; a democracia requer que a fonte da sombra seja removida, não somente por causa de seu domínio na arena política, mas porque as verdadeiras instituições de poder privado minam a democracia e a liberdade.
Dewey foi explícito sobre o poder antidemocrático que tinha em mente: “O poder, hoje, reside no controle dos meios de produção, câmbio, publicidade, transporte e comunicação. Quem quer que os detenha governa a vida do país”, mesmo se as formas democráticas permanecem: “negócios para lucros privados por meio do controle privado de operações bancárias, terra, indústria, reforçados pelo controle da imprensa, agentes da imprensa e outros meios de publicidade e propaganda” – esse é o sistema de poder atual, a fonte de coerção e controle, e, até que ele seja desembaraçado, não podemos falar seriamente sobre democracia e liberdade. Em uma sociedade democrática e livre, os trabalhadores deveriam ser “os senhores de seu próprio destino industrial”, não instrumentos alugados pelos empregadores, uma posição esboçada anteriormente nas principais ideias do liberalismo clássico articulado por Wilhelm von Humboldt e Adam Smith, entre outros. É “antiliberal e imoral” treinar crianças para o trabalho, “não de modo livre e inteligente, mas em benefício do trabalho obtido”, caso em que sua atividade “não é livre porque não é livremente compartilhada”. Por conseguinte, a indústria deve ser mudada “de uma ordem feudal a uma ordem social democrática”, baseada no controle por parte dos trabalhadores e na organização federada ao estilo do socialismo de guilda de G. D. H Cole e em muito do pensamento anarquista e da esquerda marxista. Já para a produção, seu “objetivo último” não é a produção de bens, mas “a produção de seres humanos livres associados um ao outro em termos de igualdade”, uma concepção incompatível com o industrialismo moderno em suas variedades de socialismo de Estado e de capitalismo de Estado, e de novo com raízes nos ideais liberais clássicos.


         “O sintoma mais claro da brutal iniquidade da economia brasileira, além do índice de Gini superior a 6,0 (praticamente o segundo pior do mundo em mais de 230 países), é a concentração urbana. As grandes cidades são o fruto do êxodo rural, causado pelo latifúndio (em geral, grilagem criminosa), com base na pecuária extensiva, no desmatamento criminoso e no sistema plantation, (extroversão criminosa). Em quase todos as unidades federativas do Brasil, a metade ou mais da população reside nas capitais.”


         “A socialização é uma mistura de intervenção social e estatal, mais participação associativa, e tem como finalidade a autodeterminação da sociedade (e das pessoas) e o combate à reificação. Por isso, não elimina a pequena propriedade Pessoal fundada no trabalho pessoal (controle pessoal e com base no trabalho pessoal sobre alguns bens, sendo esse controle sujeito ao bem comum, ao domínio eminente da sociedade) e sim a difunde (difunde o controle efetivo sobre os bens), tal como a limita drasticamente (sujeição ao bem comum), justamente para difundir os bens, para concretizar o direito natural das pessoas ao uso comum dos bens. A socialização foi devidamente abençoada por João XXIII e outros.
A comunhão tem vários conceitos correlatos, que muitas vezes coincidem no âmbito da extensão lógica. Comunhão, comunidade, bem comum, são termos quase sinônimos, com muitos significados (conteúdos) comuns.
Deus fez tudo para todos e a destinação universal dos bens é a regra de direito natural. O bem comum ou a comunidade (commonwealth) é a base do plano de Deus. Cada um de nós tem um direito subjetivo natural e fundamental aos bens necessários. E o ideal é que, quanto mais os bens forem necessários, mais sejam gratuitos ou baratos, como ocorre com o ar, a luz do sol, etc. Da mesma forma, há o direito de participarmos do processo da criação (da produção) como sujeitos conscientes e ativos, participando do controle efetivo dos bens (e do processo produtivo) com nosso trabalho pessoal, sem opressão, sem reificação, sem extração de mais-valia (sem roubo). Esses direitos naturais devem ser concretizados, amparados, promovidos pelo ordenamento jurídico positivo, para que o mesmo seja legítimo e digno de obediência.
O ordenamento jurídico positivo deve estabelecer as regras, normas jurídicas, para a realização da comunidade de bens, de direitos. A pequena propriedade regrada e limitada não é oposta à comunidade natural, pois a unidade do povo (e com Deus) não anula a personalidade de cada pessoa e sim a realiza. A natureza humana é social, comunitária e pessoal. As leis e o Estado têm como finalidade primária realizar e promover o bem comum. Estabelecer regras para a gestão comum (autogestão, cogestão e planejamento democrático). Regras racionais para ordenar as condutas (a liberdade consiste em agir de acordo com a natureza, ou seja, de forma inteligente), por isso, devem existir os impostos para a partilha e também o imposto negativo (garantir renda básica para todos).”


Essa luta pela restrição legal das horas de trabalho desencadeou-se tanto mais furiosamente quanto, ao mesmo tempo que aterrorizava a avareza, intervinha na grande querela entre a lei cega da oferta e da procura, que constitui a base da economia política da burguesia, e a produção social dirigida pela previsão social, que constitui a base da economia política da classe operária. É por isso que o bill das dez horas não foi apenas um sucesso prático; foi a vitória dum princípio. Pela primeira vez, a economia política da burguesia sucumbia, à vista de todos, perante a economia da classe operária.
Mas estava a preparar-se urna vitória ainda maior da economia política do trabalhoso sobre a economia política do capital. Referimo-nos ao movimento cooperativo e sobretudo às manufaturas cooperativas, montadas com muito esforço e sem qualquer auxílio por uns quantos “braços” audaciosos. Qualquer exaltação do valor dessas grandes experiências sociais não poderá nunca ser exagerada. Por atos, e não por palavras, provaram que a produção em grande escala, e segundo as exigências da ciência moderna, pode processar-se sem que uma classe de senhores empregue uma classe de “braços”; que os meios de trabalho, para darem fruto, não têm necessidade de ser monopolizados para domínio e exploração do trabalhador; e que o trabalho assalariado, assim como a escravatura, como a servidão, é apenas uma forma transitória e inferior, destinada a desaparecer perante os trabalhadores associados, os quais passarão a dedicar-se às suas tarefas com braços ágeis, espírito atento e coração alegre. Em Inglaterra, a semente do sistema cooperativo foi lançada por Robert Owen. Os trabalhadores do continente tentaram experiências que davam uma conclusão prática a teorias que, não tendo sido inventadas em 1848, foram nessa altura preconizadas bem alto.
Essas experiências, levadas a cabo entre 1848 e 1864, provaram indubitavelmente uma outra coisa: por excelente que seja nos seus princípios e por mais útil que se revele na prática, a cooperação dos trabalhadores, enquanto permanecer limitada a um círculo reduzido, enquanto apenas alguns operários se esforçarem suceda o que suceder no que lhes pertence, então essa cooperação não será nunca capaz de travar os monopólios que crescem em proporção geométrica; ela não será capaz de libertar as massas, nem mesmo de aliviar de modo sensível o fardo da sua miséria. (...)
Para que as massas trabalhadoras fossem libertadas, a cooperação deveria revestir-se de uma amplitude nacional, e, consequentemente, seria necessário reforçá-la com meios, nacionais.
Mas aqueles que reinam sobre a terra e sobre o capital usarão sempre dos respectivos privilégios políticos para defender e perpetuar os seus monopólios econômicos. Longe de fazer progredir a emancipação do trabalho, continuarão a semear no seu caminho todos os obstáculos possíveis. É necessário recordar a ironia de lord Palmerston, quando rebateu os defensores do bill sobre os direitos dos rendeiros irlandeses, na última sessão do Parlamento: “A Câmara dos Comuns, exclamou ele, é uma câmara de proprietários rurais”. Assim, a grande tarefa das classes trabalhadoras é a de conquistar o poder político. Parece que elas o compreenderam, porque na Inglaterra, na Alemanha, na Itália, na França, se assistiu a um despertar simultâneo; e estão-se a fazer esforços simultâneos para reorganizar o partido dos operários.
Eles têm nas mãos um elemento de triunfo: o número. Mas o número só pesa na balança se estiver unido pelo acordo e guiado pelo conhecimento. A experiência do passado mostrou que deve existir um elo de fraternidade entre os trabalhadores dos diferentes países e incitá-los a resistir, ombro a ombro, em todas as suas lutas pela emancipação, e que, menosprezando-se este elo, o castigo será o fracasso comum destes esforços sem coesão.
Foi esse pensamento que numa assembleia pública, a 28 de setembro de 1864, em St. Martin’s Hall, decidiu os trabalhadores dos diferentes países a fundar a Associação Internacional.”
(Karl Marx – Mensagem Inaugural da Associação Internacional dos Trabalhadores, de 1864)


         Primitivamente, o lucro da empresa e o salário de direção confundiam-se em virtude da forma contraditória que assume o excedente do lucro sobre juro. A confusão aumentou por causa das tentativas apologéticas para apresentar o lucro como o salário do trabalho levado a cabo pelo capitalista, e não como mais-valia, quer dizer, trabalho não pago. Os socialistas ripostaram, exigindo que o lucro fosse efetivamente reduzido ao que pretendia ser em teoria, a saber, um simples salário de direção. Essa exigência chocou tanto mais os defensores dos embelezamentos teóricos quanto era certo que o salário de direção, assim como qualquer outro salário, atingia o seu nível e o seu preço corrente determinados em consequência da formação duma classe numerosa de managers industriais e comerciais; e isso tanto mais quanto aquele salário diminuía, assim como o salário de qualquer trabalho qualificado em consequência do progresso geral (...).
O desenvolvimento da cooperação, pelo lado dos trabalhadores, e das sociedades por ações, pelo lado da burguesia, fez desaparecer o último pretexto para confundir o lucro de empresa e o salário de direção e o lucro revelou-se na prática tal como era incontestavelmente em teoria: como simples mais-valia, como valor para o qual nenhum equivalente é pago, como trabalho gratuito compreendeu-se que é o capitalista em atividade que explora realmente o trabalho, e que se aquele trabalha com capital emprestado, então o fruto dessa exploração divide-se em juro e lucro de empresa, esse último um excedente do lucro sobre o juro.”
(Karl Marx – O Capital, livro III, capítulo XV)

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