quinta-feira, 26 de junho de 2025

Estado e política em Marx (Parte I), de Emir Sader

Editora: Boitempo

Opinião: ★★★☆☆

ISBN: 978-85-7559-375-2

Páginas: 120

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Sinopse: O século XXI segue permeado por um dos maiores enigmas da teoria social: de que forma as elites, minoritárias, conseguem manter seu poder político? Este é o cerne da análise realizada pelo sociólogo Emir Sader em Estado e política em Marx, escrito nos densos anos 1960 como sua dissertação de mestrado em filosofia, e agora publicada pela Boitempo. Sader aventura-se a decifrar elementos indispensáveis para a compreensão desse fenômeno central no capitalismo contemporâneo, analisando o lugar da instância política nas formações sociais concretas. Nas palavras do sociólogo, ‘não se trata de uma homenagem àquela juventude, mas de um reconhecimento de que o texto tem coerência e méritos para se candidatar à atualidade’.

Num relato histórico, que passa pelas formações sociais pré-capitalistas, o autor usa a teoria de Marx para captar a essência do que faz o capitalismo ser o que é nos tempos modernos, como se difere dos sistemas anteriores e de que forma se perpetua no poder, analisando as três relações chaves de sua existência: a política, a economia e o Estado. Sader reavalia o posicionamento do Estado dentro dos jogos de poder, em particular sua relação com as classes dominantes. Chama a atenção sua crítica ao que considera uma visão voluntarista do Estado, que o considera apenas instrumento usado pelas classes dominantes, ignorando sua inteiração com outros meios sociais. ‘Quando a análise leva em consideração apenas o topo da pirâmide social, o caráter específico do Estado e da política se esconde; bem como o papel que possuem de referência a toda a sociedade e que justifica sua existência social’, conclui.

Estado e política em Marx se mantém atual por relacionar a crise da política como forma emancipadora dos homens à crise da teoria política como reflexão sobre os fundamentos das relações de poder na sociedade. Sader toma pela raiz os temas que estruturam a política como prática social, recuperando a riqueza que ela desfrutou nos clássicos do pensamento moderno — em Marx, em primeiro lugar —, condição para reinventar a própria política e, com ela, a democracia e o socialismo.



Afora o aspecto das referências explícitas ou não na obra de Marx, uma dificuldade maior se põe a partir daí: aquela que afeta o objeto dessas obras. Não sendo precedidas por um esclarecimento sobre o nível de análise em que se colocam – à exceção dos prefácios e introdução de O capital –, possibilitam a confusão a respeito do seu nível de objetividade. Quando tomamos duas obras como O capital e O 18 de brumário e nos detemos no papel que se reserva nelas ao Estado, percebemos como aquela diferenciação torna-se indispensável. Na introdução à Crítica da economia política, encontramos “o plano a adotar”, exposto por Marx, “para o estudo da economia política”:

1) as determinações universais abstratas, que, por essa razão, correspondem mais ou menos a todas as formas de sociedade [...] 2) as categorias que constituem a articulação interna da sociedade burguesa e sobre as quais se baseiam as classes fundamentais. Capital, trabalho assalariado, propriedade fundiária. As suas relações recíprocas. Cidade e campo. As três grandes classes sociais. A troca entre elas. Circulação. Sistema de crédito (privado). 3) Síntese da sociedade burguesa na forma do Estado. Considerada em relação a si mesma. As classes “improdutivas”. Impostos. Dívida pública. Crédito público. A população. As colônias. Emigração.[1]

Para o esquema de O capital, que visa centralmente à compreensão das “categorias que constituem a articulação interna da sociedade burguesa”, a abstração das formas históricas de existência da sociedade capitalista, em que esse modo de produção aparece sempre mesclado de sobrevivência de outras formações sociais, conduz a uma função distinta do Estado. Na análise dessa “articulação interna”, o papel do Estado não é essencial, uma vez que sua função remonta à gênese daquela estrutura, à fase da ascensão e instauração do capitalismo, da qual a centralização política em torno do Estado é uma das condições. O caráter dessa abordagem transparece mais claramente na distinção subjacente, explicitada por Marx nos Grundrisse:

As condições e os pressupostos do devir, da gênese do capital, supõem precisamente que ele ainda não é, mas só devém; logo, desaparecem com o capital efetivo, com o próprio capital que, partindo de sua efetividade, põe as condições de sua efetivação. [...] Se, por conseguinte, os pressupostos do devir do dinheiro em capital aparecem como pressupostos externos dados para a gênese do capital –, da mesma forma o capital enquanto tal, tão logo é posto, cria seus próprios pressupostos [...].[2]

O capital detém-se sobre o mecanismo de criação desses pressupostos, considerando o Estado apenas na qualidade de condição do devir do capitalismo que, uma vez dada, abre campo para o próprio capital colocar “as condições de sua efetivação”. Dentre essas, não se situa o Estado porque, uma vez produzida a centralização da estrutura social, o modo de produção capitalista encarrega-se ele mesmo de reproduzir essa unificação através da criação contínua de um mercado mundial único, e cada vez mais extenso. Posto em funcionamento esse mecanismo, o requisito da unificação social é reassumido pelas próprias relações de produção capitalistas. Quando a análise recai sobre esse nível, é justificável, portanto, que o papel do Estado seja postergado, já que seu interesse se relaciona com a “síntese da sociedade burguesa” que ele encarna. Enquanto essa “síntese” é reproduzida e acentuada pelas relações de produção, ao Estado compete a representação desse processo, a reprodução de sua “forma”. Vale dizer: quando todas as condições de gênese do capital são dadas – como supõe Marx em O capitalas relações econômicas ganham autonomia, dispensando a intervenção de mecanismos políticos de apropriação e reprodução[3]. A uma estrutura social dessa ordem, como veremos mais adiante, é que corresponde a ideologia do laissez-faire, em que o Estado pode dispensar sua intervenção direta porque o mecanismo social é autorreprodutor.

Em uma obra histórica como O 18 de brumário de Luís Bonaparte, a forma de encarar a política e o Estado se dá em outro contexto: a França de meados do século passado – como de resto qualquer conjuntura concreta – é um produto da conjunção do modo de produção capitalista – já hegemônico –, permeado de “sobrevivências” pré-capitalistas, que deforma o quadro de funcionamento do sistema construído em O capital. Este, além de pressupor todas as suas condições de gênese, ainda solicita a ausência de obstáculos à expansão do mercado – tanto de investimentos quanto de consumo – paralela à necessidade de multiplicação da produção. O plano histórico não reproduzindo esses requisitos, o capital não se põe ainda em condições de reproduzir ele mesmo “as condições de sua efetivação”, deixando espaço para a inserção das formas políticas que supram suas lacunas. E o peso dessas formas estará em relação direta com a posição dos requisitos para que as relações de produção se autorregenerem. Em O 18 de brumário é a força insuficiente do capital industrial que possibilita a distorção do desenvolvimento capitalista francês, representado principalmente pelo predomínio da aristocracia financeira antes de 1848, e pelo fato de a massa da população ser composta por pequenos proprietários rurais. O apelo ao governo bonapartista só pode ser compreendido a partir das raízes que possui nessa insuficiência do processo capitalista francês. O maior ou menor grau de preenchimento dos requisitos de instauração do sistema determina a autonomia que seu funcionamento possui diante das condições que o geraram; daí a função dos mecanismos políticos, incluindo-se o Estado.

Uma classificação das formas de Estado no mundo moderno teria de partir necessariamente de uma análise das condições de transição de um modo de produção a outro; o Estado liberal correspondendo a uma autodeterminação completa do capitalismo, que dispensaria intervenções externas ao mecanismo econômico; o Estado nos países subdesenvolvidos, cuja força é correlata à incapacidade de acumulação de capital pela burguesia desses países; o Estado bonapartista, o Estado militarista etc. Quanto mais inexistentes as condições de acumulação primitiva em um país, maior será a indistinção entre esse período e o da reprodução autônoma de capital, inscrevendo mais a fundo as intervenções estatais e as crises políticas na sua história.”

[1] Karl Marx, Grundrisse: manuscritos econômicos de 1857-1858 – Esboços da crítica da economia política (São Paulo/Rio de Janeiro, Boitempo/Editora Uerj, 2011), p. 61.

[2] Ibidem, p. 377-8.

[3] Vale notar que as passagens com referência histórica e política direta em O capital, tais como a “acumulação primitiva” e as relações históricas entre indústria e comércio, abordam as condições da gênese do sistema, e não sua estrutura interna.

 

 

Criticar a filosofia política clássica não significa simplesmente aprofundar-se em sua problemática para demonstrar a insuficiência de seus métodos. Trata-se de questionar o seu próprio objeto, retomando, a partir daí, seu campo real e a problemática que lhe deve corresponder. A crítica da filosofia política tem seu fundamento, então, na constituição do objeto da política. Contrariamente ao procedimento das vulgarizações dentro do marxismo, que reduzem essa ruptura às diferenças do método, a questão da continuidade ou não de objeto e de problemática é que possui papel central.

O estatuto do objeto do político é a chave da compreensão para determinar o caráter preciso dessa ruptura. Compreender o lugar do político é determinar sua independência relativa em uma estrutura de produção, o tipo de dependência/autonomia que mantém com a totalidade das relações de um modo de produção. Contudo, para além da mera constatação, o que importa é a determinação do fundamento das diferenças de ritmo e de autonomia desse nível em relação aos demais. Da mesma forma que o tempo da economia se constitui paralelamente ao papel particular que a produção desempenha em cada uma de suas formas, o político terá seu ritmo definido conforme as relações que entretenha com os momentos da produção – circulação, distribuição, consumo – em cada modo de produção.”

 

 

Quando Marx se preocupou com uma periodização da história conforme os modos de produção – isto é, desde A ideologia alemã –, marcou sua ruptura com todas as formas de historicismo, porque cada maneira de combinação entre os trabalhadores diretos e os meios de produção configura uma nova forma de organização social, que, por sua vez, instaura novas categorias e articulações na história dos homens. A relação entre proprietários dos meios de produção e produtores estende-se por toda a estrutura social, atribuindo aos conceitos novas determinações: desde os de proprietário, produção, trabalhador, até os de sociedade, política, economia.

As diferentes combinações possíveis entre a força de trabalho e os meios de produção são a fonte última de onde surgem as categorias históricas que mais imediatamente compõem as relações sociais: senhor feudal, servo da gleba, escravo, capitalista, operário, todas são noções traduzíveis na linguagem das relações entre aqueles elementos. As análises históricas encontram assim seu objetivo, seu material, nas categorias geradas pelas relações de produção. Sua forma de respeitar a distinção entre os modos de produção é focalizar os indivíduos nas suas exatas determinações sociais, não tomando o escravo por servo da gleba, ou o artesão por operário. Pelo fato de se deparar com formas combinadas de modos de produção, esse respeito é o único critério pelo qual se pode distinguir até que momento vale uma denominação, qual sua extensão temporal e conceitual. As formas de combinação dos modos de produção impedem que essa determinação se possa fazer a priori, já que, embora sempre um desses modos seja predominante, seu grau de desenvolvimento implica diferenças nas categorias que produz. Em uma economia colonial, por exemplo, o fato de ele existir em função da produção para o mercado externo não é suficiente para substituir necessariamente as relações feudais no setor da economia de subsistência. O caráter predominante da produção para o mercado é o ponto de referência mais geral; seu grau de desenvolvimento será o responsável pela precisão a respeito das condições de relação social entre os indivíduos no interior dessa estrutura social particular que é o mundo colonial.

As análises políticas de Marx não se iniciam por diferenciações sobre o modo de produção vigente, mas elas se fazem sempre sob seu pano de fundo. O centro de referência da vida política na França, Alemanha ou Inglaterra é o caráter que a revolução burguesa ganhou em cada um desses países: o atraso ou avanço da revolução, as condições de desenvolvimento do processo de transformações a que a burguesia se propôs. E a revolução burguesa é uma síntese das condições de instauração e desenvolvimento do modo de produção capitalista, com todos os diferentes aspectos que o acompanham. É um conceito que integra todas as condições – empíricas ou estruturais – que o capitalismo enfrenta, e que, portanto, nasce da distinção do modo de produção burguês, para só então introduzir suas formas de transição.

As condições de instalação do modo de produção capitalista serão mais ou menos atendidas conforme o momento e o lugar na estrutura social geral em que se dê. Seu total atendimento – como pressupõe O capital – ou a sobrevivência de formas pré-capitalistas gerarão condições distintas de reprodução do sistema. Em um país onde as relações capitalistas tenham se imposto com total hegemonia, as condições da apropriação serão eminentemente econômicas, reservando papel secundário à política, pelo menos até que o próprio desenvolvimento daquelas relações gere suas crises posteriores. Nos países subdesenvolvidos e coloniais, por outro lado, onde a incapacidade de criação das condições de acumulação primitiva é um problema estrutural, as diferentes formas de intervenção da política, quer através do Estado – elemento indispensável nos mecanismos de reprodução desses países –, quer através da política imperialista em geral, têm papel central.

As formas políticas, jurídicas e ideológicas são, portanto, solicitadas a se inserir no vazio que se abre nas condições capitalistas de reprodução, tirando, da maior ou menor extensão desse espaço, sua força. Mas isso vale também para as diferenças entre o papel que tais condições desempenham nos vários modos de produção, pois, uma vez que cada um deles se funda em formas distintas de articulação entre os meios de produção e a força de trabalho, as relações jurídicas solicitadas precisam ser diversas. Sua integração a cada modo de produção é possibilitada pela combinação dos elementos da produção, sob a condição de que essas formas se revistam conforme as solicitações de autorregeneração da estrutura social. A separação característica ao capitalismo, entre proprietários dos meios de produção e vendedores da força de trabalho, requisita, como condições de sua existência, relações jurídicas que tomem, a uns e a outros, como indivíduos livres e iguais, bem como solicitam politicamente relações entre produtores diretos e apropriadores de mais-valor, sob a forma dissimuladora de cidadãos. As relações de produção capitalistas cedem então um lugar determinado ao político, ao preço de que ele preencha nessas relações as condições de sua reprodução como estrutura social. É conforme esse mesmo raciocínio que, pela simples análise das relações de produção que caracterizam uma sociedade comunista – abolição da separação entre força de trabalho e meios de produção e, consequentemente, da separação entre produção social e apropriação privada –, Marx se autoriza a afirmar nela a desaparição tanto do Estado quanto da própria vida política.”

 

 

“Se no capitalismo serão apenas as formas ideológicas que esconderão a referência social já no processo produtivo – pela predominância do valor de troca –, nas sociedades pré-capitalistas a presença do social só se dá no plano da circulação, já que a produção para a troca é lateral e não se põe como sua finalidade. A substantivação que o comércio adquire significa exatamente que é ele que dá consistência social às formas particulares de produção, correspondendo ao predomínio da produção para o uso, porque a produção existe sob essa forma – não determina a partir de si o caráter das relações sociais, papel que é dado pelo processo de troca. É apenas na troca que o capital e a mercadoria existem como tais: é pela troca que os indivíduos, enquanto portadores de mercadorias, ganham dimensão social. Como o lucro comercial advém do logro, o lugar que se ocupa na troca é que determina socialmente o papel do indivíduo ou da comunidade. A função de veículo para a troca de mercadorias, dentro desses modos de produção, traduz-se, para os proprietários de produtos excedentes, em veículo que conduz da particularidade à sociabilidade.

Esse papel central do comércio nas sociedades pré-capitalistas encontra seu correspondente na função que a política desempenha. As relações políticas têm em comum com as relações de troca o fato de se abstraírem igualmente da produção, tomando os indivíduos como cidadãos, desligados de suas funções de indivíduos que produzem. A vida política também significa um contato entre os homens no plano da generalidade, que não inclui os seus papéis privados. À justaposição das mercadorias pelo comércio socializa-se o objeto, na qualidade de mercadoria, e os indivíduos, como proprietários das mercadorias, só se tornam seres sociais dentro dele. Paralelamente, é a política que doa aos indivíduos a qualidade de seres sociais, através da qualidade de cidadãos. O comércio articula as formas de produção exteriormente, sem consideração das condições dessa produção; à política cabe a organização dos indivíduos, abstraindo-se das condições que os produzem como indivíduos, articulando-os exteriormente às suas condições privadas. Os laços que unem os cidadãos na política são tão incólumes aos seus papéis privados quanto o desconhecimento que as mercadorias têm em relação às condições particulares de sua produção como coisas. Enquanto o capital comercial parece ser a função por excelência do capital, o comércio e a política se constituem nos eixos em torno dos quais se constrói a sociabilidade. Porém, são formas de relações sociais que não incorporam as condições privadas dos indivíduos, e que antes tiram daí sua vida e sua força. Enquanto é a circulação que articula o processo social de mercadorias, é na política que os indivíduos encontram o lugar por excelência de sua existência social.

Isto já bastaria para determinar destinos similares ao processo de troca e às relações políticas, através dos diversos modos de produção. Mas suas relações estreitas vão mais longe: quando o capital comercial não foi ainda submetido à hegemonia no capital industrial, ele tem de encontrar seu motor no próprio processo da circulação. Como vimos, esse motor é o logro, o comprar barato e vender caro – em suma, a violência, nas suas formas mais ou menos abertas. As formas políticas de apropriação são então predominantes em todas as formas sociais pré-capitalistas: tanto nas relações de apropriação entre países – nas relações coloniais, por exemplo – como nas relações de trabalho – na escravidão ou na servidão. Nos modos de produção em que o lucro comercial é central, está igualmente reservado papel básico à política. Desta forma, a localização do político, sua eficácia e sua autonomia têm sua sorte ligada diretamente à função que o mecanismo de trocas desempenha em cada modo de produção. As alterações essenciais têm seu marco na instauração hegemônica do capitalismo, recolocando a estrutura social em funcionamento conforme as leis que rompem abruptamente com todos os modos de produção anteriores.”

 

 

Conforme propicia a consolidação da produção em moldes capitalistas, o Estado prepara seu próprio esvaziamento, já que luta contra as formas sociais pré-capitalistas, nas quais a apropriação política sempre tinha presença importante. Nas relações escravistas, por exemplo, “mesmo a parte da jornada de trabalho em que o escravo apenas repõe o valor de seus próprios meios de subsistência, em que, portanto, ele trabalha, de fato, para si mesmo, aparece como trabalho para seu senhor. Todo seu trabalho aparece como trabalho não pago”[17]. Nas relações feudais de trabalho, “o trabalho do servo para si mesmo e seu trabalho forçado para o senhor da terra se distinguem, de modo palpavelmente sensível, tanto no espaço como no tempo”[18]. O trabalho assalariado, por outro lado, esconde a divisão entre o trabalho excedente e o trabalho necessário, sendo o responsável pela imanência da vida econômica no capitalismo. Tanto o trabalho pago como o não retribuído aparecem como pagos, exatamente ao contrário do trabalho escravo. A introdução das relações capitalistas de trabalho representa, pois, o fim das formas palpáveis de apropriação política, fornecendo a base material que sustenta a ideologia da liberdade e da igualdade; tudo o que contribui para a instauração dessas relações colabora para o enfraquecimento das relações políticas. É o que ocorre com o Estado, cujo fortalecimento desempenhou o papel de requisito histórico do capitalismo, particularmente na luta contra o feudalismo, mas cujo papel dentro da estrutura capitalista modificou-se. O Estado continuou essencial às relações de produção capitalistas; porém, como essas relações se autorregeneram economicamente, quanto mais elas logram esse seu intento, mais reservam às relações políticas funções ideológicas, esvaziadas de eficácia real, similares às das relações jurídicas e morais. O papel reservado ao político, conforme a estrutura que o capitalismo se pretende, é o de um nível de superestrutura. Para a marcha ordinária dos negócios, o trabalhador pode ser confiado às “leis naturais da produção”. O papel da violência passa a se constituir em “reserva” do sistema, marginal ao seu mecanismo normal.

As relações entre o comércio e a indústria, e entre a política e as relações econômicas, são formas de manifestação das relações entre os modos de produção tomados na estrutura de seu funcionamento e seu encadeamento histórico. Centrados no capitalismo, como ponto de vista privilegiado que ilumina os modos de produção anteriores, percebemos como a cronologia evidenciava um papel do comércio e da política que não coincide com sua função dentro do capitalismo, mas cuja atividade exatamente prepara o advento da hegemonia da indústria e das relações econômicas. Esse imbricamento entre os dois planos necessita da existência, na história, de momentos que representem uma ruptura decisiva na evolução cronológica, porque significa a passagem à outra estrutura de modo de produção. Na evolução política da França, analisada por Marx, O 18 de brumário desempenha esse papel; a política e o Estado veem redefinirem-se seus lugares na estrutura social a partir desse instante. Ele marca a passagem da determinação da vida social pela contradição entre os interesses burgueses contra os feudais para sua determinação pelas contradições de classes inerentes ao capitalismo, que opõem burgueses e proletários.

A mudança de papel que ocorre com a política e com o Estado advém das diferenças que se estabelecem nas formas de oposição aos interesses feudais ou aos proletários. O domínio feudal assentava-se em relações políticas, tanto na dependência do servo da gleba para com o senhor feudal, mediada pela posse da terra, como nas relações de comércio, em que a apropriação política era central. A forma de combate às relações feudais encontrava o seu campo dentro mesmo da luta política pela quebra dos privilégios locais pelo poder do Estado; a burguesia teve de combater com as armas que seu adversário havia escolhido.

Em todas as formações sociais pré-capitalistas – escravistas e medievais – o político ligava-se, por isso, estreitamente à vida econômica da comunidade. A ausência de separação radical entre a força de trabalho e os meios de produção impossibilitava uma vida política desligada das relações econômicas, já que não existia ainda o cidadão – indivíduo tomado exclusivamente como ser social, independentemente de sua relação com os meios de produção. Portanto, o político ainda não existia como um nível específico, com lógica interna própria, estrutura e práticas autonomizadas, paralelamente ao fato de o indivíduo não ter funções distintas enquanto homem político e enquanto participante da estrutura econômica da sociedade.

O capitalismo encontra seu fator de propulsão na esfera econômica, através da separação entre meios de produção e força de trabalho, que propicia o não pagamento do trabalho excedente. As relações políticas já não se situam no centro desse mecanismo, sendo solicitadas a desempenhar papel diverso: trata-se da função ideológica de assentar-se sobre as relações econômicas de produção, valendo-se da separação dos indivíduos em relação aos meios de produção para organizá-los socialmente desligados de seus lugares junto aos instrumentos de trabalho. Surge, assim, o conceito do “propriamente político”, fundado na separação entre os meios de produção e a força de trabalho; a consideração desses fatores unidos, através da venda da capacidade de trabalho em troca do salário, determina o lugar que os indivíduos ocupam na estrutura de produção da sociedade; a possibilidade de consideração dos homens apenas como seres que participam da produção através do mecanismo de trocas dá chance de aparição e autonomia ao político.”

[17] Idem, O capital, Livro I, cit., p. 610.

[18] Idem.

 

 

A produção pressupõe a circulação em forma desenvolvida. Ao se desenvolver, a produção gera igualmente a circulação, ao mesmo tempo em que se reproduz. O fato de pressupor a circulação ganha seu lugar definido ao lado da afirmação de que a produção engloba a circulação desenvolvida em seu processo único.

Paralelamente a isso, as relações econômicas capitalistas pressupõem relações políticas sob forma desenvolvida, mesmo porque a história daquelas passa pelo desenvolvimento destas, da mesma forma que a gênese do capital passa pela exposição do mecanismo de trocas. O desenvolvimento das relações econômicas e políticas constitui-se, pois, em um processo único de produção e reprodução do sistema, compondo as relações de produção.

Contudo, a realização do político (que a filosofia política vê) no mundo moderno só seria possível se as relações de produção capitalistas fossem relações fechadas sobre si mesmas, isto é, se as condições da circulação sempre comandassem seu mecanismo, não fazendo do capitalismo um sistema que reproduz as condições de sua realização, mas sempre sob uma forma ampliada, condenando-se a uma expansão contínua. Na medida em que, por exemplo, o capitalismo não produz mercado consumidor no mesmo ritmo de expansão em que amplia a produção, isto é, na medida em que algum dos mecanismos que solicitam uma contínua expansão da produção não encontra correspondentes no consumo, o sistema já não está reproduzindo todas as condições necessárias à sua existência. As crises apontam exatamente para as contradições entre um sistema que produz seus pressupostos, mas que, pela separação entre produção social/apropriação privada que o funda, não reproduz homogeneamente as condições de produção e de apropriação. A produção tende a uma contínua expansão, já que, conforme a fórmula sintética do Manifesto Comunista, “a burguesia não pode existir sem revolucionar incessantemente os instrumentos de produção”[22], mas as condições de apropriação não são multiplicadas pelo mesmo mecanismo. Ao contrário, a tendência é a de aceleramento da contradição entre a produção – cada vez mais socializada – e a apropriação – crescentemente privatizada.

Nesse vácuo reintroduzem-se as soluções políticas dentro do capitalismo. Lenin consegue caracterizar o imperialismo como “etapa superior do capitalismo”, como fenômeno já encravado no coração das relações de produção capitalistas, exatamente por esses clarões que se abrem nas condições de reprodução do funcionamento do sistema. As crises capitalistas não se produzem pela impureza do funcionamento histórico do esquema capitalista; elas encontram sua origem na própria forma de se estruturar esse esquema, tendo obrigatoriamente que se restabelecer sob forma expandida. A fase imperialista já não distingue então entre as necessidades puramente econômicas ou políticas do capitalismo: trata-se da reprodução das condições de funcionamento das relações de produção que, pelas necessidades de expansão do mercado, por exemplo, não se determinam exclusivamente como condições de uma ordem ou outra. Como relações de produção baseadas na divisão de classes e na apropriação radical do trabalho alheio, elas já não discerniam entre um mecanismo econômico e as relações políticas; em um sistema assim constituído, a política está tão presente como as condições que produzem a divisão em classes. As relações econômicas e políticas reencontram-se como condições de um mesmo processo: reprodução dos pressupostos das relações de produção, fulcro da existência e subsistência do capitalismo. Lukács observa o fenômeno ao nível da ideologia, afirmando: “É porque a ideia, abertamente expressa, da luta de classes aparece duas vezes na história da ideologia burguesa”[23]. São os momentos em que o político intervém mais abertamente, tendo em vista a produção das condições históricas solicitadas pelo modo de produção capitalista: o período “heroico” da ascensão burguesa, e seu “período final de crise e desagregação”, a etapa imperialista. Essa etapa apresenta uma peculiaridade política que passa a defini-la.

A autonomia da vida econômica buscada pelo capitalismo é o centro em torno do qual ele redefine sua concepção sobre as esferas que o compõem. Nas formações sociais pré-capitalistas, vimos como o político se apresentava como contrapartida de uma produção ainda não organizada em função da troca: as formas de apropriação políticas do logro e a violência funcionavam como mola propulsora dos vários sistemas. A falta de continuidade entre a produção de utilidades e de mercadorias era preenchida pelo comércio e pela política, que se tornavam o nexo entre os dois níveis.

Quando os rumos da mercadoria se imprimem a toda a estrutura social, o campo de ação do político muda: de um lado, ele continua a se ligar às formas não capitalistas de apropriação, no grau em que as condições de acumulação primitiva não tiverem sido preenchidas. De outro lado, o político abrange as relações propriamente capitalistas, nas quais a produção de classes sociais contraditórias e as dificuldades de reprodução social das relações capitalistas abrem o novo campo de relações de conflito que corresponderá ao capitalismo. No primeiro nível, teríamos os fenômenos pré-capitalistas e, no outro, os que se produzem pelo desenvolvimento do próprio capitalismo, caracterizado pelas crises. A “lei do desenvolvimento desigual e combinado do capitalismo”, inerente ao sistema, encarregou-se de eliminar a distância histórica entre os dois planos, fazendo de uns fenômenos requisitos de existência dos outros, sob a forma do subdesenvolvimento e/ou colonialismo e mundo desenvolvido. A “etapa imperialista” corresponde à interligação dos dois planos, fazendo os destinos do capitalismo decidirem-se cada vez mais no nível político, pois as possibilidades de reprodução do sistema fazem apelo a formas não econômicas de apropriação.

Procuramos assim encaminhar à compreensão de que, ao preço de uma crítica exaustiva e radical da concepção do que seja a política, Marx extraiu uma nova noção da política. Essa nova noção possui, da anterior, apenas o nome, já que seu objeto, os elementos que o habitam e as relações que o entretêm são totalmente outros. Falar de política marxista é abrir todo o campo das relações de estrutura dentro do capitalismo, deter-nos na sua compreensão mais radical. Vale dizer que seu entendimento passa, como momento necessário, pela crítica da política enquanto teoria e prática ideológicas. Ao mesmo tempo, o caráter ideológico dessa política tem seu fundamento obrigatório na análise do objeto da política, em todas as suas extensões. Se a política, no sentido marxista, não tem nada a ver com o instintivo, o espontâneo, é precisamente porque ela representa a consciência limite de uma estrutura que nega a política afirmando-a, e se afirma enquanto patrocina sua negação pela política. A política marxista enfeixa a síntese dessa estrutura, na medida em que acompanha os rastros da constituição de suas contradições, colocando-se então em condições teóricas e práticas de superá-las.”

[22] Karl Marx e Friedrich Engels, Manifesto Comunista (São Paulo, Boitempo, 1998), p. 43.

[23] György Lukács, El asalto a la razón (México, Fondo de Cultura Económica, 1959), p. 114. Aqui em tradução livre.

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