Editora: Boitempo
Opinião: ★★★☆☆
ISBN: 978-85-7559-375-2
Páginas: 120
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Sinopse: O século
XXI segue permeado por um dos maiores enigmas da teoria social: de que forma as
elites, minoritárias, conseguem manter seu poder político? Este é o cerne da
análise realizada pelo sociólogo Emir Sader em Estado e política em Marx,
escrito nos densos anos 1960 como sua dissertação de mestrado em filosofia, e
agora publicada pela Boitempo. Sader aventura-se a decifrar elementos
indispensáveis para a compreensão desse fenômeno central no capitalismo
contemporâneo, analisando o lugar da instância política nas formações sociais
concretas. Nas palavras do sociólogo, ‘não se trata de uma homenagem àquela
juventude, mas de um reconhecimento de que o texto tem coerência e méritos para
se candidatar à atualidade’.
Num relato histórico, que passa pelas formações sociais
pré-capitalistas, o autor usa a teoria de Marx para captar a essência do que
faz o capitalismo ser o que é nos tempos modernos, como se difere dos sistemas
anteriores e de que forma se perpetua no poder, analisando as três relações
chaves de sua existência: a política, a economia e o Estado. Sader reavalia o
posicionamento do Estado dentro dos jogos de poder, em particular sua relação
com as classes dominantes. Chama a atenção sua crítica ao que considera uma
visão voluntarista do Estado, que o considera apenas instrumento usado pelas
classes dominantes, ignorando sua inteiração com outros meios sociais. ‘Quando
a análise leva em consideração apenas o topo da pirâmide social, o caráter
específico do Estado e da política se esconde; bem como o papel que possuem de
referência a toda a sociedade e que justifica sua existência social’, conclui.
Estado e política
em Marx se mantém atual por relacionar a crise da
política como forma emancipadora dos homens à crise da teoria política como
reflexão sobre os fundamentos das relações de poder na sociedade. Sader toma
pela raiz os temas que estruturam a política como prática social, recuperando a
riqueza que ela desfrutou nos clássicos do pensamento moderno — em Marx, em
primeiro lugar —, condição para reinventar a própria política e, com ela, a
democracia e o socialismo.
“Afora o aspecto das referências explícitas ou não na obra de Marx, uma
dificuldade maior se põe a partir daí: aquela que afeta o objeto dessas obras.
Não sendo precedidas por um esclarecimento sobre o nível de análise em que se
colocam – à exceção dos prefácios e introdução de O capital –, possibilitam a confusão a respeito do seu
nível de objetividade. Quando tomamos duas obras como O capital e O 18 de brumário e nos detemos no papel que se
reserva nelas ao Estado, percebemos como aquela diferenciação torna-se
indispensável. Na introdução à Crítica da economia
política,
encontramos “o plano a adotar”, exposto por Marx, “para o estudo da economia
política”:
1) as
determinações universais abstratas, que, por essa razão, correspondem mais ou
menos a todas as formas de sociedade [...] 2) as categorias que constituem a
articulação interna da sociedade burguesa e sobre as quais se baseiam as
classes fundamentais. Capital, trabalho assalariado, propriedade fundiária. As
suas relações recíprocas. Cidade e campo. As três grandes classes sociais. A
troca entre elas. Circulação. Sistema de crédito (privado). 3) Síntese da
sociedade burguesa na forma do Estado. Considerada em relação a si mesma. As
classes “improdutivas”. Impostos. Dívida pública. Crédito público. A população.
As colônias. Emigração.[1]
Para
o esquema de O capital, que visa centralmente à
compreensão das “categorias que constituem a articulação interna da sociedade
burguesa”, a abstração das formas históricas de existência da sociedade
capitalista, em que esse modo de produção aparece sempre mesclado de
sobrevivência de outras formações sociais, conduz a uma função distinta do
Estado. Na análise dessa “articulação interna”, o papel do Estado não é
essencial, uma vez que sua função remonta à gênese daquela estrutura, à fase da
ascensão e instauração do capitalismo, da qual a centralização política em
torno do Estado é uma das condições. O caráter dessa abordagem transparece mais
claramente na distinção subjacente, explicitada por Marx nos Grundrisse:
As
condições e os pressupostos do devir, da gênese do capital,
supõem precisamente que ele ainda não é, mas só devém; logo, desaparecem
com o capital efetivo, com o próprio capital que, partindo de sua efetividade,
põe as condições de sua efetivação. [...] Se, por conseguinte, os pressupostos
do devir do dinheiro em capital aparecem como pressupostos externos
dados para a gênese do capital –, da mesma forma o capital enquanto tal, tão
logo é posto, cria seus próprios pressupostos [...].[2]
O
capital detém-se
sobre o mecanismo de criação desses pressupostos, considerando o Estado apenas
na qualidade de condição do devir do capitalismo que, uma vez dada, abre
campo para o próprio capital colocar “as condições de sua efetivação”. Dentre
essas, não se situa o Estado porque, uma vez produzida a centralização da
estrutura social, o modo de produção capitalista encarrega-se ele mesmo de
reproduzir essa unificação através da criação contínua de um mercado mundial
único, e cada vez mais extenso. Posto em funcionamento esse mecanismo, o
requisito da unificação social é reassumido pelas próprias relações de produção
capitalistas. Quando a análise recai sobre esse nível, é justificável,
portanto, que o papel do Estado seja postergado, já que seu interesse se
relaciona com a “síntese da sociedade burguesa” que ele encarna. Enquanto essa
“síntese” é reproduzida e acentuada pelas relações de produção, ao Estado
compete a representação desse processo, a reprodução de sua “forma”.
Vale dizer: quando todas as condições de gênese do capital são dadas –
como supõe Marx em O capital – as relações econômicas
ganham autonomia, dispensando a intervenção de mecanismos políticos de
apropriação e reprodução[3]. A uma estrutura
social dessa ordem, como veremos mais adiante, é que corresponde a ideologia do
laissez-faire, em que o Estado pode dispensar sua intervenção direta
porque o mecanismo social é autorreprodutor.
Em
uma obra histórica como O 18 de brumário de Luís Bonaparte, a forma de encarar a política e
o Estado se dá em outro contexto: a França de meados do século passado – como
de resto qualquer conjuntura concreta – é um produto da conjunção do modo de
produção capitalista – já hegemônico –, permeado de “sobrevivências”
pré-capitalistas, que deforma o quadro de funcionamento do sistema construído
em O capital. Este, além de pressupor todas
as suas condições de gênese, ainda solicita a ausência de obstáculos à expansão
do mercado – tanto de investimentos quanto de consumo – paralela à necessidade
de multiplicação da produção. O plano histórico não reproduzindo esses
requisitos, o capital não se põe ainda em condições de reproduzir ele mesmo “as
condições de sua efetivação”, deixando espaço para a inserção das formas políticas
que supram suas lacunas. E o peso dessas formas estará em relação direta com a
posição dos requisitos para que as relações de produção se autorregenerem. Em O 18 de brumário é a força insuficiente do
capital industrial que possibilita a distorção do desenvolvimento
capitalista francês, representado principalmente pelo predomínio da
aristocracia financeira antes de 1848, e pelo fato de a massa da população ser
composta por pequenos proprietários rurais. O apelo ao governo bonapartista só
pode ser compreendido a partir das raízes que possui nessa insuficiência do
processo capitalista francês. O maior ou menor grau de preenchimento dos
requisitos de instauração do sistema determina a autonomia que seu
funcionamento possui diante das condições que o geraram; daí a função dos
mecanismos políticos, incluindo-se o Estado.
Uma
classificação das formas de Estado no mundo moderno teria de partir necessariamente
de uma análise das condições de transição de um modo de produção a outro; o
Estado liberal correspondendo a uma autodeterminação completa do capitalismo,
que dispensaria intervenções externas ao mecanismo econômico; o Estado nos
países subdesenvolvidos, cuja força é correlata à incapacidade de acumulação de
capital pela burguesia desses países; o Estado bonapartista, o Estado
militarista etc. Quanto mais inexistentes as condições de acumulação primitiva
em um país, maior será a indistinção entre esse período e o da reprodução
autônoma de capital, inscrevendo mais a fundo as intervenções estatais e as
crises políticas na sua história.”
[1] Karl Marx, Grundrisse: manuscritos econômicos de
1857-1858 – Esboços da crítica da economia política (São Paulo/Rio de Janeiro,
Boitempo/Editora Uerj, 2011), p. 61.
[2] Ibidem, p. 377-8.
[3] Vale notar que as
passagens com referência histórica e política direta em O capital, tais como a “acumulação
primitiva” e as relações históricas entre indústria e comércio, abordam as
condições da gênese do sistema, e não sua estrutura interna.
“Criticar a filosofia política clássica não significa simplesmente
aprofundar-se em sua problemática para demonstrar a insuficiência de seus
métodos. Trata-se de questionar o seu próprio objeto, retomando, a
partir daí, seu campo real e a problemática que lhe deve corresponder. A
crítica da filosofia política tem seu fundamento, então, na constituição do
objeto da política. Contrariamente ao procedimento das vulgarizações dentro
do marxismo, que reduzem essa ruptura às diferenças do método, a questão da
continuidade ou não de objeto e de problemática é que possui papel central.
O
estatuto do objeto do político é a chave da compreensão para determinar o caráter
preciso dessa ruptura. Compreender o lugar do político é determinar sua independência
relativa em uma estrutura de produção, o tipo de dependência/autonomia que
mantém com a totalidade das relações de um modo de produção. Contudo, para além
da mera constatação, o que importa é a determinação do fundamento das
diferenças de ritmo e de autonomia desse nível em relação aos demais. Da mesma
forma que o tempo da economia se constitui paralelamente ao papel particular
que a produção desempenha em cada uma de suas formas, o político terá seu ritmo
definido conforme as relações que entretenha com os momentos da produção –
circulação, distribuição, consumo – em cada modo de produção.”
“Quando Marx se preocupou com uma periodização da história conforme os
modos de produção – isto é, desde A ideologia alemã –, marcou sua ruptura com todas
as formas de historicismo, porque cada maneira de combinação entre os
trabalhadores diretos e os meios de produção configura uma nova forma de
organização social, que, por sua vez, instaura novas categorias e articulações
na história dos homens. A relação entre proprietários dos meios de produção e
produtores estende-se por toda a estrutura social, atribuindo aos conceitos
novas determinações: desde os de proprietário, produção, trabalhador,
até os de sociedade, política, economia.
As
diferentes combinações possíveis entre a força de trabalho e os meios
de produção são a fonte última de onde surgem as categorias históricas que
mais imediatamente compõem as relações sociais: senhor feudal, servo da gleba,
escravo, capitalista, operário, todas são noções traduzíveis na linguagem das
relações entre aqueles elementos. As análises históricas encontram assim seu
objetivo, seu material, nas categorias geradas pelas relações de produção. Sua
forma de respeitar a distinção entre os modos de produção é focalizar os
indivíduos nas suas exatas determinações sociais, não tomando o escravo por
servo da gleba, ou o artesão por operário. Pelo fato de se deparar com formas
combinadas de modos de produção, esse respeito é o único critério pelo qual se
pode distinguir até que momento vale uma denominação, qual sua extensão
temporal e conceitual. As formas de combinação dos modos de produção impedem
que essa determinação se possa fazer a priori, já que, embora sempre um
desses modos seja predominante, seu grau de desenvolvimento implica diferenças
nas categorias que produz. Em uma economia colonial, por exemplo, o fato de ele
existir em função da produção para o mercado externo não é suficiente para
substituir necessariamente as relações feudais no setor da economia de
subsistência. O caráter predominante da produção para o mercado é o ponto de
referência mais geral; seu grau de desenvolvimento será o responsável pela
precisão a respeito das condições de relação social entre os indivíduos no
interior dessa estrutura social particular que é o mundo colonial.
As
análises políticas de Marx não se iniciam por diferenciações sobre o modo de
produção vigente, mas elas se fazem sempre sob seu pano de fundo. O centro de
referência da vida política na França, Alemanha ou Inglaterra é o caráter que a
revolução burguesa ganhou em cada um desses países: o atraso ou avanço
da revolução, as condições de desenvolvimento do processo de transformações a
que a burguesia se propôs. E a revolução burguesa é uma síntese das condições
de instauração e desenvolvimento do modo de produção capitalista, com todos os
diferentes aspectos que o acompanham. É um conceito que integra todas as
condições – empíricas ou estruturais – que o capitalismo enfrenta, e que,
portanto, nasce da distinção do modo de produção burguês, para só então
introduzir suas formas de transição.
As
condições de instalação do modo de produção capitalista serão mais ou menos
atendidas conforme o momento e o lugar na estrutura social geral em que se dê.
Seu total atendimento – como pressupõe O capital – ou a sobrevivência de formas pré-capitalistas gerarão condições
distintas de reprodução do sistema. Em um país onde as relações capitalistas
tenham se imposto com total hegemonia, as condições da apropriação serão
eminentemente econômicas, reservando papel secundário à política, pelo menos
até que o próprio desenvolvimento daquelas relações gere suas crises posteriores.
Nos países subdesenvolvidos e coloniais, por outro lado, onde a incapacidade de
criação das condições de acumulação primitiva é um problema estrutural, as
diferentes formas de intervenção da política, quer através do Estado – elemento
indispensável nos mecanismos de reprodução desses países –, quer através da
política imperialista em geral, têm papel central.
As
formas políticas, jurídicas e ideológicas são, portanto, solicitadas a se
inserir no vazio que se abre nas condições capitalistas de reprodução, tirando,
da maior ou menor extensão desse espaço, sua força. Mas isso vale também para
as diferenças entre o papel que tais condições desempenham nos vários modos de
produção, pois, uma vez que cada um deles se funda em formas distintas de
articulação entre os meios de produção e a força de trabalho, as relações
jurídicas solicitadas precisam ser diversas. Sua integração a cada modo de
produção é possibilitada pela combinação dos elementos da produção, sob a
condição de que essas formas se revistam conforme as solicitações de
autorregeneração da estrutura social. A separação característica ao
capitalismo, entre proprietários dos meios de produção e vendedores da força de
trabalho, requisita, como condições de sua existência, relações jurídicas
que tomem, a uns e a outros, como indivíduos livres e iguais,
bem como solicitam politicamente relações entre produtores diretos e
apropriadores de mais-valor, sob a forma dissimuladora de cidadãos. As
relações de produção capitalistas cedem então um lugar determinado ao político,
ao preço de que ele preencha nessas relações as condições de sua reprodução
como estrutura social. É conforme esse mesmo raciocínio que, pela simples
análise das relações de produção que caracterizam uma sociedade comunista –
abolição da separação entre força de trabalho e meios de produção e,
consequentemente, da separação entre produção social e apropriação privada –,
Marx se autoriza a afirmar nela a desaparição tanto do Estado quanto da própria
vida política.”
“Se no capitalismo serão apenas as formas
ideológicas que esconderão a referência social já no processo produtivo – pela
predominância do valor de troca –, nas sociedades pré-capitalistas a presença
do social só se dá no plano da circulação, já que a produção para a troca é
lateral e não se põe como sua finalidade. A substantivação que o comércio
adquire significa exatamente que é ele que dá consistência social às formas
particulares de produção, correspondendo ao predomínio da produção para o uso,
porque a produção existe sob essa forma – não determina a partir de si o
caráter das relações sociais, papel que é dado pelo processo de troca. É apenas
na troca que o capital e a mercadoria existem como tais: é pela troca que os
indivíduos, enquanto portadores de mercadorias, ganham dimensão social. Como o
lucro comercial advém do logro, o lugar que se ocupa na troca é que determina
socialmente o papel do indivíduo ou da comunidade. A função de veículo para a
troca de mercadorias, dentro desses modos de produção, traduz-se, para os
proprietários de produtos excedentes, em veículo que conduz da particularidade
à sociabilidade.
Esse papel central do comércio nas sociedades
pré-capitalistas encontra seu correspondente na função que a política
desempenha. As relações políticas têm em comum com as relações de troca o fato
de se abstraírem igualmente da produção, tomando os indivíduos como cidadãos,
desligados de suas funções de indivíduos que produzem. A vida política também significa
um contato entre os homens no plano da generalidade, que não inclui os seus
papéis privados. À justaposição das mercadorias pelo comércio socializa-se o
objeto, na qualidade de mercadoria, e os indivíduos, como proprietários das
mercadorias, só se tornam seres sociais dentro dele. Paralelamente, é a
política que doa aos indivíduos a qualidade de seres sociais, através da
qualidade de cidadãos. O comércio articula as formas de produção exteriormente,
sem consideração das condições dessa produção; à política cabe a organização
dos indivíduos, abstraindo-se das condições que os produzem como indivíduos,
articulando-os exteriormente às suas condições privadas. Os laços que unem os
cidadãos na política são tão incólumes aos seus papéis privados quanto o desconhecimento
que as mercadorias têm em relação às condições particulares de sua produção
como coisas. Enquanto o capital comercial parece ser a função por excelência do
capital, o comércio e a política se constituem nos eixos em torno dos quais se
constrói a sociabilidade. Porém, são formas de relações sociais que não
incorporam as condições privadas dos indivíduos, e que antes tiram daí sua vida
e sua força. Enquanto é a circulação que articula o processo social de
mercadorias, é na política que os indivíduos encontram o lugar por excelência
de sua existência social.
Isto já bastaria para determinar destinos
similares ao processo de troca e às relações políticas, através dos diversos
modos de produção. Mas suas relações estreitas vão mais longe: quando o capital
comercial não foi ainda submetido à hegemonia no capital industrial, ele tem de
encontrar seu motor no próprio processo da circulação. Como vimos, esse motor é
o logro, o comprar barato e vender caro – em suma, a violência, nas suas formas
mais ou menos abertas. As formas políticas de apropriação são então
predominantes em todas as formas sociais pré-capitalistas: tanto nas relações
de apropriação entre países – nas relações coloniais, por exemplo – como nas
relações de trabalho – na escravidão ou na servidão. Nos modos de produção em
que o lucro comercial é central, está igualmente reservado papel básico à
política. Desta forma, a localização do político, sua eficácia e sua autonomia
têm sua sorte ligada diretamente à função que o mecanismo de trocas desempenha
em cada modo de produção. As alterações essenciais têm seu marco na instauração
hegemônica do capitalismo, recolocando a estrutura social em funcionamento
conforme as leis que rompem abruptamente com todos os modos de produção
anteriores.”
“Conforme propicia a consolidação da produção em moldes capitalistas, o
Estado prepara seu próprio esvaziamento, já que luta contra as formas sociais
pré-capitalistas, nas quais a apropriação política sempre tinha presença
importante. Nas relações escravistas, por exemplo, “mesmo a parte da jornada de
trabalho em que o escravo apenas repõe o valor de seus próprios meios de
subsistência, em que, portanto, ele trabalha, de fato, para si mesmo, aparece
como trabalho para seu senhor. Todo seu trabalho aparece como trabalho não
pago”[17]. Nas relações feudais de trabalho, “o
trabalho do servo para si mesmo e seu trabalho forçado para o senhor da terra
se distinguem, de modo palpavelmente sensível, tanto no espaço como no tempo”[18]. O trabalho assalariado, por outro lado, esconde
a divisão entre o trabalho excedente e o trabalho necessário, sendo o
responsável pela imanência da vida econômica no capitalismo. Tanto o
trabalho pago como o não retribuído aparecem como pagos, exatamente ao
contrário do trabalho escravo. A introdução das relações capitalistas de
trabalho representa, pois, o fim das formas palpáveis de apropriação política,
fornecendo a base material que sustenta a ideologia da liberdade e da
igualdade; tudo o que contribui para a instauração dessas relações colabora
para o enfraquecimento das relações políticas. É o que ocorre com o Estado,
cujo fortalecimento desempenhou o papel de requisito histórico do capitalismo,
particularmente na luta contra o feudalismo, mas cujo papel dentro da estrutura
capitalista modificou-se. O Estado continuou essencial às relações de produção
capitalistas; porém, como essas relações se autorregeneram economicamente,
quanto mais elas logram esse seu intento, mais reservam às relações políticas funções
ideológicas, esvaziadas de eficácia real, similares às das relações jurídicas e
morais. O papel reservado ao político, conforme a estrutura que o capitalismo
se pretende, é o de um nível de superestrutura. Para a marcha ordinária dos
negócios, o trabalhador pode ser confiado às “leis naturais da produção”. O
papel da violência passa a se constituir em “reserva” do sistema, marginal ao
seu mecanismo normal.
As
relações entre o comércio e a indústria, e entre a política e as relações
econômicas, são formas de manifestação das relações entre os modos de produção
tomados na estrutura de seu funcionamento e seu encadeamento histórico.
Centrados no capitalismo, como ponto de vista privilegiado que ilumina os modos
de produção anteriores, percebemos como a cronologia evidenciava um papel do
comércio e da política que não coincide com sua função dentro do capitalismo,
mas cuja atividade exatamente prepara o advento da hegemonia da indústria e das
relações econômicas. Esse imbricamento entre os dois planos necessita da
existência, na história, de momentos que representem uma ruptura decisiva na
evolução cronológica, porque significa a passagem à outra estrutura de modo de
produção. Na evolução política da França, analisada por Marx, O 18 de brumário desempenha esse papel; a
política e o Estado veem redefinirem-se seus lugares na estrutura social a
partir desse instante. Ele marca a passagem da determinação da vida social pela
contradição entre os interesses burgueses contra os feudais para sua
determinação pelas contradições de classes inerentes ao capitalismo, que opõem
burgueses e proletários.
A
mudança de papel que ocorre com a política e com o Estado advém das diferenças
que se estabelecem nas formas de oposição aos interesses feudais ou aos
proletários. O domínio feudal assentava-se em relações políticas, tanto na
dependência do servo da gleba para com o senhor feudal, mediada pela posse da
terra, como nas relações de comércio, em que a apropriação política era
central. A forma de combate às relações feudais encontrava o seu campo dentro
mesmo da luta política pela quebra dos privilégios locais pelo poder do Estado;
a burguesia teve de combater com as armas que seu adversário havia escolhido.
Em
todas as formações sociais pré-capitalistas – escravistas e medievais – o
político ligava-se, por isso, estreitamente à vida econômica da comunidade. A
ausência de separação radical entre a força de trabalho e os meios de produção
impossibilitava uma vida política desligada das relações econômicas, já que não
existia ainda o cidadão – indivíduo tomado exclusivamente como ser social,
independentemente de sua relação com os meios de produção. Portanto, o político
ainda não existia como um nível específico, com lógica interna própria,
estrutura e práticas autonomizadas, paralelamente ao fato de o indivíduo não
ter funções distintas enquanto homem político e enquanto participante da
estrutura econômica da sociedade.
O
capitalismo encontra seu fator de propulsão na esfera econômica, através da
separação entre meios de produção e força de trabalho, que propicia o não
pagamento do trabalho excedente. As relações políticas já não se situam no
centro desse mecanismo, sendo solicitadas a desempenhar papel diverso: trata-se
da função ideológica de assentar-se sobre as relações econômicas de
produção, valendo-se da separação dos indivíduos em relação aos meios de
produção para organizá-los socialmente desligados de seus lugares junto aos
instrumentos de trabalho. Surge, assim, o conceito do “propriamente político”,
fundado na separação entre os meios de produção e a força de trabalho; a
consideração desses fatores unidos, através da venda da capacidade de trabalho
em troca do salário, determina o lugar que os indivíduos ocupam na estrutura de
produção da sociedade; a possibilidade de consideração dos homens apenas como
seres que participam da produção através do mecanismo de trocas dá chance de
aparição e autonomia ao político.”
[17] Idem, O capital, Livro I, cit., p. 610.
[18] Idem.
“A produção pressupõe a circulação em forma desenvolvida. Ao se
desenvolver, a produção gera igualmente a circulação, ao mesmo tempo em que se
reproduz. O fato de pressupor a circulação ganha seu lugar definido ao lado da
afirmação de que a produção engloba a circulação desenvolvida em seu processo
único.
Paralelamente
a isso, as relações econômicas capitalistas pressupõem relações políticas sob
forma desenvolvida, mesmo porque a história daquelas passa pelo desenvolvimento
destas, da mesma forma que a gênese do capital passa pela exposição do
mecanismo de trocas. O desenvolvimento das relações econômicas e políticas
constitui-se, pois, em um processo único de produção e reprodução do sistema,
compondo as relações de produção.
Contudo,
a realização do político (que a filosofia política vê) no mundo moderno
só seria possível se as relações de produção capitalistas fossem relações
fechadas sobre si mesmas, isto é, se as condições da circulação sempre
comandassem seu mecanismo, não fazendo do capitalismo um sistema que reproduz
as condições de sua realização, mas sempre sob uma forma ampliada, condenando-se
a uma expansão contínua. Na medida em que, por exemplo, o capitalismo não
produz mercado consumidor no mesmo ritmo de expansão em que amplia a produção,
isto é, na medida em que algum dos mecanismos que solicitam uma contínua
expansão da produção não encontra correspondentes no consumo, o sistema já não
está reproduzindo todas as condições necessárias à sua existência. As crises
apontam exatamente para as contradições entre um sistema que produz seus
pressupostos, mas que, pela separação entre produção social/apropriação privada
que o funda, não reproduz homogeneamente as condições de produção e de
apropriação. A produção tende a uma contínua expansão, já que, conforme a
fórmula sintética do Manifesto Comunista, “a burguesia não pode existir
sem revolucionar incessantemente os instrumentos de produção”[22],
mas as condições de apropriação não são multiplicadas pelo mesmo mecanismo. Ao
contrário, a tendência é a de aceleramento da contradição entre a produção –
cada vez mais socializada – e a apropriação – crescentemente privatizada.
Nesse
vácuo reintroduzem-se as soluções políticas dentro do capitalismo. Lenin
consegue caracterizar o imperialismo como “etapa superior do capitalismo”, como
fenômeno já encravado no coração das relações de produção capitalistas,
exatamente por esses clarões que se abrem nas condições de reprodução do funcionamento
do sistema. As crises capitalistas não se produzem pela impureza do
funcionamento histórico do esquema capitalista; elas encontram sua origem na
própria forma de se estruturar esse esquema, tendo obrigatoriamente que se
restabelecer sob forma expandida. A fase imperialista já não distingue então
entre as necessidades puramente econômicas ou políticas do capitalismo:
trata-se da reprodução das condições de funcionamento das relações de produção
que, pelas necessidades de expansão do mercado, por exemplo, não se determinam
exclusivamente como condições de uma ordem ou outra. Como relações de produção
baseadas na divisão de classes e na apropriação radical do trabalho alheio,
elas já não discerniam entre um mecanismo econômico e as relações políticas; em
um sistema assim constituído, a política está tão presente como as condições
que produzem a divisão em classes. As relações econômicas e políticas
reencontram-se como condições de um mesmo processo: reprodução dos pressupostos
das relações de produção, fulcro da existência e subsistência do capitalismo. Lukács observa o fenômeno ao nível da ideologia, afirmando: “É porque a ideia,
abertamente expressa, da luta de classes aparece duas vezes na história da
ideologia burguesa”[23]. São os momentos em que o
político intervém mais abertamente, tendo em vista a produção das condições
históricas solicitadas pelo modo de produção capitalista: o período
“heroico” da ascensão burguesa, e seu “período final de crise e desagregação”,
a etapa imperialista. Essa etapa apresenta uma peculiaridade política que passa
a defini-la.
A
autonomia da vida econômica buscada pelo capitalismo é o centro em torno do
qual ele redefine sua concepção sobre as esferas que o compõem. Nas formações
sociais pré-capitalistas, vimos como o político se apresentava como
contrapartida de uma produção ainda não organizada em função da troca: as
formas de apropriação políticas do logro e a violência funcionavam como mola
propulsora dos vários sistemas. A falta de continuidade entre a produção de
utilidades e de mercadorias era preenchida pelo comércio e pela política, que
se tornavam o nexo entre os dois níveis.
Quando
os rumos da mercadoria se imprimem a toda a estrutura social, o campo de ação
do político muda: de um lado, ele continua a se ligar às formas não
capitalistas de apropriação, no grau em que as condições de acumulação
primitiva não tiverem sido preenchidas. De outro lado, o político abrange as
relações propriamente capitalistas, nas quais a produção de classes sociais
contraditórias e as dificuldades de reprodução social das relações capitalistas
abrem o novo campo de relações de conflito que corresponderá ao capitalismo. No
primeiro nível, teríamos os fenômenos pré-capitalistas e, no outro, os que se
produzem pelo desenvolvimento do próprio capitalismo, caracterizado pelas
crises. A “lei do desenvolvimento desigual e combinado do capitalismo”,
inerente ao sistema, encarregou-se de eliminar a distância histórica entre os
dois planos, fazendo de uns fenômenos requisitos de existência dos outros, sob
a forma do subdesenvolvimento e/ou colonialismo e mundo desenvolvido. A “etapa
imperialista” corresponde à interligação dos dois planos, fazendo os destinos
do capitalismo decidirem-se cada vez mais no nível político, pois as
possibilidades de reprodução do sistema fazem apelo a formas não econômicas de
apropriação.
Procuramos
assim encaminhar à compreensão de que, ao preço de uma crítica exaustiva e
radical da concepção do que seja a política, Marx extraiu uma nova noção da
política. Essa nova noção possui, da anterior, apenas o nome, já que seu
objeto, os elementos que o habitam e as relações que o entretêm são totalmente
outros. Falar de política marxista é abrir todo o campo das relações de
estrutura dentro do capitalismo, deter-nos na sua compreensão mais radical.
Vale dizer que seu entendimento passa, como momento necessário, pela crítica da
política enquanto teoria e prática ideológicas. Ao mesmo tempo, o caráter
ideológico dessa política tem seu fundamento obrigatório na análise do objeto
da política, em todas as suas extensões. Se a política, no sentido marxista,
não tem nada a ver com o instintivo, o espontâneo, é precisamente
porque ela representa a consciência limite de uma estrutura que nega a política
afirmando-a, e se afirma enquanto patrocina sua negação pela política. A
política marxista enfeixa a síntese dessa estrutura, na medida em que acompanha
os rastros da constituição de suas contradições, colocando-se então em
condições teóricas e práticas de superá-las.”
[22] Karl Marx e
Friedrich Engels, Manifesto Comunista (São Paulo, Boitempo, 1998), p.
43.
[23] György Lukács, El asalto a la razón (México, Fondo de Cultura
Económica, 1959), p. 114. Aqui em tradução livre.
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