Editora:
Jorge Zahar
ISBN: 978-85-3780-066-9
Tradução:
Carlos Alberto Medeiros
Opinião:
★★★★☆
Páginas:
200
“Talvez
não exista pior privação, pior carência, que a dos perdedores na luta simbólica
por reconhecimento, por acesso a uma existência socialmente reconhecida, em
suma, por humanidade.”
(Pierre
Bourdieu, Meditações pascalianas)
“Categorias
de pessoas, aparentemente tão distintas, são aliciadas, estimuladas ou forçadas
a promover uma mercadoria atraente e
desejável. Para tanto, fazem o máximo possível e usam os melhores recursos que
têm à disposição para aumentar o valor de mercado dos produtos que estão
vendendo. E os produtos que são encorajadas a colocar no mercado, promover e
vender são elas mesmas.
São,
ao mesmo tempo, os promotores das
mercadorias e as mercadorias que
promovem. São, simultaneamente, o produto e seus agentes de marketing, os
bens e seus vendedores. (...) Seja lá qual for o nicho em que possam ser
encaixados pelos construtores de tabelas estatísticas, todos habitam o mesmo
espaço social conhecido como mercado.
Não importa a rubrica sob a qual sejam classificados por arquivistas do governo
ou jornalistas investigativos, a atividade em que todos estão engajados (por
escolha, necessidade ou, o que é mais comum, ambas) é o marketing. O teste em que precisam passar para obter os prêmios
sociais que ambicionam exige que remodelem
a si mesmos como mercadorias, ou seja, como produtos que são capazes de
obter atenção e atrair demanda e
fregueses. (...)
Na
sociedade de consumidores, ninguém pode se tornar sujeito sem primeiro virar
mercadoria, e ninguém pode manter segura sua subjetividade sem reanimar,
ressuscitar e recarregar de maneira perpétua as capacidades esperadas e
exigidas de uma mercadoria vendável. A “subjetividade” do “sujeito”, e a maior
parte daquilo que essa subjetividade possibilita ao sujeito atingir,
concentra-se num esforço sem fim para ela própria se tornar, e permanecer, uma
mercadoria vendável. A característica mais proeminente da sociedade de
consumidores – ainda que cuidadosamente disfarçada e encoberta – é a transformação dos consumidores em
mercadorias.”
““Minha
mãe é professora de uma escola primária”, disse a cantora Corinne Bailey Rae a
um entrevistador, “e quando ela pergunta aos meninos o que eles querem ser
quando crescer, eles dizem: ‘Famoso.’ Ela pergunta por que motivo e eles
respondem: ‘Não sei, só quero ser famoso.’”
Nesses
sonhos, “ser famoso” não significa nada mais (mas também nada menos!) do que
aparecer nas primeiras páginas de milhares de revistas e em milhões de telas,
ser visto, notado, comentado e, portanto, presumivelmente desejado por muitos – assim como sapatos, saias ou acessórios
exibidos nas revistas luxuosas e nas telas de TV, e por isso vistos, notados,
comentados, desejados… “Há mais coisas na vida além da mídia”, observa Germaine
Greer, “mas não muito… Na era da informação, a invisibilidade é equivalente à
morte.” A recomodificação* constante, ininterrupta, é para a mercadoria. Logo,
também para o consumidor, equivale ao que é o metabolismo para os organismos
vivos.”
*: “Comodificação ou recomodificação
do consumidor significa elevar a condição dos consumidores à de mercadorias
vendáveis.”
“Escrevendo
de dentro da incipiente sociedade de produtores, Karl Marx censurou os
economistas da época pela falácia do “fetichismo da mercadoria”: o hábito de,
por ação ou omissão, ignorar ou esconder a interação humana por trás do
movimento das mercadorias. Como se
estas, por conta própria, travassem relações entre si a despeito da mediação
humana. A descoberta da compra e venda da capacidade de trabalho como a
essência das “relações industriais” ocultas no fenômeno da “circulação de
mercadorias”, insistiu Marx, foi tão chocante quanto revolucionária: um
primeiro passo rumo à restauração da substância humana na realidade cada vez
mais desumanizada da exploração capitalista.
Um
pouco mais tarde, Karl Polanyi abriria outro buraco na ilusão provocada pelo
fetichismo da mercadoria: sim, diria ele, a capacidade de trabalho era vendida
e comprada como se fosse uma
mercadoria como outra qualquer, mas não, insistiria Polanyi, a capacidade de
trabalho não era nem poderia ser uma
mercadoria “como” outra qualquer. A impressão de que o trabalho era pura e
simplesmente uma mercadoria só podia ser uma grande mistificação do verdadeiro
estado das coisas, já que a “capacidade de trabalho” não pode ser comparada nem
vendida em separado de seus portadores. De maneira distinta de outras mercadorias,
os compradores não podem levar sua compra para casa. O que compraram não se
torna sua propriedade exclusiva e incondicional, e eles não estão livres para utere et abutere (usar e abusar) dela à
vontade, como estão no caso de outras aquisições. A transação que parece
“apenas comercial” (recordemos a queixa de Thomas Carlyle, no início do século
XX, de que relações humanas multifacetadas tinham sido reduzidas a um mero
“nexo financeiro”) inevitavelmente liga portadores e compradores num vínculo mútuo e numa interdependência estreita. No mercado de trabalho, um
relacionamento humano nasce de cada transação
comercial; cada contrato de trabalho é outra refutação do fetichismo da
mercadoria, e na sequência de cada transação logo aparecem provas de sua falsidade,
assim como da ilusão ou auto-ilusão subsequente.
Se
foi o destino do fetichismo da mercadoria
ocultar das vistas a substância demasiado humana da sociedade de produtores, é
papel do fetichismo da subjetividade ocultar a realidade demasiado comodificada
da sociedade de consumidores.
A
“subjetividade” numa sociedade de consumidores, assim como a “mercadoria” numa
sociedade de produtores, é (para usar o oportuno conceito de Bruno Latour) um fatiche – um produto profundamente
humano elevado à categoria de autoridade sobre-humana mediante o esquecimento
ou a condenação à irrelevância de suas origens demasiado humanas, juntamente
com o conjunto de ações humanas que levaram ao seu aparecimento e que foram
condição sine qua non para que isso
ocorresse. No caso da mercadoria na sociedade de produtores, foi o ato de
comprar e vender sua capacidade de trabalho que, ao dotá-la de um valor de
mercado, transformou o produto do trabalho numa mercadoria – de uma forma não
visível (e sendo oculta) na aparência de uma interação autônoma de mercadorias.
No caso da subjetividade na sociedade de consumidores, é a vez de comprar e
vender os símbolos empregados na construção da identidade – a expressão
supostamente pública do “self” que na verdade é o “simulacro” de Jean Baudrillard,
colocando a “representação” no lugar daquilo que ela deveria representar –, a
serem eliminados da aparência do produto final.”
“Pode-se
dizer que o “consumismo” é um tipo de arranjo social resultante da reciclagem
de vontades, desejos e anseios humanos rotineiros, permanentes e, por assim
dizer, “neutros quanto ao regime”, transformando-os na principal força propulsora e operativa da sociedade, uma força que
coordena a reprodução sistêmica, a integração e a estratificação sociais, além
da formação de indivíduos humanos, desempenhando ao mesmo tempo um papel
importante nos processos de auto-identificação individual e de grupo, assim
como na seleção e execução de políticas de vida individuais. O “consumismo”
chega quando o consumo assume o papel-chave que na sociedade de produtores era
exercido pelo trabalho.
De
maneira distinta do consumo, que é
basicamente uma característica e uma ocupação dos seres humanos como
indivíduos, o consumismo é um
atributo da sociedade. Para que uma
sociedade adquira esse atributo, a capacidade profundamente individual de
querer, desejar e almejar deve ser, tal como a capacidade de trabalho na
sociedade de produtores, destacada (“alienada”) dos indivíduos e
reciclada/reificada numa força externa que coloca a “sociedade de consumidores”
em movimento e a mantém em curso como uma forma específica de convívio humano,
enquanto ao mesmo tempo estabelece parâmetros específicos para as estratégias
individuais de vida que são eficazes e manipula as probabilidades de escolha e
conduta individuais. (...)
O
consumismo, em aguda oposição às formas de vida precedentes, associa a
felicidade não tanto à satisfação de
necessidades (como suas “versões oficiais” tendem a deixar implícito), mas a um
volume e uma intensidade de desejos sempre
crescentes, o que por sua vez implica o uso imediato e a rápida
substituição dos objetos destinados a satisfazê-la.”
“A
demora é o serial killer das
oportunidades. (...)
Sim,
é verdade que na vida “agorista” dos cidadãos da era consumista o motivo da pressa
é, em parte, o impulso de adquirir e juntar. Mas o motivo mais premente que
torna a pressa de fato imperativa é a necessidade de descartar e substituir.”
“Na
sociedade de produtores, a advertência que provavelmente mais se ouvia depois
de um falso começo ou uma tentativa fracassada era “tente outra vez, mas agora
de modo mais árduo, com mais destreza e dedicação” – mas não na sociedade de
consumidores. Aqui, as ferramentas que falharam devem ser abandonadas, e não
afiadas para serem utilizadas de novo, agora com mais habilidade, dedicação e,
portanto, com melhor efeito. Assim, quando os objetos dos desejos de ontem e os
antigos investimentos da esperança quebram a promessa e deixam de proporcionar
a esperada satisfação instantânea e completa, eles devem ser abandonados –
junto com os relacionamentos que proporcionaram um “bang” não tão “big” quanto
se esperava. A pressa deve ser mais intensa quando se está correndo de um
momento (fracassado, por fracassar ou suspeito de fracasso) para outro (ainda não
testado). Deve-se ter em mente a amarga lição de Fausto, condenado à eternidade
no inferno no exato momento que ele queria que durasse para sempre, por ser tão
agradável. Na cultura “agorista”, querer que o tempo pare é sintoma de
estupidez, preguiça ou inépcia. Também é crime passível de punição.
A
economia consumista se alimenta do movimento das mercadorias e é considerada em
alta quando o dinheiro mais muda de mãos; e sempre que isso acontece, alguns
produtos de consumo estão viajando para o depósito de lixo. Numa sociedade de
consumidores, de maneira correspondente, a busca da felicidade – o propósito
mais invocado e usado como isca nas campanhas de marketing destinadas a
reforçar a disposição dos consumidores para se separarem de seu dinheiro (ganho
ou que se espera ganhar) – tende a ser redirecionada do fazer coisas ou de sua apropriação
(sem mencionar seu armazenamento) para sua remoção
– exatamente do que se precisa para fazer crescer o PIB. Para a economia
consumista, o foco anterior, hoje quase abandonado, prenuncia a pior das
preocupações: a estagnação, suspensão ou desgaste do ardor de comprar. O
segundo foco, contudo, traz um bom prognóstico: outra rodada de compras. A
menos que complementado pelo impulso de se desfazer e se descartar, o impulso
da mera aquisição e posse armazenaria problemas para o futuro. Os consumidores
da sociedade consumista precisam seguir os curiosos hábitos dos habitantes de
Leonia, uma das cidades invisíveis de Italo Calvino: Não é tanto pelas coisas
que a cada dia são manufaturadas, vendidas e compradas que se pode avaliar a
opulência de Leonia, mas sim pelas coisas que a cada dia são jogadas fora a fim
de abrir espaço para as novas. E assim você começa a imaginar se a verdadeira
paixão de Leonia é realmente, como eles dizem, o desfrute de coisas novas e
diferentes, e não, em vez disso, o prazer de expelir, descartar, limpar-se da
impureza recorrente.”
“Como
calculou Ignacio Ramonet, nos últimos 30 anos se produziu mais informação no
mundo do que nos 5 mil anos anteriores: “Um único exemplar da edição dominical
do New York Times contém mais
informação do que a que seria consumida por uma pessoa culta do século XVIII
durante toda a vida.”
“Em vez de um
conhecimento organizado em fileiras ordenadas, a sociedade de informação
oferece cascatas de signos descontextualizados conectados uns aos outros de
maneira mais ou menos aleatória…. Apresentado de outra maneira, quando volumes
crescentes de informação são distribuídos a uma velocidade cada vez maior,
torna-se mais difícil criar narrativas, ordens, sequências de desenvolvimento.
Os fragmentos ameaçam se tornar hegemônicos. Isso tem consequências sobre as
formas como nos relacionamos com o conhecimento, o trabalho e o estilo de vida
em um sentido amplo.20
A
tendência a assumir uma “atitude blasé”
em relação ao conhecimento, ao trabalho ou ao estilo de vida (na verdade, em
relação à vida e tudo que ela contém) já foi observada por Georg Simmel, com
notável presciência, no começo do século passado como tendo aparecido pela primeira
vez entre os habitantes da “metrópole”, a esparramada, imensa e apinhada cidade
moderna:
A
essência da atitude blasé consiste no
entorpecimento do poder de diferenciação. Isso não significa que os objetos não
sejam percebidos, como no caso da estupidez, mas sim que os valores
significativos e diferenciais das coisas, e portanto as próprias coisas, são
vivenciados como imateriais. Eles se mostram à pessoa blasé num tom
uniformemente cinza e monótono; nenhum objeto tem preferência sobre qualquer
outro…. Todas as coisas flutuam com igual gravidade específica na corrente
constante do dinheiro.21
Um
fenômeno cada vez mais destacado, muito semelhante ao que foi descoberto e
analisado por Simmel sob o nome de “atitude blasé”, algo como uma versão madura
e plenamente desenvolvida da tendência detectada e registrada em seu estágio
inicial, inexperiente e incipiente por esse pensador singularmente perspicaz, é
discutido hoje em dia sob o nome de “melancolia”. Autores habilitados a usar o
termo tendem a passar ao largo do presságio e do pressentimento de Simmel, e
vão muito mais atrás, até o ponto em que os antigos, como Aristóteles, o
deixaram, e onde os pensadores da Renascença, como Ficino ou Milton,
redescobriram-no e reexaminaram-no. Na versão de Rolland Munro, o conceito de
“melancolia” em seu uso atual “representa não tanto um estado de indecisão, uma
hesitação entre seguir um ou outro caminho, mas um recuo em relação às próprias
divisões”. Ele representa um “desenredamento” em relação a “estar atado a qualquer
coisa específica”. Ser “melancólico” é “sentir a infinidade da conexão mas não
estar engatado em coisa alguma”. Em suma, “melancolia” se refere a “uma forma
sem conteúdo, uma recusa a saber só isso
ou só aquilo”.22
Sugiro
que a ideia de “melancolia” representa, em última instância, a aflição genérica
do consumidor (o Homo eligens, por
decreto da sociedade de consumo); um distúrbio resultante do encontro fatal
entre a obrigação e a compulsão de escolher/o vício da escolha e a incapacidade
de fazer essa opção. No vocabulário de Simmel, ela representa a transitoriedade
embutida e a imaterialidade inventada dos objetos que flutuam à deriva, afundam
e reemergem com a maré crescente do estímulo. Representa a imaterialidade que
se estabelece no código comportamental como um glutão indiscriminado e onívoro
– a forma derradeira e mais radical de estratégia de vida usada em último caso,
evitando apostas num ambiente existencial marcado pela “pontilhização” do tempo
e pela indisponibilidade de critérios fidedignos capazes de separar o relevante
do irrelevante e a mensagem do ruído.”
20. Eriksen, Tyranny of the Moment, p.109 e 113. / 21.
Georg Simmel, The Metropolis and Mental
Life, aqui citado segundo a tradução de Kurt Wolff de 1950, reproduzida em Classic Essays on the Culture of Cities,
Richard Sennett (org.), Appleton-Century-Crofts, 1969, p.52. / 22. Roland
Munro, “Outside paradise: melancholy and the follies of modernization”, Culture and Organization, 4 (2005),
p.275-89.
“Com
a continuação do julgamento, as evidências em contrário se acumulam, provando,
ou pelo menos indicando fortemente que, em oposição às alegações do queixoso,
uma economia orientada para o consumo promove ativamente a deslealdade, solapa
a confiança e aprofunda o sentimento de insegurança, tornando-se ela própria
uma fonte do medo que promete curar ou dispersar – o medo que satura a vida
líquido-moderna e é a causa principal da variedade líquido-moderna de
infelicidade.
A
sociedade de consumo tem como base de suas alegações a promessa de satisfazer
os desejos humanos em um grau que nenhuma sociedade do passado pôde alcançar,
ou mesmo sonhar, mas a promessa de satisfação só permanece sedutora enquanto o
desejo continua insatisfeito; mais
importante ainda, quando o cliente não está “plenamente satisfeito” – ou seja, enquanto não se acredita que os
desejos que motivaram e colocaram em movimento a busca da satisfação e
estimularam experimentos consumistas tenham sido verdadeira e totalmente
realizados. (...)
A
sociedade de consumo prospera enquanto consegue tornar perpétua a não-satisfação
de seus membros (e assim, em seus próprios termos, a infelicidade deles). O
método explícito de atingir tal efeito é depreciar e desvalorizar os produtos
de consumo logo depois de terem sido promovidos no universo dos desejos dos
consumidores. Mas outra forma de fazer o mesmo, e com maior eficácia, permanece
quase à sombra e dificilmente é trazida às luzes da ribalta, a não ser por
jornalistas investigativos perspicazes: satisfazendo cada necessidade/desejo/vontade
de tal maneira que eles só podem dar origem a necessidades/desejos/vontades
ainda mais novos. O que começa como um esforço para satisfazer uma necessidade
deve se transformar em compulsão ou vício. E assim ocorre, desde que o impulso
para buscar soluções de problemas e alívio para dores e ansiedades nas lojas, e
apenas nelas, continue sendo um aspecto do comportamento não apenas destinado,
mas encorajado com avidez, a se condensar num hábito ou estratégia sem
alternativa aparente.
A
fenda escancarada entre a promessa e seu cumprimento não é um sinal de defeito
nem um efeito colateral da negligência, tampouco resulta de um erro de cálculo.
O domínio da hipocrisia que se estende
entre as crenças populares e as realidades das vidas dos consumidores é condição
necessária para que a sociedade de consumidores funcione de modo adequado.
Se a busca por realização deve prosseguir e se as novas promessas devem ser
atraentes e cativantes, as promessas já feitas devem ser rotineiramente
quebradas e as esperanças de realização frustradas com regularidade. Cada uma
das promessas deve ser enganadora, ou
ao menos exagerada. Do contrário, a busca acaba ou o ardor com que é feita (e
também sua intensidade) caem abaixo do nível necessário para manter a
circulação de mercadorias entre as linhas de montagem, as lojas e as latas de
lixo. Sem a repetida frustração dos desejos, a demanda de consumo logo se
esgotaria e a economia voltada para o consumidor ficaria sem combustível. É o excesso da soma total de promessas que
neutraliza a frustração causada pelas imperfeições ou defeitos de cada uma
delas e permite que a acumulação de experiências frustrantes não chegue a ponto
de solapar a confiança na efetividade essencial dessa busca.
Além
de ser um excesso e um desperdício econômico, o consumismo também é, por essa
razão, uma economia do engano. Ele
aposta na irracionalidade dos
consumidores, e não em suas estimativas sóbrias e bem informadas; estimula emoções consumistas e não cultiva a razão. Tal como ocorre com o excesso e o
desperdício, o engano não é um sinal de problema na economia de consumo. Pelo
contrário, é sintoma de sua boa saúde e de que está firme sobre os trilhos, é a
marca distintiva do único regime sob o qual a sociedade de consumidores é capaz
de assegurar sua sobrevivência.”
“Se
a cultura consumista é o modo
peculiar pelo qual os membros de uma sociedade de consumidores pensam em seus
comportamentos ou pelo qual se comportam “de forma irrefletida” – ou, em outras
palavras, sem pensar no que consideram ser seu objetivo de vida e o que
acreditam ser os meios corretos de alcançá-lo, sobre como separam as coisas e
os atos relevantes para esse fim das coisas e atos que descartam como
irrelevantes, acerca de o que os excita e o que os deixa sem entusiasmo ou
indiferentes, o que os atrai e o que os repele, o que os estimula a agir e o
que os incita a fugir, o que desejam, o que temem e em que ponto temores e
desejos se equilibram mutuamente –, então a sociedade
de consumidores representa um conjunto peculiar de condições existenciais em
que é elevada a probabilidade de que a maioria dos homens e das mulheres venha
a abraçar a cultura consumista em vez de qualquer outra, e de que na maior
parte do tempo obedeçam aos preceitos dela com máxima dedicação.
A
“sociedade de consumidores” é um tipo de sociedade que (recordando um termo,
que já foi popular, cunhado por Louis Althusser) “interpela” seus membros (ou
seja, dirige-se a eles, os saúda, apela a eles, questiona-os, mas também os
interrompe e “irrompe sobre” eles) basicamente
na condição de consumidores. Ao fazê-lo, a “sociedade” (ou quaisquer
agências humanas dotadas de instrumentos de coerção e meios de persuasão
ocultos por trás desse conceito ou imagem) espera ser ouvida, entendida e
obedecida. Ela avalia – recompensa e penaliza – seus membros segundo a
prontidão e adequação da resposta deles à interpelação. Como resultado, os
lugares obtidos ou alocados no eixo da excelência/inépcia do desempenho
consumista se transformam no principal fator de estratificação e no maior
critério de inclusão e exclusão, assim como orientam a distribuição do apreço e
do estigma sociais, e também de fatias da atenção do público.
A
“sociedade de consumidores”, em outras palavras, representa o tipo de sociedade
que promove, encoraja ou reforça a escolha de um estilo de vida e uma
estratégia existencial consumistas, e rejeita todas as opções culturais
alternativas. Uma sociedade em que se adaptar aos preceitos da cultura de
consumo e segui-los estritamente é, para todos os fins e propósitos práticos, a
única escolha aprovada de maneira incondicional. Uma escolha viável e,
portanto, plausível – e uma condição de afiliação.
Essa
é uma guinada notável no curso da história moderna, um verdadeiro divisor de
águas. Como Frank Trentmann descobriu ao realizar sua reveladora tentativa de
reconstituir o lugar ocupado pelos conceitos de consumo e de consumidores no
vocabulário usado por pensadores modernos para descrever a realidade social
emergente,
o
consumidor estava virtualmente ausente do discurso do século XVIII. De modo
significativo, só aparece em sete dos 150 mil trabalhos da coleção online sobre
esse século – duas vezes como cliente privado, … uma como o cliente que sofre
com os altos preços dos comerciantes e … três em referência ao tempo (“o veloz
consumidor de horas”).1”
Em
todos os casos, como podemos ver, ele aparece como nome de um personagem
marginal e um tanto excêntrico, apenas obliquamente relevante para a corrente
principal da economia, e menos ainda para a totalidade da vida cotidiana. Não
ocorreu nenhuma mudança radical a esse respeito durante o século seguinte,
apesar de um aumento espetacular e amplamente documentado nas práticas de
vendas, na publicidade, nas técnicas de exibição e nas galerias – os arquétipos
dos shopping centers contemporâneos (esses “templos do consumo”, como George
Ritzer corretamente os batizaria). (...)
Na
maior parte da história moderna (ou seja, ao longo da era das enormes plantas
industriais e dos imensos exércitos de recrutas), a sociedade “interpelava” a maioria
da metade masculina de seus membros basicamente como produtores e soldados, e
quase toda a outra metade (feminina) como, antes de qualquer coisa e acima de
tudo, fornecedoras de serviços.
Por
conseguinte, a obediência às ordens e a conformidade à regra, a admissão da
posição atribuída e sua aceitação como indiscutível, a tolerância a trabalhos
perpetuamente pesados e a submissão a uma rotina monótona, a disposição de
adiar a satisfação e a aceitação resignada da ética do trabalho (significando,
em resumo, o consentimento em trabalhar por amor ao trabalho, fosse ele
importante ou não)2 eram os principais padrões
comportamentais treinados e ensaiados com ardor por esses membros, na
expectativa de que fossem aprendidos e internalizados. O corpo do potencial trabalhador ou soldado era o que mais contava;
seu espírito, por outro lado, devia
ser silenciado, e uma vez adormecido, logo “desativado”, podia ser posto de
lado como algo sem consequência e assim, para a maioria das finalidades,
deixado de fora ao se elaborar políticas e movimentos táticos. A sociedade de
produtores e soldados se concentrava na administração dos corpos a fim de
tornar a maior parte de seus membros apta a morar e agir em seu pretenso
hábitat natural: o chão da fábrica e o campo de batalha.
Profundamente
distinta da sociedade de produtores/soldados, a sociedade de consumidores
concentra seu treinamento, assim como as pressões coercitivas exercidas sobre
seus membros desde a infância e ao longo de suas vidas, na administração do espírito – deixando a administração dos
corpos ao trabalho individual do tipo faça-você-mesmo, supervisionado e
coordenado de forma individual por indivíduos espiritualmente treinados e
coagidos. Tal mudança de foco se torna indispensável para que os membros se
ajustem para morar e agir em seu novo hábitat natural, estruturado em torno dos
shopping centers em que as mercadorias são procuradas, encontradas e obtidas, e
nas ruas onde as mercadorias obtidas nas lojas são exibidas ao público para
dotar seus portadores de valor de mercado. Daniel Thomas Cook, da Universidade
de Illinois, resumiu a nova tendência da seguinte maneira:
As
batalhas travadas sobre e em torno da cultura de consumo infantil não são menos
do que batalhas sobre a natureza da pessoa e o escopo da individualidade no
contexto do alcance sempre crescente do comércio. O envolvimento das crianças
com as coisas materiais, a mídia, as imagens e os significados que surgem se
referem e se emaranham com o mundo do comércio, são aspectos centrais na construção
de pessoas e de posições morais na vida contemporânea.3
Tão
logo aprendem a ler, ou talvez bem antes, a “dependência das compras” se
estabelece nas crianças. (...)
Numa
sociedade de consumidores, todo mundo precisa ser, deve ser e tem que ser um
consumidor por vocação (ou seja, ver e tratar o consumo como vocação). Nessa
sociedade, o consumo visto e tratado como vocação é ao mesmo tempo um direito e um dever humano universal que não
conhece exceção. A esse respeito, a sociedade de consumidores não reconhece
diferenças de idade ou gênero (embora de modo contrafactual) e não lhes faz
concessões. Tampouco reconhece (de modo gritantemente contrafactual) distinções
de classe. Dos centros geográficos da rede mundial de autoestradas de
informações a suas periferias mais distantes e empobrecidas,
o
pobre é forçado a uma situação na qual tem de gastar o pouco dinheiro ou os
parcos recursos de que dispõe com objetos de consumo sem sentido, e não com
suas necessidades básicas, para evitar a total humilhação social e evitar a
perspectiva de ser provocado e ridicularizado.4
A
vocação consumista se baseia, em última instância, nos desempenhos individuais.
Os serviços oferecidos pelo mercado que podem ser necessários para permitir que
os desempenhos individuais tenham curso com fluidez também se destinam a ser a
preocupação do consumidor individual: uma tarefa que deve ser empreendida individualmente e resolvida com a ajuda
de habilidades e padrões de ação de consumo individualmente
obtidos. Bombardeados de todos os lados por sugestões de que precisam se
equipar com um ou outro produto fornecido pelas lojas se quiserem ter a
capacidade de alcançar e manter a posição social que desejam, desempenhar suas
obrigações sociais e proteger a autoestima – assim como serem vistos e
reconhecidos por fazerem tudo isso –, consumidores de ambos os sexos, todas as
idades e posições sociais irão sentir-se inadequados, deficientes e abaixo do
padrão a não ser que respondam com prontidão a esses apelos.
Pelas
mesmas razões (ou seja, pela transferência do tema da “adequação social” à
responsabilidade e ao cuidado dos indivíduos), as práticas exclusivistas na
sociedade de consumidores são muito mais estritas, duras e inflexíveis do que
na sociedade de produtores.”
1: Ver Frank Trentmann, “Genealogy
of the consumer”, in Brewer e Trentmann (org.), Consuming Cultures, Global Perspectives, p.23ss. / 2. Ver Max
Weber, Wirtschaft und Gesellschaft, aqui citado segundo a tradução de A.
R. Henderson e Talcott Parsons, The Theory of Social and Economic
Organization, Hodge, 1947, p.110. / 3.
Mary Douglas, In the Active Voice, Routledge and Kegan Paul,
1998, p.24. / 4. Ver Slater, Consumer Culture and Modernity, p.100.
“Citando
Nietzsche, Günther Anders sugere que hoje em dia o corpo humano (ou seja, o
corpo tal como foi recebido por acidente da natureza) é algo que “deve ser
superado” e deixado para trás. O corpo “bruto”, despido de adornos, não
reformado e não trabalhado, é algo de que se deve ter vergonha: ofensivo ao
olhar, sempre deixando muito a desejar e, acima de tudo, testemunha viva da
falência do dever, e talvez da inépcia, ignorância, impotência e falta de
habilidade do “eu”. O “corpo nu”, objeto que por consentimento comum não
deveria ser exposto por motivo de decoro e dignidade do “proprietário”, hoje em
dia não significa, como sugere Anders, “o corpo despido, mas um corpo em que
nenhum trabalho foi feito” – um corpo “reificado” de modo insuficiente.”
“Em
vez de ser um passo rumo à emancipação final do indivíduo em relação às
múltiplas coerções externas, essa passagem pode se revelar como a conquista, a
anexação e a colonização da vida pelo mercado de bens de consumo – sendo o
significado mais profundo (ainda que reprimido e escondido) dessa conquista a
elevação das leis escritas e não escritas do mercado à categoria de preceitos
da vida; o tipo de preceito que só pode ser ignorado por conta e risco de quem
quebra a norma, e que tende a ser punido com a exclusão.
As
leis do mercado se aplicam, de forma equitativa, às coisas escolhidas e aos
selecionadores. Só as mercadorias podem entrar nos templos de consumo por
direito, seja pela entrada dos “produtos”, seja pela dos “clientes”. Dentro
desses templos, tanto os objetos de adoração como seus adoradores são
mercadorias. Os membros da sociedade de consumidores são eles próprios produtos
de comodificação. Sua degradação desregulamentada, privatizada, para o domínio
da comodificação da política de vida é a principal distinção que separa a
sociedade de consumidores de outras formas de convívio humano. Como em uma
paródia macabra do imperativo categórico de Kant, os membros da sociedade de
consumidores são obrigados a seguir os mesmíssimos padrões comportamentais que
gostariam de ver obedecidos pelos objetos de seu consumo.”
“Nas
palavras de Michel Maffesoli, “sou o que sou porque outros me reconhecem como
tal”, enquanto “a vida social empírica não é senão uma expressão de sentimentos
de pertenças sucessivas”1 – a alternativa sendo uma sucessão de rejeições ou uma
exclusão final como penalidade pelo fracasso em abrir caminho para o
reconhecimento, seja por meio de força, argumentação ou artimanhas.”
1.Maffesoli, L’instant eternal, p.40-1.
“Num
romance com o ótimo título Slowness,
Milan Kundera revela o vínculo íntimo entre velocidade e esquecimento: “O nível
da velocidade é diretamente proporcional à intensidade do esquecimento.” Por
que é assim? Porque o ato de “assumir o palco exige manter outras pessoas fora
dele”, assumir esse palco especialmente importante conhecido como “atenção do
público” (para ser mais exato, a atenção das pessoas marcadas para serem
recicladas em consumidores) exige manter fora dele outros objetos de atenção –
outros personagens e roteiros, inclusive aqueles montados ontem por pessoas em
busca de atenção… “Os palcos”, relembra-nos Kundera, “só são iluminados nos
primeiros minutos.” No mundo líquido-moderno, a lentidão indica a morte social.
Nas palavras de Vincent de Gaulejac, “como todas as pessoas avançam, quem ficar
parado será inevitavelmente separado dos outros por um espaço cada vez maior”.3 O conceito de “exclusão” sugere,
de maneira enganosa, a ação de alguém – transportando o objeto para longe do
lugar que ocupava; na verdade, com muita frequência é “a estagnação que
exclui”.
(Ademais),
já que não apenas um, mas “meia dúzia” de visuais está em oferta no momento,
você de fato está livre (mesmo que – esta advertência é muito necessária! – o
espectro de ofertas atuais estabeleça um limite intransponível em torno de suas
escolhas). Você pode escolher o seu visual. Escolher em si – optar por algum
visual – não é a questão, uma vez que é isso que você deve fazer, só podendo desistir ou evitar fazê-lo sob risco de
exclusão. Você também não é livre para influenciar o conjunto de opções
disponível para escolha: não há outras alternativas possíveis, pois todas as
possibilidades realistas e aconselháveis já foram pré-selecionadas,
pré-certificadas e prescritas.
Mas
estas amolações todas – a pressão do tempo, a necessidade de se insinuar diante
da “tendência de estilo” – não importam caso eles lancem o olhar sobre você,
notem e registrem seu traje e suas maneiras, ou o número de escolhas
estritamente limitado que você pode fazer (só “meia dúzia”). O que de fato
importa é que quem está no comando agora é você.
E no comando você deve estar: a escolha
pode ser sua, mas lembre-se de que fazer
uma escolha é obrigatório. Ellen
Seiter observa que “roupas, móveis, discos, brinquedos – todas as coisas que
compramos envolvem decisões e exercitam nossa avaliação e nosso ‘gosto’”, mas
se apressa em comentar: “Obviamente, para começo de conversa, não controlamos o
que nos está disponível para escolher.”4 Da mesma forma, na cultura de consumo, escolha e liberdade são dois
nomes da mesma condição, e tratá-las como sinônimas é correto pelo menos no
sentido de que você só pode abstrair-se da escolha se ao mesmo tempo subjugar
sua liberdade.
O
desvio seminal que separa de forma mais drástica a síndrome cultural consumista
de sua predecessora produtivista, o
que congrega o conjunto de diferentes impulsos, intuições e propensões e eleva
esse agregado à condição de um plano de vida coerente, parece ser a revogação dos valores vinculados
respectivamente à duração e à efemeridade.
A
síndrome cultural consumista consiste, acima de tudo, na negação enfática da
virtude da procrastinação e da possível vantagem de se retardar a satisfação –
esses dois pilares axiológicos da sociedade de produtores governada pela
síndrome produtivista.
Na
hierarquia herdada de valores reconhecidos, a síndrome consumista degradou a
duração e elevou a efemeridade. Ela ergue o valor da novidade acima do valor da
permanência. Reduziu drasticamente o espaço de tempo que separa não apenas a
vontade de sua realização (como muitos observadores, inspirados ou enganados
por agências de crédito, já sugeriram), mas o momento de nascimento da vontade
do momento de sua morte, assim como a percepção da utilidade e vantagem das
posses de sua compreensão como inúteis e precisando de rejeição. Entre os
objetos do desejo humano, ela colocou o ato da apropriação, a ser seguido com
rapidez pela remoção do lixo, no lugar que já foi atribuído à aquisição de
posses destinadas a serem duráveis e a terem um aproveitamento duradouro.
Entre
as preocupações humanas, a síndrome consumista coloca as precauções contra a
possibilidade de as coisas (animadas ou inanimadas) abusarem da hospitalidade no lugar da técnica de segurá-las de perto, e da vinculação e
do comprometimento de longo prazo (para não dizer interminável). Também encurta
radicalmente a expectativa de vida do desejo e a distância temporal entre este
e sua satisfação, assim como entre a satisfação e o depósito de lixo. A “síndrome consumista” envolve velocidade,
excesso e desperdício.”
3. Vincent de Gaulejac, “Le sujet manqué. L’individu face aux contradictions
de Thypermodernité”, in Aubert (org.), L’individu
hypermoderne, p.134. / 4.
Ellen Seiter, Sold Separately: Children and Parents in Consumer
Culture, Rutgers University Press, 1993, p. 3.
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