Editora:
Casa Amarela
ISBN:
978-85-8682-147-9
Opinião:
★★★☆☆
Páginas:
1152
“Engels,
numa carta a Jose Bloch, em 22.09.1890, diz
que “existem forças inumeráveis [causas, a ação livre das pessoas], (o que cada
indivíduo quer é impedido pelos outros, e o que resulta é algo que ninguém
quis) que se contrapõem mutuamente, um grupo infinito de paralelogramas de
forças de onde se extrai uma resultante — o acontecimento histórico”,
completando diz:
Segundo
a concepção materialista da história, o fator que em última instância determina
a história é a produção e a reprodução da vida real. Nem Marx nem eu nunca afirmamos
mais do que isso. Se alguém desvirtua, dizendo que o fator econômico é o Único
determinante, converterá aquela tese em uma frase vazia, abstrata e absurda. A
situação econômica é a base, mas os diversos fatores da superestrutura que
sobre ela se levanta — as formas políticas da luta de classes e seus
resultados, as constituições estabelecidas pela classe vitoriosa após uma
batalha bem sucedida, etc., as formas jurídicas, e até mesmo os reflexos de
todas estas lutas reais no cérebro dos participantes, as teorias políticas,
jurídicas, filosóficas, as ideias religiosas e o desenvolvimento ulterior
destas até convertê-las em um sistema de dogmas — exercem também sua influência
sobre o curso das lutas históricas e determinam, predominantemente, em muitos casos,
sua forma. É um jogo mútuo de ações e reações entre todos estes fatores (...).”
“(...) A décima-primeira ideia é a
consideração da caridade (amor ao próximo como a si mesmo, querer ajudar o
próximo, ter relações solidárias, cooperativas e fraternas) como a virtude
maior (maior que a fé e a esperança). A caridade significa o amor e o amor
significa querer o bem do outro, querer que o outro tenha uma vida plena e
tentar transformar todas as relações sociais em relações de cooperação,
especialmente as relações econômicas. (...)
O
amor ao próximo como a si mesmo, a compaixão (compadecer-se, sentir a dor do
próximo como nossa) e a busca pela justiça social são fontes importantíssimas
do movimento socialista. O velho Aristóteles, tão apreciado pela Igreja, no
livro Retórica, escreveu: “amar é
querer bem ao outro”, definição aprovada por São Tomás e que é coerente com o
cooperativismo, com os anseios de participação e de bem comum, etc.
Todas
as unidades produtivas, todas as relações sociais (principalmente as
econômicas) devem ser organizadas de forma cooperativa, fundamentadas em formas
jurídicas cooperativas e não com base na exploração do próximo. O trabalho
humano é naturalmente cooperativo e assim deve ser organizado.
Da
virtude do amor nasce o dever de solidariedade, a concepção de que todos somos
membros de um corpo só, como disse São Paulo (cf. Coríntios, 1, 26 – “se um
membro padece, todos os membros padecem com ele”), que tem amparo na doutrina
da comunhão dos santos. A Igreja ensina que todas as pessoas boas desenvolvem
laços de unidade, se unem cada vez mais. Embutida nessa doutrina há a
constatação da importância da comunicação e da união entre as pessoas, como
frisava o padre Lima Vaz. Este ensinava que os justos terão como que uma alma
comum (o próprio Deus). Essas ideias justificam a ênfase na justiça, nos
pressupostos de fraternidade, igualdade e liberdade.
Engels,
numa carta a Piotr Lavrovich Lavrov, de novembro de 1875, diz que “da doutrina
darwinista eu aceito a teoria da evolução”, mas um evolucionismo próximo ao
exposto por Lavrov, pois escreveu que “não posso estar de acordo com você em
que a luta de todos contra todos foi a primeira fase da evolução humana. A meu
ver, o instinto social foi um dos móveis principais da evolução do homem a
partir do macaco. Os primeiros homens terão vivido em manadas”. O termo
“instinto social” seria o impulso das pessoas de viverem em comunidade, de
forma fraterna e cooperativa.
Engels
concordava com Lavrov, que escreveu: “a ideia da solidariedade” deve “crescer
até abarcar toda a humanidade e contrapô-la como sociedade de irmãos solidários
ao mundo dos minerais, das plantas e dos animais”. E ia além, pois via a
importância do “instinto social” (do amor ao próximo como a si mesmo, da
caridade), da solidariedade (do trabalho cooperativo, dos princípios naturais,
da bondade da natureza comunitária do ser humano, etc.), até mesmo na passagem
de um ser puramente animal para o ser humano.
Pelo
texto de Engels, a expressão “instinto social” era identificada com viver numa
“sociedade de irmãos solidários”. A busca de uma “sociedade de irmãos
solidários” é uma ideia profundamente cristã, pois o cristianismo é, pelos
textos bíblicos, a religião do Amor, que identifica Deus com o Amor. A Bíblia
compara nossa relação com Deus à relação entre esposo e esposa, entre amantes e
também entre pais e filhos, pois diz que Deus é pai e as pessoas são filhos de
Deus, logo, irmãos.
A
ideia ética da evolução, adotada por Lavrov (próxima ao cristianismo), era
compartilhada por Engels, que comentou: “a sua tese” é “perfeitamente justa no
fundo”, mas eu a “formularia (...) de outro modo”. No final da carta, Engels
sintetiza suas observações e diz que “minhas observações se referem antes à
forma (...) e não ao fundo” das ideias de Lavrov expostas no artigo “O
socialismo e a luta pela existência”, publicado no jornal Vperiod! (Adiante!), em 15/9/1875. Fica claro então que o
evolucionismo de Engels tem como base a ética, a ajuda mútua (“o instinto
social”, a “solidariedade”), a mesma base das ideias de Kropotkin, Bergson e
Teilhard de Chardin. Enfim, a mesma base do evolucionismo cristão.”
“O
amor ao próximo como a si mesmo exige uma sociedade sem opressões, sem
exploração, com base em relações interpessoais, sociais e econômicas fraternas,
cooperativas, baseadas no diálogo (na comunicação entre as consciências, que
gera a união).”
“Todas
as normas jurídicas positivas que infringirem os ditames da consciência, que
não assegurarem o bem comum (o atendimento das necessidades fundamentais),
devem ser desobedecidas (como ensinaram Moisés, os Profetas, Cristo, os
apóstolos, os mártires, os Santos Padres e inúmeros papas). Se as autoridades
se tornarem tirânicas (ou seja, se não atuarem de acordo com o bem comum),
devem ser destituídas, processadas, presas e mesmo o tiranicídio e o direito à
revolução estão, em circunstâncias terríveis de opressão, autorizados pelo
direito natural, como expuseram vários pensadores cristãos (cf. Juan de
Mariana, John Milton e outros). A autoridade está vinculada à soberania da
sociedade. O exemplo de Moisés, encabeçando o processo de libertação dos
hebreus no Egito, tal como o exemplo dos Profetas, de Cristo, dos mártires,
expressa bem o jusnaturalismo da Igreja.”
“A felicidade e a alegria na vida decorrem
da prática do amor ao próximo, da bondade e não da acumulação de bens ou poder
A
décima-quinta ideia, de origem hebraica e cristã, é que a felicidade e a
alegria na vida decorrem da prática do amor ao próximo, da bondade, das
virtudes. Essa ideia dignifica muitíssimo a natureza humana; revela alto apreço
pela dignidade da pessoa. É a base fundamental da ética revolucionária, como
Fidel Castro destacou várias vezes. Fidel também fez altíssimos os elogios ao
cristianismo por esta base ética, como pode ser visto no livro de Frei Betto
que expõe o pensamento de Fidel Castro sobre a religião.
Os
ricos e os tiranos (no sentido tomista daqueles que usam o poder para fins
privados, sem atenção ao bem comum, à ética) não têm sequer felicidade
verdadeira. Vivem mergulhados num horrível vazio existencial e afetivo, num
caos afetivo, volitivo e intelectual, em trevas intelectuais, já que recusam
reiteradamente os melhores impulsos de suas consciências (os movimentos
naturais da consciência para a verdade e da vontade para o bem, ampliados pela
ação de Deus, pelo Espírito Santo, denominado também de Amor).
O
velho Santo Astério de Amaseia já dizia que: “aquele que não se compadece nem
se comove diante da fome e da enfermidade de seu próximo é um animal
irracional, que não tem o direito de ter aspecto de homem, pois contradiz ou
desmente sua natureza”.
Os
ricos, para continuar ricos, negam sua natureza, tornam-se irracionais. E os
economistas liberais primam pela absoluta irracionalidade (adoração do
dinheiro, do mercado etc), como provam os textos horrendos e gélidos de Eugênio
Gudin, Roberto Campos, Malan, Mário Henrique Simonsen e outros.
O
reino do céu já está na terra, nas vidas presentes. O inferno é justamente a
recusa consciente de alguns a viverem com base no Amor. A morte apenas coroa e
consolida nossas escolhas (projetos de vida). Os ricos e os tiranos também
devem ser libertados desses grilhões, dessas correntes a que voluntariamente se
apegam.
A
sociedade, mediante o Estado, pode e deve tributar, confiscar ou dar perdimento
(aos bens obtidos ilicitamente, de forma antiética), e, assim, alterar a
condição social dos ricos para permitir que ganhem a vida de forma digna, com o
suor do próprio rosto, como trabalhadores associados ou pequenos proprietários,
mas que cessem a vida de sanguessugas e parasitas sociais.”
“Eu
amo todas as religiões, mas sou apaixonada pela minha.” (Madre Tereza de
Calcutá)
“Para
expor a teoria das razões seminais, vejamos um bom texto de São Justino,
extraído do livro Apologia, escrito
em 150 depois de Cristo.
Para
afastar as pessoas de nosso ensino, outros brandirão contra nós o argumento
desarrazoado de que afirmamos que Cristo nasceu há 150 anos, em tempos de
Querino; que ensinou, em tempos de Pôncio Pilatos, a doutrina que lhe atribuímos;
e criticar-nos-ão, pois, dizendo que não levamos em consideração todos os que
nasceram antes de Cristo.
Convém
que desfaçamos essa dificuldade.
Temos
aprendido que cristo é o primogênito do Pai, e acabamos de explicar que Ele é a
razão (o Verbo), da qual participa toda razão humana, e aqueles, pois, que vivem de conformidade com a razão são cristãos,
muito embora sejam reputados como ateus. Assim Sócrates e Heráclito, entre
os gregos, e, como eles, muitos outros. (...)
Em
todos que corretamente discursaram [São Justino menciona Platão, os estoicos,
poetas e prosadores] percebemos que os pontos que se harmonizam com o
cristianismo se devem à participação de suas mentes com a razão seminal de Deus
(Verbo), contrariamente (ao Evangelho) apresentam-se destituídos do
conhecimento invisível e da sabedoria irrefutável.
Tudo
quanto, por algum homem, em algum lugar, foi opinado acertadamente, pertence a
nós, cristãos, porquanto nós, em presença de Deus, adoramos e amamos a razão (o
Verbo) que procede do Deus encarnado e inefável. Visto que essa Razão, por
nossa causa, se fez homem e compartilhou de nossos sofrimentos, ela pode
igualmente trazer-nos a salvação. Ora, a todos os autores foi dada a capacidade
de discernir obscuramente a verdade, em virtude da semente inata da razão que
havia neles”
[texto colhido do
livro Documentos da Igreja de H.
Bettenson, da Editora Aste Simpósio, São Paulo, 1998, p. 31].
A
referência aos “ateus”, feita por São Justino, explica como mesmo os ateus se
salvam quando são vítimas de erros praticamente invencíveis, decorrentes da
cultura em que vivem. Salvam-se, ao viverem de acordo com as luzes da razão,
com os princípios partilhados por todos (a lei natural, chamada por São Paulo
de lei de Deus impressa nos corações humanos). Ainda mais considerando que o
Espírito de Deus busca a todos, suscitando boas ideias e sentimentos em todas
as pessoas, robustecendo as ideias naturais de bondade (ideias salvíficas),
dando a todos a chance da salvação. Os que vivem de acordo com a razão (com a
consciência) fazem, assim, parte da Igreja invisível (o “corpo místico de Deus,
de Cristo), que é mais extensa que a visível.
Essa
mesma ideia bíblica foi exposta nos livros Nove
lições sobre as noções primárias da
filosofia moral e Razão e razões,
de Maritain, nas quais o mesmo expõe a noção dos cristãos inconscientes. A
dialética imanente do ato de liberdade implica que mesmo os não crentes, quando
atuam de forma livre, num movimento natural de suas consciências em direção ao
bem honesto, se ordenam e se unem a Deus, num ato de fé “implícito”, mesmo que
o não crente desconheça ou negue expressamente a Deus (em regra, a negação é da
imagem distorcida de Deus, de um ídolo).
A
noção dos ateus bons como “cristãos anônimos” ou “inconscientes” (cristãos alienados,
sem consciência) foi desenvolvida por Karl Rahner, que explicou que há
pouquíssimos ateus na prática, sendo que mesmo esses vivem num esforço diário
de rejeição a Deus, quase sempre para não terem que planejar e viver com base
nas exigências éticas que a existência de um Deus amoroso coloca. Ou negam a
Deus por terem uma imagem (ideia) totalmente distorcida e errônea de Deus,
vivendo num meio cultural repleto de tais erros. Nesse último caso, em geral,
os “ateus virtuosos” combatem contra ídolos (a imagem distorcida de Deus) e
teriam o total apoio dos Santos Padres nas críticas que fazem ao ídolo que eles
mesmos mantêm (por exemplo, a ideia de um Deus que defende a guerra ou a
exploração não passa de blasfêmia e abominação e essa imagem distorcida é um
ídolo, odiado por qualquer cristão, que sabe que Deus quer a paz e não aceita
relações sociais opressivas).”
“O
texto de “Gênesis”, capítulos 1 e 2, não trata sobre a forma da origem do
universo, não é um texto científico, não descreve como foi a origem. Trata
sobre a soberania de Deus, o destino (a destinação) do universo (florescer a
vida) e outros pontos religiosos. João Paulo II, em um discurso na Pontifícia
Academia de Ciências, em 3/10/1981, disse:
A
Bíblia mesma nos fala da origem do universo e sua formação não para nos
fornecer um tratado científico, mas para precisar as relações corretas do homem
com Deus e com o universo. A Sagrada Escritura quer simplesmente dizer que o
mundo foi criado por Deus e, para ensinar essa verdade, exprime-se com os
termos da cosmologia usada no tempo daquele que escreveu. O livro sagrado quer,
além disso, fazer saber aos homens que o mundo não foi criado como sede de
deuses, como ensinavam outras cosmogonias e cosmologias, mas que foi criado
para a utilidade do homem e a glória de Deus. Qualquer outro ensinamento sobre
a origem e a formação do universo é estranho às intenções da Bíblia: ela não
quer ensinar como foi feito o céu, mas como se vai para o céu.”
“Santo
Agostinho (e Santo Inácio, nos Exercícios
espirituais), ao abrir o livro Cidade de Deus, contrapõe dois amores — de um lado o amor a Deus acima de tudo e ao
próximo como a si mesmo (a Cidade de Deus), do outro lado, o amor a si mesmo
acima de tudo (a Cidade do Diabo). Em linguagem política, significa que, de um
lado (o lado de Deus), devem existir relações fraternas, cooperativas,
comunitárias, filiais, paternas e maternas (destaque para Maria e a Igreja como
mãe). Do outro lado (o lado de Mamon ou do bezerro de ouro), há relações
individualistas, de opressão, de escravidão, de ódio, sem solidariedade, sem
amor ao próximo (enfim, há o capitalismo, com a idolatria à riqueza, aos
prazeres e fundada na mentira).”
“As
descrições do capitalismo (incluindo os bons textos de Marx em O capital) lembram bastante as
descrições do inferno, especialmente os textos de Dante, onde o inferno é
descrito como uma situação onde não controlamos o ambiente (nossas condições de
vida) e somos submetidos ao caos externo (daí a imagem do fogo, sendo que um
ambiente não controlado pelo trabalhador tem a forma do processo de
fetichização, da idolatria do ouro e das mercadorias, como foi descrito por
Marx nos Manuscritos de 1844, na Contribuição à crítica à economia política,
nos Grundrisse e no livro O capital). O ambiente não controlado
são as condições de vida e trabalho (terra e meios de produção, sendo que terra
significa os bens ou valores de uso gerados pela natureza, como foi bem
explicado por Marx na Crítica ao programa
de Gotha) separadas do trabalhador e das pessoas e usadas para explorar os
trabalhadores e beneficiar exploradores (latifundiários e capitalistas). O
inferno é semelhante ao capitalismo principalmente pelo vazio existencial e
ético (pela falta de Amor, de ética, de sentimentos verdadeiros, pela falta de
consciência da presença de Deus, de respeito à consciência e à racionalidade,
etc.). O pior do inferno é não ter amor por si mesmo, pelo próximo e por Deus e
essa falta de amor é culpa da pessoa e do que a mantém afastada de Deus.
O
Céu, ao contrário da descrição do inferno, é descrito como o universo renovado
(cf. capítulo 22 do “Apocalipse”, em Isaías, nas cartas de São Pedro, etc.),
onde reina o Amor e a justiça. Os justos (os que lutam pela justiça social,
etc) irão brilhar como estrelas e as pessoas estão unidas entre si por relações
fraternas (cooperativas, amorosas). Todos estão unidos ao Amor onipotente de um
Deus que aceitou morrer para salvar a todos. No Céu, em vez de fogo (ambiente
hostil, condições de vida sem o controle consciente), as pessoas, com corpos
impassíveis (que não envelhecem nem sofrem e nem morrem, pois a morte e os
sofrimentos não são naturais e nem condizentes com a dignidade humana),
controlam o ambiente (as condições) em que vivem (dizem para as montanhas
pularem e estas pulam). A concepção dos milagres indica claramente que o ideal
(o plano) de Deus é que as pessoas controlem a natureza, a biosfera deve ser
regida pela noosfera. A humanização do universo faz parte do plano de Deus, o
controle humano é também o controle divino pois Deus age nas consciências das
pessoas, inspirando bons afetos (condutas, etc.), para implantar uma
civilização regida pelo Amor.
Na
Bíblia está dito também que o futuro será melhor que toda expectativa (melhor
do que tudo o que já vimos ou podemos imaginar), mas as linhas descritas acima
constam da Bíblia e apontam justamente para a destinação universal dos bens, o
controle pessoal sobre os bens e para relações fraternas (cooperativas) entre
as pessoas. Essas ideias são exatamente as ideias nucleares do socialismo,
enquanto a descrição do capitalismo lembra a descrição do inferno, o que para
qualquer cristão verdadeiro é bastante significativo.
O
ideal cristão identifica-se com a vida de São Francisco ou de São Vicente dede
Paulo, a pessoa desprendida, que não acumula, que passa a vida fazendo o bem
(em relações cooperativas), enquanto o ideal do Diabo (Mamon, o ídolo da
riqueza) é exatamente a figura do capitalista e do latifundiário que Marx
descreveu tão bem em seus livros. Sem a menor dúvida é possível afirmar que
existem, nos textos socialistas, inúmeras ideias oriundas diretamente da Bíblia
e essas fontes são as pontes para a melhoria do diálogo.”
“A liberdade explica até mesmo o
inferno. Segundo os melhores teólogos, se alguém no inferno mudasse e se
arrependesse, mesmo se fosse Satanás, sairia do inferno. Deus é Amor (cf. São
Paulo e São João) e o inferno é basicamente a rejeição consciente e voluntária
ao amor a si mesmo, a Deus e ao próximo (cf. Santo Agostinho). A eternidade do
inferno é explicada pela teimosia do ódio (falta de amor) dos que ali estão, e
não na teimosia divina, pois Deus permanece amando mesmo os piores pecadores e
aberto ao perdão.”
“O padre Bigo S. J. e o padre Fernando
Bastos de Ávila S. J., no livro Fé cristã
e compromisso social (Edições Paulinas, 1982, pp. 400-402) expuseram as
implicações ecológicas que decorrem do aspecto messiânico da fé cristã: (...)
“Podemos condensar essa ética no
decálogo ecológico difundido pela Campanha da Fraternidade da Conferência
Nacional dos Bispos do Brasil, sobre o tema “Preserve o que é de todos”:
1)
O mundo, com seus recursos naturais, é um espelho onde se refletem a beleza e a
bondade de Deus. Empenha-te por evitar tudo aquilo que possa obscurecer esse
reflexo e deteriorar o dom que Deus, com infinito amor, preparou para seus
filhos.
2)
Contribua com teus esforços para a beleza de um mundo onde possamos ver as
flores se abrir e as estrelas brilharem; onde possamos ouvir o canto dos
pássaros e o riso das crianças, como promessas de que a benção de Deus não
abandonou ainda a nossa terra.
3)
A Providência de Deus dotou a terra dos recursos necessários para garantir a
vida de todos os homens. Evita todas as formas de desperdício e de consumo
supérfluo, lembrando-te de que o teu uso insensato dos bens priva algum irmão
do necessário à sua subsistência.
4)
Deus destinou a terra com todos os seus recursos à liberdade e à promoção de todos
os homens, não ao benefício exclusivo de alguns grupos ou povos. Usa
responsavelmente da tua liberdade, não para destruir, mas para construir um
mundo onde todos possam viver como irmãos.
5)
É no trabalho, destinado a prover o sustento de todos, que os homens devem se
descobrir como irmãos e completar a obra criadora de Deus. Procura com teu
trabalho não perturbar, mas promover o admirável equilíbrio da natureza que
torna possível a continuidade da vida, da fraternidade e da paz.
6)
Depende também de ti a criação de condições que melhorem a qualidade de vida de
todos os irmãos. Não contribuas para aumentar as diversas formas de poluição
que acabarão por tornar intolerável a vida sobre a terra. A mais detestável
forma de poluição é a miséria dos irmãos espoliados pela injustiça.
7)
O homem foi criado para usar dos recursos naturais na medida necessária à sua
realização de filho de Deus. Liberta-te da preocupação obsessiva de ter sempre
mais, que leva à opressão dos outros e à escravização de ti mesmo aos bens
materiais.
8)
Todo o pecado é um uso indébito dos bens que Deus ofereceu ao homem,
desviando-os do fim para o qual foram criados. Neste sentido, todo pecado é uma
profanação da natureza e de seus recursos. Ninguém profana impunemente o dom de
Deus.
9)
Procura novas formas de realizar a tua dignidade de homem e de filho de Deus,
independentemente da preocupação de acumular sempre maiores posses e recursos.
Aprende a ser mais, mesmo com menos.
10)
Recorda-te que o que dá sentido à tua vida é mais importante do que a vida. O
destino do homem não é apenas viver, mas amar, preparando para os outros uma
terra nova onde possam morar a justiça, a paz e a esperança.”
“Santo Agostinho ensinou, com base nos
ensinos bíblicos, que a salvação, a libertação (ou seja, a santificação e,
assim, a deificação pela união com Deus), decorre da ação cooperativa entre a
graça e o livre arbítrio:
Com
a graça, inspira Deus o desejo do bem, para que não aja com desgosto, mas com
prazer. Esta é a suavidade que Deus dá, para que nossa terra produza seu fruto;
porque nós fazemos o bem verdadeiro, não por medo dos males temporais, mas pela
atração que o bem produz por si mesmo. As obras devem ser feitas por amor e não
por temor, não por medo da pena, mas pelo gozo da justiça. Esta é a verdadeira
e autêntica liberdade... E atua com liberdade quem atua satisfeito, contente,
alegre.”
“As relações interpessoais devem se
basear no amor (na cooperação), não podem ser opressivas. Uma relação entre
iguais que cooperam, dialogando (buscando consensos, a concórdia, o mesmo
coração), é uma relação democrática com base em consensos e acordos (em boas
sínteses que permitam o máximo de consenso), com base em planos cooperativos e
democráticos (participativos). Essas ideias naturais (decorrentes do ser humano
e da atividade da inteligência sobre o processo histórico) se concretizaram em
várias tradições comunitárias (a base teórica de várias formas de propriedade
comunitária) no mundo todo, ligadas à religiosidade popular.”
“Em
Deus, há unidade entre essência e existência. Nos santos (ideal de perfeição
que deve inspirar a todos) há algo dessa unidade, pois a graça aperfeiçoa a
natureza e, por isso, os santos são as pessoas mais humanas, naturais,
inteligentes, espontâneas e livres. Sendo feitos à imagem de Deus, o
florescimento de nossa personalidade, de nossa humanidade, é a santificação, a
divinização da pessoa. Nesse sentido, Feuerbach estava certo (afinal o mesmo
conservou inúmeras verdades cristãs no movimento de secularização dessas verdades):
os predicados de Deus devem ser os nossos também.”
“Cláudia
Furiati, na obra Fidel Castro — uma
biografia consentida (Ed. Revan, Rio de Janeiro, maio de 2003, pp.
674-675), traz um texto de Fidel Castro que é uma paráfrase dos textos de
Engels sobre o cristianismo primitivo:
“O
papa não pode ser considerado o anjo exterminador de socialismos. Ele é um
permanente crítico da globalização neoliberal, um implacável adversário do
neoliberalismo. E muito nos alegramos com isso.”
No
dia 21 de janeiro, Fidel caminhou até a escada do avião para recebê-lo.
Preocupado com que nada lhe ocorresse, ia ao seu lado ajustando o passo como a
resguardá-lo. Em uma bandeja levada por crianças, João Paulo II beijou mostras
da terra de todos os rincões da Ilha. Fidel, em breve discurso em um palanque
erguido no aeroporto, resgatou o tempo da primitiva Igreja e a esta associou a
Revolução.
“Somos
um povo que se nega submeter-se ao império da mais poderosa potência econômica,
política e militar da História, muito mais que a antiga Roma. Como aqueles
cristãos atrozmente caluniados para justificar crimes, nós, tão caluniados como
eles, preferiremos mil vezes a morte a renunciar às nossas convicções (...) Que
podemos oferecer-lhe em Cuba, Santidade? Um povo com menos desigualdades, menos
cidadãos sem amparo... um povo instruído a quem o senhor pode falar com toda a
liberdade que desejar... Não haverá nenhum país mais preparado para compreender
a sua feliz ideia: de que a distribuição equitativa das riquezas e a
solidariedade entre os homens e os povos devem ser globalizadas. (...)
Bem-vindo à Cuba!”
“(O papa) Leão XIII escreveu na “Rerum Novarum”: (de 16/5/1891), no
capítulo 6:
Deus
concedeu a terra a todo o gênero humano,
Deus
não assinalou uma parte a nenhum homem em particular, mas quis deixar a
limitação das propriedades à indústria [no sentido de criatividade] humana e às
instituições dos povos.
João Paulo II disse, num discurso aos
jovens de Estrasburgo, em 8 de outubro de 1988:
“A
terra pertence a Deus, mas ela foi doada ao conjunto dos homens. Deus não quer
o roubo de uns e a fome de outros, a abundância de uns tendo uma terra fértil e
a espoliação dos outros que não possuem a mesma riqueza. (...) A Igreja defende
isso de maneira convenientemente forte? Talvez não. Também os membros da Igreja
têm as suas fraquezas. Nós somos a Igreja, vocês e eu. (...)
No
texto de Puebla (encontro dos bispos da América Latina na cidade de Puebla,
México, em 1979), há a mesma concepção:
“363.
Os bens e as riquezas do mundo, por sua origem e natureza e vontade do Criador,
existem para servir efetivamente à utilidade e ao proveito de todos e de cada
um dos homens e povos.
Daí
se deduz que compete a todos e a cada um o direito primeiro e fundamental,
absolutamente inviolável, de usarem solidariamente desses bens, na medida do
necessário, para uma realização digna da pessoa humana. (...)
A
propriedade compatível com aquele direito primordial é, antes de tudo, um poder
de administração e gerência: esse poder, embora não exclua a posse, não a torna
absoluta nem ilimitada. Deve ser fonte de liberdade para todos, nunca de
dominação nem de privilégios. É um dever grave e urgente fazer aqueles bens e
riquezas voltarem a sua finalidade primeira (PP 28)”.”
“Deus deu o poder (político, etc.) e os
bens à sociedade. Como disse Leão XIII, na Rerum
Novarum (7,355), Deus deu “a terra a toda à humanidade para usá-la e
desfrutá-la”, “Deus concedeu a terra em comum à espécie humana”, não assinalou
“a nenhum em particular a sua quota-parte, deixou essa delimitação à própria
atividade dos homens e à legislação de cada povo”. O critério de “delimitação”
são justamente as necessidades fundamentais para uma vida digna. E toda
“legislação” ou “atividade” que não concretizar e realizar o princípio da
destinação universal dos bens é uma violência, como apontou Santo Agostinho e
deve ser enfrentada e desobedecida (como fizeram os profetas e os mártires).
Diante de legislações iníquas, os cristãos têm até mesmo o direito (e muitas
vezes o dever) de fazer uma revolução, se possível pacífica.”
“A
quantidade de bens que a pessoa pode controlar é limitada pela justiça social
(no fundo, pelo bem comum, pela soberania da sociedade) que impõe limites. A
justiça distributiva, por sua vez, exige que todos tenham os bens necessários
para uma vida digna e impõe que, em regra, o título secundário, o trabalho,
está subordinado ao título primário (a destinação universal dos bens vinculada
às necessidades) e deve realizar justamente essa destinação universal (o bem
comum, que exige o bem de todos).”
“Henrique Baptista, no livro Socialismo, os precursores, considerou
Necker como precursor do socialismo. Transcreveu trechos escritos pelo mesmo,
no livro sobre os cereais, que vale a pena resgatar:
O
vosso título de posse está escrito no código? Trouxestes, por ventura, as
vossas terras de algum planeta vizinho? Não. Fruis a propriedade em resultado
duma convenção. A propriedade hereditária é uma lei dos homens, um privilégio,
um abuso de liberdade que pode chegar a permitir que a força oprima o fraco
(...).
O
soberano pode forçar o povo a expor a vida para defesa do Estado, e não há de
ter de velar pela sua existência?! Não lhe compete moderar, por ventura, o
abuso da propriedade para com os indigentes?
A
“convenção” deve ser o ordenamento jurídico consentido e gerado pelo povo, que
pode e deve ser alterado pelo mesmo povo, drasticamente, para eliminar o
latifúndio e o capital monopolista e mesmo o capital (meios de produção
divorciados dos trabalhadores e sem estarem sujeitos ao bem comum, a formas de
planificação participativa). Os liberais ainda defendem o controle da
natalidade praticamente imposto (o exemplo da Benfam é claro), mas não admitem que
o Estado regulamente, restrinja ou faça uma vasta distribuição dos bens. A
incoerência é absurda e cínica.”
“O
uso dos bens foi determinado no “Gênesis”. Deus criou os seres humanos para que
cultivassem e aperfeiçoassem a criação (como um cultivador num campo), conforme
consta de Gn 1,27; 2,7; Sab 2,23; Ecl 17,1 e de outros textos bíblicos. Deus
criou tudo e está presente (daí os predicados da onipresença, da ubiquidade) em
tudo (no fogo, no sol, nos oceanos, nas crianças, nos passarinhos, etc.).
Quando usamos os bens entramos em relação com Deus, imanente e transcendente ao
universo (como ensinava Mestre Eckhart e São Francisco de Assis). Os ricos, que
açambarcam os bens, perdem contato com Deus, pela insensibilidade ética e
afetiva (que obscurece a inteligência, enfraquece a vontade, nubla a memória,
confunde a afetividade, etc.) diante das necessidades do próximo. São Francisco
de Assis mostrou, claramente, como deve ser nossa relação com o próximo e com
os bens, por isso é um bom exemplo de como deve ser o cidadão do futuro,
especialmente nas relações sociais e na forma de gestão dos bens. (...)
O
trabalho humano é criador, pois somos feitos à imagem de Deus, por isso há o
predomínio da subjetividade, do aspecto subjetivo do trabalho. A ciência e as
artes atestam claramente a primazia do aspecto subjetivo do trabalho e também o
primado do trabalho sobre os bens. A alienação, a reificação do trabalhador, é
horrenda e ofende o próprio Deus. O capitalismo deve ser superado por ser o
reino do capital, do dinheiro, da reificação, da exploração, como apontou
corretamente Moses Hess, o “rabino vermelho” (como Marx o chamava).
São
Tomás de Aquino escreveu: “o que é de direito humano [as formas jurídicas
positivas] não pode derrogar o que é de direito natural e divino [o princípio
da destinação universal dos bens, do primado do trabalho, subjetivo do aspecto
subjetivo do mesmo, da cooperação, etc.]. Pois bem, segundo a ordem da
natureza, instituída pela divina providência, as coisas estão ordenadas a que,
por elas, sejam atendidas [satisfeitas] as necessidades humanas. Não se pode,
portanto, permitir que a divisão dos bens e sua apropriação [os direitos
subjetivos, positivos, reais ou pessoais], obras do direito humano, oponham-se
ao atendimento das necessidades de todos. As coisas que cada um possui em
excesso devem, por direito natural, ser dadas a quem tem necessidade das
mesmas”. Dadas voluntariamente ou tomadas pelo Estado, mediante tributos,
perdimento, etc.
A
mesma lição foi repetida por Leão XIII, na “Rerum
Novarum”, quando disse que Deus criou os bens para todos, para que a
sociedade (por meio de formas jurídicas, instituições, costumes, etc.) assegure
a todos os bens necessários para uma vida digna e feliz.
O
direito de usar os bens, de acordo com a doutrina da Igreja, é um direito
anticapitalista, pois não admite a proletarização das pessoas e considera a
riqueza individual (tendo ao lado a miséria e o sofrimento do próximo) um mal,
fruto da avareza, da opressão e da usurpação dos bens (que foram criados para
todos).”
“As
ideias de Betinho, com aliados como Rosa Roldan, foram expostas por Ricardo
Gontijo no livro Sem vergonha da utopia –
conversas com Betinho (Vozes, RJ, 1988, pp. 20-22):
“O
bem é o mais revolucionário de todos os valores. Eu acredito nisso como tarefa)
como proposta, como um processo, como um desafio. Eu não acredito em nada que
está parado, que é dado. Eu creio naquilo que deve ser objeto da minha
permanente transformação. E toda transformação supõe a definição de um sentido,
supõe a definição de um princípio dessa transformação. O que pode mover a
transformação de tudo sob o ponto de vista social? A transformação social
permanente e contínua só pode se dar em função da busca do desenvolvimento das
pessoas, do princípio da igualdade. Tudo que eu conseguir de bem, de profundo,
de radical para um, deve ser — e aí vem a dimensão ética — estendido aos
demais. E isso eu sei que no concreto, aqui e agora, é sempre impossível. Mas é
justamente essa impossibilidade que transforma esse desafio em algo absolutamente
revolucionário, porque você tem que mudar. No momento em que você perde essa
dimensão, o status quo se define como
ideal atingido. Uma vez atingido, você para o movimento, você para a história,
você para a criação. Você não mata só o homem, você mata a história do homem.”
“A
questão ética é o cerne de toda a política”, insiste Betinho.
Tal
radicalismo ético contradiz ou integra-se ao capitalismo? Contradiz. Na minha
adesão radical aos fundamentos éticos eu parto de três princípios: a igualdade,
a participação e a diversidade.
E
eles só são viáveis na medida em que se realizem de forma simultânea. Não é
possível fazer primeiro uma sociedade igualitária e depois torná-la
participativa. Porque aí será preciso inventar um pai ou um salvador que vai
gerar a sociedade igualitária para então permitir a participação e garantir a
diversidade. Este é um processo que precisa caminhar simultaneamente: a
igualdade conquistada por meio da participação e admitindo a diversidade.
Os
três princípios juntos definem o eixo, os fundamentos de uma sociedade
democrática.
Com
voz pausada e tom baixo, o pensamento político do antigo militante de AP vai
correndo suave, porém demolidor: “Se você analisar os sistemas econômicos
existentes até hoje na humanidade, não vai encontrar compatibilidade entre
nenhum deles e aqueles três princípios.
Por
isso, até hoje a democracia é uma utopia. É algo que a humanidade foi capaz de
definir e de vislumbrar, mas não de realizar”. Não agrada a ninguém lutar por
uma causa impossível. Seria a democracia possível? A utopia democrática seria
possível, ainda que sujeito e objeto de transformações permanentes?
Antes
de confirmar que a utopia é possível, é preciso dizer que o capitalismo nega
esta possibilidade, não pelo lado da diversidade, porque ele propõe o diverso.
Mas ele exclui a participação e se fundamenta no princípio da desigualdade.
Supõe que uns poucos se apropriem dos meios de produção, dos bens e das
riquezas, por meio da propriedade privada, enquanto a maioria deve se submeter
às condições criadas por eles. Portanto, ele é incompatível com dois dos princípios
fundamentais da democracia. E qual regime aceitaria tais princípios, o
socialista? O próprio regime democrático. Não o socialismo, que tem uma
inspiração democrática, sabendo trabalhar a questão da igualdade, mas não sabe
equacionar a participação, nem admite a diversidade.
O
socialismo ainda leva uma vantagem sobre o capitalismo porque a igualdade é um
princípio básico. O próprio Marx sabia que o socialismo era uma passagem, era
uma transição. Para ele o regime que realiza os três princípios é o comunismo,
que ele considerava também uma utopia.
E
seria o comunismo, via marxismo, o único caminho para a democracia? Não, não é
necessário ser marxista para chegar à ideia do comunismo nem da democracia.
Num
certo sentido, e num bom sentido, o cristianismo originário das comunidades, do
igualitarismo, vai no mesmo caminho, no mesmo sentido.
A
possibilidade de um diálogo marxista e cristão se fundamenta nessa
convergência.
Só
que eu acho que tanto os marxistas modernos quanto a própria igreja moderna ainda
estão aquém dessa visão revolucionária radical de uma sociedade democrática.
A
proposta democrática é a mais necessária e a menos desenvolvida, tanto enquanto
proposta, como enquanto prática, exercício, em todas as latitudes. Uma das
coisas que torna esse problema mais complicado, mais difícil, é a sua dimensão
utópica.
No
meu entender, contudo, a visão de uma sociedade simultaneamente igualitária,
participativa e diversa tem que ser necessariamente utópica para não se negar.
Jamais vai se realizar plenamente. E para que não se realize plenamente, deve
ter essa visão utópica. Ou seja, não existem limites para a igualdade, para a
participação e para a diversidade.
A
sociedade que entrar nesse processo passa para uma outra etapa da história da
humanidade. Não existem limites nem modelos para a realização desses três
princípios. Eles são simultaneamente infinitos. Por isso, a dimensão utópica da
democracia é inerente ao próprio processo. Toda democracia que se confessa não
utópica está se confessando não democrática. (pp. 20-22).”
“As
atividades da CIA mostram a face cruel e imperialista dos governantes dos EUA,
representantes das multinacionais. O livro recente de Lincoln Gordon, que foi
embaixador dos EUA no Brasil no período do golpe militar de 1964, confessa o
que foi apurado na CPI do IBAD: que a CIA, tal como as multinacionais, financia
e dá dinheiro (compra as consciências, forma traidores) para candidaturas de
parlamentares e governantes, que defendem políticas da preferência do FMI e das
multinacionais.”
“O Conselho Episcopal Latino-Americano
— Celam, integrado pelos bispos da América Latina, organizou um encontro dos
Bispos da América Latina, em Medellin, na Colômbia, em 1968, onde foi aprovado
o documento de Medellin, que foi um marco para a teologia da libertação.
Vejamos um trecho do mesmo (Editora Vozes, 1980, pp. 48-49):
Fundamentação
doutrinal
A
Igreja Latino-Americana tem uma mensagem para todos os homens que, neste
Continente, têm “fome e sede de justiça”.
O
mesmo Deus que cria o homem segundo sua imagem e semelhança cria a “terra e
tudo que ela contém para uso de todos os homens e povos, de modo que os bens
criados devem bastar a todos, com equidade”, e lhe dá poder para que
solidariamente transforme e aperfeiçoe o mundo.
E
o mesmo Deus que, na plenitude dos tempos, envia seu Filho para que feito Carne
liberte a todos os homens de todas as escravidões a que os sujeitou o pecado: a
fome, a miséria, a opressão e a ignorância — em uma palavra, a injustiça e o
ódio que têm sua origem no egoísmo humano.
A
busca cristã da justiça é uma exigência do ensinamento bíblico.
Todos
nós homens somos humildes administradores dos bens.
Na
busca da salvação devemos evitar o dualismo que separa as tarefas temporais da
santificação. Apesar de estarmos rodeados de imperfeições, somos homens de
esperança. Cremos que o amor a Cristo e a nossos irmãos será não somente a
grande força libertadora da injustiça e opressão, mas a inspiradora da justiça
social, entendida como concepção de vida e impulso para o desenvolvimento
integral de nossos povos.
A
destinação universal dos bens e a concepção de nossa relação com os como
gestores, administradores (conforme lição constante no Evangelho de São Lucas,
em “Levítico” (capítulo 25) e em toda a Bíblia) fazem parte do cristianismo. A
destinação universal dos bens tem, implícita, a ideia do uso dos bens como
administradores, como gestores. Este uso deve ser feito em regra (preceito secundário,
pois o primário são as necessidades) com base no trabalho pessoal (primado do
trabalho e do aspecto subjetivo do mesmo) e esse controle (uso) deve ser
regulamentado, planificado, pela autoridade pelos delegados removíveis do povo
—, que deve representar a sociedade, tendo esta a soberania e o domínio
eminente. Essas são ideias anticapitalistas, antilatifundiárias e as
antiimperalistas e também condenam formas totalitárias e espúrias de socialismo
(o estalinismo, etc.).
As
ideias sociais do cristianismo são também as ideias nucleares de um socialismo
participativo.”
2 comentários:
Esta é uma obra de grande porte, mais de mil páginas, que consumiram cerca de 25 anos de trabalho. Mesmo obviamente sendo fruto de um alentado estudo, é fato que algumas coisas deixaram a desejar.
Os assuntos são tratados de forma helicoidal, eles são apresentados, debatidos, depois muda-se o tema e, alguns capítulos adiante se retorna a estes mesmos temas e autores já estudados – ao invés de se esgotar os assuntos nos respectivos capítulos.
Uma edição mais caprichada teria resolvido esta pendência, o que acarretaria também uma boa diminuição do número de páginas sem que se perdesse conteúdo algum.
Outro ponto é que o autor possui um excessivo melindre em apontar suas discordâncias de pensamento em relação a outras pessoas, especialmente quando são com grandes figuras da Igreja. Não há mal nenhum em dizer que se discorda deste ou daquele ponto – mesmo que seja uma pessoa a quem se admira. Ao contrário, é bem natural. Ao invés disso o autor vai margeando, meio vaselina, tentando capturar alguns pontos de concordância de pessoas que, em resumo, tem um pensamento contraditório ao que ele defende.
Há também algumas dificuldades entre a ideia de uma economia planejada e, na base, o estabelecimento de trabalho cooperativado como o autor deseja. Não é algo simples de ser feito e ele passa a margem da discussão – que, de fato, não é o foco do livro.
Em certos momentos o autor forçou um pouco na interpretação de alguns trechos, fugindo ao que estava escrito.
Como disse, uma boa edição teria superado estes eventuais equívocos.
De qualquer modo, é um bom livro.
Excelente trabalho, muito obrigado por postar!
Ronel
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